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74 www.revistaragga.com.br 74 PERFIL Com o discurso desafiador do Racionais e a língua afiada que lhes é tradicional, Mano Brown e KL Jay mostram porque estão entre as figuras mais importantes do rap nacional COLETIVIDADE NA QUEBRADA por Bruno Mateus fotos Bruno Senna e Isabela Daguer “Mano Brown e KL Jay vão tocar em BH. Parece que vai rolar uma entrevista”, disse a editora Sabrina. Segundos depois, não pude evitar a imagem do Mano Brown de cara fechada, braços cruzados e o bigodinho feito com precisão matemática. E não por acaso. Avesso a entrevistas e exposi- ção, ele, assim como o resto do grupo, foi coberto, na última década, por uma cortina de mistério e curiosidade. Pedro Paulo Soares Pereira, como o rapper e vocalista Mano Brown foi registrado, e Kleber Geraldo Lelis Simões, o dj KL Jay, são integrantes do mais respeitado e influente gru- po de rap do país, o Racionais MC´s, que ainda tem os mc’s Edy Rock e Ice Blue na formação. Fundado no final dos anos 1980, o Racionais ficou conhecido em todo o país com o álbum ‘Sobrevivendo no Inferno’, de 1998. Prêmios na MTV e clipes na programação da emissora alavancaram a venda de discos e deram prestígio ao quarteto. Desde então, muito se fala sobre a postura do grupo, que evita ao máximo estar sob os holofotes da grande mídia. De- pois de sete anos sem lançar material inédito – o último foi o álbum duplo ‘Nada como um dia após o outro’, de 2002 –, e há pouco mais de dois sem vir a Belo Horizonte, o Racionais está gravando o próximo cd, ainda sem nome, previsto para o primeiro semestre deste ano. Morador há 34 anos do Capão Redondo, uma das periferias mais violentas do país, o vocalis- ta do Racionais se diz um sobrevivente do inferno, ainda que, segundo o próprio, estejamos vivendo nele. KL Jay mora no Tucuruvi, região norte de São Paulo. Às 17h de uma terça-feira de costumeiro calor de janeiro, eu e o fotógrafo saímos da redação da Ragga rumo ao Aero- porto de Confins. Lá nos encontramos com os djs e produtores Rodrigo Xeréu e Vítor Sobrinho, e o também dj Zeu, responsá- veis pela vinda da dupla do Racionais a Belo Horizonte. Duas horas e meia depois, Mano Brown e KL Jay, acompanhados do rapper Dom Pixote, pisaram em solo belo-horizontino. KL Jay comprou castanha, amendoim e passas, tudo misturado, como se fosse pipoca, e nos ofereceu. Quando eu ainda tinha alguns amendoins na palma da mão, entramos no carro. Nes- se momento, começara uma jornada de quase 12 horas com o vocalista e o dj do Racionais. Tempo suficiente para falar sobre violência, futebol, educação, cultura e arte e apagar da cabeça a tal imagem do sujeito de cara amarrada, braços cru- zados e bigodinho. isabela daguer 75 www.revistaragga.com.br

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Revista Ragga - Fevereiro 2010

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PERFIL

Com o discurso desafiador do Racionais e a língua afiada que lhes é tradicional, Mano Brown e KL Jay mostram porque

estão entre as figuras mais importantes do rap nacional

COLETIVIDADE NA QUEBRADA

por Bruno Mateus fotos Bruno Senna e Isabela Daguer

“Mano Brown e KL Jay vão tocar em BH. Parece que vai rolar uma entrevista”, disse a editora Sabrina. Segundos depois, não pude evitar a imagem do Mano Brown de cara fechada, braços cruzados e o bigodinho feito com precisão matemática. E não por acaso. Avesso a entrevistas e exposi-ção, ele, assim como o resto do grupo, foi coberto, na última década, por uma cortina de mistério e curiosidade.

Pedro Paulo Soares Pereira, como o rapper e vocalista Mano Brown foi registrado, e Kleber Geraldo Lelis Simões, o dj KL Jay, são integrantes do mais respeitado e influente gru-po de rap do país, o Racionais MC´s, que ainda tem os mc’s Edy Rock e Ice Blue na formação. Fundado no final dos anos 1980, o Racionais ficou conhecido em todo o país com o álbum ‘Sobrevivendo no Inferno’, de 1998. Prêmios na MTV e clipes na programação da emissora alavancaram a venda de discos e deram prestígio ao quarteto.

Desde então, muito se fala sobre a postura do grupo, que evita ao máximo estar sob os holofotes da grande mídia. De-pois de sete anos sem lançar material inédito – o último foi o álbum duplo ‘Nada como um dia após o outro’, de 2002 –, e há pouco mais de dois sem vir a Belo Horizonte, o Racionais

está gravando o próximo cd, ainda sem nome, previsto para o primeiro semestre deste ano. Morador há 34 anos do Capão Redondo, uma das periferias mais violentas do país, o vocalis-ta do Racionais se diz um sobrevivente do inferno, ainda que, segundo o próprio, estejamos vivendo nele. KL Jay mora no Tucuruvi, região norte de São Paulo.

Às 17h de uma terça-feira de costumeiro calor de janeiro, eu e o fotógrafo saímos da redação da Ragga rumo ao Aero-porto de Confins. Lá nos encontramos com os djs e produtores Rodrigo Xeréu e Vítor Sobrinho, e o também dj Zeu, responsá-veis pela vinda da dupla do Racionais a Belo Horizonte. Duas horas e meia depois, Mano Brown e KL Jay, acompanhados do rapper Dom Pixote, pisaram em solo belo-horizontino. KL Jay comprou castanha, amendoim e passas, tudo misturado, como se fosse pipoca, e nos ofereceu. Quando eu ainda tinha alguns amendoins na palma da mão, entramos no carro. Nes-se momento, começara uma jornada de quase 12 horas com o vocalista e o dj do Racionais. Tempo suficiente para falar sobre violência, futebol, educação, cultura e arte e apagar da cabeça a tal imagem do sujeito de cara amarrada, braços cru-zados e bigodinho.

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Como vocês se conheceram?Mano Brown: Foi através de um amigo chamado Milton Sales, que virou empre-sário do grupo. KL Jay estava produzindo uma fita demo. Edy Rock era o cantor. Blue e eu chegamos lá... Essa história é longa... Da primeira vez, eu e Blue, na plateia, vimos KL Jay e Edy Rock se apresentando e a gente já se interessou. A gente não se conhecia e vimos eles [KL Jay e Edy Rock], tocamos e gostamos da figura, do estilo, do som. Até então a gente não se conhecia.

O rap do Racionais tem compromisso com o quê?MB: Com nós mesmos, nosso coração, nossas verdades. Com a verdade acima de tudo, morou? Compromisso com a verdade e quem acredita em nós.

Ser considerado a voz da periferia o incomoda?MB: Não me incomoda, mas não sou a voz, sou uma das vozes. Acho que a maior revolução daqui pra frente é todo mundo as-sumir sua carga de responsabilidade. Essa é a verdadeira revo-lução daqui pra frente.

Mano Brown já declarou que o verdadeiro público do grupo é o público da periferia. É constrangedor saber que as classes média e alta também consomem a música de vocês?KL Jay: A música chega para quem quiser ouvir, é igual ao ar, ela vai pelo ar. Não dá para impedir um cara de classe média alta de ouvir a música, gostar e até se identificar e sair cantando.MB: Constrangedor não é. Mas é curioso, porque você tenta se colocar no lugar do cara, de onde ele vem, o que ele é e o que sente ouvindo aquilo ali. Uma coisa é um cara do nosso meio, da nossa raça, do nosso convívio, e outra é um cara que não tem nada a ver com você. O que será que passa pela mente dele? É curioso.

2010 é um ano importante para a política e o futuro do país. O que vocês estão achando do governo Lula?MB: Não é perfeito, mas é o melhor que tivemos até hoje. É um governo mais humano.

Passa pela cabeça do grupo, ou de vocês dois, fazer campanha para alguém? KLJ: Essa fase já foi.MB: Apesar de a gente sempre fazer campanha, mesmo invo-luntariamente. Antes de ser conhecido, a gente já fazia por con-ta própria, sem ganhar nada, sem reconhecimento nenhum. A gente nunca negou voz nessa parte política.

Algumas pessoas dizem que as letras do Racionais só tratam de violência, periferia, crime. Por outro lado, vocês falam muito sobre

Voltando de Confins, eles elogiam a beleza das garotas de Belo Horizonte e comentam como a região próxima a Cidade Administrativa do governo de Minas se parece com a periferia de São Paulo na década de 1970.

Como foi apresentar o Yo! Rap na MTV?KLJ: Foi muito bom, uma época que for-taleceu bastante o rap no Brasil. Tinha muita gente em evidência: 509-E, Sa-botage, Xis, SNJ, RZO, Racionais, todo mundo fazendo show, várias festas. O Yo! ia cobrir festas e shows em vários luga-res. Eu tinha uma sintonia muito boa com a diretora do programa, então fluiu.

No show de hoje, por exemplo, vocês chegam com tudo já programado?KLJ: Tudo improvisado. Tem sido assim há tantos anos já, né?MB: Desde que o Racionais existe.

O último álbum de inéditas do Racionais foi em 2002 e teve o ao vivo em 2006. Por que esse hiato de sete anos?MB: Natural, nada calculado nem plane-jado, foi natural mesmo. O tempo pas-sou rápido.

O motorista dá um cigarro de palha para Mano Brown, que me pede o isqueiro e diz que quer comprar a coleção inteira do Clube da Esquina. “Quero comprar os CDs desses caras aí, quero a coleção inteira.” Logo em seguida, começa a cantar ‘Nada será como antes’, de Milton e Ronaldo Bastos. “Qualquer hora e qualquer direção, sei que nada será como antes, amanhã... Que saudade de tantos amigos, amanhã e depois de amanhã...” (sic)

Como você vê a produção do rap no país?MB: Cada estado tem suas caracterís-ticas. Brasília tem uma característica, São Paulo tem outra. Zona Leste de São Paulo tem um estilo, Zona Norte tem outro. São Paulo é grande, é quase um país. Você não tem só um estilo de mú-sica, as regiões são distantes umas das outras. Cada uma tem uma influência

Pergunto se eles conhecem a Rádio Favela. “Quando esta-va começando, nós viemos. Jogamos lá no campo, quando [a rádio] era piratinha ainda. Agora tá bom né, mano?”, per-gunta Mano Brown, que começa a contar a história de um amigo que deixou cair Super Bonder na calça. Manchou toda. “Ele ficou nervoso demais. É a calça mais nova que ele tem.” Por volta de 20h30, chegamos ao hotel. Meia-hora depois, assus-tadoramente famintos, fomos jantar em uma churrascaria pelas redondezas. Comemos e falamos sobre música. Mano Brown comparava Jorge Ben e Tim Maia e KL Jay não queria conversa. Após estarmos todos satisfeitos, paramos na porta do restaurante para bater papo e fumar um cigarro.

Depois de alguns tragos, fomos para o carro pegar o caminho de volta ao hotel. “Isso aqui tá uma bagunça”, diz o fotó-grafo, culpando sua profissão pela desordem do carro. “Tá precisando trocar as buchas da suspensão, hein”, diz KL Jay, tranquilo, após passarmos por um quebra-mola.

Você gosta de muita coisa antiga, né?MB: Ah, as coisas boas de música é “das antiga” né, cara? Coisa nova tem também, as melhores são inspiradas nas coisas velhas, desde o rap até Amy Winehouse. Vocês têm vontade de morar em outros lugares fora de São Paulo?MB: Tenho. Gosto de Belo Horizonte, Curitiba e interior do Paraná, por incrível que pareça, eu gosto.KLJ: Amo São Paulo, sou apaixonado por São Paulo, gosto pra caralho de São Paulo. Puta que pariu! Mas mora-ria, talvez, em Salvador. Um outro lugar que moraria é Nova York, com certeza por ser parecida com São Paulo, é uma São Paulo melhorada, mas não está nos meus planos. São Paulo é foda. O que mais? Costa do Marfim, na África. Vi umas fotos, mano. Sensacional. Me falaram que o povo lá é receptivo, tran-quilão. República Dominicana, iria lindo pra lá.

diferente da outra. Isso não quer dizer que você vai dividir o bagulho e inventar um rótulo.

E quando o rótulo acontece na música do Racionais?MB: Racionais é antirrótulo. A imprensa cria os rótulos. Ela cria para ter domínio, controle sobre aquilo. A crítica especiali-zada de música cria muito rótulo.

Espera-se do rap e do rapper uma postura crítica, rebelde. Você acha que necessariamente tem que se esperar isso?MB: Quando você faz o que se espera, mata o movimento. Não pode ser previsí-vel. Se o Exército vai invadir um bagulho, ele avisa antes? É igual esperar o Racio-nais fazer A, B e C, e o Racionais fizer A, B e C, certinho, igual os caras querem. Aí acabou o Racionais, é o caminho mais curto para acabar: um grupo previsível.

O que você curte fazer quando não está trabalhando com música?MB: Costumo ficar na favela com os caras, trocando uma ideia, curtindo um som. Beber, eu bebo muito pouco, fico mais conversando mesmo. Trabalho pensando e penso trabalhando.

Quando o ‘Sobrevivendo no inferno’ alcançou aquele sucesso imenso e vocês ganharam uma porrada de prêmios na MTV, em 1998, vocês foram receber os prêmios e o seu discurso foi um tanto quanto raivoso. Era um momento para falar muita coisa para muita gente escutar?MB: Ah, aquele momento era importan-te, não tem como negar, era o momen-to. Não para o Racionais, mas até para o Brasil. Muita coisa não se falava num momento daquele. Para nós, era uma final de Copa do Mundo, mano. O Pelé quando fez o milésimo gol, falou das crianças, é a mesma coisa.

fé e esperança.MB: Claro. Não existe assunto obriga-tório, o rap não pode estar preso a um assunto só, nem a dois ou três. O rap tem que falar da vida. Quando a gente fala de periferia, as pessoas se apegam na vio-lência da ideia, mas a gente fala de vida, e não violência, mas é a violência que chama as pessoas.

“Acredito que Deus é isso, é união, música bonita, criança sorrindo, uma árvore que está sendo plantada”Mano Brown

O repórter Bruno e Mano Brown começam a entrevista ainda em Confins. Ao lado, a carona rumo a BH

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Por volta de 23h, deixamos Brown e KL Jay no hotel. O próximo encontro seria no camarim da boate em que os dois se apresentariam. Nesse ínterim, eu e o fotógrafo sentamos em um café para bater papo. Quando a terça-feira já ficava para trás e a quarta anunciava sua primeira hora, entramos no local, que já estava lotado. Às 2h, Brown e KL Jay chegaram ao camarim, que era invadido pela música da boate. Enquanto KL Jay vidrava os olhos no seu laptop, sentei-me ao lado de Mano Brown para mais uma conversa. Ainda que o barulho atrapalhasse bastante.

Tem muita gente que está aqui por sua causa. É difícil lidar com essa expectativa do público?MB: Acho que meu foco é o som, a mú-sica. Meu compromisso é no coração, meu. Onde estou, estou com o coração .

Você falou que o compromisso da música do Racionais é com a verdade, com o coração.MB: Com Deus, primeiro.

Qual é o papel da religião na sua vida?MB: Sou um cara que tenho fé nas boas atitudes, na união, fé em Deus. Acredito que Deus é isso, é união, música bonita, criança sorrindo, uma árvore que está sendo plantada.

Vocês sempre foram muito arredios com a grande mídia [desde que foi lançada, uma revista nacional especializada em música tentou uma entrevista com Brown, que só foi realizada em dezembro do ano passado]. Por que vocês tomaram essa atitude? MB: Não era interessante na época, não ia somar. Nosso foco era outro. A gente sabia o que queria e não era aquilo, não estava nos nossos planos.

Você quer mudar isso?MB: Não quero mudar isso não. Só faço o que quero. Só o que for conveniente.Tenho o direito de querer ou não.

Muitos podem achar que é antipatia e até arrogância.MB: Podem achar, não pega nada, nada pessoal. Sabe uma coisa que dá para co-

lher disso tudo? Dinheiro. Ou orgulho. Quero ter os dois intactos. [risos]

Até que ponto o dinheiro é importante na sua vida?MB: No mesmo ponto que é importante na sua e na de todo brasileiro: sobre-vivência. Dinheiro parado fede, tenho essa filosofia. Não acho que ganhá-lo é errado. Dinheiro parado fede, tem um cheiro estranho.

O que te irrita no mundo da música?MB: Não tenho nada em mente agora não.

O Santos [Futebol Clube] te tira do sério?MB: [risos] Já me fizeram essa pergunta.

E a resposta é a mesma?MB: [o olhar de Brown se perde no ca-marim] Fiquei disperso de uma hora para outra, por que será? [risos]

O que o Santos representa para você?MB: Meu primeiro amor. Eu nem sabia beijar e já gostava do Santos. Vou a todos os jogos.

E a Seleção?MB: Não acompanho muito não. Não me preocupa a seleção, não sei porquê.

Você conhece o Pelé?MB: Não.

Tem vontade?MB: Tenho. Pelé botou o Brasil no mapa. Quando o Brasil foi campeão da Copa [de 1958, na Suécia], Brasil, Bolívia e Chile eram a mesma coisa, ninguém conhecia o Brasil.

O que mudou de Pedro Paulo Soares Pereira para Mano Brown?MB: Pedro é o nome pelo qual meus amigos mais antigos me chamam e Bro-wn é o nome pelo qual me chamam nos últimos 20 anos. Aí perguntam: Mas é o mesmo cara? Não é dupla personalida-de não, é uma só. Não é como o Bruce Wayne e o Batman, não é isso não.

Você é saudosista?MB: Sou saudosista, mas sou futurista também.

Como você se imagina daqui a 10 anos?MB: Cabelo quase todo branco, um pouco mais preguiçoso, tipo Dorival Caymmi.

Às vezes, acho que a democracia é democrática demais, tá ligado? [risos]. Ó, vou contar uma coisa para você. Tenho cinco filhos e coloquei todos eles para estudarem em escola paga. Aí você vê a diferença. Um dos meus filhos, vagabundo, não queria ir pra escola. Tirei [da escola particular] e ele fa-lou pra mãe dele: “Puta que pariu, tudo que a professora põe na lousa eu já sei”. Parece que existe um planejamento para manter os pobres ali mesmo, “ó, migalhas para vocês”, sabe? Acho que isso é planejado. Algumas coisas mudaram, o mun-do mudou, a época mudou, e a música e a arte estão acima de qualquer preconceito ou diferença social.

Arte e cultura são caminhos para uma revolução?KLJ: Sempre foi, desde o começo. O dia a dia é que atrapalha as relações entre as pessoas. Se não tivesse a arte, seria um caos, depressão monstra, todo mundo drogado na rua. A mú-sica é tipo um combustível para a vida, é como se fosse o ar que a gente respira.

É o seu combustível desde moleque?KLJ: Descobri a música com 10 anos. Ouvia Roberto Carlos, Beatles... É louco quando você percebe o poder que a arte tem de fazer as pessoas serem iguais. Ali [no show] não tinha preto, nem branco, nem rico e pobre; ali tinha música. Depois, a realidade volta, cada um vai para o seu lugar.

Ontem, no jantar, você estava comentando que o que importa é a música e quando comentei que o rap americano usa muito a imagem de carrão, joias, mulheres, champanhe, você disse que, para você, isso não importa, o que vale é a música que o cara faz.KLJ: O que importa é a música, é o que você ouve, certo? Uma música do 50cent pode fazer você se apaixonar por uma mulher na balada, fazer você dançar com uma mulher sen-sacional. Uma música do Jay-Z pode fazer você querer ser um empresário. Não gosto da ostentação, não gosto mesmo, olha como eu ando. Mas tento tirar o que gosto. Música é o que importa. Pelé fala um monte de besteira nas entrevistas, mas ele é o rei do futebol e acabou. Quando você vê o cara jogar, não quer saber o que ele falou ou não. Lulu Santos é um fresco, nojento, pretensioso, bichona louca, mas as músicas dele são muito loucas. “Quando um certo alguém desperta o sentimento é melhor não resistir...” [canta a música ‘Um Certo Alguém’].

O que você acha do funk carioca?KLJ: É um puta ritmo né, meu?

E as letras?KLJ: É o que eles têm para oferecer, o que eles vivem e não deixa de ser real.

“Créu, créu, créu” é o que eles vivem?KLJ: Sexo explícito, sexo sem experiência. É o que eles têm. É por isso que explode, porque é real, não tem caô, é aquilo lá. Gostem ou não gostem. Puta batida fodida, a batida do funk é foda.

E a produção do novo álbum? Já tem música pronta?KLJ: A gente está fazendo junto com William Magalhães [da banda Black Rio]. Tem música pronta, tem umas minhas, de Edy Rock, de Brown... Depois a gente junta tudo, começa a colocar voz e essas coisas.

Quando vocês fizeram aquele sucesso todo, com prêmios e clipes na MTV, o que você pensou?KLJ: A primeira coisa que veio à minha mente foi: mantenha o pé no chão e vai pro mundo, mas mantenha o pé no chão. Não se deslumbre com o sucesso, a fama e o dinheiro. Deveriam ensinar nas escolas como lidar com dinheiro, ter aula de inte-ligência financeira nas escolas.

E educação sexual também. Já passou da hora.KLJ: Puta, bem lembrado. Mas isso é planejado. Manter um povo cego, isso é planejado.

Você acha que o rap tem a obrigação de ser conscientizado?KLJ: Acho que o rap tem a obrigação de ser verdadeiro, cons-cientização é outra fita. É muito difícil falar disso. Você tem que se conscientizar primeiro antes de querer conscientizar o outro. Os grandes homens que mudaram o pensamento de muitas pessoas mudaram o pensamento deles primeiro, tiveram que se libertar. Conscientização é uma coisa muito complicada, a educação é que tem que fazer isso.

É difícil falar para um moleque da periferia que existe um caminho a ser trilhado que é bom e que ainda há esperança?KLJ: É difícil. Você não está lá com ele. Você fala com ele através da música, mas tem o dia a dia, né? Do mesmo jeito que é difícil para um moleque rico que tem os pais ausentes, loucos, drogados e que tem uma mentalidade de igualdade, ver os seus próximos terem ideias preconceituosas e racis-tas. Vários ricos se drogam e são viciados por não terem esse carinho, esse diálogo. É o amor que vai mudar tudo. Espiri-tualmente falando, é o amor que muda. Materialmente, é a educação.

O que você tem escutado?KLJ: Vou falar uma coisa que estou escutando muito: John Coltrane. Sensacional. Ele devia gostar muito de sexo, por-que o vejo tocando, a loucura que é ele tocando, é como duas pessoas terem uma puta atração uma pela outra e estarem ali juntas. E outras coisas também: Jay-Z ouço todo dia. Para

O momento esperado se aproximava. Gravador desli-gado, fim de papo. Após ver um forte show de KL Jay e Mano Brown, acompanhados de Pixote, tudo o que eu queria era pegar um táxi, chegar em casa, tomar uma ducha e cair em sono profundo. No dia seguinte, passei rapidamente pela redação da Ragga e, ao meio-dia, já estava na porta do hotel. Mano Brown e KL Jay desce-ram quase uma hora depois. Eu, fotógrafa (sim, o pro-fissional atrás da lente mudou, assim como seu gênero) e KL Jay fomos juntos no carro. Se na noite anterior o DJ estava caladão, no trajeto até Confins aconteceu o contrário. Quando falávamos sobre ditadura, revolução e educação, KL Jay começou a disparar:

“É o amor que vai mudar tudo.

Espiritualmente falando, é o

amor que muda. Materialmente, é a educação”

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mim, ele representa o progresso. Quando crescer, quero ser igual a ele.

Tem muita divergência musical no Racionais?KLJ: Um pouco, você viu ontem [no jantar, quando, numa discussão sobre Jorge Ben Jor e Tim Maia, Mano Brown, apesar de gostar de ambos, disse preferir Jorge.], né? [ri-sos]

[risos] Por isso pergunto.KLJ: Ele [Brown] tem a opinião dele e eu tenho a minha e nunca vai haver um consenso. Eu amo Jorge Ben Jor do mesmo jeito que amo Tim Maia, não dá para falar quem é melhor, não dá. Quem é o rei do futebol? Pelé, mas tem gente que acha que o Garrincha é melhor. Tudo bem.

Você já teve medo de ser assassinado, como Malcom X, Martin Luther King, Tupac e Sabotage?MB: Não tenho essa brisa não, mas é um lance que os que oferecem perigo convivem com isso de alguma for-ma. Quem carrega o piano, dá a cara pra bater, convive com isso.

Concorda que você seria um alvo?MB: Se eu andar moscando, vacilando, talvez. Todo cara que põe a mão na ferida sabe o risco que corre. É como assaltar um banco. Você não trabalha sem a possibilidade da morte, não existe isso.

Chegamos em Confins. Faltam 45 minutos para o avião decolar. Novo encontro com Mano Brown.

Qual é a sua opinião em relação à legalização das drogas?MB: Já existem várias drogas legalizadas, as piores já são legalizadas. Faltam duas ou três, as outras todas já são. Tem que haver uma revisão geral, as leis no Brasil parecem muito antigas.

E qual é a responsabilidade do usuário?MB: A primeira responsabilidade do usuário é com ele mes-mo, com a própria saúde, com o tempo. A Bíblia fala que o corpo do Homem é o templo de Deus. A primeira política do usuário é interna, causar uma rebelião interna e ele vai ver que não está bom. Agora, no coletivo, se é que existe campa-nha antidroga no coletivo, cada usuário usa por um motivo.

Quem é ou o que é o playboy para você?MB: Você não vai achar um termo. A cultura playboy existe, e pode ser até pobre. Às vezes é um rico, mas que sabe se posi-cionar no meio de qualquer um e qualquer lugar. Ou pode ser um classe média ou um cara quebrado, mas tem problema com certas pessoas e classes, e aí é uma atitude de playboy porque é seletiva, elitista, segregadora, medrosa. O playboy é que tem essa atitude, a cor dele e quanto ele tem no bolso eu já não sei, entendeu? [risos].

Você já sofreu muito com o preconceito?MB: Ô, mano, já sofri preconceito de cor.

Dentro da periferia também?MB: Dentro, pode ser, mas a maioria das vezes sofri fora. Na periferia, os caras que nem eu são a massa, são todo mundo. É uma pátria, um país.

Você é um cara otimista?MB: Sou otimista, claro. Pessimismo nunca, suicídio coletivo nunca, tipo Charles Manson.

Que maluco aquele cara, não? Viajou que a esposa [a atriz Sharon Tate] do diretor Roman Polanski estava grávida do filho do Satanás, como no filme ‘O bebê de Rosemary’, do próprio Polanski. Ele orquestrou e mandou que integrantes de sua seita, a Família Manson, fossem à mansão de Polanski matar a modelo, que estava com outras três pessoas que também foram mortas, e ainda disse que algumas músicas dos Beatles o haviam influenciado. MB: O John Lennon era vivo ainda?

Sim. Isso aconteceu em 1969, os Beatles ainda estavam na ativa.MB: O sonho não tinha acabado ainda.

O sonho nunca vai acabar.MB: O sonho não acaba, mas o show termina.

Pausa para um lanche rápido. O voo sai às 15h. São 14h30.

Você é realmente um sobrevivente do inferno?MB: Sou, mas o inferno está aí, o inferno con-tinua. Tem muitos vivendo no inferno neste exato momento.

Te dá vontade de fazer alguma coisa em relação a isso?MB: Acho que essas coisas são como acredi-tar em Deus, são as pequenas coisas. Não é só atrás de um balcão de uma ONG, nem cor-tando fita, inaugurando evento. São pequenas coisas, pequenos pensamentos, onde você pode eliminar racismo, injustiça.

É possível eliminar o racismo no Brasil?MB: É cada um tirar de si o racismo. É mais fácil administrar a si mesmo do que o Brasil. A mudança tem que partir de cada um.

O povo está preparado para isso?MB: Vem se preparando, está chegando.

Nas quase 12 horas com Mano Brown e KL Jay, entre aeroporto, entrevista, jantar, camarim, show e aeroporto

de novo, muita coisa foi dita e muias fotos foram tiradas.

O que não entrou nestas páginas você confere no

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“O rap tem que falar da vida. Quando a gente fala de periferia, as pessoas se apegam na violência da ideia, mas a gente fala de vida, e não violência”

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Mano Brown

O rapper em ação no palco: “Meu foco é o som, a música. Onde estou, estou com o coração”

O vocalista e o dj do Racionais participam de debate na semana da Consciência Negra, em BH, em 2002. Ao lado, os dois “trocam uma ideia” minutos antes do embarque para São Paulo

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