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1 Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI 24 e 25 de novembro de 2014 • Londrina, PR Manipulação de sentido pelo Fotojornalismo e as manifestações de junho de 2013: articulação da dualidade de sentido em uma fotografia 1 Gisele Souza Koch 2 Mariane Ravagio Catelli 3 Resumo: A fotografia é muito utilizada no jornalismo, pois a imagem fotografada ainda conquista a confiança de quem a vê - o que está ali, visível, aconteceu. O que é fotografado, no entanto, não mostra todo o real ou uma verdade absoluta, mas um recorte. Se a foto em si já carrega subjetividade, acompanhada de texto e diagramação ela se torna ferramenta essencial para manipulação de informações. A fotografia tirada pelo amador Drago, do grupo SelvaSP, foi postada em sua página de rede social na manhã seguinte ao protesto do dia 11 de junho de 2013, e veiculada na Folha de São Paulo dois dias depois. Este artigo mostra como o discurso do jornal se transformou em três dias, e como esta fotografia, com duas interpretações, foi uma das peças que encadeou essa transição.O sentido da imagem, portanto, apresenta-se moldável para compor o discurso interessante à Grande Imprensa. Palavras-chave: Fotografia; Fotojornalismo; Grande Imprensa; Manifestações de junho. Abstract: Photography is commonly used in journalism, for what is photographed conquers the viewers trust it is there, visible, so it must have happened. However photography does not show the whole reality or an absolute truth, but a trim. If the picture itself holds subjectivity, along with text and layout design it becomes an essential tool to manipulate information. A photograph taken by an amateur of the SelvaSP group, Drago, was posted in his social network Page the next morning to the 11th June protests in 2013 and broadcasted by Folha de São Paulo two days later. This paper shows the discourse changes of the newspaper in three days, and how this photograph and its meanings are pieces that provoked the shift. The image’s meanings are shaped to compose discourses of interest to the Great Press. Key words: Photography; Photojournalism; Great Press; June protests. 1 Trabalho apresentado no GT 7- Fotografia, do Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem ENCOI. 2 Graduada em Design Gráfico pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Estudante de Especialização em Fotografia: Práxis e Discurso Fotográfico, e estudante especial no Mestrado em Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: [email protected]. 3 Mestranda em Geografia e estudante da Especialização em Fotografia: Práxis e Discurso Fotográfico, ambos pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: [email protected].

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Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI

24 e 25 de novembro de 2014 • Londrina, PR

Manipulação de sentido pelo Fotojornalismo e as manifestações de junho de 2013:

articulação da dualidade de sentido em uma fotografia1

Gisele Souza Koch2

Mariane Ravagio Catelli3

Resumo: A fotografia é muito utilizada no jornalismo, pois a imagem fotografada ainda

conquista a confiança de quem a vê - o que está ali, visível, aconteceu. O que é

fotografado, no entanto, não mostra todo o real ou uma verdade absoluta, mas um

recorte. Se a foto em si já carrega subjetividade, acompanhada de texto e diagramação

ela se torna ferramenta essencial para manipulação de informações. A fotografia tirada

pelo amador Drago, do grupo SelvaSP, foi postada em sua página de rede social na

manhã seguinte ao protesto do dia 11 de junho de 2013, e veiculada na Folha de São

Paulo dois dias depois. Este artigo mostra como o discurso do jornal se transformou em

três dias, e como esta fotografia, com duas interpretações, foi uma das peças que

encadeou essa transição.O sentido da imagem, portanto, apresenta-se moldável para

compor o discurso interessante à Grande Imprensa.

Palavras-chave: Fotografia; Fotojornalismo; Grande Imprensa; Manifestações de

junho.

Abstract: Photography is commonly used in journalism, for what is photographed

conquers the viewers trust – it is there, visible, so it must have happened. However

photography does not show the whole reality or an absolute truth, but a trim. If the

picture itself holds subjectivity, along with text and layout design it becomes an

essential tool to manipulate information. A photograph taken by an amateur of the

SelvaSP group, Drago, was posted in his social network Page the next morning to the

11th June protests in 2013 and broadcasted by Folha de São Paulo two days later. This

paper shows the discourse changes of the newspaper in three days, and how this

photograph and its meanings are pieces that provoked the shift. The image’s meanings

are shaped to compose discourses of interest to the Great Press.

Key words: Photography; Photojournalism; Great Press; June protests.

1 Trabalho apresentado no GT 7- Fotografia, do Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e

Imagem – ENCOI. 2Graduada em Design Gráfico pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Estudante de

Especialização em Fotografia: Práxis e Discurso Fotográfico, e estudante especial no Mestrado em

Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: [email protected]. 3Mestranda em Geografia e estudante da Especialização em Fotografia: Práxis e Discurso Fotográfico,

ambos pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: [email protected].

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1. Introdução

Na metade do ano de 2013, milhões4 de brasileiros receberam e

aceitaram um convite virtual para uma manifestação nas ruas de suas cidades.

Inicialmente, a causa foi o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo. Muitos dos

principais noticiários inicialmente grifaram a depredação e o vandalismo, justificando a

ação policial. Por outro lado, os manifestantes e a mídia independente noticiaram o

movimento através de outro espectro, justificando o protesto e denunciando excessos da

polícia através imagens e vídeos que se alastraram instantaneamente em mídias sociais.

Em menos de duas semanas, mais de oitenta por cento da população já apoiava e unia-se

nas ruas com outros brados reivindicantes, e tais noticiários mudaram sua entoação.

Embora estivessem acontecendo desde o ano de 2012, os protestos contra

o aumento das tarifas de ônibus em São Paulo organizadas pelo MPL (Movimento Passe

Livre) ganharam destaque na mídia - corporativa e independente - em junho de 2013

devido ao confronto violento entre policiais e manifestantes e à dimensão do protesto.

Segundo o site do MPL, algumas manifestações que ocorreram em bairros de São Paulo

colaboraram para a divulgação de um ato maior, marcado para o dia 6 de junho e

organizado pelo Movimento.

No período de 24 horas seguintes, diversos grandes sites de notícias

dispunham de galerias com imagens do protesto. Tanto estas imagens quanto fotografias

de manifestantes, transeuntes e fotógrafos independentes começaram a sua circulação

pela rede. Enquanto isso, um convite para outro ato também percorria as redes sociais.

Houve protestos nos dias 6 (cerca de 2.000 pessoas), 7 (cerca de 5.000) e 11 de junho,

sendo que este último dia teve um número muito grande de fotografias divulgadas (e

entre 10 e 12 mil manifestantes)5.

4Segundo pesquisa feita pela CNM (Confederação Nacional de Municípios) e divulgada em 21 jun. 2013.

5De acordo com o Jornal do Estado de São Paulo, disponível em

<http://www.estadao.com.br/especiais/em-uma-semana-tres-protestos-contra-aumento-da-tarifa-em-sao-

paulo,203763.htm>. Acesso em 03 set. 2014.

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Na semana seguinte, com proporções muito maiores os protestos

continuaram e o teor das notícias começava a mudar. Apesar do crescimento do espaço

para mídias alternativas ou independentes na internet, a mídia hegemônica controlada

por poucos ainda possui grande influência para a formação de opinião de muitos

brasileiros. Assim, os noticiários apresentam seu discurso como a verdade ao invés de

um ponto de vista. É nesse momento que a informação manipulada torna-se perigosa:

quando não se mostra como tal, mas como fonte imparcial ou imaculada. E a fotografia

atua como evidência da verdade do relato verbal.

2. Tipos de manipulações

Perseu Abramo (1929 – 1996) foi um sociólogo, professor e jornalista

importante no Brasil. Em sua obra “Padrões de manipulação na Grande Imprensa”, o

autor discute a maneira com que as informações são manobradas. Em suas palavras:

O principal efeito dessa manipulação é que os órgãos de imprensa não

refletem a realidade. A maior parte do material que a imprensa oferece ao

público tem algum tipo de relação com a realidade. Mas essa relação é

indireta. É uma referência indireta à realidade, mas que distorce a realidade.

(ABRAMO, 2003, p. 23)

Assim, o público é submetido às informações artificiais, criadas pela

grande imprensa. Segundo Abramo (2003), em quase sua totalidade, a realidade

apresentada não é verdadeira, sendo muitas vezes antagonicamente oposta. A

manipulação ocorre de diversas maneiras. O autor classifica quatro padrões: o de

ocultação, o de fragmentação, o de inversão e o de indução.

O padrão de ocultação refere-se à ausência ou presença dos fatos reais na

imprensa, ou seja, a decisão de quais fatos serão noticiados pela mídia, já que todos os

fatos são passíveis de serem noticiados.

Já no padrão de fragmentação são eliminados alguns fatos e o “resto” é

apresentado ao leitor. Está relacionado a duas operações: a seleção de aspectos do fato e

a descontextualização.

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O todo real é estilhaçado, despedaçado, fragmentado em milhões de

minúsculos fatos particularizados, na maior parte dos casos desconectados

entre si, despojados de seus vínculos com o geral, desligados de seus

antecedentes e de seus consequentes no processo em que ocorrem, ou

reconectados e revinculados de forma arbitrária e que não corresponde aos

vínculos reais, mas a outros ficcionais e artificialmente inventados.

(ABRAMO, 2003, p. 27)

O terceiro padrão é o da inversão, que fragmenta o fato em

aspectos particulares e descontextualizados, operando no planejamento, coleta,

transcrição, preparação e apresentação das informações. Existem três tipos principais de

inversão: inversão da relevância dos aspectos; inversão da forma pelo conteúdo e

inversão da versão pelo fato.

Na inversão da versão pelo fato, este passa a ser secundário, pois

é a versão dele que interessa. Portanto, a imprensa se interessa em apresentar

declarações, mesmo quando as versões são incompatíveis com os fatos. Nesse padrão

encontra-se o “frasismo” e o “oficialismo”.

É recorrente a inversão da opinião pela informação na grande

imprensa brasileira. Assim, o juízo de valor se transforma em um juízo de realidade e o

leitor não forma sua opinião de maneira independente. De acordo com Abramo (2003,

p. 32), “Essa particular inversão da opinião sobre a informação pode às vezes assumir

caráter tão abusivo e absoluto que passa a substituir a realidade real até aos olhos do

próprio órgão de informação”.

O último padrão é o de indução, que segundo o autor é a combinação dos

casos, momentos, formas e graus de distorção da realidade que impossibilitam a

compreensão dos eventos, através da indução para o consumo de outra realidade.

Portanto, para Abramo (2003, p. 33), “o leitor é induzido a ver o mundo não como ele é,

mas sim como querem que ele o veja”. A indução é elemento de manipulação da grande

imprensa: coisas que são ditas sem estarem necessariamente escritas, mas que estão

presentes na diagramação, manchetes e afins. A seguir, serão apresentados dois casos de

manipulação da notícia onde uma mesma imagem ganha diferentes conotações.

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3. A fotografia de Drago e a ilusão de verdade.

Figura 1:Policial ferido em manifestação do dia 12 de junho.

Fonte: https://www.facebook.com/selvasaopaulo/. Acesso em 5 set. 2014.

Tirada pelo fotógrafo amador, Drago, do grupo SelvaSP, foi postada na

manhã seguinte ao protesto do dia 11 de junho. Segundo entrevista6 concedida ao

Ateliê Fotografia, Drago fotografou o PM Wanderlei Paulo Vignoli apontando uma

arma aos manifestantes após ser agredido. Após a grande divulgação da imagem, por

mais de um jornal, o fotógrafo ainda afirmou que o ato de fotografar a cena foi também

um instinto de segurança, e que o policial havia agido de maneira violenta, pois

afugentou um grupo de pessoas ao sacar a arma após dominar um dos manifestantes.

As opiniões do fotógrafo e da imprensa, a partir desta mesma imagem,

divergiram em alguns momentos. É possível dizer que a do fotógrafo é a mais correta,

por ser ele protagonista do acontecimento, e é possível crer nos veículos que o

contrariam, pois ambos favorecem um aspecto diferente de um mesmo momento. A

fotografia não é imparcial. Ela é como o discurso verbal: podem ser concebidos e

interpretados por diversas vias contendo apenas um código.

6Entrevista concedida por Drago ao Ateliê Fotografia. Disponível em: <

http://atelliefotografia.com.br/cinco-minutinhos-de-atellie/entrevista-drago-do-selvasp/>. Acesso em: 03

set. 2014.

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A fotografia germinou e cresceu já cercada de discursos, e mesmo

destoantes tais discursos concordavam que a fotografia representava a realidade com a

maior fidelidade por causa “de sua própria natureza técnica, de seu procedimento

mecânico que permite fazer aparecer a imagem de maneira ‘automática’, ‘objetiva’,

quase ‘natural’ (segundo tão somente as leis da ótica e da química), sem que a mão do

artista intervenha diretamente” (DUBOIS, 1993, p. 27). Talvez porque as imagens

produzidas fossem, realmente, muito mais mecânicas e estáticas. Kossoy (1989, p.174)

comenta sobre a confiança na fotografia pela estaticidade:

[...] na análise das imagens fotográficas do século passado, cujos assuntos

encerram quase que exclusivamente retratos posados de estúdio e vistas

urbanas e rurais captadas na sua estaticidade, torna-se difícil levantar dúvidas

quanto à fidedignidade dessas representações do ponto de vista iconográfico.

Trata-se de registros mecânicos de fragmentos do mundo visível

caracterizados em geral pela inexistência de fatos dinâmicos que poderiam

eventualmente ser flagrados em sua espontaneidade (KOSSOY, 1989, p.174).

É possível então compreender a crença na fotografia naquele momento,

pois uma análise iconográfica7 leva à conclusão de que há de fato uma representação da

realidade no registro pela luz. Tudo o que é visto na foto, realmente aconteceu.

Agora, no entanto, a mecanicidade no ato do registro é imperceptível: é

possível fotografar em movimento – tanto fotógrafo quanto objeto. Todos os outros

processos químicos e mecânicos diluíram-se em eletrônicos, e as imagens são agora

constituídas de códigos binários. E a ilusão de veracidade da fotografia (no

fotojornalismo, mais precisamente) continua atingindo, mesmo que em grau menor,

aqueles que a veem. Aliada ao texto, a desconfiança desaparece ainda mais.

François Soulages (2010, p.22), propondo uma discussão sobre a estética

da fotografia, demonstra a relação que a fotografia tem com a realidade e a ilusão dela

no jornalismo:

Considera-se que essa fotografia [jornalística] deve mostrar-nos, como se

estivéssemos presentes - portanto, reportar-nos - o que “verdadeiramente”

7 Segundo Boris Kossoy, a fotografia pode ser analisada a partir de seus elementos gráficos (iconografia)

e pelos seus códigos e possíveis interpretações (iconologia). A iconografia parece ser mais objetiva, e isso

justifica um primeiro momento de confiança na veracidade do que se interpreta da imagem, da

universalidade de seu sentido.

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aconteceu. Permite-nos ter o dom da ubiquidade, estar nesse outro lugar e

nesse outro tempo em que não estamos, mas que aconteceram, que

“verdadeiramente” existiram. Ela se faz passar por uma mediação graças à

qual estamos imediatamente presentes nesse passado e nesse alhures. Ela é

como as pessoas tidas como dotadas do poder de comunicação com os

espíritos; é médium e não meio; daí sua função mágica de ilusão.

Mesmo após a veracidade da fotografia como registro da realidade

justificada pela iconografia cair por terra, a imagem ainda tem um apelo para se chegar

a conclusões convictas.

Observar as manipulações de sentido originadas de uma mesma imagem

é um passo para compreender esta característica mediúnica da fotografia como uma

apropriação parcial dos múltiplos significados de seus códigos para corroborar

determinadas opiniões.

3.1 Primeiro caso de manipulação: Folha de São Paulo

O jornal da Folha de São Paulo publicou essa fotografia no dia 13 de

junho, e a manchete gerou uma grande discussão nas redes sociais, pois o depoimento

do policial divergia dos manifestantes presentes no momento.

No dia seguinte, o cenário de fotografias mudou: o ferimento no olho da

jornalista da Folha de S. Paulo estampou uma pequena parte da capa da edição de São

Paulo e a manchete tinha um teor totalmente diferente da de dois dias antes.

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Figura 2: Manchete do dia 12 jun. 2013 da Folha de S. Paulo, versão paulistana.

Fonte: http://www.folha.uol.com.br. Acesso em 5 set. 2014.

Nesta manchete, a fotografia principal mostra apenas manifestantes,

alinhados e mascarados, queimando coisas e com alguma proteção, barricada, contra o

investimento policial. Somada às duas fotografias abaixo, é possível observar que a

diagramação indica que os policiais, no meio das duas fotos de manifestantes e chamas

de fogo, encontram-se sufocados e que, diante de toda esta baderna e fogo, deveriam

conter o protesto. A violência, portanto, parece vir primeiramente ou tão somente dos

manifestantes, que depredam patrimônio público e amedrontam a população. Os

policiais estão apenas defendendo-se. No dia seguinte, apenas uma imagem ilustra a

manchete:

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Figura 3: Manchete do dia 13 jun. 2013 da Folha de S. Paulo, versão paulistana.

Fonte: http://www.folha.uol.com.br. Acesso em 5 set. 2014

Há aqui uma contradição: por um lado, o texto ainda justifica a ação

policial através do que o governante e a Polícia Militar afirmam, no entanto a imagem

mostra o policial ferido dominando um manifestante e apontando sua arma em direção

ao fotógrafo – e ao leitor. Assim, o leitor pode concluir que o policial tomou uma

medida desesperada após ser ferido e investiu contra inocentes, porém estava

visivelmente sangrando, ao contrário do manifestante sob si.

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Figura 4: Manchete do dia 14 jun. 2013 da Folha de S. Paulo, versão paulistana.

Fonte: http://www.folha.uol.com.br. Acesso em 5 set. 2014

Enfim, o discurso do jornal toma uma posição totalmente invertida à de

dois dias antes: os policiais estão ilustrados e descritos como violentos, exagerando e

agredindo inocentes. Na imagem maior, há um casal aparentemente indefeso, que não se

parecem em nada com os manifestantes das fotografias anteriores, caindo ao chão

enquanto o policial cuja face pode ser identificada parece estar colérico e gritando. As

pessoas dentro do estabelecimento não identificado parecem chocadas com o que veem.

E, logo abaixo, uma pequena foto que diz muito sobre a mudança de atitude do jornal:

uma jornalista está ferida no olho, e a imagem é explícita e grotesca.

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Seria possível concluir, por essas notícias, que o que aconteceu foi um

aumento intenso da resposta policial à manifestação. Porém, por que a polícia passou a

agir contra inocentes de um dia para o outro? Se o protesto cresceu tanto, é porque a

população concordou com a causa e, sendo assim, aquelas fotografias do dia 12 ou

foram recortes que não mostram com fidelidade o contexto que pode ter sido uma

manifestação pacífica em parte, ou uma ação policial, desde aquele dia, ofensiva. O que

parece, é que a partir do momento em que o movimento de reivindicação ganhou

proporções maiores, maior apoio popular e feriu uma repórter da Folha, a opinião do

jornal inverteu-se completamente e esta contradição expõe a manipulação.

Na Figura 2, é possível que tenha havido uma fragmentação do fato, onde

se oculta a legitimidade do protesto apontando apenas vandalismo, ou se oculta a

violência policial. A manipulação mais evidente, porém, é a de inversão: só é mostrada

uma versão, e não o fato, pois fica claro que a história não faz sentido com a reviravolta

dos dias seguintes. Há também uma clara indução fornecida pela diagramação, com os

policiais entre as duas fotos, parecendo reprimidos, legitimando sua defesa em forma de

investida. Também, os manifestantes estão em uma posição oposta ao leitor, de afronta,

enquanto os policiais são apresentados de perfil, ao lado do leitor.

Na próxima manchete, a imagem causa a contradição com o texto, como

um prelúdio para a manchete. A fotografia choca, o leitor está na mira da arma,

ameaçado. São apresentadas duas versões do fato. A versão de quem estava lá, com os

manifestantes, e a versão do policial, agredido. Novamente, a indução: o texto induz a

justificar e compreender a necessidade da ação policial, mas a imagem amedronta. Por

fim, a última manchete demonstra a modificação de posicionamento do jornal, o texto e

as imagens apontam para a violência policial, excluindo todo aquele vandalismo de dois

dias antes. Se o evento aumentou tanto em proporção de adesão, por que agora a imensa

multidão que estava sendo agredida não apresenta tanta revolta e revide à ação policial

como em dois dias antes? É possível interpretar tal incoerência como uma medida de

adequação à adesão popular aos protestos, que escancara a manipulação das notícias.

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3.2 Segundo caso: a fotografia para a revista Veja e as entrevistas à Folha de S. Paulo.

No mesmo dia em que a Folha publicou a fotografia de Drago na

manchete, a revista Veja postou um artigo8 com a opinião do colunista Ricardo Setti,

cujo título é: “São Paulo: agitadores queriam linchar o PM que cumpria seu dever. E há

quem diga que isso não é baderna”. Para escrever tal artigo, baseou-se em uma

entrevista que o policial concedeu à Folha de S. Paulo em que dizia ter apontado a arma

por medo de ser linchado pelos manifestantes que gritaram isso.

A posição da Folha de S. Paulo, por outro lado, foi colocada de maneira

mais sutil. A fotografia utilizada para esta entrevista é muito semelhante à da manchete

do dia, com a seguinte diferença: há uma mão, do fotógrafo ou de outro manifestante,

que aparece como um pedido de “pare”:

Figura 5: Segunda fotografia de Drago (Selva SP) publicada na Folha

Fonte: www.folha.uol.com.br. Acesso em 5 set. 2014

No dia seguinte (14 de junho) é a vez do fotógrafo falar sobre o momento

da fotografia no site da Folha9. Segundo ele, o policial não teve uma atitude nem um

8Artigo disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/politica-cia/sao-paulo-agitadores-

queriam-linchar-o-pm-que-cumpria-seu-dever-e-ha-quem-diga-que-isso-nao-e-baderna/>. Acesso em: 5

set. 2014. 9Matéria disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1294922-fotografo-diz-que-

pm-foi-violento-e-que-fez-a-imagem-para-se-proteger.shtml>. Acesso em 5 set. 2014.

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pouco heroica, apenas violenta. A imagem utilizada foi a mesma da entrevista com o

policial. A justificativa do PM, portanto, é revogada pela fotografia escolhida pela

Folha: se o policial estava se defendendo, por que surge - do ponto de vista do leitor -

uma mão como pedido de misericórdia? Em um dia, a polícia se defende, mantém a

ordem, apenas. No outro, ela vira uma organização desumana e impiedosa.

4. Considerações finais

Desde o movimento dos “caras-pintadas”, que ocorreu há mais de 20

anos, não se via uma mobilização e participação popular tão abrangente no Brasil. As

manifestações de junho de 2013 já integram a história do tempo presente devido a sua

importância e participação popular.

Nos dias 12 e 13 de junho, o jornal Folha de São Paulo noticiou os

manifestantes como vândalos, destruidores da cidade, sendo necessário chamar a tropa

de choque e de acordo com o governador do Estado, punir os culpados. Já no dia 14 de

junho, o discurso toma outro rumo: os policiais são os violentos, ferindo dezenas de

pessoas e por isso são criticados pelo prefeito da cidade de São Paulo. A revista Veja,

por sua vez, insistiu em discordar completamente das manifestações neste mesmo

período de tempo.

A fotografia de Drago encontra-se entre estes discursos, como mediadora

da mudança para a Folha e como evidência na opinião da Veja. Isto significa que, não

apenas esta, mas todas as fotografias contém uma multiplicidade de sentido.

Por ter uma origem técnica, química e mecânica, a fotografia preserva

um aparente invólucro que mantém a imagem distante da manipulação humana. É

possível dizer que a credibilidade da fotografia no jornalismo, como evidência da

realidade e conservadora de uma verdade, é inerente a ela devido à sua gênese.

Sua associação a um texto reforça a ideia de que a imagem ali contém

uma linguagem universal, onde se descartam as possibilidades de interpretação. E é

neste momento que a manipulação da informação ocorre: quando se toma uma só leitura

da fotografia como verdadeira.

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A utilização de uma mesma foto para diversas matérias jornalísticas, no

entanto, demonstra a complexidade de significação da imagem. As diversas margens

tomadas como fato exibem a possibilidade de fragmentação do fato. O fotógrafo

concebe a foto já a partir de um fragmento, e esta por sua vez é também recortada para

compor divergentes discursos.

É possível considerar que a fotografia jornalística não está ainda

completamente liberta do truísmo a ela associado. No entanto, a mobilidade, o

amadorismo e a acessibilidade parecem ser ferramentas que gradualmente

desmistificarão sua “verdade absoluta”.

5. Referências

ABRAMO, Perseu. Padrões de Manipulação na Grande Imprensa. São Paulo:

Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.

DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. 11 ed. Campinas: 1993.

KOSSOY, Boris. Fotografia e história. São Paulo: Ática, 1989.

SOULAGES, François. Estética da fotografia: perda e permanência. São Paulo: Senac,

2010.