Manipuladores cerebrais

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8/18/2019 Manipuladores cerebrais http://slidepdf.com/reader/full/manipuladores-cerebrais 1/4 Manipuladores cerebrais Microrganismos podem manipular, muito melhor que nós, o circuito cerebral Robert M. Sapolsky Como grande parte dos cientistas, freqüento encontros profissionais, sendo um deles a reunião anual da Society of Neuroscience, organizaão mundial constitu!da pela maior  parte dos pesquisadores que in"estigam o c#rebro. $ uma das e%peri&ncias mais agressi"as, intelectualmente falando. 'magine cerca de () mil de n*s, cientistas +nerds+, trancados em um nico centro de con"en-es. ssa pro%imidade pode dei%ar qualquer um maluco depois de uma semana inteira ou"indo + se/a num restaurante, ele"ador ou  ban0eiro + discuss-es entusiasmadas sobre os a%1nios da lula. 2 processo de atualizaão de con0ecimentos cient!ficos tamb#m não # nada f3cil. 4 reunião apresenta uma sobrecarga enorme de informaão5 são 67 mil confer&ncias e cartazes. Sem contar que, do subcon/unto de cartazes de indispens3"el "erificaão, "3rios são inacess!"eis5 se/a por causa da multidão entusiasmada 8 frente deles, por estarem num idioma que "oc& nem mesmo recon0ece ou ainda porque descre"em, ine"ita"elmente, cada e%perimento que "oc& plane/a"a para os pr*%imos cinco anos. No meio disso tudo, esconde9se a compreensão compartil0ada de que, apesar de zil0-es de n*s labutarmos como escra"os sobre o assunto, ainda não sabemos nada sobre o funcionamento cerebral. Meu pr*prio momento de 0umildade na confer&ncia surgiu numa tarde ao me sentar nos degraus do centro de con"en-es. Sentia9me nocauteado por e%cesso de informaão e ignor:ncia generalizada. No momento em que meu ol0ar focou uma poa de 3gua escura e estagnada no meio9fio, imaginei que algum microrganismo microsc*pico infestando o local pro"a"elmente saberia mais sobre o c#rebro que todos n*s, neurocientistas, /untos. 2 insig0t desmoralizante brotou de um ensaio e%traordin3rio e atual sobre como certos  parasitas controlam o c#rebro de seus 0ospedeiros. 4 maioria de n*s sabe que bact#rias,  protozo3rios e "!rus t&m meios incri"elmente sofisticados de usar o corpo de animais  para seus pr*prios fins. les seqüestram nossas c#lulas, energia e estilo de "ida para  poderem prosperar.

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Manipuladores cerebrais

Microrganismos podem manipular, muito melhor que

nós, o circuito cerebral

Robert M. SapolskyComo grande parte dos cientistas, freqüento encontros profissionais, sendo um deles areunião anual da Society of Neuroscience, organizaão mundial constitu!da pela maior

 parte dos pesquisadores que in"estigam o c#rebro. $ uma das e%peri&ncias maisagressi"as, intelectualmente falando. 'magine cerca de () mil de n*s, cientistas +nerds+,trancados em um nico centro de con"en-es. ssa pro%imidade pode dei%ar qualquerum maluco depois de uma semana inteira ou"indo + se/a num restaurante, ele"ador ou

 ban0eiro + discuss-es entusiasmadas sobre

os a%1nios da lula.

2 processo de atualizaão decon0ecimentos cient!ficos tamb#m não #nada f3cil. 4 reunião apresenta umasobrecarga enorme de informaão5 são 67mil confer&ncias e cartazes. Sem contar que, do subcon/unto de cartazes deindispens3"el "erificaão, "3rios sãoinacess!"eis5 se/a por causa da multidãoentusiasmada 8 frente deles, por estaremnum idioma que "oc& nem mesmorecon0ece ou ainda porque descre"em,ine"ita"elmente, cada e%perimento que"oc& plane/a"a para os pr*%imos cincoanos. No meio disso tudo, esconde9se acompreensão compartil0ada de que, apesar de zil0-es de n*s labutarmos como escra"os sobre o assunto, ainda não sabemos nadasobre o funcionamento cerebral.

Meu pr*prio momento de 0umildade na confer&ncia surgiu numa tarde ao me sentar nos

degraus do centro de con"en-es. Sentia9me nocauteado por e%cesso de informaão eignor:ncia generalizada. No momento em que meu ol0ar focou uma poa de 3guaescura e estagnada no meio9fio, imaginei que algum microrganismo microsc*picoinfestando o local pro"a"elmente saberia mais sobre o c#rebro que todos n*s,neurocientistas, /untos.

2 insig0t desmoralizante brotou de um ensaio e%traordin3rio e atual sobre como certos parasitas controlam o c#rebro de seus 0ospedeiros. 4 maioria de n*s sabe que bact#rias, protozo3rios e "!rus t&m meios incri"elmente sofisticados de usar o corpo de animais para seus pr*prios fins. les seqüestram nossas c#lulas, energia e estilo de "ida para poderem prosperar.

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Mas, sob "3rios aspectos, a coisa mais fascinante e diab*lica que esses parasitasdesen"ol"eram + tema que ocupou min0as refle%-es naquele dia + # a 0abilidade quedemonstram em mudar o comportamento de seus 0ospedeiros a seu fa"or. 4lgunse%emplos em li"ros did3ticos descre"em ectoparasitas, microrganismos que colonizam asuperf!cie do corpo. Certos acarinos, por e%emplo, montam nas costas de formigas,

 pro"ocando um refle%o que culmina em "1mito, para da! se alimentarem. 4lgunso%iros depositam o"os na pele de um roedor. 2s o"os secretam uma subst:ncia que pro"oca coceira, fazendo o roedor mordiscar o local. Com isso, os o"os acabam sendoingeridos e, uma "ez dentro do roedor, eclodem na maior alegria.

 Nesses casos, as rea-es são pro"ocadas atra"#s de um artif!cio que consiste emmolestar o 0ospedeiro, fazendo com que se comporte de acordo com a con"eni&ncia dointruso. Mas alguns

 parasitas realmentealteram a funão do

 pr*prio sistema

ner"oso,manipulando0orm1nios queafetam ocomportamento do0ospedeiro. 2scirr!pedes ;Sacculinagranifera<, por e%emplo, um tipo decrust3ceo encontradona 4ustr3lia, grudamem carangue/os mac0os e secretam um 0orm1nio feminizante, induzindo ocomportamento maternal no animal. 2 carangue/o afetado parte para o mar cominstintos femininos e ca"a buracos na areia ideais para deso"a. 2 mac0o, ob"iamente,não ir3 deso"ar nada. Mas os pequenos crust3ceos, sim. se infectarem um carangue/of&mea, induzirão o mesmo comportamento + depois de atrofiar seus o"3rios, uma pr3ticacon0ecida como castraão paras!tica.

=or mais bizarros que se/am esses casos, pelo menos os organismos agem fora doc#rebro. 4lguns, no entanto, se introduzem nesse *rgão. >rata9se de seresmicrosc*picos, quase sempre "!rus. ?ma "ez no c#rebro, esses minsculos parasitas

 permanecem relati"amente protegidos de ataques imunes e iniciam sua tarefa ao des"iar o maquinismo neural em pro"eito pr*prio.

2 "!rus da rai"a # um desses parasitas. 4pesar de se con0ecer, 03 s#culos, a atuaãodesse "!rus, ningu#m, que eu saiba, conseguiu enquadr39lo de uma formaneurobiol*gica, como estou prestes a fazer. 4 rai"a poderia ter se desen"ol"ido de "3riasmaneiras para se locomo"er entre os 0ospedeiros. 2 "!rus não tem de ir a nen0um local

 pr*%imo do c#rebro. le poderia ter maquinado um artif!cio similar ao utilizado pelosagentes que causam os resfriados + irritar os terminais ner"osos das narinas, pro"ocandoo espirro do 0ospedeiro, espal0ando os replicantes "irais para todos os lados. 2u, então,

 poderia ter induzido um dese/o incontrol3"el de lamber algu#m ou algum animal

espal0ando, assim, o "!rus pela sali"a. Mas, como sabemos, a rai"a pode pro"ocar

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agressi"idade em seu 0ospedeiro, permitindo que o "!rus pule para um outro 0ospedeiro"ia sali"a que entra no ferimento.'magine s* isso. ?ma quantidade enorme de neurobiologistas estuda as bases neurais daagressão5 os camin0os cerebrais en"ol"idos, os neurotransmissores mais importantes, asintera-es entre os genes e o meio, a modulaão pelos 0orm1nios, e assim por diante. 4

agressão tem gerado confer&ncias, teses de doutorado, brigas acad&micas mesquin0as edireitos de posse s*rdidos. >oda"ia, o "!rus da rai"a sempre +soube+ e%atamente quaisneur1nios infestar para que algu#m desen"ol"a a rai"a. , pelo que eu saiba, nen0umneurocientista estudou a rai"a, especificamente, para compreender a neurobiologia daagressão..

Mesmo causando efeitos "irais tão impressionantes, ainda 03 espao paraaperfeioamento, de"ido 8 não9especificidade do parasita. Se "oc& # um animal portador da rai"a, pode morder uma das poucas criaturas, como o coel0o, onde o "!rus da rai"anão replica bem. ntão, apesar de os efeitos comportamentais da infecão o c#rebroserem bastante impressionantes, se o impacto do parasita for muito amplo, pode se auto9

e%tinguir em um 0ospedeiro sem futuro.

'sso nos reporta ao caso mara"il0osamente espec!fico do controle do c#rebro e ao ensaioque mencionei anteriormente, de Manuel @erdoy e colegas da ?ni"ersity of 2%ford.@erdoy e associados estudam um parasita denominado >o%oplasma gondii. Aentro deuma utopia to%opl3smica, a "ida consiste em duas seqü&ncias de 0ospedeirosen"ol"endo roedores e gatos. 2 protozo3rio # ingerido pelo roedor, onde forma cistosem todo o corpo, particularmente no c#rebro. 2 roedor # comido pelo gato, onde oorganismo to%oplasma se reproduz. 2 gato descarta o parasita atra"#s das fezes que, emum desses ciclos de "ida, são beliscadas por roedores. >odo esse panorama depende daespecificidade5 gatos são a nica esp#cie onde o to%oplasma pode se reproduzir e sedisseminar. =ortanto, o to%oplasma não gostaria que seu portador fosse abatido por umfalcão ou que as fezes de seu gato fossem ingeridas por um inseto que "i"e no esterco.'magine "oc&, o parasita pode infectar todos os tipos de outras esp#ciesB mas precisasempre se introduzir em um gato se o intento for a reproduão.

sse potencial de infestar outras esp#cies # o moti"o da recomendaão em todos osli"ros para mul0eres gr3"idas. 4consel0a9se a banir o gato e sua bande/a sanit3ria decasa e a não se fazer /ardinagem se 0ou"er gatos na "izin0ana. Se um to%oplasmacontido nas fezes de um gato infectar uma gr3"ida, ele pode entrar no feto e

 potencialmente causar comprometimento neurol*gico. Mul0eres gr3"idas e bem

informadas ficam inquietas com a pro%imidade de gatos. Roedores infectados porto%oplasma, toda"ia, apresentam reaão in"ersa. 4 0abilidade e%traordin3ria do parasitafaz com que os roedores percam a aflião.

>odos os roedores e"itam gatos + comportamento que etologistas designam como um padrão de aão fi%a, onde o roedor não desen"ol"e a"ersão por tentati"a e erro ;uma "ezque não e%istem mesmo tantas oportunidades de aprender com os pr*prios erros pertode gatos<. 4o contr3rio, a fobia a felinos # monitorada 8 dist:ncia e alcanada atra"#s daolfaão, ferom1nios e sinalizadores qu!micos por odor, liberados pelos animais.Roedores instinti"amente fogem do c0eiro de gatos + mesmo aqueles que nunca "iramum gato na "ida, como os descendentes de centenas de gera-es de animais de

laborat*rio. %ceto os roedores infectados pelo to%oplasma. Como foi demonstrado por

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@erdoy e seu grupo, esses roedores perdem, seleti"amente, a a"ersão e o medo dosferom1nios de gatos.sse não # um caso gen#rico de parasita se infiltrando na cabea de um 0ospedeirointermedi3rio, tornando9o desmiolado e "ulner3"el. >udo parece permanecer bemintacto nos roedores. 2 status social do animal não muda em sua 0ierarquia de dom!nio

e ele ainda se interessa pela c*pula e, portanto, de fato, nos ferom1nios do se%o oposto.2s roedores infectados podem ainda distinguir outros odores. les somente nãorec0aam os ferom1nios de gatos. 'sto # espantoso. $ como algu#m infectado por um

 parasita cerebral que não causa efeito algum, se/a nos pensamentos, emo-es, escoresS4> ou prefer&ncias tele"isi"as mas que, para completar seu ciclo de "ida, pro"oca umanecessidade urgent!ssima de ir ao zool*gico, pular a cerca e tentar um bei/o de l!ngua nourso polar mais bra"o. ?ma atraão fatal induzida por parasita, # como o grupo de@erdoy intitulou o ensaio.

2b"iamente, uma pesquisa mais abrangente # necess3ria. Menciono isso porque essadescoberta # intrinsecamente tão arro/ada, que algu#m precisa saber como funciona.

 porque + permita9me um momento Step0en ay Dould + fornece uma e"id&ncia aindamaior de que a e"oluão # e%traordin3ria. %traordin3ria por camin0os contra9intuiti"os.Muitos de n*s mantemos a id#ia profundamente arraigada de que a e"oluão #direcional e progressi"a5 in"ertebrados são mais primiti"os que "ertebrados, mam!ferossão os "ertebrados mais e"olu!dos, primatas são mam!feros com mel0or seleãogen#tica, e assim por diante. 4lguns dos meus mel0ores alunos sempre caem nessa, nãoimportando o quanto eu bata na mesma tecla durante as aulas.

Se "oc& comprar essa id#ia, al#m de errado, estar3 pr*%imo da filosofia que tem,tamb#m, direcionado a e"oluão dos 0umanos, partindo do princ!pio de que os europeusdo norte são os que mais desen"ol"eram paladar para Sc0nitzel e passo de ganso.

Eembre9se, então, que e%istem criaturas que podem controlar c#rebros. 2rganismosmicrosc*picos e at# maiores, mais poderosos que o Drande 'rmão e, sim, que osneurocientistas. 4 refle%ão ao lado da poa no meio9fio le"ou9me 8 conclusão oposta8quela alcanada por Narciso em sua refle%ão diante da 3gua. =recisamos de 0umildadefilogen#tica. Não somos, certamente, a esp#cie mais desen"ol"ida do pedao, tampoucoa menos "ulner3"el. Nem a mais esperta.Borna Disease Virus Infection in Animals and Humans. urgen 4. Ritc0t, 'solde=feuffer, Matt0ias C0rist, Fnut Grese, Farl @ec0ter e Sibylle Herzog in merging'nfectious Aiseases, Iol. J, nK J, p3gs. J7J9JL(B /ul0o9setembro 6. Aispon!"el em

OOO.cdc.go"PncidodPeidP"olJnoJPric0t.0tmFatal Attraction in ats Infected !ith "o#oplasma gondii. Manuel @erdoy, oanneQebster e Aa"id Macdonald in =roceedings of t0e Royal Society of Eondon, @ (,

 p3gs. 6L696L7B de agosto, (.

$arasites and the Beha%ior of Animals. anice Moore. 2%ford ?ni"ersity =ress, ((.