Manual de DIREITO CIVIL - Editora Juspodivm · 88 MANUAL DE DIREITO CIVIL – Cristiano Chaves de...

21
Ƒ ܮ !("$ķ$&, ubvঞ-mo_-;v7;-ub-v ;Ѵbr;u-]-;o ;Ѵvom!ov;m-Ѵ7 DIREITO CIVIL VOLUME ÚNICO 2018 Manual de

Transcript of Manual de DIREITO CIVIL - Editora Juspodivm · 88 MANUAL DE DIREITO CIVIL – Cristiano Chaves de...

DIREITO CIVIL

VOLUME ÚNICO

2018

Manual de

1CONTEXTUALIZANDO O NOVO

DIREITO CIVIL

“A criação é um meio melhor de autoexpressão do que a posse; é através do criar, e não do ter, que a vida se revela”.

Vida Dutton Scudder (The life of the spirit in the modern english poets)

1. DIREITO CIVIL: ORIGENS E FUNÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Seria exagero falar em novo direito civil? Será que o direito civil não se re-nova sempre, a cada geração, a cada passo do caminhar histórico? Sim e não. Há, naturalmente, a cada geração, mudanças legislativas, mudanças nesse ou naquele entendimento jurisprudencial. Isso é algo natural, esperado. Porém os nossos dias testemunham algo (muito) maior, algo – com o perdão da palavra gasta – revolu-cionário. O direito civil do século XXI é fundamentalmente distinto daquele que vigorou durante boa parte dos séculos passados. É um direito civil que consagra um sistema aberto, dinâmico, fortemente influenciado por princípios normativos e com particular cuidado com as dimensões existenciais do ser humano. Promove um diálogo entre as conquistas conceituais da tradição e as espantosas mudanças dos nossos dias. É claramente um edifício em construção.

Convém esclarecer algo desde já. Este primeiro capítulo é introdutório. Nele não tratamos, ainda, da Parte Geral do Código Civil (pessoas, bens, atos ilícitos etc.). Nem da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que veremos no capítulo seguinte. É fundamental, antes disso, em tópicos breves, contextualizar o sentido das mudanças que vêm atingindo o direito civil. Não faria sentido repetir, com novo verniz, velhas lições. É essencial verificar o sentido das mudanças, é preciso fazer a pergunta: para aonde estamos indo?

86 MANUAL DE DIREITO CIVIL – Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto

O direito civil participa da vida e da cultura dos povos – e em boa medida as reflete. É uma expressão cultural poderosa, forjada ao longo de muitos séculos, alternando períodos de maior empirismo com períodos de grandes construções con-ceituais (não esqueçamos que o próprio direito romano era fundamentalmente prático. Talvez esse, aliás, seja um dos seus trunfos, uma das causas de sua longevidade) 1.

Trata-se de construção não só normativa, mas também histórico-cultural. O direito civil é obra coletiva dos séculos. Nasceu da sabedoria empírica dos romanos2 e ao longo dos séculos ganhou em abstração e conceitualismo – atingindo um refi-namento admirável com os pandectistas (estes, em notável trabalho analítico, cons-truíram um modelo que por muito tempo pareceu definitivo). Mas a historicidade das categorias jurídicas mostra, hoje, com muita clareza, que não existem modelos eternos. Como diz o poeta, “o sempre, sempre acaba”. As estruturas e funções do direito civil mudaram bastante nas últimas décadas. Passamos de um regramento mais engessado e previsível para a aceitação, cada vez maior, do sistema jurídico como um sistema aberto de princípios normativos, que busca realizar valores e fins3.

Nossa formação cultural, romano-germânica, tradicionalmente está habituada a trabalhar com regras jurídicas, não com princípios. Isso, aos poucos, está mudando. Em sociedades plurais e complexas como a nossa só as regras não resolvem. Não por acaso, alguns autores alemães sustentam que o Estado Constitucional de Direito é um Estado de Ponderação (Abwägungsstaat). De especial relevância, nesse contexto, é a Constituição como um sistema aberto de princípios e regras. O sistema jurídico, assim, cada vez mais se põe como um sistema aberto de princípios normativos. Esses princípios, que estabelecem objetivos e fins, são articulados de modo dinâmico, não estático. Não há nem mesmo uma hierarquia prévia entre eles. Eles trabalham com

1 Mary Beard – professora de Cambridge e respeitada escritora – destaca: “Roma Antiga é importante. Ignorar os romanos é não apenas fechar os olhos para o passado distante. Roma ainda nos ajuda a definir o modo como entendemos nosso mundo e pensamos a respeito de nós mesmos, e isso abrange da alta cultura à comédia ba-rata. Após 2 mil anos, ela continua na base do pensamento e da política ocidental, daquilo que escrevemos e do modo como vemos o mundo e nosso lugar nele. No entanto, a história da Roma Antiga mudou radicalmente ao longo dos últimos cinquenta anos. Isso se deve em parte às novas maneiras de interpretar os dados antigos, e aos diferentes questionamentos que escolhemos fazer. É um mito perigoso achar que somos historiadores melhores do que aqueles que nos precederam. Não somos. Mas chegamos à história romana com outras prioridades – desde identidade de gênero a suprimento de comida – que fazem o passado antigo falar conosco num novo idioma. A história de Roma está sempre sendo reescrita, e sempre foi; em certos aspectos, sabemos mais sobre a Roma Antiga do que os próprios romanos. A história romana, em outras palavras, é uma obra em progresso” (BEARD, Mary. SPQR. Tradução. Luis Reyes. São Paulo: Planeta, 2017, p. 17-19).

2 As influências são, até hoje, sensíveis e fortes: “A base do direito da chamada civilização ocidental cristã é o direito romano, donde nos vieram as noções fundamentais, o método e os principais institutos, principalmente em ma-téria de obrigações”. Adiante, complementa: “O legado do direito romano, até hoje presente na cultura do mundo ocidental, traduz-se em alguns institutos de direito civil, como a teoria da personalidade, a capacidade de direito, a teoria dos bens e os direitos reais, a teoria da posse, a teoria geral das obrigações e dos contratos e a sucessão” (AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 109 e 115). Aliás, é preciso não esquecer – em favor do caráter sempre renovador e dinâmico da interpretação jurídica – que o próprio direito romano teve suas grandes características firmadas no período da interpretatio, mercê de substanciais trabalhos hermenêuticos perspectivados embora a partir da praxis (JOLOWICZ, H. F., Historical Introduction to the study of Roman Law. Cambridge: University Press, 1952, p. 87).

3 Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Trad. Paulo Motta Pinto e Ingo Wolfgang Sarlet. Coimbra: Coimbra editora, 2003.

CONCEITOS FUNDAMENTAIS • Cap. 1 – CONTEXTUALIZANDO O NOVO DIREITO CIVIL 87

uma lógica de ponderação, o que significa que apenas nos casos concretos, devida-mente contextualizados, é que os princípios se expandem ou se retraem, à luz das especificidades das circunstâncias.

O direito civil do século XXI dialoga com a sociedade complexa em que se insere. Não tenta negar essa complexidade, nem virar as costas para as profundas mudanças em curso – que repercutem intimamente na interpretação jurídica e na aplicação de suas normas. Ampliam-se, em nosso século, os espaços de liberdade no que diz respeito às situações subjetivas existenciais. Essa liberdade de escolha para as situações existenciais não infirma o caráter indisponível dos direitos da personalidade. As escolhas não podem contrariar a dignidade da pessoa humana, e a diretiva vale não só relativamente aos outros, mas também a si próprio (mas a autodeterminação também deve ser resguardada, o que torna particularmente delicada certas discus-sões). Nesse contexto, o STJ, a pedido do Ministério Público Federal, proibiu que o apresentador Ratinho exibisse deficiências físicas como atrações do seu programa, quando a deficiência fosse a própria atração do quadro, com propósitos sensacio-nalistas. A alegação do apresentador, no sentido de haver censura, foi afastada (STJ, Ag 886.698). O direito civil dos nossos dias é um processo de elaboração contínua e realização permanente.

2. PARA AONDE ESTAMOS INDO? A ESTRUTURA TEÓRICO-NORMATIVA

DO NOVO DIREITO CIVIL

“Um dia serei feliz? Sim, mas não há de ser já:

A Eternidade está longe, Brinca de tempo-será”.

Manoel Bandeira

Vivemos dias complexos e velozes4. Nossa sociedade é caracterizada por amplo pluralismo axiológico, com muitos e distintos interesses interagindo no quadro social. Isso, de certo modo, explica a heterogeneidade de valores e princípios acolhidos na Constituição. Temos uma Constituição pluralista – como a sociedade que ela busca reger – que tem, entre outros objetivos, a proteção da dignidade humana e a redução das desigualdades sociais. É verdade que nem sempre chegamos na velocidade que queremos chegar. As mudanças, que julgamos lentas, nem sempre correspondem às nossas ansiosas expectativas. Mais importante, no entanto, de quando chegar, é caminhar na direção certa.

4 Barbosa Moreira, a respeito, constata que “no liminar do século XXI, a vertiginosa aceleração do ritmo histórico parece prestigiar a consagração do efêmero como categoria suprema” (BARBOSA MOREIRA. O transitório e o permanente no direito. Temas de direito processual, quinta série. São Paulo: Saraiva, 1994, 225/231).

88 MANUAL DE DIREITO CIVIL – Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto

O direito civil do século XXI prestigia a diversidade e a tolerância. Reflexo de uma sociedade plural, ele busca afirmar o pluralismo reconhecendo a dignidade em cada ser humano – não importa sexo, crença, idade, raça, opção sexual, ou local de nascimento. Em cada ser humano o direito reconhece o potencial do livre desenvolvimento de sua personalidade. O direito não pode, naturalmente, assegurar que seremos felizes – isso, para o bem e para o mal, é construção de cada um de nós. Pode, porém, fixar espaços de livre e pleno desenvolvimento da personalidade, assegurando o mínimo existencial e o respeito aos direitos básicos de alimentação, educação, saúde e moradia.

A solução dos casos difíceis (hard cases) ganhou, em nossos dias, uma com-plexidade inédita. A ponderação de princípios envolve, com frequência, valores igualmente valiosos e constitucionalmente protegidos. Sabemos, hoje, ademais, que o intérprete não é um ser absolutamente neutro, que interpreta o direito como se estivesse fora da Terra. Isso não existe. O intérprete traz sempre sua carga de valores, seus conceitos e suas reservas, e esse conjunto humano influi, em graus variados, na interpretação que será dada à norma5.

Também se aceita cada vez menos a ideia – muito forte no século XIX e em parte do século XX – de que a ordem jurídica traz soluções predefinidas para todos os problemas e que cabe ao intérprete, apenas, encontrá-las, mediante a subsunção (o intérprete, nessa visão, seria um ser neutro, cuja função, puramente técnica, seria dizer o direito aplicável ao caso concreto – a famosa “boca da lei”, de Montesquieu). A interpretação jurídica, hoje, é algo bastante complexo que não pode ser reduzida a fórmulas esquemáticas. A construção de sentido da norma é algo dinâmico e nunca estático ou formal.

Em outras palavras, a interpretação jurídica não pode, por óbvio, desprezar o direito posto, mas tampouco se prende ao literalismo. O direito exige uma leitura ética, que dialogue com a sociedade, e não se satisfaz com conceitos puramente apriorísticos e formais. Isso não significa, convém repetir, que o juiz possa se libertar dos limites do sistema jurídico. Não se trata de voluntarismo, mas de reconhecer a força normativa dos princípios e a importância da teoria dos direitos fundamentais.

As construções de sentido das normas, portanto, resultam de uma complexa interação entre o intérprete e os demais atores sociais, com valores plurais e nem sempre homogêneos. Isso, porém, não significa – nem pode significar – um desprezo pela técnica. Trata-se apenas de reconhecer que a dimensão técnica, isoladamente, não explica nem responde muitos dos problemas do nosso século, é preciso ir além.

Essa redefinição dos valores do direito civil exige certa humildade epistemológica. É dizer: ao civilista atual não é dado isolar-se, manter-se em clausura intelectual, como se no século XIX estivesse. O direito de hoje exige uma abordagem menos estreita e parcial, que possibilite visões multissetoriais e portanto mais integrais. Ou

5 Cf. GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. 3ª edição. Pierre Fruchon (org.). Rio de Janeiro: Getúlio Vargas, 1998, p. 70. Há, inclusive, fatores inconscientes que escapam, ou podem escapar, da percepção do intérprete.

CONCEITOS FUNDAMENTAIS • Cap. 1 – CONTEXTUALIZANDO O NOVO DIREITO CIVIL 89

seja, o civilista não pode se isolar e se satisfazer apenas com a coerência e a beleza formal dos seus conceitos. O século XXI é, nesse sentido, mais pragmático. Pessoas que nasceram e foram educadas com a multiplicidade de informações que o mundo digital proporciona não aceitam um direito arcaico e preso a fórmulas sem sentido6. Um dos desafios do direito atual é se legitimar pela fundamentação das decisões, pela razoabilidade das soluções e pela dimensão social das suas normas. Não basta impor, é preciso impor com legitimidade.

As democracias constitucionais contemporâneas – com a contribuição dos princípios, conceitos e regras do direito civil – não toleram qualquer tentativa de coisificar a pessoa humana. A dignidade remete, sem dúvida, entre seus sentidos principais, a não coisificação do ser humano. Se há, aqui e ali, certos exageros no uso conceitual e normativo da dignidade da pessoa humana, isso não pode encobrir a verdade básica, que se extrai da nossa Constituição: trata-se de vetor normativo vinculante, da mais alta importância, e que redefine, em muitos sentidos, a inci-dência e aplicação das normas jurídicas brasileiras. Não esqueçamos que o Brasil foi o último país da Américas a abolir a propriedade de uma pessoa sobre outra, em terrível mancha histórica. O intérprete do século XXI deve ter uma atenção prioritária com a pessoa humana, e não com o seu patrimônio. O patrimônio é mero instrumento de realização de finalidades existenciais e espirituais, não um fim em si mesmo.

Aliás, talvez caiba uma palavra mais ampla: a brutalidade humana continua a espantar. Da Síria de hoje chegam imagens que chocam, que nos fazem perguntar se estamos mesmo no século XXI. A história humana é manchada, desde a noite dos tempos, pela perversidade de ditadores e seus asseclas, que agem como se não tivessem que responder pelas agudas maldades que praticam (convém lembrar que Stálin impôs a fome sistemática aos camponeses do seu país, matando mais pesso-as do que os mortos durante a Primeira Guerra Mundial, mesmo se somarmos as vítimas dos dois lados do conflito)7.

Hoje a experiência jurídica repele abordagens unilaterais, tão comuns nos séculos passados. O civilista, em especial, é chamado a sair dos códigos e dialogar com outras formas de conhecimento. Sem falar na interdisciplinariedade entre as matérias jurídicas, algo tão fundamental atualmente que deixou de ser novidade. A formação cultural do civilista, tradicionalmente, é vista como conservadora e avessa a mudanças. Isso, no entanto, mudou, está mudando. Poucos campos teóricos, atu-almente, são tão receptivos às novas abordagens como o direito civil.

6 Nesse sentido as observações de Weinberger: “Nos dias de hoje, sob o influxo das idéias democráticas, ninguém mais crê na sacralidade do direito ou vê na tradição uma justificação suficiente das instituições sociais. Estamos convencidos de que o homem pode modelar e remodelar o seu sistema político e que as disposições jurídicas e as instituições sociais devem ser examinadas criticamente e justificadas sobre a base de análises funcionais e valorativas” (WEINBERGER, Ota. Politica del diritto e istituzioni. Il diritto come istituzione, Neil MacComick e Ota Weinberger, Milano: Giuffrè, 1990, p. 287).

7 REID, Anna. Borderland: A Journey through the History of Ukraine. Boulder: Westview Press, 1999, p. 132.

90 MANUAL DE DIREITO CIVIL – Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto

2.1. O direito civil em sociedades complexas e plurais

“Nada é, tudo se outra”.

Fernando Pessoa

“As nuvens são sombrias mas, nos lados do sul,

um bocado do céu é tristemente azul”.

Fernando Pessoa

O direito civil – talvez mais ainda que os outros ramos – traz a marca dos costumes dos povos. Por dialogar, muito de perto, com a vida diária das pessoas, o direito civil é moldado por aquilo que cada comunidade, século após século, tem por valioso, correto, necessário. O conservadorismo, por exemplo, que sempre timbrou o direito de família – baseado no poder do marido e do pai – refletia por certo a sociedade que tínhamos8. Hoje a sociedade é plural, com muitos modelos familiares aceitos, e o direito civil, como não poderia deixar de ser, também reflete isso.

O Código Civil de 1916 – tecnicamente admirável – refletia os padrões mentais e culturais da sociedade patriarcal e patrimonialista em que se inseria (não esqueça-mos que ele foi elaborado ainda antes de 1900, e teve tramitação lenta, assim como seu sucessor, quase um século depois). A propriedade era a instituição em torno da qual orbitavam os demais interesses juridicamente protegidos. Convém lembrar que o Código Civil de 1916 – que chegou, não esqueçamos, até o século XXI –, foi elaborado pouquíssimo tempo depois do fim da escravatura entre nós. Pode-se dizer que são contemporâneos9.

Nesse sentido, não é exagero dizer que as dimensões existenciais do ser hu-mano são de consideração relativamente recente, na caminhada histórica do direito civil. Hoje tanto a propriedade como os contratos ganham notas funcionais, isto é, a função define, em certo sentido, o que estes institutos são, e não apenas até aonde eles podem ir. Isto é, a funcionalização dos conceitos, categorias e institutos não atua apenas como limites externos.

8 Não por acaso, os civilistas sempre simbolizaram o conservadorismo jurídico. Pierre Bourdieu, por exemplo, enxerga nos privatistas o “culto do texto, o primado da doutrina e da exegese, quer dizer, ao mesmo tempo da teoria e do passado” (BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 252. De modo semelhante, percebeu-se que “a permanência jurídica se manifesta, em toda sua plenitude, no setor específico das codificações. E, aí, especialmente em matéria de Direito Civil, tido por protótipo do conservadorismo jurídico” (VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 144). Nesse contexto teórico, convém lembrar que o século XIX foi pródigo em generalizações, amplas construções teóricas e esquemas abstratos (MEAD, George H. Movements of thougt in the nineteenth century. Chicago: The University of Chicago Press, 1972).

9 No período “de elaboração do Código Civil, o divórcio entre a elite letrada e a massa inculta perdurava quase inalterado. A despeito de sua ilustração, a aristocracia de anel representava e racionalizava os interesses básicos de uma sociedade ainda patriarcal, que não perdera o seu teor privatista, nem se libertara da estreiteza do arcabouço econômico, apesar do seu sistema de produção ter sido golpeado fundamente em 1888. Natural que o Código refletisse as aspirações dessa elite” (GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 22).

CONCEITOS FUNDAMENTAIS • Cap. 1 – CONTEXTUALIZANDO O NOVO DIREITO CIVIL 91

Nos anos anteriores ao Código Civil de 2002, era voz corrente, no Brasil – e, antes, na Itália – a convicção de que o tempo das codificações tinha passado. Que os códigos civis estratificavam demais as relações jurídicas, e eram próprios dos séculos XIX e XX, e não do século XXI. Ademais, devíamos – e devemos – buscar a unidade valorativa do sistema na Constituição, e não no Código Civil. Seja como for, é certo que o Código Civil de 2002 acabou por promover a revitalização dos estudos de direito civil no Brasil. Novas e valiosas obras surgiram. Talentosos pes-quisadores se dedicaram ao tema10.

O direito brasileiro filia-se à tradição romano-germânica, da civil law. Bebeu na fonte das grandes codificações modernas da Europa continental. O Brasil, desde antes do Código Civil de 1916, recebe forte influência da civilística europeia – sobretudo francesa, alemã, italiana e espanhola – e bem menos dos países da América, mesmo aqueles que se filiam à estirpe cultural do civil law (o que parece estar mudando aos poucos, o Brasil e seus vizinhos sul-americanos estão, por assim dizer, redesco-brindo-se culturalmente). Em relação aos Estados Unidos da América, ocorre algo interessante. A influência exercida no Brasil é fortíssima na área do direito consti-tucional, mas praticamente inexistente no campo do direito civil.

O constitucionalismo, tradicionalmente, ocupou-se em limitar o exercício do poder. Atualmente percebemos, através da jurisdição constitucional, que atos legis-lativos também podem violar a Constituição, e por isso temos fortalecido modos e formas de impedir essas agressões. Os juízes, atualmente, longe de serem mecâ-nicos aplicadores da lei, têm, em alguma medida, função criativa, participando do processo de criação do direito. Na chamada jurisdição constitucional, esse potencial criativo é ainda mais forte. Nesse contexto, as leis continuam sendo instrumentos (muito) importantes. São elas que, em linha de princípio, concretizam as escolhas constitucionais. Merecem respeito e acolhimento. Há, porém, atualmente, limites.

O STF já esclareceu que o Estado “não dispõe da competência para legislar ilimi-tadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal” (STF, ADInMC 1.063-8, Rel. Min. Celso de Mello). Em outra ocasião, o STF proclamou que “o Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público” (STF, ADI-MC 1.407-DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno). Pontes

10 Paulo Lôbo, a propósito, diagnostica: “Ao novo Código Civil credita-se verdadeira explosão de obras jurídicas, provocando o renascimento do interesse pelo direito civil e da consciência de sua importância fundamental para o cotidiano das pessoas. (…). Acrescentem-se, ainda, como fatores decisivos para a reformulação do direito civil brasileiro, de modo a torná-lo apto a responder às demandas do século XXI, o desenvolvimento científico da área propiciado pelos programas de pós-graduação em Direito, com rigor metódico e pesquisa, superando o anterior autodidatismo, e a criação do Superior Tribunal de Justiça, pela Constituição de 1988, incumbido da harmonização jurisprudencial do direito federal, inclusive o direito civil. No geral, o STJ tem correspondido às mudanças sociais e aos vetores axiológicos da Constituição, além de dar atenção aos avanços da doutrina” (LÔBO, Paulo. Direito Civil. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 27/28).

92 MANUAL DE DIREITO CIVIL – Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto

de Miranda, escrevendo no início do século XX, lembrava que o Estado não é um criador arbitrário do direito. E que a própria formulação da lei perde a arbitrariedade que tinha no passado.

No caso brasileiro, o fortalecimento, com a Constituição de 1988, da jurisdição constitucional, trouxe mudanças profundas no processo de realização do direito. O Judiciário assumiu funções que não tinha no passado. Fala-se em ativismo judicial, que seria uma atuação mais ativa do juiz, ingressando em áreas que antes eram fundamentalmente políticas11. Goste-se ou não, a verdade é que em curso um pro-cesso de judicialização das questões sociais e políticas. Casamento e união estável entre pessoas do mesmo sexo, moralidade para disputar eleições, células-tronco, são exemplos dentre muitos outros de questões que interessam à vida social e cuja palavra final é dada pelo Judiciário, à luz da Constituição.

Os princípios reunificam o direito privado, porém agora como um sistema aberto. São, seguramente, a fonte onde o intérprete vai buscar – mais do que nas regras jurídicas – a fonte de legitimidade de suas decisões. São, além disso, normas com a notável característica de incorporar, como camadas normativas, as mudanças sociais, juridicizando-as.

É preciso lembrar que as relações entre particulares são, frequentemente, assimé-tricas e desiguais. Há poderes privados – aos quais não deve ser indiferente o Estado12. Bem por isso, os direitos fundamentais, hoje, no Brasil, não são apenas direitos de defesa em face do Estado. Exige-se uma postura ativa do Estado para proteger os direitos fundamentais. Essa constatação redefine muitas abordagens, sobretudo da responsabilidade civil do Estado por omissão. Peter Häberle, argutamente, verifica que não há numerus clausus das dimensões de proteção dos direitos fundamentais, nem numerus clausus dos perigos.

Podemos ainda dizer, de modo mais amplo, que o Brasil – como Estado Constitucional Democrático13 – ocupa hoje um espaço político, social e econômico muito maior do que ocupava no passado. Significativamente, tornou-se, de acordo com certos veículos de imprensa, a sexta maior economia do mundo. Em 2012, o tradicional jornal The Guardian ironizou: “O Brasil tem batido os países europeus no

11 Nesse contexto teórico, “a admissão de que juízes não estão presos à norma choca-se com um antigo tabu. Esse mal-estar foi atenuado por uma nova tentativa da teoria jurídica de constranger o juiz por demandas de consistên-cia, por exigências, ao menos, de argumentação racional. A ciência política volta e denuncia a nudez do rei: o juiz constitucional é um ator político que reage conforme variáveis outras que não somente a norma, a razão, ou as recomendações que a teoria normativa lhe endereça” (MENDES, Conrado Hübner, Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 193).

12 É inegável, sobretudo em nossos dias, que existem situações de opressão ou desnível entre particulares, algo semelhante com as relações assimétricas que lastrearam – ainda na concepção liberal – dos direitos fundamentais em face do Estado (UBILLO, Juan María Bilbao. La Eficácia de los Derechos Fundamentales frente a particulares. Análisis de la Jurisprudencia del Tribuna Constitucional. Madrid: Centros de Estudios Políticos y Consitucionales, 1997, p. 369).

13 A verdade é que “democracia” é uma palavra tão gasta pelo uso promíscuo que perdeu muito do seu valor expli-cativo. Não há, por certo, tipos-puros de democracia, apenas experiências múltiplas com características históricas bastante distintas. As democracias constitucionais contemporâneas buscam banhos de legitimidade mais ambiciosos, não se satisfazem apenas com eleições formalmente limpas, ultimadas pela representação popular tradicional. É cedo para dizer quais mecanismos surgirão dessa tensão de legitimidade. A jurisdição constitucional, mesmo com suas notórias falhas, é uma delas. Outras, menos problemáticas, podem surgir, e serão bem-vindas. Cabe lembrar, nessa ordem de ideias, que a legitimidade de uma decisão numa democracia constitucional é mensurada tanto por seu conteúdo (output) quanto pelo seu procedimento (input)” (MENDES, Conrado Hübner. Direitos Fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 56).

CONCEITOS FUNDAMENTAIS • Cap. 1 – CONTEXTUALIZANDO O NOVO DIREITO CIVIL 93

futebol por um longo tempo, mas batê-los em economia é um fenômeno novo”. Isso não significa, sabemos, que nossos gravíssimos problemas sociais estejam resolvidos. Como mostra o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), temos desigualdades sociais muito profundas. O índice de desenvolvimento humano (IDH), no Brasil, continua aquém do desejável. Combater a miséria e a violência e propiciar níveis adequados de saúde e educação estão entre os desafios do novo século.

Relevante, em qualquer disciplina jurídica, é a tomada de consciência, por parte do intérprete, que estamos diante do Estado dos direitos fundamentais. Já não podemos nos dar por satisfeitos em aceitar que o Estado se abstenha de violar tais direitos. É preciso, como veremos adiante, que além disso o Estado atue – de modo cauteloso, eficaz e proporcional – para proteger os direitos fundamentais de violações por terceiros.

Sob o prisma sociológico, um ponto sublinhado por muitos estudiosos dos padrões culturais brasileiros é o patrimonialismo. Ou – na dicção que se tornou clássica de Nelson Saldanha – a dificuldade, algo crônica, de distinguir o jardim da praça. Privado e público se misturam numa convivência nem sempre saudável. O público, tão frequentemente, confunde-se com o privado, e as categorias assépticas da lei nem sempre consegue impedir certos usos promíscuos do que é (ou deveria ser) de todos em proveito próprio ou de alguns. Talvez, em parte, nosso conhecido traço patrimonialista – tão bem denunciado por Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder e por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil – que faz pensar que os bens do Estado não são de ninguém. O Brasil, como democracia constitucional recente, tem entre seus desafios o aprimoramento do sistema jurídico-institucional, buscando aplicar o direito objetivo com isonomia e impessoalidade. A imprensa, com sua fiscalização permanente, exerce relevante função nesse campo.

2.2. Os fins éticos do direito civil contemporâneo

“O juiz de São Gonçalo manda prender todo casal encontrado em lugares escuros e ermos. Com isso, afirmava Sua Excelência, se evita que os olhos das senhoras de boa-fé se chocassem. Rubem Braga comenta a notícia e se pergunta, apenas, o que fariam tais senhoras de boa-fé em locais escuros e ermos”.

(Marco de Carvalho, biógrafo de Rubem Braga)

Os conceitos, categorias e institutos do direito civil passam por uma filtragem ética14.Tradicionalmente, os institutos civis carregam forte dose de patrimonialidade.

Se percorrermos o Código Civil – apesar dos princípios sociais que o dirigem e das

14 Podemos, aliás, sugerir – a exemplo do que faz Alexy – que a distinção fundamental entre positivistas e não positi-vistas reside na relação entre direito e moral. Os positivistas, em geral, separam as categorias; já os não positivistas, sem negar especificidades, não admitem essa separação (ALEXY, Robert. El problema del positivismo jurídico. In: El concepto y la validez del derecho. Trad. Jorge M. Sena. Barcelona: Gedisa, 1994, p. 13/14).

94 MANUAL DE DIREITO CIVIL – Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto

cláusulas gerais que traz – não será difícil identificar fortes resíduos de um passado no qual a preocupação precípua era com o patrimônio15.

Nascituro, comoriência, prodigalidade, ausência são exemplos vivos no sentido de que o que movimenta a regulação civil é o patrimônio. Qual a relevância da tradicionalíssima discussão acerca do nascimento ou não com vida do nascituro? Fundamentalmente a destinação dos bens, sendo relevante, para efeitos patrimoniais, saber se o recém-nascido nasceu com vida ou não. Qual a razão de ser da como-riência? A destinação dos bens em razão da morte simultânea de pessoas que são reciprocamente herdeiras. Qual a razão de ser do pródigo? A preocupação, não com a pessoa, mas com os bens do pródigo, que podem acabar se ele continuar gastando como está. Qual a razão precípua da ausência? Possibilitar a abertura do inventário, com a distribuição dos bens entre os herdeiros.

Bens, sempre bens patrimoniais. Esse foi o timbre do direito civil. Observa-se, porém, em nosso século, uma filtragem ética dos institutos de di-

reito civil. O que não se aceita, hoje, é que ponhamos em pé de igualdade valores existenciais (éticos, personalísticos, espirituais) e valores relativos ao patrimônio. Sem falar que os primeiros, se violados, dificilmente aceitam uma recomposição adequada16. A restauração do equilíbrio perdido, além de tardia, é quase sempre ineficaz, caindo na vala comum da indenização monetária.

Hoje, os civilistas aludem, crescentemente, à despatrimonialização e à re-personalização das relações civis. Os juristas são instados a reler a legislação infraconstitucional com novos olhos, observando os valores constitucionalmente prestigiados17. Nesse contexto, dificilmente teríamos, hoje, no plano do direito civil, uma conduta agressora das convicções sociais como conforme ao direito. Em face da atual Constituição da República – que adotou, entre os princípios fundamentais da República, a cidadania, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, I e III), e entre

15 Houve até quem defendesse que o Código Civil de 2002 seria ainda mais patrimonialista que o de 1916 (FACHIN, Luiz Edson; RUZIK, Carlos Eduardo. Um projeto de código civil na contramão da Constituição. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro, v. 4, p. 243, set./dez. 2000).

16 Os exemplos, infelizmente, seriam incontáveis. A jurisprudência, a propósito, anotou a propósito de uma criança baleada e morta na porta da escola, em virtude de confronto a rito entre policiais e suspeitos: “Esse valor de modo nenhum serve de reparação pela perda do filho da autora. Nenhum valor pecuniário teria essa serventia. Mas isso não induz a que seja fixado valor irrisório, meramente simbólico. Seria um contrassenso: a vida de um ente que-rido, por ser bem tão precioso, acima de qualquer avaliação pecuniária, ser indenizada com quantia ínfima. Seria degradar, envilecer a própria condenação à indenização pelo dano moral ocorrido”. Conclui, adiante: “Impõe-se, por questão de justiça, mais do que o direito, que o dano moral, consistente na dor sofrida pela morte de um filho seja, não reparado (porque impossível), mas minimizado pelo reconhecimento real e efetivo do sofrimento havido e pelo reconhecimento da culpa de quem o proporcionou. Além disso, é fundamental que a indenização, no presente caso, atue com finalidade dissuasória, preventiva ou pedagógica, para compelir o Estado a buscar meios de impedir que fatos como o que levou à morte da vítima venham a ocorrer, através da eficiente seleção e do constante treinamento dos seus agentes policiais” (STJ, REsp 1.262.938). O julgado condenou o Estado em duzentos mil reais, sendo cem mil pela dor da morte do filho, e cem mil pela punição pela reprovabilidade da conduta dos agentes públicos. O STF já reconheceu “a necessária correlação entre o caráter punitivo da obrigação de indenizar e a natureza compensatória para a vítima” (STF, Rel. Min. Celso de Mello, AI 455.846). Aliás, “a sanção punitiva nos quadrantes do direito privado requer somente uma aferição do lamentável comportamento do agente: a repro-vabilidade da conduta daquele que ofende situações jurídicas existenciais ou pratica danos sociais com desprezo à condição das vítimas em potencial (ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 101).

17 PERLINGIERE, Pietro. La personalità umana nell’ordinamento giuridico. Camerino: Jovene, 1972, p. 155.

CONCEITOS FUNDAMENTAIS • Cap. 1 – CONTEXTUALIZANDO O NOVO DIREITO CIVIL 95

os objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I) – ampliou-se, de modo generoso, o panorama de análise da inconstitucionalidade das leis.

Vivemos, atualmente, em sociedades complexas e heterogêneas. Pronunciado pluralismo nos caracteriza. As amplas transformações ocorridas na sociedade exigem que o ordenamento jurídico incorpore a ética e não se mostre tão fechado como costumava ser no passado. Além disso, os desafios e ameaças que hoje nos afligem são, de certo modo, distintos daqueles dos séculos passados. Há quem sustente que vivemos numa sociedade de risco. Em boa medida, nossa sociedade é definida por eles18. Lembremos que em nossas atuais sociedades de risco, há – ou deve haver – uma democrática reavaliação dos riscos que são socialmente aceitáveis. Antigas práticas que eram tidas como normais e aceitáveis podem se mostrar inadequadas ou nocivas com o andar das décadas. Nesse contexto, o mero risco de dano autori-za que sejam adotadas medidas prévias necessárias para evitar que o dano ocorra.

Durante o século XIX e boa parte do século XX, o direito civil orgulhava-se do rigor formal dos seus conceitos, em sistema logicamente impecável19. Porém, paralelamente aos encadeamentos lógicos dos juristas, os poderes privados eram – e, de certo modo, ainda são – marcados por forte carga despótica20. O marido sobrepunha-se, social e juridicamente, à mulher; o pai sobrepunha-se ao filho; os empregadores a seus empregados. A igualdade material não inspirava os códigos civis. Os códigos civis clássicos não se preocupavam com esses desníveis de poder privado; antes os secundavam. Padrões de comportamento preconceituosos se re-petiam, e a lei os incentivava.

Podemos dizer, de certo modo, que substituímos a lógica formal do passado por algo mais flexível (ganhou destaque a expressão “lógica do razoável”, introduzida por Recásens Siches). Hoje lidamos frequentemente com modelos normativos como a dignidade, razoabilidade, proibição do excesso etc. A progressiva relevância das normas abertas é acompanhada por uma também maior relevância da atividade do intérprete. Não significa, decerto, que o intérprete possa sobrepor suas convicções pessoais àquelas da ordem jurídica. É preciso algum modo de controle, e esse se dará pela argumentação. Quanto mais aberta for a norma, maiores serão os deveres de densidade argumentativa do aplicador. O CPC/2015, nesse sentido, dispõe, no art. 489, § 1º: “Não se considera

18 A referência teórica mais consistente, a propósito, é Ulrich Beck, que argumenta haver a globalização dos riscos civilizacionais, e que a concretude do risco não respeita fronteiras nacionais (BECK, Ulrich. Sociedade de Risco – rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. 2 ed. São Paulo: Ed. 34, 2011). Há autores, sob diversa orien-tação teórica, que preferem dizer que vivemos numa “sociedade informacional”. Cf. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005.

19 Franz Wieacker assinala as três características que, a seu juízo, apontam para uma evolução no sentido de um Estado Social: a) a relativização dos direitos privados pela sua função social; b) a vinculação ético-social destes direitos; c) o recuo perante o formalismo do sistema de direito privado clássico do século dezenove. (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado moderno. Trad. A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1967, p. 624).

20 Pontes de Miranda, desde o início do século passado, vigorosamente se punha contra o conteúdo despótico no exercício dos direitos subjetivos, antecipando, em longas décadas, o conceito de função social da propriedade e dos contratos: “Tampouco se definiria o direito subjetivo como poder de mandar, de impor, de comandar. Aos séculos de pontiagudo individualismo foi grata tal concepção, que pôs o indivíduo no lugar dos déspotas. O ‘meu’ direito (subjetivo) significava a minha força, o meu poder, a minha violência, sucedâneos da força, do poder, da violência do príncipe” (PONTES DE MIRANDA. Tratado da Ação Rescisória. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 10).

96 MANUAL DE DIREITO CIVIL – Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto

fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo con-creto de sua incidência no caso; III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão”. De modo semelhante, o § 2º do mesmo artigo prescreve: “No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão”. O CPC/2015 prevê ainda que a decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé.

Os séculos passados se orgulhavam de uma rigorosa separação entre o direito e a moral. Tratava-se, aliás, de ponto de honra para os positivistas. Já os não-po-sitivistas negam essa separação absoluta. Segundo Alexy, esse é o ponto central da distinção entre uns e outros. Hoje, no pós-positivismo – se quisermos utilizar a expressão (que eventualmente vem usada juntamente com pós-modernidade, que adiante discutiremos) – observa-se uma aproximação, um contínuo diálogo entre os campos do direito e da moral (preferimos falar em ética)21. Há, é verdade, não se discute, especificidades em cada uma das esferas. Dizer que há um diálogo entre o direito e a ética apenas revela a percepção, cada dia mais forte, de que o direito não se legitima apenas por suas estruturas formais, que há necessidade de conteúdos substantivos que apontam para certos fins, e esses fins prestigiam o ser humano.

Traduzindo isso para a prática jurídica, podemos dizer, com o risco de sim-plificação, que o direito do nosso século – seja no plano normativo, seja no plano da interpretação – abre-se para uma compreensão mais integral do ser humano. Há, inclusive, um olhar mais compreensivo para o sofrimento humano, sobretudo daqueles cidadãos mais humildes. Isso, que antes poderia soar como heresia para os formalistas, hoje é algo aceito no discurso jurídico. A igualdade substancial ou material, por exemplo, atua nesse campo, buscando diminuir as desigualdades, evi-tando relações jurídicas injustamente assimétricas22.

Observa-se, igualmente, forte tendência no sentido da construção de um direito – legislativa, doutrinária e jurisprudencialmente – que se ocupe menos com pequenas questões formais, e mais com as posições reais das pessoas no mundo social (projetos de vida, esperanças, alegrias e dores). Cláudia Lima Marques argumenta que hoje a grande metanarrativa do direito civil é “a solidariedade e a realização dos direitos humanos em

21 Afirmamos em outra ocasião: “Nós preferimos – ao invés de falar em aproximação do direito com a moral – aludir a aproximação do direito com a ética. O direito do século XXI busca conteúdos éticos em suas fundamentações, buscar ler os institutos à luz de valores substantivos, com luzes humanistas e reflexos que valorizem a pessoa humana. Ricardo Lobo Torres, no mesmo sentido, assinala: “De uns trinta anos para cá assiste-se ao retorno aos valores como caminho para a superação dos positivismos. A partir do que se convencionou chamar de ‘virada kantiana’ (kantische Wende), isto é, à volta à influência da filosofia de Kant, deu-se a reaproximação entre ética e direito, com a fundamentação moral dos direitos humanos. O livro A Theory of Justice, de John Rawls, publicado em 1971, constitui a certidão do renascimento dessas ideias”.

22 O exercício das liberdades existenciais pressupõe padrões mínimos de igualdade material. Sem a promoção de patamares razoáveis de igualdade entre as pessoas não há liberdade para as escolhas existenciais. O pacta sunt servanda não deixou de existir, apenas não tem a força absoluta que detinha nos séculos passados (por exemplo, quem assinou um contrato de adesão com o plano de saúde em cujas cláusulas previa-se um tempo máximo de internação em UTI não estará vinculado a essa cláusula, mesmo que contratualmente firmada, na linha da Súmula 302 do STJ). Pontes de Miranda lembrava que a liberdade de contratar praticamente se traduzia, no direito clássico, na liberdade para os mais fortes de impor sua vontade aos mais fracos.

CONCEITOS FUNDAMENTAIS • Cap. 1 – CONTEXTUALIZANDO O NOVO DIREITO CIVIL 97

pleno direito privado”. Já se percebeu, ademais, que à luz do princípio da solidariedade devem ser lidas não apenas as normas constitucionais, mas todo o ordenamento jurídico23.

3. UM INÍCIO DE SÉCULO MARCADO POR MUDANÇAS

“Desculpe por não ter te reconhecido. É que mudei muito”

Oscar Wilde

O direito se põe na esfera ética do convívio social. A ordem jurídica faz cer-tas escolhas e deixa, ao mesmo tempo, um campo livre para que nós façamos as nossas escolhas. Dessa tensão é que nascem os conflitos e as soluções jurídicas. A liberdade humana pode muito, no direito civil. Pode muito, não pode tudo. Aliás, os próprios limites do “pode muito” sofrem constantes revisões. Não fosse a tão conhecida tendência humana para fazer prevalecer a vontade do mais forte, os limites da liberdade seriam maiores. Somos nós, com os abusos, que diminuímos nossa esfera de liberdade.

O direito civil dos nossos dias incorpora novos modos de percepção. É chamado, a todo instante, a reconstruir o sentido de velhos conceitos e categorias, diante dos problemas inéditos que o nosso século apresenta. Não são poucos nem simples os desafios que se põem diante do século XXI. As ameaças que nos afligem, atualmente, parecem se renovar a todo instante. Já se disse que toda época tem seus fantasmas24.

O individualismo jurídico era muito bem representado pelas três liberdades básicas do direito civil: liberdade de contratar, de ser proprietário e de testar25. Obviamente, são liberdades que ainda persistem, que não desapareceram nem de-saparecerão, mas sofrem os influxos dos novos valores deste século. Vejamos, com brevidade, algumas dessas mudanças.

3.1. Mudanças na parte geral

“Não sorria tranquilo, porque é feio ficar despreocupado com o semelhante só porque ele não é nosso comensal ou nosso amigo. Cada estranho é um irmão de destino, que ainda não nos foi apresentado, apenas”.

Cecília Meireles

Conforme já frisamos, a parte geral confere certa unidade conceitual ao direito civil. Ela resulta da genialidade de Teixeira de Freitas, posteriormente adotada no Código Civil Alemão de 1900 (mais exato seria dizer: Código de 1896 que entrou

23 PERLINGIERE, Pietro. La personalità umana nell’ordinamento giuridico. Camerino: Jovene, 1972, p. 161.24 SAVATER, Fernando. O valor de educar. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 136. 25 Cf. STOLFI, Giuseppe. Teoria del negozio giuridico. Madrid: Briz, 1959, p. 20. Também: BARCELLONA, Pietro. El indivi-

dualismo propietario. Madrid: Trotta, 1996, p. 115.

98 MANUAL DE DIREITO CIVIL – Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto

em vigor em 1º de janeiro de 1900). Segundo Francisco Amaral, a parte geral é “o nível mais elevado do sistema básico do direito privado que é o Código Civil”26. A parte geral traz normas de aplicação comum a toda parte especial do Código Civil, pelo menos esse é seu intento. Haverá, por certo, exceções episódicas, mas a coe-rência conceitual do Código Civil é dada pela parte geral, pelos conceitos, categorias e institutos nela previstos. Não convém, neste tópico, trazer um rol de mudanças ocorridas na parte geral a partir do Código Civil atual (o livro, afinal, cuidará disso – ou também cuidará disso – nos próximos capítulos). Aqui nos interessa apenas uma palavra geral, uma visão das linhas de tendência mais amplas.

O desafio, neste século, é incorporar o novo sem esquecer as conquistas já realizadas. Aliás, o novo não é sinônimo de qualidade teórica. O autenticamente novo dialoga com a tradição e dela recebe boas heranças.

O direito civil brasileiro tem buscado, nos últimos anos, modelos teóricos que guardem compatibilidade com as opções valorativas básicas da Constituição da República (lembremos, por exemplo, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, de 2015, que alterou profundamente a teoria das incapacidades, fazendo com que um novo tempo se iniciasse na matéria). Os conceitos, categorias e institutos da parte geral passam por um processo de despatrimonialização e de repersonalização. Isso não significa negligenciar ou negar a relevante dimensão patrimonial deles, mas apenas reconhecer que a dimensão existencial deve vir em primeiro lugar (veremos exemplos ao longo do livro). A experiência jurídica do século XXI é fundamental-mente ético-jurídica. Não faz sentido, hoje, falar em direito como um repositório de soluções neutras e formais. Não é isso que a sociedade legitimamente espera, nem é isso que a Constituição de 88 – de índole transformadora e humanista –, no caso brasileiro, determina. O conceito atual de personalidade não é puramente formal. Não basta dizer que pessoa é aquele que pode ser sujeito de direito. Continua sen-do isso, mas não é só isso. Essencial, hoje, ao conceito, é a luz transformadora da dignidade humana.

Há clara tendência de revisitar antigos institutos clássicos. A interpretação de institutos jurídicos como a prodigalidade – e a própria teoria das incapacidades – sofre mudanças profundas, à luz da despatrimonialização e repersonalização das relações jurídicas. Os atos ilícitos são, hoje, distintos do que eram há algumas décadas. A abordagem das coisas e dos bens percebe que esses conceitos passam por intensas transformações, desmaterializando-se, em processo de mudança até certo ponto natural numa sociedade incrivelmente complexa e marcada pela velocidade na transmissão das informações. O conceito de pessoa – talvez mais do que os outros – renova-se fortemente, deixando de ser o sujeito de direito abstrato e enxergado sob um prisma substancial, concreto, real. Em relação, por exemplo, aos pródigos – que adiante es-tudaremos – podemos dizer que “desde que a pessoa preserve um mínimo para sua existência – por exemplo, os proventos de aposentadoria ou pensão previdenciária –,

26 AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, prefácio à quinta edição. Pontes de Miranda lembra que os sistemas jurídicos são formados por cabedal inestimável de intuições e experimentações humanas (PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. T. IV. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 108).

CONCEITOS FUNDAMENTAIS • Cap. 1 – CONTEXTUALIZANDO O NOVO DIREITO CIVIL 99

não pode o Estado interferir em sua opção de vida. Levada ao extremo, a interdição da prodigalidade impede que uma pessoa siga o exemplo de São Francisco de Assis, que se desfez de todos os bens que possuía em benefício dos pobres”27.

Além disso, as democracias constitucionais contemporâneas reconhecem – e valorizam – uma ampla esfera autodeterminativa para o ser humano28. Os hori-zontes autodeterminativos são cada vez mais generosos, em nosso século, naquilo que se refere aos percursos – com dignidade, liberdade e igualdade – que cada um traça para si na construção de seus caminhos existenciais. A intolerância autoritá-ria – seja do Estado, seja dos particulares – não é possível, em questões atinentes ao foro íntimo de cada um. Aliás, mesmo em questões patrimoniais nota-se certa esquizofrenia nas regras do Código civil – ou, pelo menos, em algumas delas. Um adolescente, com 17 anos, não poderia – pelo menos na letra fria da lei – sequer pegar um ônibus sozinho (o negócio jurídico seria inválido, por falta de assistência), ou comprar um sorvete, mas pode, pasmem, fazer testamento (Código Civil, art. 1.860, parágrafo único).

Não é difícil perceber, ainda hoje, a repetição de dogmas que herdamos do direito civil de feição individualista. O instituto da ausência – como tantos institutos do direito civil tradicional – não se preocupa tanto com aspectos existenciais do direito humano, mas, ao contrário, com aqueles patrimoniais. Há, também, abuso no uso de certas ficções jurídicas tradicionais29.

Não se trata de querer que o direito civil resolva problemas que não são dele. Sabemos que o direito não opera milagres nem cria riquezas onde elas não existem. Entre essa constatação e o abuso das ficções jurídicas do século XIX – com a qual, em boa medida, continuamos a trabalhar – há espaço para construções teoricamente mais criativas, menos formais e mais abertas à realidade dos nossos dias.

27 LÔBO, Paulo. Direito Civil. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 124. De outro lado, a despatrimonialização do direito civil e sua repersonalização conduzem à valorização jurídica do ser humano, que é um fim em si mesmo, e lembrar sempre do caráter instrumental do patrimônio. Nesse sentido, “o iuris civilis aproxima-se, mais e mais, das relações de civilidade, despindo-se de sua dimensão meramente econômica” (TEPEDINO, Gustavo. In: Prefácio, Luiz Edson Fachin, Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001).

28 Conferir, a propósito: RODOTÀ, Stefano. La vida y las reglas. Entre el derecho y el no derecho. Traducción de Andrea Greppi. Madrid: Editorial Trotta. 2010, especialmente o ensaio El derecho y su límite, p. 25-71. Conferir ainda: AMARAL, Francisco. A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica: perspectiva estrutural e funcional. Revista de Direito Civil. São Paulo, n. 46, pp. 07-26, out-dez. 1988; FRIEDMAN, L. M. The Republic of Choice: Law, Authority and Culture. Cambridge: Harvard UP, 1990; PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. T. I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. XVII.

29 Diz-se, por exemplo, de modo unânime, que toda pessoa tem domicílio e toda pessoa tem patrimônio (a velha obsessão do direito civil: o patrimônio). Trata-se de construção conceitual que, ao que podemos perceber, não só briga com os fatos (e é psicologicamente perversa), como, ao que nos consta, não tem utilidade alguma. Qual a operacionalidade de se afirmar que todos têm patrimônio? Aliás, a maior serventia do patrimônio é servir de garantia para os credores e responder pelas dívidas da pessoa. Pois bem, pergunta-se: em relação à pessoa física que não tem patrimônio – e que os juristas presumem que ela tem – o que se alterará nessa situação? Nada. A execução, por certo, não avançará, enquanto não houver patrimônio (real, bem entendido, não fictício). A mesma lógica, lembremos, acontecia – e acontece – em relação ao domicílio. Parte-se do dogma teoricamente absoluto que todos têm domicílio. Mesmo que os não tem. Perceba-se que a presunção não altera, nem busca alterar, absolutamente nada no mundo lá fora, na vida social. Não é, portanto, minimamente generosa nesse ponto. Nem sequer como um objetivo distante a ser alcançado. É isso que deve incomodar o direito civil do século XXI. Ao invés de presumir, formal e inutilmente, que todos têm domicílio, temos que, a partir das desigualdades reais, construir soluções juridicamente diferenciadas, oferecendo respostas consistentes, à luz da Constituição. Voltaremos a alguns desses pontos ao longo da obra.

100 MANUAL DE DIREITO CIVIL – Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto

Cabe, por fim, lembrar, como palavra final deste tópico, que a natureza da argumentação jurídica não é demonstrativa, mas persuasiva30. Isso, talvez, nem deva ser encarado como um defeito, mas como algo próprio do conhecimento jurídico. Aliás, o conhecimento jurídico é – e deve ser – pluralista. Pontes de Miranda certa vez frisou que um dos enganos da inteligência humana é crer na unilateralidade do verdadeiro. Exemplificou dizendo que entre duas ou mais pessoas que discutem, podem todos ter razão.

3.2. Mudanças no direito contratual

“É bom que haja uma ação de despejo, sempre devia haver, em toda casa, para que assim o sentimento constante do precário nos proibisse de revestir as paredes alheias com nossa ternura e de nos afeiçoarmos sem sentir até à humilde torneira, e ao corrimão da escada como se fosse um ombro de amigo onde pousamos a mão”.

Rubem Braga

Os contratos são instrumentos para a consecução de finalidades sociais. Tra-ta-se de instituto jurídico cujas feições alteram-se de acordo com as funções que é chamado a exercer, bem como a partir do contexto econômico e social em que se insere. Perderam, atualmente, a cor puramente voluntarista, uma espécie de manto sagrado atrás do qual a vontade humana tudo podia (porque livremente manifestada). Não se trata, hoje, de buscar a vontade tácita para além da vontade expressamente declarada. É preciso absorver a imensa mudança havida: a Constituição confere for-ça obrigatória aos contratos não porque voluntariamente queridos – na medida do querer egoístico das partes –, e sim porque seus efeitos são socialmente adequados, proporcionais, razoáveis e equitativos31.

Conforme veremos adiante, o direito civil, tradicionalmente, ocupou-se com a existência, validade e a eficácia dos negócios jurídicos. Isso, porém, a partir de um prisma voluntarista: conjugar aquilo que se desejou com aquilo que se declarou desejar (os defeitos do negócio jurídico, que veremos na parte geral – erro, dolo, coação etc. – são, em grande parte, apenas isso). Hoje, conforme também veremos, há uma tendência de analisar de modo mais objetivo as cláusulas contratuais e os comportamentos das partes. As perguntas são outras: houve quebra de confiança? (princípio da confiança). Houve comportamento contraditório? (princípio do venire contra factum proprium). Uma das partes adimpliu substancialmente a sua presta-ção? (princípio do adimplemento substancial). Há desproporção entre as prestações?

30 MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the Rule of Law. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 05.31 Antônio Junqueira de Azevedo, nesse sentido, ensina que “a perspectiva muda inteiramente, já que de psicológica

passa a social. O negócio não é o que o agente quer, mas sim o que a sociedade vê como declaração de vontade do agente. Deixa-se, pois, de examinar o negócio através da ótica estreita do seu autor e, alargando-se extraordina-riamente o campo de visão, passa-se a fazer o exame pelo prisma social e mais propriamente jurídico” (AZEVEDO, Antônio Junqueira. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 21). Conferir: GALGANO, Francesco. Il negozio giuridico. Milano: Giuffrè, 2002.

CONCEITOS FUNDAMENTAIS • Cap. 1 – CONTEXTUALIZANDO O NOVO DIREITO CIVIL 101

(princípio da equivalência material entre as prestações). Uma das partes frustrou as legítimas expectativas da outra? (princípio da boa-fé objetiva em uma de suas funções). Hoje, ademais, o dever de informar se incorporou ao direito contratual como dever geral de conduta.

O contrato, em nossos dias, dialoga fortemente com os ventos constitucionais. Ele não perdeu, nem o poderia, o seu viés econômico. Esse viés, porém, já não é o único. Há, também, muito forte, a preocupação com as dimensões existenciais do ser humano e com a promoção da solidariedade social. O Código Civil, em mais de uma oportunidade, sublinha a relevância da dimensão funcional a respeito dos contratos. Nesse contexto, a função social passa a ser parâmetro de validade dos contratos. Podemos até sustentar que a função social é um dos mais importantes princípios do Código Civil, e que a Constituição somente admite o contrato que realiza sua função social. Seja como for, a função social permeia todas as formas de contratos e de propriedade, de bens imóveis e móveis, inclusive as novas e iconoclastas formas de circulação de riqueza, pela bolsa de valores, em transações instantâneas, ou pelo comércio digital.

A legitimidade da eficácia dos contratos transmudou-se da forma para o con-teúdo. A forma permanece condição necessária, mas não suficiente. É fundamental que o conteúdo reflita, em alguma medida, a ordem dos valores constitucionais, sem o que não haverá validade no ajuste. Nessa ordem de ideias, a aferição de validade dos contratos deslocou-se do momento de formação do vínculo para, além dele, espalhar-se pelos momentos posteriores à contratação32. A verificação da validade, à luz da Constituição, é dinâmica e flexível, e não estática e rígida. O princípio do equilíbrio material entre as prestações, cuja base normativa superior é o art. 3º, III, CF/88, impõe um contínuo acompanhamento da relação contratual, verificando, caso a caso, a existência de desigualdades reais que exijam correção.

Se assegurar a liberdade de contratar era a grande missão dos códigos civis oitocentescos33, hoje a grande missão, dos códigos civis e das Constituições, é assegurar uma tutela privilegiada à pessoa humana. Nesse contexto, os contratos são socialmente funcionalizados, o que impede uma utilização inconsequente da autonomia da vontade. A propriedade, cuja função social tem sede constitucional, restringe o espaço de ação do proprietário, que não pode agir em descompasso com a inserção social do bem que titulariza. O abuso de direito (Código Civil, art. 187), ato ilícito, exige que o exercício não ultrapasse os padrões ético-sociais, sendo ilícitas as ações ou omissões que, a pretexto de exercer um direito, excedam o razoável e o proporcional. Esse artigo serve como base normativa imediata para conformar

32 Nesse sentido, “um contrato livremente pactuado pode ser, não obstante, um contrato injusto e, nesta medida, pode ser revisto, modificado judicialmente ou mesmo integralmente rescindido: à ênfase na liberdade sucede a ênfase na paridade. Trata-se, pois, de uma transformação profunda no conceito de justiça contratual. A dimensão de tal mudança dificilmente pode ser compreendida em função, apenas, do direito contratual, exigindo, comple-mentarmente, uma contextualização filosófica” (NEGREIROS, Teresa Negreiros. Teoria do Contrato. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 158).

33 DONEDA, Danilo. Os direitos da personalidade no Código Civil. A Parte Geral do novo Código Civil: estudos na pers-pectiva civil-constitucional. TEPEDINO, Gustavo (Org.). Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 38.

102 MANUAL DE DIREITO CIVIL – Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto

direitos que, embora contratualmente assegurados, agridam a boa-fé ou a finalidade econômico-social do negócio jurídico. Retrai-se, assim, nas relações patrimoniais, a autonomia, vedando que, sob o véu do exercício de um direito, cometam-se abusos.

Há, além disso, a necessidade da tutela da confiança das partes e de terceiros. Busca-se, como veremos adiante, o equilíbrio material entre as prestações. A função social dos contratos desempenha relevantes tarefas, ao lado das múltiplas funções da boa-fé objetiva. Passa-se da tutela subjetiva da vontade à tutela objetiva da con-fiança34. Existem, no Código Civil, três grandes princípios que marcam o direito contratual: princípio do equilíbrio material entre as prestações, princípio da boa-fé objetiva e princípio da função social dos contratos. Veremos, mais adiante, ao longo do livro, cada um deles.

Há outro ponto que pede menção. Não é difícil perceber – analisando as re-lações sociais no Brasil do século XXI – que parcela imensa dos contratos deixou de ser juridicamente regrada pelo Código Civil. Grande parte, a quase totalidade, dos contratos que firmamos diariamente são contratos de consumo, além de serem contratos de adesão (cartões de crédito e débito, operadoras de telefonia, bancos, passagens aéreas, planos de saúde, escolas e faculdades privadas, seguradoras, esta-cionamentos, shoppings, serviços em geral). Não são contratos regidos pelo Código Civil, pelo menos não diretamente. São contratos regidos pelo Código de Defesa do Consumidor35.

Aliás, é inegável que os contratos, hoje, revelam inegável poder normativo pri-vado. As condições gerais dos contratos – de alguns dos serviços que mencionamos: bancos, telefonia, tevê a cabo, cartões de crédito, passagens aéreas etc. – mal escon-dem um poder contratual que rivaliza com o poder estatal (monopólio legislativo na edição de normas jurídicas vinculantes). É certo que boa parte dessas cláusulas gerais, se judicialmente questionadas, não prevalecem, mas também é certo que só uma pequena parte dessas cláusulas é efetivamente sindicada.

No contexto exposto, perde força o dogma da intangibilidade da vontade. Ain-da que sua manifestação tenha sido livre, sem vícios, isso não constrói muros que impeçam sua adequação aos valores ético-sociais. O dirigismo contratual esvazia o caráter sacro de respeito à palavra dada; os acordos prevalecerão não porque foram firmados entre pessoas livres e iguais; isso é importante, mas não é tudo: é essencial,

34 Cf. FACHIN, Luiz Edson. O “aggiornamento” do direito civil brasileiro e a confiança negocial. Repensando os fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 145; MATTIETTO, Leonardo de Andrade. O papel da vontade nas situações jurídicas patrimoniais: o negócio jurídico e o novo Código Civil. Diálogos sobre Direito Civil – Construindo a racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 23-39, p. 35.

35 A proteção do consumidor, por exemplo, participa de uma tutela mais ampla, a tutela à pessoa humana. O Código de Defesa do Consumidor estatui, no art. 1º, seu caráter de norma de ordem pública e de interesse social, afasta a possibilidade do consumidor a elas renunciar, sendo cogente sua incidência. Então, independente de sua vontade, o consumidor é protegido. A publicidade, desde que suficientemente precisa, vincula o fornecedor, preponderando inclusive sobre eventual acordo escrito. Na órbita processual, o juiz pode, havendo verossimilhança, inverter o ônus da prova, oportunizando um acesso à justiça diferenciado. As cláusulas abusivas são despidas de força jurídica, não vinculando o consumidor, ainda que a elas tenha expressamente aderido. O CDC é usado aqui apenas como exemplo. No Código Civil há normas semelhantes, talvez até – em certo sentido – mais fortes, por exemplo: “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Mais adiante, pre-ceitua, no art. 2.035, parágrafo único: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”.

CONCEITOS FUNDAMENTAIS • Cap. 1 – CONTEXTUALIZANDO O NOVO DIREITO CIVIL 103

para que prevaleçam, que o seu conteúdo espelhe vínculos e prestações equilibradas e não conflitem com a função social dos contratos e da propriedade36. Por certo, o princípio da força obrigatória dos contratos não deixou de existir em nossos dias. Apenas não apresenta, atualmente, caráter absoluto. Deverá ser temperado à luz de outros princípios e regras, tendo maior ou menor aplicação, à luz da relação jurídica subjacente (em princípio, será maior o valor do pacta sunt servanda, por exemplo, quanto mais equivalente, ou menos desigual, for a situação dos contratantes entre si).

Está havendo, no direito civil contemporâneo, um progressivo decréscimo de autonomia da vontade, no que se refere às relações contratuais, decréscimo esse inver-samente proporcional à crescente liberdade das pessoas nas relações existenciais. Esse aumento de liberdade nas relações existenciais tem amparo no princípio da melhor realização do ser humano, princípio implícito em nossa ordem constitucional, prin-cípio cuja estruturação teórico-normativa pode ser extraída da dignidade da pessoa humana, fundamento da República (CF/88, art. 1º, III). Se os espaços se ampliam nas situações subjetivas existenciais, por outro lado, nas patrimoniais – superado o paradigma liberal – exigem atenta tutela estatal. O Estado não pode se manter alheio à brutal exclusão social, porque, com ela, as demais liberdades se convertem em quimeras. O exercício da liberdade pressupõe níveis mínimos de igualdade.

Diminuem os espaços da liberdade contratual; ampliam-se os espaços para a liberdade existencial. Não somos livres para realizar contrato com qualquer conte-údo; somos, porém, cada vez mais livres para deliberar sobre os caminhos íntimos, existenciais, que nos conduzirão a uma vida – espera-se – em paz com nossa consci-ência. Isso significa, concretamente, o seguinte: espaços mais generosos de liberdade para escolhas subjetivas existenciais. Em outras palavras: as estradas que conduzem à felicidade, àquilo que cada um de nós julga ser mais apropriado para nossas vidas, devem ser preservadas, tanto quanto possível, de interferências estatais. Voltaremos, adiante, ao longo do livro, a esses temas.

3.3. Mudanças no direito de propriedade

“Sempre me achara parecido com alguém e não sabia quem. Até que, naquele momento e tardiamente, descobri a minha total semelhança com a Idade Média”.

Nelson Rodrigues

Sob inspiração individualística, a liberdade se afirmou, nos códigos civis, sob a forma da propriedade (simbolizada pela autonomia para celebrar pactos vinculantes). Havia um respeito religioso à propriedade e aos contratos, considerados invioláveis

36 Nessa ordem de ideias, “o foco na análise de uma relação contratual deve dar-se sobre a eventual vantagem que uma parte possa ter sobre a outra. Essa a chave para uma justa compreensão do caso concreto. Essa análise mais arejada – e mais proveitosa do ponto de vista social – foi observada pelas decisões do Superior Tribunal de Justiça (...). Nessas decisões se atentou, antes, para a situação de desvantagem de uma das partes diante de outra, para, então, oferecer uma resposta do Judiciário em sintonia com a finalidade do ordenamento, consistente em evitar iniquidades e garantir a justiça no caso concreto” (CASTRO NEVES, José Roberto de. O Direito do Consumidor – de onde viemos e para onde vamos. RTDC, vol. 26, abr/jun, 2006, p. 197).

104 MANUAL DE DIREITO CIVIL – Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto

em seu conteúdo. A liberdade então exercida era uma liberdade de proprietários. Os códigos civis regiam relações entre pessoas dotadas de patrimônio. Os códigos civis clássicos, que se propunham a ser a “Constituição” do direito privado, não atingiam as pessoas sem patrimônio, e já aí se vê que quão pobres eram tais “Constituições”37. Pontes de Miranda – com a antevisão que o distinguia – já nas primeiras décadas do século passado já alertava para o regressivo erro de tratar outros direitos menos favoravelmente que o direito de propriedade38.

O direito civil, nesse sentido, se renovou, está se renovando. Há um choque entre velhas estruturas e novas funções. Aliás, não é novidade que o direito civil sempre foi visto como o espaço jurídico do tradicionalismo. Os civilistas, com seu conservadorismo inteligente, hesitam muito em abandonar antigos esquemas ou classificações ou renovar velhas pautas temáticas. Para abraçar o novo é preciso, muitas vezes, abandonar o antigo, e é esse abandono – mais do que a aceitação do novo – que parece incomodar.

Outro ponto importante. Mudamos bastante nas últimas décadas. Não só social-mente, mas também na dimensão jurídica (dimensões que estão obviamente interliga-das, mudanças sociais repercutem, em maior ou menor grau, na experiência jurídica, mesmo que não tenha havido alteração formal das regras jurídicas). Pensemos no meio ambiente. O direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado redefine papéis e funções no ordenamento jurídico. Convém não esquecer que há poucas décadas a literatura jurídica – tratados, manuais e monografias – considerava a natureza (ar, mares etc.) res nullius, coisa de ninguém. Algo de menor importância, algo que nem merecia mais que duas ou três linhas nos cursos e manuais. Hoje, em poucas décadas, a situação se inverteu. O meio ambiente é considerado bem de uso comum, direito fundamental de terceira geração. Tivemos, portanto, na maté-ria, curiosa evolução conceitual: de res nullius para res communis omnium. Temos, portanto, no meio ambiente, um bem difuso, um macrobem39.

Dentre as preocupações que afligem o século XXI certamente está a preocupação ambiental, que assume múltiplos aspectos, dentre eles a progressiva perda da biodi-versidade do planeta. Sabemos, hoje, quão ingênua era a crença acerca da inesgota-bilidade dos recursos naturais, e que não é infinita a capacidade de autorregeneração

37 Aliás, em ficção risível, bem ao espírito oitocentista, concluiu-se que mesmo a pessoa que não tem patrimônio é considerada como se o tivesse, para que as categorias jurídicas pudessem continuar a funcionar.

38 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 367. 39 A bibliografia sobre o tema é riquíssima. Conferir, apenas a título exemplificativo, dentre outros valiosos trabalhos:

NASH, Roderick Frazier. The Righst of Nature: a history of environmental Ethics. The University of Wisconsin Press. Madison, 1989; SOLLOW, Robert M. Intergenerational Equity and Exhaustible Resources. Review of Economic Studies. Symposium on the Economics of Exhaustible Resources, 1974; BENJAMIN, Herman V., Responsabilidade civil pelo dano ambiental. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, v. 3, n. 9, p. 5-52, jan./mar. 1998; SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1995; HUTCHINSON, Tomás. Daño Ambiental. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1998; ITURRASPE, Jorge Mosset. Daño Ambiental. Buenos Aires: Bubinzal Culzoni, 1999; REHBINDER, Eckard. Germany (Chapter 3). KOTZÉ, L. J.; PATERSON, A. L. (eds.). The role of the judiciary in environmental governan-ce. Netherlands: Kluwer Law International, 2009; STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011; MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade civil por presunção de causalidade. Rio de Janeiro: GZ, 2010; BENJAMIN, Herman. Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. CANOTILHO, J.J. Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007; FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Novo Tratado de Responsabilidade Civil. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2017.