Manual de Exegese - Faculdade Teológica Nacional. Admite-se arelativização da rigidez de...

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Manual de Exegese Júlio Zabatiero

© 2007 por Júlio Zabatiero Capa

Guther Faggion 1ª edição – agosto 2007

Todos os direitos desta edição reservados para: Editora Hagnos Av. Jacinto Julio, 27 04815-160 - São Paulo, SP (11) 5668-5668 [email protected]

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Zabatiero, Júlio Manual de Exegese/ Júlio Zabatiero. – São Paulo: Hagnos, 2007. ISBN 978-85-7742-016-2 1. Bíblia – Comentários 2. Bíblia – Crítica e interpretação 3. Bíblia – Estudo e ensino 4.

Bíblia – Hermenêutica – Metodologia 5. Bíblia – Leitua I. Título 07-6682 CDD-220.601

Índices para catálogo sistemático: 1. Bíblia: Exegese: Metodologia 220.601 2. Exegese bíblica: Metodologia 220.601

Sumário

Agradecimentos Apresentação Prefácio do autor Como usar este manual Introdução 1. Análise do plano de expressão 2. Ciclo 1 — Dimensão espaço-temporal da ação 3. Ciclo 2 — Dimensão teológica da ação (parte 1): Interdiscursividade 4. Ciclo 2 — Dimensão teológica da ação (parte 2): Estilo e argumentação 5. Ciclo 2 — Dimensão teológica da ação (parte 3): Teologia do texto 6. Ciclo 3 — Dimensão sociocultural da ação (parte 1): Narratividade 7. Ciclo 3 — Dimensão sociocultural da ação (parte 2): Interdiscursividade 8. Ciclo 4 — Dimensão psicossocial da ação 9. Ciclo 5 — Dimensão missional da ação: A releitura do texto

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Agradecimentos São tantas as pessoas e instituições que me ajudaram a construir minhas idéias e a ousar torná-las públicas, que seria injusto nomear algumas e esquecer a maioria. Sinto-me na obrigação, porém, de destacar os e as estudantes de teologia que foram “cobaias” e “vítimas” de minha paixão pela interpretação da Bíblia. As inúmeras dúvidas, inquietações, perguntas, discussões e os diversos diálogos que vocês me proporcionaram em quase trinta anos de trabalho em instituições de educação teológica estão, de alguma forma, presentes e cristalizadas neste livro.Apresentação

Apresentação Li Manual de exegese com muita satisfação. Tendo em vista conversas com o autor, Julio Zabatiero, aguardei este livro com grande expectativa.

Esta publicação, por um lado, soma-se às várias obras do gênero com suas matizes de metodologias exegéticas, diferenciadas até certo ponto umas das outras, mas desafiadoras em múltiplos detalhes de conteúdo e apresentação. Por outro lado, considero-a também especial e inovadora na ciência exegética bíblica executada no Brasil. Como afirma o autor, o objetivo do Manual de exegese não é “substituir os anteriores”, mas “contribuir para o avanço de nossas habilidades interpretativas. Não se pretende fechar questão sobre determinados tópicos, mas apresentar novas perguntas e possibilidades”.

Em que reside, então, a contribuição específica deste manual? Parece-nos que, diferentemente das outras obra do gênero, esta se caracteriza por priorizar os seguintes aspectos:

1. A busca da exegese e de sua ciência metodológica é definida mais como procura pelo sentido de suas ações que pelo sentido do texto. A ação testemunhada no texto se transforma na razão primordial da exegese. Dessa forma, este manual contribui para desfazer a longa prioridade da teoria sobre a prática. A práxis cristã, fomentada e orientada pela Palavra de Deus, quer ser razão e finalidade da interpretação dos textos: “Lemos a Bíblia para responder à ação de Deus através da nossa ação...”.

2. Como toda prática, a ênfase à práxis neste manual está embasada numa teoria específica e, explícita ou implicitamente, se confronta com teorias diferentes ou contrárias. A teoria à qual o autor adere e que procura explicitar gradativamente ao longo dos capítulos (nas seções “Conceitos básicos” e “Conceitos operacionais”) é a metodologia ou perspectiva sêmio-discursiva de leitura e análise de textos. Esta, por sua vez, baseia-se em duas teorias de ação do pensamento contemporâneo: a semiótica e a discursiva. O autor se inspira, sobretudo, na semiótica greimasiana (de cunho pós-estruturalista), que lhe fornece as principais ferramentas para entender como se produz e interpreta o sentido dos textos, e na teoria da ação comunicativa de Habermas, a partir da qual se descortina a maneira como funciona a sociedade. O “coração” ou “alma” do Manual de exegese, se assim pudermos nos expressar, estão ligados essencialmente a esse aspecto metodológico.

Esta obra pode, pois, ser definida como uma contribuição atualizada da semiótica para a exegese: ela tanto depura como a semiótica e sua relação com o estruturalismo até agora vêm sendo entendidas nos manuais de interpretação bíblica, quanto contribui para que o método sêmio-discursivo tenha identidade própria e, portanto, não seja simplesmente mesclado ou agregado a outras metodologias em voga.

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3. Admite-se arelativização da rigidez de fronteiras entre exegese e hermenêutica. Este livro não adere a teorias de progressividade na interpretação do texto bíblico, como se a ordem interpretativa tivesse de resguardar sempre o primado do sentido original do texto, conforme a intenção do autor e a compreensão dos primeiros leitores (= exegese), para então estar em condições de determinar o verdadeiro sentido da época atual (= hermenêutica). De acordo com Zabatiero, a interpretação tanto pode iniciar quanto terminar com a hermenêutica e/ou a exegese. A ordem dos fatores não altera mais o resultado da pesquisa. Por essa razão, a autoria dos textos continua importante, mas não é mais entendida como determinante. O Manual de exegese procura conciliar e integrar leituras orientadas nas intenções do autor e da autora (passado), da obra (passado) e dos leitores e das leitoras (presente)!

Além desses três marcos distintivos, ressalto outros aspectos práticos que me chamaram a atenção. Em primeiro lugar, o texto não foi pensado unicamente para academias teológicas, mesmo que as bibliografias sugeridas no final dos capítulos sejam exigentes. Leituras de cunho devocional ou homilético também podem fazer uso do seu instrumental. Em segundo, a obra tem a vantagem de constituir-se numa metodologia de interpretação tanto de textos do Antigo Testamento quanto do Novo. Por último, há um detalhe prático: a teoria é sistematicamente posta em prática após a abordagem de cada capítulo. Há dois textos que servem de paradigma para os exercícios de interpretação bíblica: Isaías 42:1-4 e Marcos 1:9-11. Leitores e leitoras são, dessa forma, incentivados a aplicar e concretizar as orientações em seus textos de estudo e interpretação.

Soma-se um último detalhe aos aspectos práticos: o Manualde exegese foi pensado, discutido e redigido em solo brasileiro. Ele respira discussões contextuais, tematiza problemas que nos dizem diretamente respeito e discute Bíblia e teologia a partir de uma perspectiva libertadora, social e politicamente engajada. Essa moldura especial e os posicionamentos assumidos e defendidos por Júlio colocam este manual teologicamente relevante além das fronteiras limitadas por metodologias exegéticas e hermenêuticas.

Assim, espero e desejo que o Manual de exegese lance boa semente para que a Palavra de Deus possa ser cada vez mais bem assimilada e coerentemente vivenciada. Que sua metodologia consiga nos sensibilizar para as ações de Deus e nos inspirar para ações coerentes com o que Deus realizou por primeiro, antes de nós e em nosso favor.

UWE WEGNER

Prefácio do autor Sempre desejei escrever este livro. São muitas as razões. Primeira: considero importantíssimo ler a Bíblia, e lê-la bem, de forma disciplinada, atenta e criativa. Segunda: tenho imenso prazer em lê-la disciplinadamente, em procurar entender as várias possibilidades de sentido que seus textos oferecem e em estabelecer discussão entre as várias interpretações que os textos recebem. Terceira: a Bíblia apresenta diversas dificuldades a quem deseja lê-la e entendê-la bem. Os cristãos primitivos também deparavam com essas complexidades textuais. No Novo Testamento encontramos pelo menos três referências a tais dificuldades:

1. A conversa entre Jesus e dois discípulos (Lc 24:12-35). 2. O colóquio de Filipe com o eunuco etíope (At 8:30-31). 3. A declaração de 2Pedro 3:16 sobre “certas coisas difíceis de entender” nas epístolas

paulinas.

Seja qual for a dificuldade, nenhuma deveria nos impedir de estudar a Bíblia com afinco, disposição, disciplina, prazer e fidelidade ao Senhor das Escrituras.

Apesar do desejo de escrever este manual, também relutei muito. Primeiramente, porque já havia no mercado editorial bons manuais de exegese e hermenêutica bíblicas

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(um a mais, possivelmente, não faria grande diferença). Depois, porque a pluralidade de métodos e teorias interpretativas é tão grande que outro manual talvez acrescentasse mais confusão que qualquer outra coisa. Por último, e mais revelante, porque um manual oferece este imenso risco: pode tornar o método proposto mais importante que a atividade que se propõe a explicar e a descrever. Compreender as Escrituras e fazer a vontade de Deus em resposta à sua Palavra é mais meritório que qualquer método, e essa meta deveria ser o critério de avaliação de qualquer método exegético.

Venci a relutância e concluí este manual. Em relação aos dois primeiros motivos da relutância, acredito que esta proposta de

leitura fará certa diferença e acabará ajudando algumas pessoas a ler melhor a Bíblia em busca da direção de Deus para sua espiritualidade e sua missão. Creio também que não trará mais confusão ao campo dos estudos bíblicos, mas poderá ajudar a evitar alguns dos falsos problemas desenvolvidos ao longo dos séculos — o que já seria suficiente para mim. Quanto ao terceiro, a única coisa que posso fazer é alertar para o risco. Porém, o objetivo maior — ler melhor a Bíblia — é suficientemente importante para que valha a pena correr riscos.

A proposta de leitura bíblica está apresentada e colocada ao seu dispor. Agora cabe a você reagir ao que aqui é proposto como um caminho adequado e relevante para a interpretação da Bíblia.

Evitei discussões teóricas sobre exegese e hermenêutica. Este livro é prático. Toda prática, entretanto, está associada a alguma teoria e está em confronto com outras teorias e práticas. Há várias outras teorias e práticas legítimas e relevantes de interpretação da Bíblia. A bibliografia exegética e hermenêutica é vastíssima, de modo que mesmo a tentativa de apresentar uma bibliografia mínima representativa dessa variedade apresentaria lacunas significativas. No meu computador estão os primeiros esboços e textos de um livro teórico sobre exegese e hermenêutica bíblicas, com discussões, comparações e contrastes com outras teorias e práticas de leitura. Se eu vencer a relutância em escrever um novo livro sobre interpretação bíblica, terei muito prazer em tornar pública também minha paixão pelos fundamentos teóricos da prática interpretativa.

Seria quase desnecessário dizer que quaisquer erros — técnicos, exegéticos ou teológicos — são de minha inteira e exclusiva responsabilidade, mas sempre é bom eximir amigas e amigos das possíveis culpas derivadas de nossas crenças e atos.Como usar o Manual de exegese

Como usar o Manual de exegese Esta obra visa a descrever e a demonstrar como interpretar a Bíblia sob a perspectiva do que se pode chamar sêmio-discursiva. São textos práticos, do mesmo tipo das receitas culinárias e dos manuais de aparelhos eletrônicos etc. Porém, diferentemente destes, a prática da leitura da Bíblia aqui oferecida não é tarefa cuja realização dependa da obediência aos passos propostos. A atividade de interpretar a Bíblia possui dimensão técnica. Mais importante ainda: é uma prática que se concretiza como arte, de modo que a criatividade e o envolvimento pessoal são fundamentais na utilização deste ou de qualquer outro método. A estrutura de cada capítulo visa a facilitar o exercício da criatividade, a partir do uso disciplinado de certos conceitos e regras que permitem interpretar adequadamente textos bíblicos.

A abertura de cada capítulo mostra aspectos do texto que devem ser levados em consideração na interpretação. Em seguida, uma introdução descreve as principais

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questões envolvidas na observação dos aspectos do texto selecionados para a interpretação sob a perspectiva sêmio-discursiva. A introdução encerra com perguntas básicas que nortearão o procedimento de leitura do texto.

A seção seguinte, “Como fazer”, alista os passos rotineiros para aplicar as perguntas ao texto e encontrar nele as respostas. Dois exemplos demonstrarão o método proposto. O primeiro é em forma descritiva, mostrando os andaimes usados na construção do edifício. O segundo é em caráter dissertativo, mostrando os resultados da aplicação do método, ocultando os andaimes. Os exemplos não podem ser entendidos como “a verdadeira interpretação” dos textos bíblicos de base. São apenas modelos. Sugiro que você aplique aos textos bíblicos usados neste manual os procedimentos da leitura, de modo que possa não só aprender a fazer, mas perceber como a contribuição pessoal é importante na interpretação bíblica. A escolha de duas perícopes bíblicas para exemplificação tem vantagens e limites. O principal limite é que nem sempre os textos interpretados apresentam as características mais favoráveis para cada ciclo do método. A grande vantagem está exatamente nisso. Muitos manuais usam como exemplos textos mais apropriados para cada parte do método proposto. Na prática, porém, os textos que interpretaremos não oferecem a mesma facilidade.

Aos exemplos seguem as seguintes seções: “Conceitos básicos”, necessários para a compreensão e utilização dos procedimentos metodológicos descritos e exemplificados, e “Conceitos operacionais”, que servem como regras de aplicação do método. Essas duas seções procuram destacar, de forma abreviada e simples, os fundamentos teóricos da metodologia sêmio-discursiva, de modo que não só as bases do método sejam entendidas, mas também que a comparação e o contraste com outros métodos e suas teorias possam ser feitas por você. Um resumo conceitual é oferecido ao final dessas seções. Recorra a estas para entender os conceitos usados e apresentados nas seções anteriores, mas não explicados.

A seguir, vêm os “Exercícios”, um convite a você para usar o método com outros textos bíblicos e com outros tipos de texto ou de formas de comunicação de idéias, já que o aprendizado de um método ocorre quando o usamos com textos e materiais diferentes daqueles usados na descrição do procedimento.

O capítulo se encerra com “Sugestões de leitura”, que se restringem à abordagem teórica na fundamentação do Manual de exegese — sugestões de textos didáticos sobre a aplicação da teoria e de textos técnicos explicativos da teoria da produção e interpretação de textos. Você notará que as sugestões são em número restrito e visam apenas a aprofundar os conhecimentos práticos e teóricos necessários para ler a Bíblia em perspectiva sêmio-discursiva, sem pretensão de exaustividade. Se você considerar essa perspectiva de leitura da Bíblia digna de interesse e aplicação, essas sugestões proporcionarão uma biblioteca básica de teoria e prática da leitura sêmio-discursiva.

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Introdução

POR QUE MAIS UM MANUAL DE EXEGESE ? Porque vivemos num mundo novo A interpretação da Bíblia é uma prática que tem diferentes sujeitos, tempos e espaços de realização. Dominicalmente, pregadoras e pregadores explicam passagens bíblicas a pessoas que desejam aprender, servir a Deus e tornar a vida mais feliz. Diariamente, isso é feito por meio da televisão, em que telespectadores e telespectadoras são alcançados nos mais distantes cantos da Nação e de outros países, com as mais variadas expectativas e necessidades. Semanalmente, professoras e professores de exegese e teologia bíblica ensinam estudantes a interpretar a Bíblia, seguindo padrões acadêmicos precisos, visando a formar mais pregadoras e pregadores e, quem sabe, mais intelectuais da Teologia. Diariamente, fiéis de variadas confissões cristãs e de religiões aparentadas ao cristianismo lêem a Bíblia em momentos devocionais, nas horas de apuro, nas celebrações familiares, para crescer na fé, cumprir obrigações religiosas ou tantos outros fins. Além disso, muitas pessoas sem filiação eclesiástica lêem a Bíblia por prazer, devoção, para cumprir trabalhos acadêmicos, realizar pesquisas lingüísticas, literárias ou culturais. Você certamente se encaixa em uma dessas categorias.

Ler se tornou uma atividade mais rara e diferente do que se fazia há décadas. Hoje é muito comum que se leia em computadores, sites da internet, chats, e-mails — até uma nova língua está se construindo: vc tb já inventou suas palavras, naum eh? :-) Adolescentes, que há poucos anos mal liam gibis, agora lêem livros de mais de quinhentas páginas e aguardam ansiosamente o novo título de aventuras mágicas. Uma nova língua e novos hábitos de leitura vão tornando cada vez mais difícil ler livros grandes e antigos como a Bíblia, que exigem esforço e não se submetem facilmente à prática da leitura por entretenimento.

Pense na leitura da Bíblia em igrejas cristãs. Você verá que as interpretações de pregadoras e pregadores aos mesmos textos são muito diversificadas. Um texto como Isaías 53 pode servir para vários propósitos:

1. Defender a ausência de doenças: “[Cristo] carregou sobre si nossas enfermidades”. 2. Afirmar a necessidade de fé em Cristo: “... mas ele foi traspassado pelas nossas

transgressões”. 3. Defender a prosperidade: “... pois eu lhe darei muitos como a sua parte e com os

poderosos repartirá ele o despojo”. 4. Defender a humildade e a obediência a Deus: “... ele foi oprimido e humilhado, mas não

abriu a boca”.

Eu poderia continuar a alistar mais e mais exemplos. A situação não é tão diferente nos meios acadêmicos: mais e mais comentários a cada

livro da Bíblia são publicados, com novas propostas de leitura, novas soluções para antigos problemas exegéticos, novas interpretações para textos familiares. Nas igrejas e nas academias teológicas, a novidade também é moeda corrente. Imagine quantos objetivos, quantas expectativas, necessidades e realizações desse universo de leitoras e leitores! Visualize também quantas teorias, quantos métodos e quantas estratégias de leitura da Bíblia existem e são praticadas diariamente!

Tanta novidade assim também é expressão de perplexidade. Sinal de que não se sabe muito bem o que fazer, de que hábitos antigos já não têm tanto valor quanto imaginávamos. “Tempos pós-modernos!”, diriam algumas pessoas. Tempos de relativismo, pluralismo, contextualismo e de tantos ismos que podemos escolher nosso ismo nas prateleiras dos supermercados culturais. Há também a busca de certezas, de

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estabilidades, de verdades em que ainda valha a pena acreditar. Os limites dos hábitos anteriores não devem nos impedir de reconhecer seus valores e de buscar, a partir deles, aperfeiçoamento, melhora de qualidade, novos hábitos mais eficazes, criativos e realizadores.

Por que mais um manual de leitura da Bíblia ou de exegese bíblica? Porque a multiplicidade de teorias e métodos não é um problema, mas o testemunho da riqueza e importância das Escrituras. Certamente a Bíblia merece ser estudada da forma mais adequada, criativa e rica possível.

O Manual de exegese não foi publicado com o objetivo de substituir os anteriores. A intenção é contribuir para o avanço de nossas habilidades interpretativas. Não se pretende fechar questão sobre determinados tópicos, mas apresentar novas perguntas e possibilidades.

Outras razões são igualmente relevantes: a Bíblia é importante, os tempos em que vivemos são complexos e precisamos fazer melhor algumas das coisas que fazíamos antes, como, por exemplo, ler a Bíblia (esta é uma das práticas que valem a pena ser mantidas). Precisamos continuar lendo a Bíblia, mas de modo melhor, mais criativo, fiel e transformador. Porque a Bíblia é um livro diferente A Bíblia não é um livro, mas uma pequena biblioteca de 66 livros (no cânon protestante) ou 73 (no cânon católico romano). Uma biblioteca de duas religiões: judaica e cristã; de dois mundos culturais: oriental e ocidental; de livros provenientes de lugares e épocas diferentes; de livros escritos em três idiomas distintos (hebraico, aramaico e grego) e traduzidos para inúmeros outros idiomas. Uma biblioteca sem as primeiras edições — não temos nenhum manuscrito original, apenas cópias antigas também manuscritas, que serviram de base para as edições impressas dos textos nas línguas originais e nas traduções.1 Uma biblioteca de livros com os mais variados gêneros literários e temas: narrativas, leis, cartas, interpretações da história do povo de Deus, profecias, exortações, canções litúrgicas, canções de amor etc.

Outra peculiaridade dos livros bíblicos em relação às nossas práticas de escrever livros é que boa parte deles não foi escrita pela mesma pessoa, nem num curto período. Para ser exato, nem deveríamos chamar os livros da Bíblia de “livros”, pois isso já nos faz pensar em um tipo muito específico de obra. Veja o “livro” de Salmos — não se trata realmente de um livro, mas de uma coletânea de orações, poemas e hinos litúrgicos, escritos por pessoas diferentes, em épocas e lugares distintos, e usados em diversas liturgias e festividades cúlticas ao longo da história de Israel. Os doze “livros” dos profetas menores, por sua vez, eram considerados um único “livro” nos tempos bíblicos após sua escrita — porque eles ocupavam um “rolo” de pergaminho (um dos materiais de escrita utilizados então). A chamada “literatura paulina” se compõe exclusivamente de cartas, assim como as “obras” de Pedro e Judas, e há um livro do Novo Testamento que não é nem livro, nem carta, nem sermão: a epístola (carta) aos Hebreus.

Essas características da biblioteca que chamamos de “Palavra de Deus” exigem, conseqüentemente, um trabalho interpretativo disciplinado. Mesmo se o objetivo da leitura for devocional, não podemos abrir mão de interpretar o texto a partir de suas características literárias e lingüísticas, nem podemos deixar de ler o texto à luz do

1 1 As edições impressas da Bíblia são muito recentes. Durante muitos séculos, os livros da

Bíblia eram manuscritos, copiados geração após geração, circulando em vários lugares e

sofrendo pequenas alterações no processo de cópia.

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próprio contexto. Uma leitura devocional não terá as mesmas características de uma leitura acadêmica, mas os princípios básicos, derivados da natureza sociocultural da Bíblia, não podem deixar de ser aplicados.

A diversidade literária, social, cultural e religiosa da Bíblia gerou, em meios acadêmicos, amplas e detalhadas pesquisas, e constituiu um campo de estudos composto por várias disciplinas acadêmicas: geografia e arqueologia bíblicas, introdução aos escritos bíblicos, história dos tempos bíblicos, estudo dos idiomas bíblicos, teologia bíblica, exegese e hermenêutica bíblica. As riquezas da pesquisa acadêmica da Bíblia não podem ser desperdiçadas, mesmo quando não seguimos seus métodos, não concordamos com seus resultados ou simplesmente quando nossos interesses na leitura das Escrituras são distintos dos interesses acadêmicos.

Graças a esse imenso esforço de muitas pessoas ao longo dos últimos três séculos, temos hoje à disposição uma vasta bibliografia especializada em diversas áreas do estudo da Bíblia. Gramáticas e livros-texto para o aprendizado das línguas bíblicas, léxicos e dicionários teológicos de grego, hebraico e aramaico; séries de comentários exegéticos, literários, sociológicos, homiléticos, feministas etc.; compêndios de arqueologia bíblica, história de Israel, história do período do Novo Testamento; introduções ao Antigo e ao Novo Testamento; manuais sobre formas literárias da Bíblia; manuais de crítica textual, de metodologia exegética e muito mais. Graças a essa bibliografia, nosso trabalho de interpretação fica bastante facilitado, pois muitas questões já foram resolvidas por estudiosos. Ao mesmo tempo, porém, precisamos tomar cuidado com a maneira pela qual usamos essa bibliografia. Ela não pode substituir o trabalho de análise cuidadosa e interpretação do texto bíblico; antes, deve servir de auxílio, e não de guia, à nossa interpretação.

Para muitas pessoas, a Bíblia é apenas mais uma coleção de livros. Mas para muitas outras, gente como nós, que lemos manuais de exegese como este, é muito mais que uma coleção de livros. É Palavra de Deus. Como palavra de Deus, nos encanta (quantos textos da Bíblia marcaram nossa vida por sua beleza e riqueza), às vezes nos chateia (experimente ler aqueles vários capítulos de genealogias, de descrições de rituais sacrificiais etc.), nos faz trabalhar duro para entendê-la (afinal de contas, quem são as bestas do Apocalipse? O que era o tal batismo pelos mortos que os cristãos coríntios praticavam? Quem eram os filhos de Deus que se casaram com as filhas dos homens? etc.). Como palavra de Deus, nos desafia, nos exorta, nos ensina, nos corrige, nos conforta, nos transforma, alimenta nossa fé, nos capacita a fazer a vontade de Deus, a sermos felizes, a praticarmos a missão e seus ministérios. Porque o caminho aqui proposto é diferente Resumindo e simplificando quase ao extremo, as práticas de exegese da Bíblia mais comuns nos últimos duzentos anos são:

1. Leituras devocionais dos mais variados tipos, nas quais se busca, de forma intuitiva e sem muito trabalho com o texto, ouvir o que Deus tem a nos dizer hoje.

2. Leituras homiléticas dos mais variados tipos, nas quais o texto é estudado em função do que se busca: o melhor sermão para a comunidade.

3. Leituras técnicas ou acadêmicas, principalmente as históricas (exegese histórico-crítica e exegese histórico-gramatical), as mais antigas e ainda mais comumente praticadas no ambiente acadêmico, mas também as sociológicas, as antropológicas, as feministas, as de raça, as diaconais.

O que todas essas formas diferentes têm em comum? De uma forma ou de outra, todas buscam o sentido do texto. Nos manuais técnicos de exegese, quase sempre se define a tarefa da interpretação como “entender o sentido original do texto, conforme a intenção do autor, e a compreensão dos seus primeiros leitores” — esse é o primeiro

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passo, a partir do qual se pergunta pelo “sentido do texto para nós hoje”. O que varia nos manuais é principalmente a ordem dessas tarefas. Tradicionalmente, a ordem é a que descrevi: a exegese tem prioridade sobre a hermenêutica. Recentemente, essa ordem tem sido invertida — a hermenêutica tem prioridade sobre a exegese.

Em que sentidos este manual oferece um caminho diferente? Em primeiro lugar, o método proposto pode ser usado igualmente para leituras

devocionais, homiléticas e técnicas, conforme o interesse de quem estuda da Bíblia, que selecionará, então, partes do método que lhe sejam mais úteis.

Em segundo lugar, porque não se prende à ordem do hábito acadêmico de interpretação bíblica — você pode começar com a exegese ou com a hermenêutica. Tanto faz, pois, de fato, sempre que lemos fazemos as duas coisas simultaneamente. Só as distinguimos por razões metodológicas e didáticas. Por isso, neste manual, uso indistintamente os termos exegese, interpretação, leitura, hermenêutica. São termos que, na história, receberam sentidos diferentes e definiram propostas distintas de leitura, mas precisam ser revistos e reconhecidos como sinônimos.

Em terceiro lugar, porque a tarefa fundamental da exegese não é vista como a compreensão do sentido do texto, mas dos sentidos da ação no texto e a partir do texto. Essa mudança representa uma tentativa de ir além dos limites da interpretação moderna da Bíblia, limites impostos pelas discussões e conflitos entre fé e razão, ciência e revelação, objetividade e subjetividade, deísmo e teísmo; e, mais importante, pela prioridade do sujeito individual, masculino, branco, racional e norte-atlântico, e pela prioridade da teoria sobre a prática. A leitura da Bíblia é tarefa de comunidades cristãs, eclesiais, missionárias, acadêmicas, familiares. A leitura da Bíblia é parte integrante da espiritualidade cristã e da ação ministerial e missionária. Isto exige uma mudança do centro da tarefa: por isso o sentido da ação vem ocupar o lugar do sentido do texto enquanto tal.

Em quarto lugar, porque integra as três grandes tendências da leitura: a baseada na intenção do autor (ou autora), a baseada na intenção da obra e a fundamentada na intenção da leitora ou do leitor. O eixo central é a obra, o texto enquanto expressão de um conteúdo simultaneamente pessoal e social, pelo que a autoria é importante, mas não determinante do sentido.

Em quinto lugar, porque a mudança da tarefa exige mudança da teoria e do método interpretativos. Precisamos de uma teoria da ação que seja, também, uma teoria do sentido. Precisamos de um método que priorize a ação, mas simultaneamente seja apropriado para o trabalho com textos, pois é nos textos que se testemunha da ação — de Deus e de sua criação.

Em sexto lugar, porque a mudança da tarefa exige mudança de objetivos da interpretação da Bíblia. Neste manual, o objetivo fundamental da leitura da Bíblia é a práxis cristã. Lemos a Bíblia para responder à ação de Deus através da nossa ação, como membros do povo de Deus, visando ao crescimento espiritual, à edificação da igreja, à realização da missão, à transformação das pessoas, grupos sociais e da própria sociedade. Enfim, visando à expansão do reino de Deus que, como Pai, Filho e Espírito Santo, é glorificado quando sua vontade é realizada na terra e seu propósito se concretiza em nossa vida.

A novidade e as diferenças deste método, porém, não significam reinventar a roda. À medida que você lê este manual, perceberá o seguinte: quase todos os procedimentos metodológicos exibidos aqui estão presentes, de uma ou de outra maneira, em vários dos outros métodos de exegese bíblica. O que muda bastante é a ordem, a configuração desses procedimentos, de modo que a ação possa estar no centro da leitura e a práxis no resultado da leitura.

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Os motivos dessas mudanças derivam das teorias adotadas, especialmente da semiótica. E aqui é necessária breve nota crítica. Vários manuais recentes de exegese, publicados em português, têm incluído capítulos sobre estruturalismo e semiótica. Entretanto, dois aspectos precisam ser notados: primeiro, de modo geral, esses manuais confundem estruturalismo com semiótica, ou então trabalham com conceitos e princípios desatualizados da semiótica; quase todos confundem semiótica com “ler o texto fora do seu contexto (fora da história)”, o que não é verdade, como você verá. O segundo aspecto é que todos mantêm suas perspectivas de exegese e tentam inserir a semiótica como um dos passos metodológicos. Isto mais atrapalha que ajuda. Este manual incorreria no mesmo problema se tentasse inserir os passos da metodologia histórico-crítica, ou a sociológica, ou a histórico-gramatical nos seus procedimentos. Podemos fazer que os métodos dialoguem entre si e se complementem, mas não podemos misturar seus procedimentos, sob pena de desfigurar o método antigo e o novo.

A LEITURA SÊMIO -DISCURSIVA CENTRADA NA AÇÃO Uma teoria semiótica e discursiva A fonte teórica desta proposta se alimenta de duas vertentes do pensamento contemporâneo: a semiótica e a discursiva. Ambas são teorias da ação e do sentido, por isso adequadas para o caminho de leitura aqui proposto. Duas escolas de pensamento são a inspiração principal para a teoria da leitura sêmio-discursiva centrada na ação: a) a semiótica greimasiana, que se especializou na compreensão e explicação de como se produz e se interpreta o sentido de textos;2 e b) a teoria da ação comunicativa de Habermas,3 que se especializou na compreensão e explicação de como funciona a sociedade. Uma característica comum a essas escolas de pensamento é a abertura para aprender com outras ciências e escolas de pensamento, incorporando esse aprendizado às suas próprias categorias e formas de análise.

2 2 Algirdas Julien Greimas foi o fundador da teoria que se convencionou chamar de semiótica

da escola de Paris, ou, simplesmente, semiótica greimasiana. O livro de Greimas que inaugura

a semiótica greimasiana foi publicado em 1966 e até a edição de seu último livro, em 1991,

Greimas e seus discípulos e colegas desenvolveram a teoria até chegar ao formato atual: uma

teoria com várias correntes, conhecida e praticada em mais de cem países. No livro Da

imperfeição (veja as sugestões bibliográficas deste capítulo), autores latino-americanos fazem

uma síntese da obra de Greimas e do atual estado da teoria semiótica greimasiana.

3 3 Jürgen Habermas é reconhecido como um dos maiores filósofos e sociólogos vivos. Autor de

um grande número de livros e artigos acadêmicos, tornou-se uma referência nos estudos

filosóficos e sociológicos a partir da publicação de sua obra magna Teoria da ação

comunicativa, em meados dos anos 1970. Vários teólogos têm dialogado com o pensamento

de Habermas, especialmente na Alemanha, Estados Unidos e Brasil. Em nosso país, a

contribuição de Habermas tem sido mais utilizada por teólogos práticos, e está presente na

obra Teologia prática no contexto da América Latina, Ed. Sinodal, editada por C. H. Schneider,

e nos artigos por mim escritos e publicados nos primeiros cinco números da revista Práxis

Evangélica, da Editora Descoberta e Faculdade Teológica Sul-Americana. No livro Dialética e

hermenêutica (sugestões bibliográficas deste capítulo), você encontrará uma síntese do

pensamento de Habermas sobre a interpretação.

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Além dessas escolas, aprendi muito com outras formas de semiótica e de análise do discurso, e também procurei incorporar esse aprendizado a essas vertentes principais de minha proposta de leitura. Procurei, entretanto, subordinar esse uso aos objetivos e às peculiaridades da leitura da Bíblia. Além disso, esforcei-me também para incorporar à teoria aqui adotada os valores e princípios teóricos da história da interpretação da Bíblia, especialmente a ligada aos ambientes evangélicos e acadêmicos de exegese e hermenêutica.

Os conceitos, procedimentos e estratégias de leitura derivados dessa teoria não serão apresentados neste capítulo. A leitura seria por demais enfadonha e desestimulante. Preferi distribuir os conceitos teóricos ao longo dos capítulos em que descrevo o método da leitura sêmio-discursiva centrado na ação. Isso torna a leitura mais agradável. Ademais, o aprendizado da teoria e da prática da leitura ocorre de forma mais integrada e simultânea.

Não cabe aqui, igualmente, a defesa da teoria adotada. Teorias, por sua natureza, só podem ser testadas e validadas na prática. Eu poderia alistar exemplos e tecer argumentos sem-fim para tentar provar a você que esta teoria é melhor que outras, mais adequada, eficaz etc. Mas isso é desnecessário e, em certo sentido, impossível de se concretizar. Teorias são entidades muito abstratas. Há várias teorias legítimas para explicar textos, sentido, interpretação, ação. Não se pode provar qual delas é a melhor. O que fazemos é escolher uma e trabalhar com ela para, na prática, conferirmos seu valor e aperfeiçoarmos seus conceitos e princípios.

Para você que gosta de situar as teorias na história e no mundo acadêmico, utilizo a teoria semiótica greimasiana em uma de suas formulações mais atualizadas, bastante diferente das formulações iniciais nos anos 1970, por exemplo. A semiótica greimasiana aqui adotada é de cunho pós-estruturalista; não entende o sentido apenas como produto mental, mas como emocional e corporal; valoriza sobremaneira o caráter social e conflitivo da produção do sentido, bem como o elemento tensivo e passional na formulação do sentido. Da teoria da ação comunicativa extraio principalmente a definição da sociedade e seu enfoque que prioriza a comunicação entre as pessoas como a base da construção social da realidade. Também utilizo uma versão atualizada dessa teoria, que leva em consideração as críticas que ela recebeu desde sua formulação (em meados de 1970), bem como os recentes debates de Habermas com a filosofia analítica contemporânea, com a nova filosofia continental e com o neopragmatismo americano.

Não defenderei essas teorias neste manual, nem me preocupei em descrever seus principais conceitos e desenhar suas estruturas. O objetivo deste livro não é teórico, mas prático — pretende ensinar a fazer, dedica-se a mostrar como podemos interpretar textos bíblicos de forma que a práxis cristã seja o seu resultado final. Se você se interessa pelas teorias, neste livro você encontrará sugestões bibliográficas para saciar seu interesse. Um método centrado na ação e composto por ciclos Procurando ser coerente com a teoria escolhida e, principalmente, buscando um método adequado ao texto bíblico e aos objetivos da leitura da Bíblia, experimentei várias seqüências e estratégias de leitura. Testei-as em minhas classes de exegese, em grupos de estudo bíblico, em discussões com colegas no ensino da exegese, com lingüistas e filósofos. Cheguei, assim, à formulação que apresento neste manual: um método cujo centro é a compreensão do sentido da ação e que se realiza através de cinco ciclos que giram ao redor do centro e se complementam mutuamente. A escolha e a ordem dos ciclos não é aleatória. Seguem três princípios: começamos com os procedimentos mais simples e fáceis, e caminhamos progressivamente aos mais complexos e difíceis. O segundo princípio deriva das teorias que fundamentam o método; os ciclos e as perguntas que os compõem sintetizam todo o amplo espectro de questões que a teoria

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semiótica do texto desenvolveu, contando com o apoio da teoria da ação e da sociedade de Habermas. O terceiro princípio também é de ordem prática: permite a quem utiliza o método adaptá-lo aos seus interesses e habilidades, bem como, se quiser, fazer o método crescer em complexidade, à luz das suas teorias de base.

Penso que consegui chegar a uma estrutura metodológica que dá conta da complexidade da tarefa exegética sem ser reducionista ou academicista; que possa ser usada igualmente por pessoas sem formação teológica e por especialistas em teologia ou outras ciências da interpretação. Dependendo dos seus interesses, você pode começar em qualquer um dos ciclos, pode passar por todos eles, selecionar um ou mais deles, dar mais ênfase a um ou a aspectos de um desses ciclos. É claro que muito dependerá de seus conhecimentos gerais sobre a própria Bíblia e sobre as sociedades e épocas em que ela foi escrita, além do seu comprometimento com a disciplina de estudo e com a práxis cristã no presente. Depois de algum tempo de prática, os cinco ciclos vão como que se transformando em um só, e a leitura se torna um processo simples, habitual, unificado. Com a prática, enfim, você mesmo irá reconstruindo o método, adaptando-o às suas habilidades, aos seus interesses e conhecimentos. Um método é:

1. Uma ferramenta. Seu valor depende da adequação ao propósito para que é usada (tente desparafusar com um martelo) e da habilidade de quem a usa — depende muito mais dessa habilidade (que digam as pontas dos dedos de quem martela sem muita habilidade).

2. Um mapa. Seu valor está na ajuda que oferece à pessoa para chegar ao destino desejado. Por isso, não pode ser muito complicado, senão a gente se perde antes mesmo de começar a viagem.

3. Um andaime. Enquanto construímos nosso edifício interpretativo, precisamos dos andaimes para fixar os tijolos, rebocá-los, pintar as paredes etc. Depois do edifício pronto, os andaimes são desfeitos e usados para outras finalidades.

4. Uma técnica a serviço da arte. Ler a Bíblia é uma arte e, como toda arte, precisa de técnicas que facilitem a prática do talento e da criatividade. Técnicas devem servir à arte, e não dominá-la.

A eficácia do método depende da pessoa que o utiliza. No caso da interpretação da Bíblia, mais importantes que o método que usamos são: os conhecimentos que temos da própria Bíblia e do mundo no qual foi escrita; os conhecimentos que temos da história da interpretação da Bíblia e seu uso nas igrejas e academias; os conhecimentos que temos de nosso mundo e de nós mesmos nesse mundo; os hábitos que já desenvolvemos e as certezas que já temos.

Além desses conhecimentos, os sentimentos e as ações interferem na leitura da Bíblia. A disposição ética, a espiritualidade e os relacionamentos também afetam a maneira como usamos os métodos. Isso sem mencionar a imaginação e a criatividade, pois ler é criar um novo texto a partir do antigo, é imaginar uma nova realidade a partir das palavras que nos desafiam. Tudo isso influencia muito mais a leitura do que o próprio método.

O método, então, deverá nos ajudar a realmente ler e ouvir o texto bíblico, mais do que ler e ouvir nossas tradições e certezas sobre o que o texto diz. Neste sentido, pode-se dizer que o método deve nos ajudar a ler a Bíblia contra nossas verdades mais acalentadas e hábitos mais empedernidos. Só assim poderemos ler a Bíblia a favor do reino de Deus, e subordinar nossas verdades e nossos hábitos àquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida.

Há pessoas que valorizam tanto a leitura e o método em si, que acabam se distanciando dos objetivos da exegese bíblica. Há pessoas que valorizam tanto os métodos e as teorias que formam grupos tão fechados e criam fronteiras tão rígidas que,

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se alguém usar outro método, a leitura será considerada ruim, inadequada e sem valor. Nas palavras do musicista Oswaldo Montenegro, são pessoas que, como certos pescadores, “se encantam mais com a rede do que com o mar”. Não custa repetir e enfatizar: a exegese está a serviço da práxis cristã, está a serviço da própria finalidade das Escrituras, conforme a encontramos em 2Timóteo 3:16-17: “Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente preparado para toda boa obra”.

Afinal de contas, como é esse método? Apenas um conjunto de atividades e de perguntas escolhidas a partir da teoria sêmio-discursiva e da prática da leitura da Bíblia. A simplicidade do método está a serviço da criatividade, da habilidade e do empenho da pessoa que interpreta o texto. Você é quem fará do método a melhor ferramenta, o melhor mapa, o melhor andaime ou a melhor técnica possível. Nesta introdução apenas alisto os diferentes passos da leitura. A descrição e explicação de cada passo do método serão feitas nos capítulos a seguir.

Sem mais suspense, eis o método!

FASE PRELIMINAR Familiarizar-se com o texto em seu contexto literário

1. Ler o texto bíblico até ficar amplamente familiarizado com ele. 2. Anotar suas primeiras impressões e dúvidas sobre o texto (revisá-las a cada ciclo da

leitura). 3. Ler o livro, ou seção do livro, ao qual o texto pertence, notando as principais inter-

relações (vocabulário, pessoas, lugares, assuntos). 4. Definir, provisoriamente, a época em que o texto foi escrito e conhecer o máximo que

puder sobre ela. FASE PREPARATÓRIA

Analisar o texto enquanto “plano de expressão” 1. Qual é o texto a ser interpretado (do ponto de vista da crítica textual e genética)? 2. Como o texto está delimitado, segmentado e estruturado? 3. Que elementos do plano de expressão contribuem mais intensamente para a produção do

sentido? FASE FINAL

Analisar o texto enquanto “plano de conteúdo” CICLO 1: DIMENSÃO ESPAÇO-TEMPORAL DA AÇÃO

1. Quem age, onde, quando, fazendo o que, a quem? 2. Como são caracterizados agentes, pacientes, tempo e espaço? 3. Como o texto organiza essas ações e relações no tempo e no espaço?

CICLO 2: DIMENSÃO TEOLÓGICA DA AÇÃO Quais são as possibilidades de sentido teológico da ação e como elas estão organizadas 1) intertextual e interdiscursivamente, 2) estilística e argumentativamente e 3) sintática e tematicamente? CICLO 3: DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA AÇÃO Como o texto, em interação com seu mundo-da-vida, dá sentido à ação sob os pontos de vista da 1) sociedade; 2) cultura; e 3) religião? CICLO 4: DIMENSÃO PSICOSSOCIAL DA AÇÃO Como o texto, em interação com seu mundo-da-vida:

1. Descreve as relações passionais no texto? 2. Constitui a identidade dos agentes a partir de seus objetivos, motivos, de suas

competências e relações passionais? CICLO 5: DIMENSÃO MISSIONAL DA AÇÃO

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Que possibilidades de ação e do sentido da ação o texto constitui no diálogo conosco? Como podemos praticá-las e/ou reescrevê-las em nossa realidade?

AO TRABALHO ! Este manual é mais um passo na instigante jornada em busca de ler melhor a Bíblia. Você não encontrará a última palavra sobre a leitura das Escrituras, nem o manual definitivo de exegese bíblica, mas uma proposta desafiadora, exigente e renovadora, que nasceu da minha prática de leitura da Bíblia, de ensino da Bíblia na igreja, de ensino de exegese bíblica em faculdades de teologia, de ensino e estudo das Escrituras em comunidades populares, em grupos de estudantes e em movimentos sociais. Um projeto oriundo das minhas leituras de manuais de exegese, comentários bíblicos, dicionários de teologia bíblica, compêndios de hermenêutica, obras de filosofia da linguagem, lingüística, semiótica, história da leitura. Um sistema proveniente da minha busca por uma forma mais eficaz de leitura da Bíblia, adequada aos estudos acadêmicos, aos momentos devocionais e à capacitação do povo de Deus para a missão.

Esta proposta que tem vários pais e mães. Embora eu seja o responsável pela redação, com certeza não sou o inventor do conteúdo, das preocupações e dos motivos. Considero-me um organizador. Tantas leituras, tantas experiências, tantos grupos de estudo me fizeram aprender muito e me desafiaram a colocar em ordem esses aprendizados para, Deus queira, ajudar pessoas que, como eu, também querem ler mais e melhor a Bíblia.

Depois de alguns anos de trabalho, finalmente terminei este manual. Espero que seja a primeira de várias edições, pois ele precisa de aperfeiçoamento que acontecerá a partir da sua prática crítica, leitora ou leitor; do uso desta proposta por vários grupos, que irão testá-la, encontrar seus limites, perceber seus valores, oferecer alternativas e propostas de enriquecimento, ou, simplesmente, vão deixar de lado esta proposta e continuar com seus hábitos de leitura, ou inventar novos. “Aperfeiçoar incessantemente!” Este é o lema de toda pesquisa e de toda disciplina de estudo.

SUGESTÕES DE LEITURA Textos didáticos

DISCINI, Norma. A comunicação nos textos. São Paulo: Contexto, 2005. SAVIOLI , Francisco Platão &FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. São

Paulo: Ática, 1996. _____.Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1991.

Textos técnicos BARROS, Diana L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual

Editora, 1988. BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Bauru: EDUSC, 2003. FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2005. (13ª ed.

revista e ampliada). Textos teóricos

GREIMAS, Algirdas J. Da imperfeição. São Paulo: Hacker Editores, 2002. _____ &COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Cultrix, 1989. _____. Semiótica: Diccionário Razonado de la Teoría del Lenguaje. Tomo II. Madri:

Editorial Gredos,1991.

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_____&FONTANILLE, J. Semiótica das paixões:dos estados de coisas aos estados de alma. São Paulo: Ática, 1993.

HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa. I – “Racionalidad de la acción y racionalización social”. Madri: Taurus, 1987.

_____. Teoría de la Acción Comunicativa. II - Crítica de la razón funcionalista. Madri: Taurus, 1987.

_____. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. (2 volumes)

_____. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.

1 Análise do plano de expressão

9Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10Logo ao sairda água, viuos céusrasgarem-se e o EspíritodescendoCOMO

POMBAsobre ele. 11Então foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meuFILHO AMADO, em ti mecomprazo.

12Imediatamente o Espírito impeliu Jesus para o deserto. 13 Durante quarenta dias, no deserto, ele foi tentado por SATANÁS. Vivia com as feras, e os anjos o serviam.

14Depois que João fora entregue, Jesus veio para a Galiléia. Ele proclamava o Evangelho de Deus, e dizia: 15 “Cumpriu-se o tempo, e o Reinado de Deus aproximou-se: convertei-VOS e crede no Evangelho”.

Marcos 1 Um dos hábitos de leitura da Bíblia, compartilhado pelas leituras devocionais e acadêmicas, é o de selecionar pequenos trechos para a interpretação. Na linguagem não-técnica, chamamos esses trechos de passagens, que usamos para meditar, preparar estudos bíblicos, sermões, homilias etc. Na linguagem técnica, esses pequenos trechos são chamados perícopes (literalmente, “cortado ao redor”), usadas para a organização dos comentários exegéticos, preparação de sermões, dissertações, teses etc. Uma perícope é, assim, um pequeno trecho bíblico usado para o estudo e a comunicação da Bíblia. Em alguns casos, como em Salmos, vários deles são uma perícope. Em muitos casos, é difícil chegar a um acordo quanto à divisão de um livro da Bíblia em perícopes. Isso porque os livros foram escritos em outras culturas, com critérios diferentes dos nossos para organizar e estruturar textos.

Onde começa e termina uma perícope? Uma forma bem clara de saber é simplesmente seguir a divisão da Bíblia em perícopes que encontramos nas traduções contemporâneas. Outra, é seguir a divisão em perícopes de algum comentário bíblico. Podemos, porém, tentar descobrir por nós mesmos quais são as perícopes. Temos então de prestar atenção nas marcas lingüísticas que nos orientam na delimitação das perícopes (delimitar é estabelecer limites, definir começo e fim). Observe em Marcos as palavras em itálico, negrito, VERSALETE e sublinhadas. Elas funcionam como marcas lingüísticas que podemos usar para delimitar as perícopes desse trecho da Bíblia. Por exemplo, os versículos 9, 12 e 14 começam com um advérbio de tempo (mudanças no tempo dos acontecimentos é um dos sinais de delimitação); as palavras sublinhadas mostram que há, além das mudanças no tempo, mudanças no espaço: Jordão (v. 9), deserto (v. 12) e Galiléia (v. 14). Nos versículos 9, 13 e 15, os termos em versalete indicam mudança de personagens (João, Satanás e os galileus [“vos”]). Por fim, nos versículos 9, 13 e 14 temos verbos em negrito, que nos mostram que há mudanças de assunto: batismo, tentação e proclamação.

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INTRODUÇÃO Estamos iniciando o processo de interpretação. O ponto de partida é a “Fase preliminar”: a familiarização com o texto a ser interpretado. Marcos 1:9-11 e Isaías 42:1-4 serão nossa base. Familiarize-se com ambos. Lembra-se como? Leia e releia as perícopes, pelo menos o capítulo onde se encontram (no caso de Marcos, sugiro até o capítulo 3, e no de Isaías, pelo menos os capítulos 40—44). Defina provisoriamente a época da escrita. Para esta primeira definição, use a bibliografia acadêmica.

A datação de livros bíblicos não é um processo “exato”. As datas sugeridas pelos estudiosos, na maior parte, são aproximações. No caso do evangelho de Marcos, discute-se se foi escrito antes ou depois da destruição do templo de Jerusalém, em 70 d.C., pelos romanos, que sufocaram a revolta judaica contra o Império. Do ponto de vista do método exegético aqui exposto, essa definição é secundária — você escolhe a datação que considerar mais adequada à luz da bibliografia que consultar. Como hipótese de trabalho, optei por ler o evangelho no contexto dos anos 70 d.C., pois isso determina que outros textos e discursos deverão ser levados em consideração no processo de leitura do livro. Se optar por uma data diferente, o método não é afetado. Você apenas terá de ampliar ou reduzir o número de textos e discursos com os quais trabalhará para interpretar o evangelho de Marcos.

No caso de Isaías, duas correntes bastante distintas de interpretação permanecem debatendo sobre a data do livro. A “conservadora” entende que o livro inteiro de Isaías foi escrito no século VIII a.C. A “crítica” advoga que os capítulos 1—39 foram escritos no VIII século a.C. e os capítulos 40—66 no século VI a.C. Para efeitos do método, essa escolha é secundária. Ela só afeta o volume e o tipo de textos e discursos com os quais se ocupará a análise das relações intertextuais e interdiscursivas. Para efeitos didáticos, leio Isaías 42 no contexto do século VI a.C., independentemente de ser essa a data de sua escrita ou não.1 Essa definição poderá ser alterada à medida que avançamos no estudo, mas é necessária para que possamos começar a analisar as relações intertextuais e interdiscursivas no segundo ciclo da análise do plano do conteúdo.

Passemos à fase preparatória. O trabalho com o texto começa com a análise do plano da expressão.

Por que distinguir plano de expressão e plano de conteúdo? Por estas razões: 1. Um mesmo conteúdo pode ser transmitido por diferentes formas de expressão (ou por

diferentes textos: conversa, fotos, filmes, quadrinhos, esculturas etc.). 2. Os conteúdos estão distribuídos de forma desigual e conflitiva entre os diferentes grupos

de uma sociedade, que os usam para explicar a realidade e agir nela.

1 1 Há muita discussão quanto à datação de vários livros da Bíblia. Para a maioria deles não

temos condições de estabelecer datação precisa; podemos apenas situá-los no espaço de

algumas décadas. Muitos livros, sobretudo os do Antigo Testamento, foram escritos em

diferentes épocas e por diferentes pessoas, sendo unificados e organizados posteriormente

em “livros”. Uma complicação adicional, no caso da datação, surge quando conceitos

teológicos são usados para datá-los. Datar um livro da Bíblia é um procedimento técnico —

literário e histórico —, e não deveria ser complicado por conceitos teológicos. A inspiração das

Escrituras não depende da autoria humana nem da datação (conservadora, tradicional ou

crítica) do livro . Não é possível discutir amplamente essa questão num manual de exegese.

Por isso, sugiro que você consulte obras de introdução à Bíblia para se familiarizar com os

problemas e as possibilidades envolvidos na datação dos livros da Bíblia.

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3. As regras de funcionamento do plano de conteúdo são diferentes das regras de funcionamento do plano de expressão (textos, fotos, conversas, estátuas, filmes etc.).

Em nosso caso, que trabalhamos com textos bíblicos, ocorre um fenômeno interessante: o plano de expressão quase se confunde com o plano de conteúdo, isto porque usamos a linguagem para produzir sentido e comunicar, e a matéria-prima dos textos é a linguagem. Para entender os sentidos de um texto, portanto, é preciso lidar tanto com sua textualidade (termo técnico para designar as regras do texto enquanto plano de expressão), quanto com sua discursividade (termo técnico que designa as regras do texto enquanto plano de conteúdo, ou, simplesmente, discurso).

São três os tipos de perguntas elaboradas a um texto bíblico a fim de analisá-lo na condição de plano de expressão:

1. As que se referem ao processo genético de elaboração (desde a origem oral, quando for o caso, até a redação final, na forma como se encontra na Bíblia) e de transmissão do texto através das cópias dos manuscritos.

2. As que se referem à delimitação, segmentação e estrutura da perícope (que inclui a questão do gênero textual).

3. As que se referem aos elementos textuais que mais contribuem para a produção dos sentidos do texto (tais como a coesão textual, o ritmo, a métrica, a disposição das palavras).

A teoria sêmio-discursiva não fornece respostas ao primeiro tipo, pois jamais se ocupou com essas indagações. Nesse caso, se você optar por fazer esse tipo de perguntas, deverá se utilizar dos procedimentos desenvolvidos pela crítica textual (o estudo da transmissão dos manuscritos e da definição dos critérios com o objetivo de determinar o melhor texto disponível) e pela crítica genética, uma das especialidades da exegese histórico-crítica, que desenvolveu vários métodos para fazer tal exame (crítica das fontes, história das formas, história da tradição, história da transmissão, crítica da redação). Responder a esse tipo de perguntas só é necessário se estivermos realizando um trabalho de cunho mais acadêmico e técnico. Na maior parte dos casos, quando estudamos textos bíblicos, podemos nos basear nas versões da Bíblia e na bibliografia especializada. Em virtude dos objetivos exegéticos na base deste manual, optei por não apresentar nem descrever ou explicar esse tipo de procedimento. Se você tiver interesse em realizá-los, deverá consultar manuais apropriados.

Nosso trabalho, efetivamente, começa com o segundo conjunto de perguntas, as que têm a ver com a delimitação, segmentação e estruturação da perícope. Para delimitar uma perícope é necessário identificar as marcas lingüísticas que indicam os limites de um texto e o dividem em perícopes: as mudanças relevantes nas pessoas, tempo, espaço e vocabulário, conforme vimos anteriormente. Na prática, não basta apenas um tipo de mudança para definir o início de uma nova perícope. Quanto maior for o número das marcas lingüísticas, mais certeza teremos no tocante à delimitação realizada.

A segmentação é um procedimento idêntico ao da delimitação, mas restrito aos limites da própria perícope. Com base nas mesmas marcas lingüísticas, verificamos em quantas partes se subdivide uma perícope. A única diferença é que não é necessário que ocorram tantas marcas como no caso da delimitação. A estruturação é o procedimento de identificação dos tipos de arranjo, de ordem das partes em que se divide a perícope. Após realizarmos a segmentação, procuramos descobrir as formas de encadeamento das partes da perícope.

Nas Escrituras, vários tipos de estruturação são usados, desde o mais simples, que é o encadeamento linear das partes do texto (como encontramos em Mc 1:9-15), até arranjos mais complexos, baseados nas diferentes formas de paralelismo usadas na

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escrita dos textos bíblicos. Neste ponto, de acordo com nossos conhecimentos sobre os aspectos literários dos tempos bíblicos, ou de acordo com a bibliografia que utilizamos, podemos notar, também, o gênero textual da perícope (chamado na exegese histórica de forma literária ou gênero literário). Basta, por ora, notar qual é o gênero (ou quais são as suas características), pois a análise do gênero textual será realizada como um dos procedimentos do segundo ciclo.

Por fim, notaremos os principais elementos do plano de expressão que contribuem para a produção dos sentidos do plano de conteúdo (notamos apenas, pois sua análise será realizada no Ciclo 2. Alguns desses elementos são: a ordem das palavras, seja dentro dos diferentes segmentos da perícope, seja nas orações que compõem cada segmento. Por exemplo: A ordem normal das palavras em uma oração, na língua portuguesa é: sujeito — verbo — complementos do verbo. Se essa ordem é mudada, alguma razão ligada ao conteúdo está na origem dessa mudança, e é preciso analisá-la. Outro exemplo: Se a ordem temporal normal dos segmentos de uma narrativa (move-se do passado para o presente e para o futuro) é alterada, isto deve nos chamar a atenção para o que possa vir a significar.

Em textos poéticos, principalmente (mas não de modo exclusivo), elementos como a métrica das sentenças, o ritmo da entonação do texto são determinantes e afetam o sentido do texto. Quando trabalhamos com traduções, é quase impossível perceber essas características, próprias dos idiomas originais dos textos (bíblicos ou não), a não ser que a tradução seja feita de forma específica com o propósito de ressaltar esses aspectos.

ANÁLISE DO PLANO DE EXPRESSÃO 1. Qual é o texto a ser interpretado (do ponto de vista da crítica textual e genética)? 2. Como o texto está delimitado, segmentado e estruturado? 3. Que elementos do plano de expressão contribuem mais intensamente para a produção do

sentido?

COMO FAZER 1. Familiarizar-se com o texto, mediante repetidas leituras e do contexto literário ao qual

ele pertence, e a anotação de suas características mais marcantes, as dúvidas e as primeiras impressões que o texto nos evoca.

Alternativa complementar: estabelecer o texto, mediante a aplicação dos princípios da crítica textual e da crítica genética (somente se você considerar necessário), e traduzi-lo provisoriamente (apenas no caso de você usar o texto bíblico no idioma original).

2. Situar o texto, provisoriamente, em seu contexto histórico, mediante o uso de bibliografia apropriada.

3. Identificar as marcas lingüísticas que permitem a delimitação e a segmentação do texto. 4. Notar os elementos da textualidade que poderão contribuir para a análise do plano de

conteúdo. 5. Elaborar uma síntese.

EXEMPLO 1 (FORMA DESCRITIVA ) Marcos 12 9Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10Logo ao sairda água, viuos céusrasgarem-se e o EspíritodescendoCOMO

2 2 A tradução dos textos deste manual é de minha autoria, a menos que haja indicação ao

contrário. Procurei destacar aspectos gramaticais e semânticos importantes para o

aprendizado do método.

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POMBAsobre ele. 11Então foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meuFILHO AMADO, em ti mecomprazo.

Interpretarei essa passagem no contexto da redação final do livro (meados dos anos 70 d.C.), e não nos possíveis contextos recuperados pela crítica genética (seria possível, também, interpretá-la no contexto da vida terrena de Jesus [meados dos anos 20 d.C.)], ou em algum dos momentos da história da tradição desse texto, anterior à redação por Marcos).

A delimitação dessa perícope foi quase toda feita no início deste capítulo. Faltou verificar se, de fato, no versículo 9 temos o início de uma nova. Em relação à perícope anterior (Mc 1:2-8), as marcas lingüísticas indicam mudanças de tempo, espaço, vocabulário e gênero textual — suficientes para considerar o versículo 9 o início de uma nova perícope.

A segmentação do texto é marcada pelos seguintes elementos: mudanças de tempo (palavras em itálico), nos versículos 9, 10 e 11; de local (palavras sublinhadas), nos versículos 9 e 10; e de pessoa verbal no versículo 11, em relação aos versículos 9 e 10 (palavras em negrito) — o que sugere três segmentos na perícope, estruturados de forma linear, típica das narrativas: versículo 9 (a viagem de Jesus para ser batizado), versículo 10 (a visão que Jesus teve do Espírito), e versículo 11 (a audição pública da voz celestial). O gênero da perícope é híbrido: mistura o “relato” de acontecimento com a palavra de “investidura” em cargo oficial.

Os elementos da textualidade que me parecem mais relevantes para posterior análise são: a mudança da ordem das palavras na sentença “veio Jesus”; o uso da voz passiva para falar do batismo de Jesus (que coloca o peso do texto sobre o próprio Cristo), conjugado com a colocação de “por João” antes do verbo, que modifica a ordem normal de sentenças com a voz passiva; e a voz passiva no versículo 11, que indica sujeito indeterminado, diferenciando os sujeitos da visão (Jesus, no v. 10) e da audição (todas as pessoas que estavam no local, v. 11). A coesão do texto é típica de narrativas, com destaque para as conjunções logo e então.

Em síntese, temos uma perícope bastante despojada, simples, fácil de ler e que comunica seus sentidos de forma quase que telegráfica. Sugere uma forte dinamicidade, eventos ocorrendo em cadeia, um imediatamente após o outro, mudanças rápidas de lugar, com o peso recaindo sobre Jesus, que parece ser o personagem principal da perícope.

EXEMPLO 2 (FORMA DISSERTATIVA ) Isaías 42

1 Eis o meu servo, a quem eu sustento, o meu eleito, em quem tenho prazer. Coloquei meu espírito sobre ele, justiça para as nações fará brotar. 2 Não gritará, e não levantará, e não deixará ser ouvida na rua a sua voz. 3 A cana rachada não esmagará, e a torcida bruxuleante não apagará; fielmente fará brotar a justiça. 4 Não desanimará e não será quebrado, até que estabeleça na terra a justiça e em sua lei as ilhas tenham esperança.

As seguintes marcas lingüísticas, no versículo 1, indicam o início da perícope: 1. Presença de um novo personagem em relação aos de 41:21-29.

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2. Uso de fórmula introdutória de apresentação de oficial [eis].

Quanto ao término da perícope, o versículo 4 parece ser um candidato natural, em virtude de:

1. A presença da fórmula do mensageiro no versículo 5, que nos livros proféticos costumeiramente inicia perícopes.

2. A mudança de assunto, da vocação para a criação divina no versículo 5. Faz parte da tradição exegética delimitar assim essa perícope.3 Uma alternativa melhor, a meu ver, é considerar todo o trecho de 1-9 como uma única perícope, segmentada em 1-4, 5-7, 8-9, tendo em vista que:

a. O cântico de louvor iniciado em 42:10 muda significativamente a temática e parece ser ou a conclusão de uma longa seção (41:21—42:12) ou o início de uma nova seção. Se for assim, Isaías 42:1-9 funcionaria como contraponto a 41:1-7, uma afirmação a respeito daquele que destrói as nações em nome de Javé.

b. Os versículos 6-7 formam um complemento temático “natural” à descrição da tarefa do servo em 1-4, tanto pela ampliação dela, quanto pela manutenção da temática do rei—servo.

c. As afirmações exaltadas a respeito de Javé dão sustentação à vocação e atuação do servo no contexto de seu chamado. Enquanto os versículos 1-4 se dirigem à assembléia divina reunida na corte celestial e os versículos 5-7 se dirigem ao próprio servo, os versículos 8-9 retomam o anúncio à assembléia divina.

d. O estilo e a estruturação de Isaías 40—55 não seguem as formas tradicionais da literatura profética, a presença de gêneros híbridos é predominante nesta seção de Isaías, e a presença da fórmula do mensageiro não seria um sinal tão forte de início de perícope.

Para efeitos de nosso estudo, vou me restringir a Isaías 42:1-4, embora eu considere que Isaías 42:1-9 forme uma unidade significativa. Na prática, faço isto também para mostrar que podemos usar parte de uma perícope para a realização da exegese, por causa de nossos interesses. Ou seja, a perícope não é uma unidade rígida, fechada, que deve ser seguida a qualquer preço.

Isaías 42:1-4 está assim segmentado e estruturado em um padrão concêntrico, no qual os versículos 2-3 ocupam o lugar central e os versículos 1 e 4 correspondem formalmente entre si:

a. investidura e tarefa do servo (v. 1). b. modo da realização da tarefa pelo servo (v. 2-3). a’. perseverança do servo e alcance da sua tarefa (v. 4).

3 3 Desde as pesquisas de Bernhard Duhm, nas primeiras décadas do século XX, a tradição

acadêmica convencionou identificar quatro perícopes de Isaías 40—55 como “cânticos do

servo de Javé” (42:1-4; 49:1-6; 50:4-11 e 52:13—53:12). Muitas têm sido as discussões a

respeito dessa identificação, a respeito da datação desses trechos, e principalmente, a respeito

da identidade do servo e de sua tarefa. Não cabe neste manual uma resenha dessa pesquisa.

Sugiro aos interessados que consultem bibliografia especializada. Eu prefiro nomear essas

perícopes como “poemas do escravo de Javé” e as delimito de forma diferente da proposta

por Duhm (42:1-9, por exemplo, em contraste com 42:1-4). Considero que foram escritas pelos

mesmos autores de Isaías 40—55, e que o servo, neles, se refere a um profeta judeu que viveu

no exílio e teria sido preso e condenado por causa de sua mensagem subversiva contra o rei da

Babilônia.

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As características do plano de expressão que serão mais úteis na análise do plano de conteúdo são, em primeiro lugar, a forma poética do texto, com seus vários e típicos paralelismos:

1. “Eis o meu servo, a quem eu sustento; o meu eleito, em quem tenho prazer” (paralelismo sinonímico, na primeira parte do versículo). “Coloquei meu espírito sobre ele, justiça para as nações fará brotar” (paralelismo climático, quando olhamos o v. 1 e seu todo).

2. “Não gritará e não levantará e não deixará ser ouvida na rua sua voz. A cana rachada não esmagará e a torcida bruxuleante não apagará. Fielmente fará brotar a justiça” (paralelismo climático quando olhamos o todo, e uso da enumeração quando olhamos para as metáforas que explanam a tarefa do servo).

3. “Não desanimará e não será quebrado até que estabeleça na terra a justiça, e em sua lei as ilhas tenham esperança” (paralelismo climático, no todo, e sinonímico nas duas últimas linhas).

Além dos paralelismos e da estrutura concêntrica, serão úteis na análise do plano de conteúdo: a profusão de metáforas nos versículos 2-3 e o uso da terminologia oficial de investidura, que faz de Isaías 42.1-4 uma perícope de gênero híbrido e aponta para uma variedade de relações intertextuais e interdiscursivas.

CONCEITOS BÁSICOS Plano da expressão (texto). Todo conteúdo que desejamos comunicar precisa receber uma

forma concreta para que seja acolhido por outras pessoas. A essa forma concreta damos o nome de plano de expressão. Exemplos: fala, textos escritos, fotos, pinturas, sites, canções etc. Cada forma de plano de expressão possui regras próprias de análise, demandando, assim, várias semióticas (semiótica de texto, semiótica visual, semiótica plástica, semiótica da canção etc.). Como trabalhamos com textos escritos, nosso plano de expressão é, simplesmente, texto, e as regras de sua formação são explicadas pela textualidade (textualização, então, é o conjunto de mecanismos lingüísticos e culturais necessários para a produção de textos).

Plano de conteúdo (discurso). O mesmo conteúdo pode ser transmitido por diferentes planos de expressão, o que justifica a separação teórica entre os dois planos. Na semiótica greimasiana se entende que, qualquer que seja o plano da expressão, as regras de funcionamento do plano de conteúdo e os conceitos explicativos e os procedimentos de análise são os mesmos. Ou seja, na prática, os mesmos procedimentos de análise do plano de conteúdo aplicáveis a textos podem ser usados com qualquer outro plano de expressão. Outro termo usado para se referir ao plano do conteúdo é, simplesmente, discurso (e as regras para seu estudo, discursividade). No caso do estudo de textos, há um sincretismo entre o plano de expressão e o plano de conteúdo, pois ambos são “lingüísticos”. Por isso, os termos texto e discurso são, muitas vezes, usados sem qualquer distinção.

Crítica textual. Disciplina científica voltada para o estudo dos processos de transmissão e cópia de manuscritos, que estabelece critérios para a definição da qualidade das cópias, para a história das cópias, para o estudo dos principais erros de cópia presentes em manuscritos etc. No caso dos textos bíblicos, ela é de grande importância, uma vez que não dispomos dos originais, mas apenas de uma quantidade relativamente grande de manuscritos copiados, bem como de traduções antigas, também manuscritas. As versões modernas da Bíblia procuram incorporar os resultados da pesquisa crítico-textual, de modo que podemos usá-las com confiança. No trabalho técnico, o uso dos idiomas originais e, conseqüentemente, da análise crítico-textual é importante e serve como um dos sinais da qualidade acadêmica de pesquisadores e pesquisadoras.

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Crítica genética. Uso esse termo para significar todo um conjunto de métodos e seus respectivos procedimentos, que foram desenvolvidos nos últimos três séculos especialmente pela pesquisa histórico-crítica. É genética porque seu objeto primário é a explicação da origem dos textos e de seu processo de elaboração, desde a possível origem oral até sua forma final nos livros da Bíblia. Optei por não incluir esse tipo de trabalho neste manual, o que não quer dizer que ele não seja importante e necessário para que possamos compreender melhor a história da religião, do pensamento e da teologia de Israel e dos primeiros cristãos. Como é uma atividade altamente especializada, é preferível recorrer aos manuais próprios de exegese histórico-crítica a simplificar e caricaturar a crítica genética. Do ponto de vista da compreensão do sentido, a contribuição da crítica genética é mais voltada para a reconstrução dos contextos históricos em que os textos foram escritos e para a compreensão dos processos de textualização usados na antigüidade.

CONCEITOS OPERACIONAIS Percurso gerativo do sentido. Modelo explicativo, desenvolvido pela semiótica

greimasiana, para simular o processo real de produção do sentido, tanto no âmbito da autoria “individual” quanto no âmbito da sociedade e cultura na qual o sentido é produzido. Segundo José Luiz Fiorin: “O percurso gerativo do sentido é uma sucessão de patamares, cada um dos quais suscetível de receber uma descrição adequada, que mostra como se produz e se interpreta o sentido, num processo que vai do mais simples ao mais complexo. [...] Os três níveis do percurso são o profundo (ou fundamental), o narrativo e o discursivo. Em cada um deles existe um componente sintáxico e um componente semântico”.4

Como adaptei a metodologia semiótica ao estudo do texto bíblico, não sigo a estrutura de patamares do percurso gerativo, embora concorde com este e tenha adotado aqui sua lógica. Grosso modo, os Ciclos 1 e 2 correspondem à análise dos níveis discursivo e fundamental, e os Ciclos 3 e 4 , à do nível narrativo. Para maior compreensão do conceito e de sua lógica explicativa, deve-se consultar a bibliografia técnica em semiótica.

Contexto literário. Uso a expressão “contexto literário” com sentido bastante restrito: refere-se ao livro da Bíblia a que pertence uma perícope e, de forma ainda mais restritiva, à seção do livro a que ela pertence. Ao contexto literário corresponde, portanto, a análise das relações intratextuais (intratextualidade), ou seja, a análise de como a perícope está estruturada em sua seção e em seu livro, e de que maneiras o livro e a seção determinam a interpretação da perícope.

Contexto histórico. Refiro-me à época em que determinado texto foi escrito, como é comum na literatura sobre exegese. O termo técnico que prefiro e usarei mais constantemente é mundo-da-vida, que será explicado posteriormente. Por ora, basta indicar que o texto é uma realidade sociohistórica, não podendo ser abstraído de seu contexto sob pena de não ser compreendido.

Delimitação e segmentação da perícope. A definição, como vimos, dos limites de uma perícope e de suas partes constituintes, realizada mediante a análise das marcas lingüísticas deixadas no texto, e que nos orientam para a definição das unidades menores passíveis de interpretação. É necessário tomar certo cuidado com o hábito de interpretar perícopes, pois isso pode nos levar a isolar o texto de seu contexto literário, o que é altamente prejudicial para sua compreensão. Na prática, porém, a delimitação de perícopes é uma necessidade técnica.

4 4Elementos de análise do discurso, p. 20.

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Estruturação da perícope. A análise das formas de organização dos segmentos de uma perícope, de modo tal que possamos perceber como essa forma organizacional (sintáxica) contribui para a compreensão do sentido (semântica) do texto. As formas de estruturação de textos são culturalmente determinadas, razão pela qual precisamos conhecer bem as formas usadas nos contextos históricos em que os livros da Bíblia foram escritos. Há literatura especializada que nos ajuda nessa compreensão, tais como compêndios de introdução à Bíblia (Antigo e Novo Testamento), bem como manuais de estudo das formas literárias da Escritura e séries de comentários exegéticos especializadas no estudo das formas, ou com ênfase nesse estudo, além do estudo do conteúdo do texto. Segundo a terminologia sêmio-discursiva, a análise de um texto fica facilitada se o dividirmos, conceitualmente, em plano de expressão e plano de conteúdo. Cada um desses planos tem regras próprias de funcionamento que devem ser estudadas cuidadosamente. Neste manual, a ênfase recai sobre a análise do plano de conteúdo, restringindo-se a análise do plano de expressão ao estritamente necessário para a compreensão do conteúdo.

EXERCÍCIOS 1. Escolha uma foto, uma história em quadrinhos, uma revista informativa ou um filme e

analise as características de seu plano da expressão. 2. Escolha tipos diferentes de perícopes da Bíblia (epístolas, poesia, sabedoria, leis) e

analise as características de seu plano da expressão.

SUGESTÕES DE LEITURA Textos didáticos

DISCINI, Norma. A comunicação nos textos. São Paulo: Contexto, 2005. Lições 1 e 5, p. 13-44, 183-220.

SAVIOLI , Francisco Platão &FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1996. Lições 1, 15 a 17, 22-25, p. 13-24, 225-262, 337-415.

_____. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1991. Lições 1, 4, 18, 19, 29 a 40, p. 11-17, 35-43, 155-171, 251-382. Textos técnicos

BARROS, Diana L. P. de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990, p. 5-15. BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Bauru: EDUSC, 2003, p. 37-76. FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2005. (13a ed.

revista e ampliada), p. 9-53. Manuais de exegese histórico-crítica

MAINVILLE , O. A Bíblia à luz da história: guia de exegese histórico-crítica. São Paulo: Paulinas, 1999.

WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. São Leopoldo: Sinodal/Paulus, 2001. Manuais de exegese histórico-gramatical

FEE, G. D. &STUART, D. Entendes o que lês? São Paulo: Vida Nova, 1984. STOTT, John. Entenda a Bíblia. São Paulo: Mundo Cristão, 2005.

Manuais de exegese sociológica latino-americana CROATTO, J. S. Hermenêutica bíblica. São Leopoldo: Sinodal, 1990. MESTERS, C. Por trás das palavras. Petrópolis: Vozes, 1976.

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2 Ciclo 1 A dimensão espaço-temporal da ação

9Naqueles dias, veioJesus, de Nazaré da Galiléia, e por Joãofoi batizadonorio Jordão. 10Logo ao sairda água, viuos céusrasgarem-se e o EspíritodescendoCOMO POMBAsobre ele. 11Então foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meuFILHO AMADO, em ti mecomprazo.

Marcos 1 Note as palavras destacadas:

1. As sublinhadas indicam o tempo das ações narradas (tanto o cronológico como o qualitativo, ou o modo da ação verbal).

2. As em itálico indicam os lugares onde acontecem as ações narradas. 3. As em negrito indicam as pessoas que agem e recebem as ações narradas no texto. 4. As em VERSALETE indicam as CARACTERIZAÇÕES das pessoas que agem e recebem as

ações narradas no texto. Para começar a interpretar e a entender um texto é necessário prestar atenção a essas marcas. Pessoas realizando e recebendo ações no tempo e no espaço são a matéria-prima dos textos e a base para toda a interpretação que faremos desses textos. Neste capítulo vamos nos dedicar à interpretação das ações das pessoas no tempo e no espaço — o primeiro ciclo da exegese sêmio-discursiva centrada na ação.

INTRODUÇÃO No Ciclo 1 o texto é enfocado sob a perspectiva mais elementar da ação: toda ação é realizada por alguém e afeta outras pessoas, em um lugar qualquer e em um tempo qualquer. As pessoas envolvidas são caracterizadas pelo texto, seja através das suas ações, seja através de qualificações ou juízos de valor que o texto faz a respeito delas. Essa perspectiva mais elementar da ação corresponde, lingüisticamente falando, ao ato, também básico, elementar, da enunciação (a ação de enunciar, dizer algo, de mobilizar a língua para comunicar algo a alguém).

É comum não prestar atenção ao tempo e ao espaço enquanto elementos decisivos no processo de significação dos textos. É comum, por isso, que nas exegeses de textos bíblicos as dimensões pessoal, temporal e espacial do próprio texto sejam negligenciadas, e sejam favorecidos o tempo e o espaço externos ao texto, bem como a sua autoria — procura-se descobrir quando e onde o texto foi escrito. Em contrapartida, é necessário e importante sabermos quando e onde um texto foi escrito e, quando possível, quem o escreveu. Todavia, muito mais importante ainda é analisar as pessoas, tempo e espaço enquanto elementos significativos do próprio texto, na condição de efeitos de sentido produzidos pelo próprio ato de enunciar.

Por isso, cabe aqui uma advertência: não confunda a análise enunciativa das pessoas, tempo e espaço com a análise contextual de autor, lugar e época de escrita do texto. O que analisamos são os sentidos que as pessoas, tempo e espaço recebem no texto, e não os seus referentes históricos. Que tempo e espaço sejam cultural e pessoalmente significativos é algo que experimentamos cotidianamente, embora não nos apercebamos disto com freqüência. Você não sente que certos dias passam mais rapidamente do que outros, ou que certos lugares são mais importantes para nós do que outros? Estes são exemplos da significação dos espaços e tempos, do tipo de coisa que procuramos ao ler um texto em perspectiva sêmio-discursiva.

Não custa repetir e enfatizar. Ao ler Marcos 1:9-11, nossa preocupação não é com a Galiléia ou o Jordão “reais” (sua localização geográfica, relevo, índices pluviométricos,

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densidade demográfica etc.), mas a Galiléia e o Jordão significados pelo texto, elaborados pelo enunciador e oferecidos ao enunciatário para serem interpretados. Os espaços, tempos e pessoas analisados na perspectiva sêmio-discursiva, portanto, são os espaços, tempos e pessoas textuais, discursivos, e não os espaços, tempos e pessoas “reais”. Este é um recorte importante da perspectiva sêmio-discursiva. A análise de espaços, tempos e pessoas reais será feita por outras abordagens e a seu próprio modo. Isto não quer dizer que um texto não lide com a “realidade” — simplesmente ressalta que, no texto, encontramos a realidade sempre interpretada, significada, linguageiramente mediada.

Neste primeiro ciclo temos a preparação fundamental para a interpretação do texto que se ampliará nos demais ciclos. Imagine o Ciclo 1 como as vigas e lajes de uma construção. No edifício acabado, elas são encobertas pela pintura e demais acabamentos da construção, mas se retiradas, todo o edifício desaba. Como em uma obra, as vigas e lajes podem ser mais simples ou mais sofisticadas, dependendo das necessidades da construção ou do seu orçamento. Na interpretação de um texto, cada ciclo pode ser realizado de forma básica ou de forma mais sofisticada, avançada. A escolha de uma dessas formas depende dos objetivos da interpretação e dos conhecimentos da pessoa que interpreta.

Como já vimos no primeiro capítulo, essas perguntas não são uma camisa-de-força, mas um mapa, um andaime, uma ferramenta que você deverá usar de forma inteligente e criativa, adaptando-a às suas habilidades e interesses interpretativos.

CICLO 1: AS PERGUNTAS 1. Quem age, fazendo o quê, a quem, sendo caracterizado como? 2. Onde e quando? 3. Como estão organizadas as ações e relações no tempo e no espaço?

COMO FAZER 1. Alistar

a. As pessoas (personagens) que agem ou recebem ação, suas ações e suas caracterizações. b. Os indicadores de espaço e suas caracterizações. c. Os indicadores de tempo e suas caracterizações.

2. Analisar a organização das ações das pessoas no tempo-espaço do texto. 3. Elaborar uma síntese.

(Lembre-se: também estamos preparando o terreno para os próximos ciclos. Todos os dados e conclusões aqui reunidos e formulados serão usados a cada novo ciclo).

EXEMPLO 1 (FORMA DESCRITIVA ) Marcos 1 9Naqueles dias, veioJesus, de Nazaré da Galiléia, e por Joãofoi batizadonorio Jordão. 10Logo ao sairda água, viu os céusrasgarem-se e o EspíritodescendoCOMO POMBAsobre ele. 11Então foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu FILHO AMADO, em ti mecomprazo. 1. Alistar A. Quem age, fazendo o quê, a quem, sendo caracterizado como

• Jesus: veio de Nazaré (9) foi batizado por João, no rio Jordão (9) ao sair da água, viu os céus rasgarem-se (10) e o Espírito descendo sobre ele (10) foi caracterizado pela voz do céu como “meu filho amado, em ti me comprazo” (11).

• João: batizou Jesus no Jordão (9). • Espírito: foi visto por Jesus descendo sobre ele, caracterizado como pomba (10). • Pessoa indeterminada: as que ouviram a voz dos céus (no texto, “foi ouvida uma voz dos

céus”) (11).

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B. Onde • Nazaré da Galiléia (9). • Rio Jordão (9 e 10 [da água]). • Céus (10 e 11).

C. Quando • Naqueles dias (9); logo ao sair (10); então — pode ter o sentido de depois (11). • Verbos no pretérito perfeito: veio, foi batizado (9) viu (10) foi ouvida (11) — ação no

passado, no modo completo e terminativo, ou seja, as ações são vistas como já realizadas e descritas a partir de seu término.

• Verbos no infinitivo: sair (10) rasgarem-se (10) — indicam ações concomitantes às ações dos verbos aos quais estão ligados: Jesus Cristo, “no mesmo momento” em que saiu da água, viu os céus se rasgarem.

• Verbo no gerúndio: descendo (10) — também indica ação concomitante à do verbo da oração principal (viu), destacando o modo incompleto da ação, descrita em sua duratividade.

• Verbo no presente: me comprazo (11) — indica ação incompleta e, neste caso, a ação é vista em sua duratividade.

• Obs.: (és) os verbos de ligação normalmente indicam estado. 2. Analisar como estão organizadas as ações e relações no tempo e no espaço As ações e relações estão organizadas no espaço predominantemente por meio de movimentos:

A. Jesus sai de Nazaré, da Galiléia, e vai ao rio Jordão para ser batizado. B. Jesus entra no rio para ser batizado e sai dele para ouvir a voz dos céus e receber o

Espírito. C. O Espírito e a voz descem do céu para a terra, tornando-se audíveis e visíveis.

Além da ênfase no movimento, o texto ressalta o aspecto periférico do acontecimento — Galiléia e Jordão não são lugares centrais do ponto de vista político e religioso na época. Destaca-se a ausência do Templo, onde oficialmente deveriam ocorrer as experiências de Deus conforme a doutrina do judaísmo, substituído aqui pelo céu, lugar da morada de Deus, que expressa a sua liberdade em relação à estrutura política e ao Templo.

Quanto à organização temporal, a combinação dos verbos sugere a dinamicidade do evento que está sendo narrado — tudo acontece rápida e efetivamente, o tempo é um tempo de realização, de acontecimentos decisivos. Ao lado dessa característica de dinamicidade, o texto também sugere que o tempo cronológico é pouco relevante, pois simplesmente situa o acontecimento “naqueles dias” (marco temporal externo ao texto, em contraste com o restante do texto, no qual o marco temporal que organiza as ações é interno ao texto), estimulando quem lê o texto a prestar atenção ao acontecimento em si, e não à sua posição cronológica. O texto é formulado predominantemente na terceira pessoa, produzindo efeito de objetividade — quem lê pode “ver” a cena narrada. Somente a fala da voz do céu está na primeira pessoa e produz efeito de subjetividade, isto é, indica a proximidade pessoal entre a voz e Jesus, sugerindo aos leitores que esse Jesus é digno de ser levado a sério. 3. Elaborar uma síntese O texto situa o batismo e a vocação de Jesus em um espaço não-oficial, um espaço que se pode entender como crítico em relação aos espaços oficiais da religião judaica na época. É o espaço de João, um profeta que criticava os dirigentes políticos e religiosos de seu tempo; é o espaço das pessoas impuras e pecadoras — seja a “Galiléia dos gentios”, de onde vem Jesus (não se poderia imaginar o Messias vindo de um local impuro!), seja o local do batismo, freqüentado por pessoas arrependidas, ou seja,

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pessoas que reconheciam seu pecado e também a incapacidade da religião oficial de lidar com esse pecado. Esse espaço periférico, marginal, crítico, é legitimado pela revelação divina, que se manifesta do céu, santificando o lugar impuro e não-oficial. A temporalidade dinâmica, veloz, contrasta com os ritmos lentos e rotineiros dos rituais de investidura oficial (seja nas cortes, seja nos templos), que visa impressionar a audiência pela sua lenta duração e enfatizar, assim, a diferença entre a solenidade oficial e o tempo cotidiano.

EXEMPLO 2 (FORMA DISSERTATIVA ) Isaías 42

1 Eis o meu servo, a quem eu sustento, o meu eleito, em quem tenho prazer. Coloquei meu espírito sobre ele, justiça para as nações fará brotar. 2 Não gritará, e não levantará, e não deixará ser ouvida na rua a sua voz. 3 A cana rachada não esmagará, e a torcida bruxuleante não apagará; fielmente fará brotar a justiça. 4 Não desanimará e não será quebrado, até que estabeleça na terra a justiça, e em sua lei as ilhas tenham esperança.

1. Alistar A. Quem age, fazendo o que, a quem, sendo caracterizado como:

• Eu (oculto no texto): apresenta (através da interjeição eis) o meu servo a quem eu sustento (1a), o meu eleito em quem tenho prazer (1b); coloquei meu espírito sobre ele (1c). As relações intratextuais mostram que é Javé quem está falando neste trecho.

• Meu servo: justiça para as nações fará brotar (1d); não gritará e não levantará e não deixará ser ouvida na rua sua voz (2); a cana rachada não esmagará e a torcida bruxuleante não apagará (3a); fielmente fará brotar a justiça (3b); não desanimará e não será quebrado (4a) até que estabeleça na terra a justiça e em sua lei as ilhas tenham esperança (4b). As palavras em itálico indicam personagens que receberão a ação do servo. B. Onde O local da instalação/apresentação do servo não é explicitado no texto. A partir da análise do gênero textual e das perícopes anteriores no livro, pode-se postular a hipótese de que esteja ocorrendo na corte celestial. Nas religiões do Antigo Oriente era comum a crença na existência de uma corte celestial, composta pelos vários deuses e deusas cridos em cada religião, e que se assemelhava às cortes monárquicas terrestres. Quanto ao local da realização da tarefa do servo, o texto apresenta a rua (cidades), a terra e as ilhas — indicando tanto a regionalidade da ação do servo (na própria Babilônia, para os exilados judeus), quanto a universalidade do alcance da ação do servo, cuja mensagem e tarefa incluem todos os povos da terra (o sentido provável do termo ilhas, que se referem às terras distantes, que também são chamadas de “os confins da terra”). C. Quando A temporalidade é indicada: a) por tempos verbais, que se dividem em modo de ação completo (sujeito Javé) e incompleto (sujeito servo) — em ambos os casos as ações são descritas em sua duratividade; b) pela expressão adverbial “até que”, relativa à duração da realização da tarefa do servo. Cronologicamente, o texto apresenta verbos no presente, pretérito perfeito e futuro do presente. Javé é o sujeito dos verbos no pretérito

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e presente; estes mostram que ele vocacionou o servo (modo de ação completa) e o sustenta na realização da sua missão (modo de ação incompleta).

Os verbos no futuro têm o servo como sujeito, indicando que a tarefa ainda está para ser realizada, o que era de se esperar em um texto de investidura. O tempo da ação do servo é definido pelo propósito da missão: “até que estabeleça na terra a justiça, e em sua lei as ilhas tenham esperança” (com verbos no modo subjuntivo, que ressaltam o caráter de expectativa, de não-realização). 2. Analisar como estão organizadas as ações e relações no tempo e espaço O marco espacial é interno ao texto, e pode-se perceber um movimento do local da apresentação (na corte celestial) para a extensão ampla da terra (nações, terra, ilhas), passando pelo cenário regional urbano da Babilônia (rua). Os termos usados caracterizam o espaço da missão do servo como um espaço político conflitivo, marcado pela ausência de justiça e lei, por causa da dominação imperial dos babilônios e seus deuses.

O marco temporal é interno ao texto e gira ao redor do momento da investidura do servo por Javé. Pode-se perceber o contraste entre o tempo da segurança e estabilidade das ações de Javé para com o seu servo; e o tempo da insegurança e conflitividade da realização da tarefa pelo servo de Javé. No tempo inseguro e conflitivo, o servo agirá fielmente — carregando para dentro desse tempo instável a estabilidade do tempo das ações de Javé. 3. Elaborar uma síntese O cenário do texto é cósmico — a corte celestial e a terra toda — e possui dimensões metafóricas instigantes, que deverão ser analisadas cuidadosamente no segundo ciclo. Ao ler esta perícope no conjunto do livro de Isaías, podemos destacar que o uso da linguagem da corte celestial é profundamente polêmico, servindo para indicar a unicidade de Javé e o caráter não-divino dos deuses em quem criam as demais nações do Antigo Oriente. Sendo o relato de uma investidura, o texto constrói uma atmosfera de expectativa intensa mas calma, pois a segurança, o poder e a estabilidade de Javé garantem a vida e a tarefa do servo por ele escolhido e investido na missão. Não fica clara a natureza da missão do servo, o que deverá ser pesquisado também no segundo ciclo, mas o texto aponta para a universalidade dessa missão e seu caráter não-dominador, nem opressivo, mas libertador e justo.

CONCEITOS BÁSICOS Ação. Atividade significativa de pessoas (humanas ou não), construída no e pelo texto. Os

verbos são a classe gramatical usada para expressar a ação. Caracterização. Atribuição de qualidades, defeitos, características gerais ou específicas a

pessoas, espaços e tempos. Adjetivos são a classe gramatical usada para expressar características. Além de adjetivos, a caracterização pode ser efetuada também por meio de recursos sintáticos como: adjuntos e complementos nominais, orações subordinadas subjetivas e orações subordinadas adjetivas. As pessoas também podem ser caracterizadas por suas ações.

Efeitos de sentido. Um texto provoca diferentes efeitos de sentido, conforme a maneira em que é formulado. Do ponto de vista da enunciação, esses efeitos de sentido são a objetividade e a subjetividade. Se um texto é formulado na terceira pessoa, o efeito é o da objetividade — o texto passa a impressão de que aquilo que ele narra efetivamente aconteceu da maneira como é narrado. Se um texto é formulado na primeira pessoa, o efeito é o da subjetividade — o texto provoca a adesão pessoal, a identificação do leitor ou da leitora gramatical com as personagens presentes no texto.

Relações intratextuais. As relações que uma parte do texto mantém com as demais partes do texto completo do qual ele faz parte — um livro, uma coletânea de poemas, ditos,

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provérbios etc. O texto todo é uma estruturação das partes que o compõem, e o sentido de cada parte depende do todo, isto é, do lugar que a parte ocupa na estrutura total de que faz parte. Isto exige uma mudança de hábito interpretativo: o sentido do texto não é a soma do sentido das partes, mas é o sentido do todo que determina o sentido das partes. Em vez de lermos isoladamente as perícopes bíblicas, precisamos nos habituar a lê-las como partes integrantes dos livros bíblicos.

Enunciação. Conforme a definição clássica de E. Benveniste, é “essa colocação em funcionamento da língua por um ato individual de utilização”, o processo dinâmico mediante o qual nos comunicamos através da linguagem, e que se percebe nos textos pelas marcas que deixa das pessoas, tempo e espaço. Quem enuncia é chamado de enunciador e quem recebe a enunciação enunciada é chamado de enunciatário. Do ponto de vista da interpretação, o enunciatário também pode ser considerado um co-enunciador, na medida em que desempenha papel ativo na co-construção do sentido com o enunciador.

CONCEITOS OPERACIONAIS Pessoa. A ação é sempre realizada por alguém, que chamamos de pessoa (ou personagem).

Pessoa é uma construção do enunciador, e pode ser uma representação mais próxima possível de pessoas reais, ou pode ser uma pessoa-tipo, construída a partir de pessoas reais, mas não equivalente a uma em particular. São vários os recursos possíveis para construir a pessoa no texto: as próprias ações que a pessoa realiza, os papéis socioculturais que desempenha, as caracterizações que recebe, e os juízos que dela são feitos.

Espaço. Quem age, sempre age em algum lugar. Nos textos, os espaços são locais significativos que delimitam e organizam a ação humana, sejam espaços reais ou imaginários. Como no caso das pessoas, os espaços podem ser típicos ou não e ajudam a construir os efeitos de sentido intencionados na enunciação. Os espaços se organizam ao redor de oposições do tipo aqui-lá, dentro-fora, perto-longe, esquerda-direita etc., em função de um ponto a partir de que ele se organiza. Os espaços podem ser apresentados em relação a um momento externo ao texto (ou ao da fala) ou em relação a um momento interno ao texto, em relação ao que é narrado no próprio texto. A importância e os significados do espaço variam de acordo com o texto e carecem de análise cuidadosa.

A construção do espaço se dá mediante a figurativização, ou seja, mediante a adjetivação concreta dos lugares — distância, proximidade, tamanho, nomes, características geográficas. A figurativização é um mecanismo lingüístico de recobrir temas, de ocultá-los através das figuras. No caso do espaço, o que se busca na análise é sempre mais do que a sua geografia, mas a sua significação, quais os sentidos que o espaço adquire mediante a ação e a interação humana. Por exemplo, quando se diz “estou me sentindo em casa”, não nos referimos à casa enquanto lugar de moradia, mas à casa enquanto um espaço seguro, agradável, familiar.

Tempo. Quem age, sempre age no tempo. Duas são as dimensões do tempo que devem ser analisadas na interpretação de textos: a cronológica (que tem a ver com a sucessão de momentos do tempo), normalmente indicada pelos termos presente, passado e futuro; e a qualitativa (que se relaciona com o modo de descrição da ação no tempo e que, na gramática e na semiótica, se chama de aspecto ou modo de ação), normalmente indicada pelos termos completo (quando a ação é vista em sua totalidade, realizada) e incompleto (quando a ação é vista ainda em ocorrência, não realizada). Além desses dois modos genéricos de descrever a ação no tempo, cada um deles pode ser ainda qualificado como incoativo (descreve a ação em seu início), durativo (expõe a ação em

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sua duração, em seu processo de acontecer), iterativo (apresenta a ação em sua iteratividade, sempre começando) e terminativo (registra a ação em seu término, final).

As formas lingüísticas de marcar o tempo são os tempos verbais, os advérbios e as expressões adverbiais de tempo. Como no caso do espaço, os tempos podem ser ordenados em relação ao momento da fala, ou em relação a um marco temporal dentro do texto. Esses tempos são ordenados como tempos concomitantes, anteriores e/ou posteriores seja ao momento da fala, seja ao marco temporal presente no texto, mediante um arranjo de tempos verbais e/ou advérbios temporais, que pode ser bastante complexo.

De forma simplificada, no caso do sistema verbal, temos na língua portuguesa: o uso do tempo presente do verbo para indicar predominantemente ação concomitante; os tempos pretéritos do verbo para indicar predominantemente ação anterior, e os tempos futuros do verbo para indicar predominantemente ação posterior ao marco temporal (da fala, ou do texto). É possível, porém, usar um tempo verbal para expressar tempo cronológico não correspondente ao tempo verbal, por exemplo: a) podemos usar o tempo verbal presente com sentido cronológico de passado (e.g.: Era o tempo esperado: Jesus nasce, sonhos irão se realizar...”); ou b) podemos usar o tempo verbal do pretérito perfeito para indicar tempo cronológico futuro e modo condicional de ação (e.g. Correu, caiu!); etc.

Se pensarmos no modo da ação, basicamente encontramos: a) o modo incompleto da ação geralmente é designado pelos tempos verbais do presente, do pretérito imperfeito e do futuro, bem como pelo gerúndio e infinitivo; b) o modo de ação completo geralmente é designado pelos tempos verbais do pretérito perfeito e pretérito mais-que-perfeito, e pelo particípio. Mas, assim como no caso do tempo cronológico, é possível usar os tempos verbais de formas diferentes da comum. Além desses dados básicos, podemos notar, por exemplo, que o particípio e o gerúndio tendem a iludir a temporalidade cronológica, criando o efeito de sentido da permanência, durabilidade ou atemporalidade. O subjuntivo e o imperativo tendem a criar um efeito de expectativa, de ação ainda a ser realizada, de incompletude.

Neste manual, a base dos exemplos exegéticos é o texto da Bíblia em português. Fiz esta escolha para que um número maior de pessoas possa utilizar este livro, independentemente de conhecer as línguas bíblicas. Se, porém, a base da exegese for o texto original da Bíblia, deve-se trabalhar a partir do sistema verbal do idioma em questão (hebraico, aramaico ou grego), uma vez que cada idioma tem sua própria maneira de encarar e descrever a temporalidade. Temos ótimas traduções da Bíblia para o português (e outros idiomas contemporâneos), que podem ser usadas com segurança para a interpretação da Palavra de Deus. Se você não conhece as línguas originais da Bíblia, procure usar bem a bibliografia técnica disponível e, se tiver vontade, tente aprender grego ou hebraico, ou ambos os idiomas. Se você é um estudante de teologia, ou já é formado, não se iluda com o que aprendeu de grego e hebraico no curso de teologia. Por melhor que tenha sido o seu curso, você só teve um aperitivo. Continue estudando, até ser capaz de ler e interpretar o texto bíblico sem a necessidade de consultar léxicos, analíticos, interlineares — o que permitirá usar a bibliografia mais especializada com muito mais proveito. Segundo a terminologia semiótica, a presença das pessoas, tempo e espaço, no texto, é resultado da enunciação, que se projeta no discurso mediante os procedimentos de actorialização (construção da pessoa, ator ou personagem), espacialização (construção e significação do espaço) e temporalização (construção e significação do tempo). O texto pode ser chamado de enunciação enunciada, formulada por uma enunciadora, e

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dirigida a uma enunciatária que, no processo interpretativo, pode ser considerada co-enunciadora.

EXERCÍCIOS 1. Escolha um filme e analise sua dimensão espaço-temporal das ações. 2. Escolha tipos diferentes de perícopes da Bíblia (epístolas, poesia, sabedoria, leis) e

analise a dimensão espaço-temporal da ação.

SUGESTÕES DE LEITURA Textos didáticos

SAVIOLI , Francisco Platão &FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1996. Lições 12, 13 e 14, p. 173-222.

_____. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1991. Lição 16, p. 135-143; lição 17, p. 145-153; lições 18 e 19, p. 154-171. Textos técnicos

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso:fundamentos semióticos. São Paulo: Atual Editora, 1988. Capítulo II, p. 72-134.

BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Bauru: Edusc, 2003. Capítulos 3 e 4, p. 77-150.

FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 1996. O livro todo.

3 Ciclo 2 Dimensão teológica da ação (parte 1): Interdiscursividade

9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo.

Marcos 1 Preste atenção nesta frase: “Nazaré da Galiléia”. Por que o texto especifica que Nazaré é um lugar (uma cidade) da Galiléia? Existem algumas razões para isso: Pode ser que existisse mais de um lugar chamado Nazaré e fosse, então, necessário especificar a qual dessas “Nazaré” o texto se refere. Mas também pode ser, e é bem mais provável, que a frase da Galiléia esteja nos apontando para um discurso da época do texto. Sabe-se que no século I d.C., o judaísmo oficial considerava a Galiléia uma região de pessoas impuras, não pertencentes ao conjunto dos eleitos de Deus que poderiam esperar a salvação. Ao usar a especificação da Galiléia, o texto nos ajuda a perceber que as ações narradas nessa perícope têm a ver com o tema da pureza/impureza e do acesso à salvação divina. (Em Mt 4:12-17, essa relação está explícita, mediante a citação de Is 8:22—9:1.)

Neste capítulo, então, iniciamos o estudo do Ciclo 2 do método interpretativo, que se ocupa da dimensão teológica da ação. Esse ciclo é bem mais complexo do que o anterior, e a ele dedico três capítulos deste manual. Neste, enfoco as relações que a perícope estudada mantém com outros textos e discursos.

INTRODUÇÃO No Ciclo 2, o texto é enfocado sob a perspectiva discursiva (discurso é um dos termos técnicos que se referem ao conteúdo de um texto — que também é chamado de: temas,

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idéias, mensagem, ou estrutura semântica). Quem escreve um texto, o faz para significar algo, para convencer (persuadir) alguém a acreditar em algo, a sentir alguma coisa, ou a realizar alguma ação etc. É através dos sentidos do texto que percebemos a sua intencionalidade, aquilo que o texto quer que creiamos, sintamos, ou façamos.

Os sentidos de um texto são organizados por meio de uma interessante combinação de elementos textuais e discursivos. Em primeiro lugar, o texto (como manifestação do discurso) é fruto dos conflitos e dos acordos discursivos de uma dada sociedade (de um contexto) — por isso, a totalidade da qual ele faz parte é chamada de interdiscursividade, que também pode se manifestar textualmente, sendo, então, chamada de intertextualidade. Assim como o sentido de uma perícope depende do todo ao qual ela pertence (livro, coletânea, antologia), o sentido desse todo (e das perícopes que o compõem) depende do todo ao qual o texto pertence (o seu contexto).

Em segundo lugar, o sentido é organizado por meio de formas de estilo (o aspecto estético do texto, que segue, em maior ou menor grau, padrões de beleza do contexto) e de argumentação (o aspecto persuasivo do texto, que também segue os padrões de validade das idéias em um dado contexto). Estilo e argumentação, juntos, são uma poderosa arma textual para convencer leitores e leitoras do valor do texto que está sendo lido. Nem sempre, na exegese bíblica, se presta atenção a estes aspectos mais formais do texto, mas eles são tão importantes quanto os demais aspectos para a produção e interpretação dos sentidos do texto.

Por fim, em terceiro lugar, o sentido é organizado através de percursos temáticos e/ou de percursos figurativo-temáticos (ou simplesmente temas), que são as combinações de palavras e frases debaixo de um tema comum (mais abstrato do que os temas e figuras que compõem o percurso). Os percursos representam os discursos do texto, os discursos com os quais o texto dialoga, e as formações discursivas do contexto do texto estudado. Mesmo os textos predominantemente figurativos (narrativas, histórias em quadrinhos, receitas etc.) são organizados em percursos temáticos, e nesse caso é preciso trabalhar ainda mais disciplinadamente para podermos perceber os temas que estão escondidos sob as figuras que compõem um texto. Neste caso, maus hábitos de leitura dificultam a interpretação de textos bíblicos — hábitos muitas vezes adquiridos nas classes infantis de escolas dominicais, que usam as histórias bíblicas quase que somente para extrair lições de moral para as crianças.

No decorrer da história da interpretação bíblica estabeleceu-se um axioma: um texto não pode ser interpretado fora de seu contexto. Aqui as maiores dificuldades para a interpretação da Bíblia se tornam visíveis! Vivemos em uma época muito diferente da época em que os livros da Bíblia foram escritos, e quase nada sabemos sobre o contexto bíblico (conhecemos aquilo que ouvimos em sermões, estudos bíblicos, ou lemos em revistas de escola dominical etc.). Quanto mais conhecemos o contexto (o que Umberto Eco chama de conhecimento enciclopédico) de um texto, tanto mais somos capazes de interpretar o texto. Quanto menor for o nosso conhecimento enciclopédico, mais frágil e limitada será a nossa interpretação do texto. Há, porém, diferentes maneiras de se perceber o contexto de um texto, conforme a teoria interpretativa que usamos. A teoria sêmio-discursiva também oferece a sua proposta de como perceber o sentido do texto em seu contexto — mediante as relações de intertextualidade e interdiscursividade.

Neste capítulo, conseqüentemente, nosso foco recairá sobre a análise das relações intertextuais e interdiscursivas de um texto. Esta análise serve a dois propósitos: a) ajuda-nos a entender melhor os sentidos de um texto, pois estes dependem das relações que o texto mantém com outros textos e discursos; e b) auxilia-nos a localizar o texto no contexto e a compreender como o contexto contribui para a significação do texto.

CICLO 2: AS PERGUNTAS

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Quais são as possibilidades de sentido de um texto e como elas estão organizadas 1) intertextual e interdiscursivamente; 2) estilística e argumentativamente; e 3) figurativa e tematicamente?

COMO FAZER 1. Identificar as marcas das relações intertextuais e interdiscursivas. 2. Analisar as relações intertextuais e interdiscursivas. 3. Elaborar uma síntese.

EXEMPLO 1 (FORMA DESCRITIVA ) Marcos 1 9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo. 1. Localizar as marcas das relações intertextuais e interdiscursivas A presença das relações intertextuais e interdiscursivas pode estar marcada no texto, ou não. Se estiver marcada, torna-se mais simples localizar e analisar essas relações. Se não estiver, então dependeremos muito mais do conhecimento enciclopédico para perceber no texto a presença de outros textos e/ou discursos. Nos textos bíblicos é mais comum a não-marcação da intertextualidade e/ou da interdiscursividade, o que já nos indica uma tarefa fundamental para desenvolver nossa capacidade interpretativa: precisamos conhecer o máximo possível sobre os períodos em que os livros da Bíblia foram escritos, e precisamos conhecer a própria Bíblia da forma mais ampla e detalhada possível. Só assim conseguiremos crescer em nossa capacidade exegética.

Volte sua atenção ao texto de Marcos. Na tradução usada encontramos apenas uma marca explícita das relações interdiscursivas (para simplificar, daqui para frente, sempre usaremos apenas um dos termos, mesmo quando nos referirmos a ambos). Há o indicativo de um discurso direto no versículo 11 — a voz dos céus diz: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo. Esta marca nos mostra que há duas vozes presentes neste texto: a do narrador (v. 9-11a) e a da “voz dos céus” (11b). Várias versões da Bíblia já apresentam parte do trabalho do intérprete: indicam que as sentenças Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo vêm do Antigo Testamento, de três textos diferentes: Gênesis 22:2,12,16; Salmos 2:7 e Isaías 42:1. No caso de Gênesis 22, temos uma relação intertextual denominada alusão, pois não há uma cópia literal do texto de Gênesis: “filho amado”/“a quem tu amas”. Nos casos de Salmos 2:7 e Isaías 42:1 a relação intertextual está na forma da citação, pois parte do texto é literalmente copiada: “Tu és meu filho” (Sl 2:7); “em ti me comprazo” (Is 42:1).

As demais relações interdiscursivas em Marcos 1:9-11 têm de ser descobertas mediante o conhecimento enciclopédico. Enquanto você desenvolve seu conhecimento enciclopédico mediante o estudo permanente da Bíblia e dos contextos em que ela foi escrita, pode utilizar algumas ajudas para localizar as relações interdiscursivas: chaves bíblicas, notas e chaves de Bíblias de estudo, bibliografia especializada: comentários bíblicos, dicionários de teologia bíblica, dicionários bíblicos, léxicos e artigos sobre textos bíblicos.

Por exemplo, na Bíblia do Peregrino, encontramos a seguinte nota sobre Marcos 1:9-11: “Ele vê “os céus se abrir” (o que pediam os israelitas em Is 63,19); o Espírito desce até ele (como anuncia Is 11,1[2])” (p. 2394). Na Tradução Ecumênica da Bíblia, lemos: “Os céus se rasgam como um tecido (cf. 15,38), sinal de que Deus intervém para realizar suas promessas (Is 63,19), aqui pelo envio do Espírito Santo (cf. Testamento de Levi 18,6 e de Judá 24,2)” (p. 1924, nota o); “Ao descer sobre Jesus, o Espírito o

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designa como o salvador prometido (cf. Is 11,2; 42,1; 63,11)” (p. 1294, nota p) e “... como seu Filho (cf. Sl 2,7), seu bem-amado (cf. 12,6, que talvez recorde Gn 22, 2.12-16), objeto de sua predileção (cf. Is 42,1)” (p. 1294, nota q). Na Bíblia de Jerusalém, temos: “Recebendo o Espírito, Jesus é “ungido” (1,1,+) como rei sobre o novo povo de Deus (1Sm 16,13: Jz 3,10). É o que a voz celeste lhe declara citando Sl 2,7; cf. Lc 3,22, completado por Is 42,1: Jesus é também o “servo” que ensinará o direito às nações. Para descrever a cena, Marcos inspira-se em Is 63,11-19: Jesus é apresentado como um novo Moisés (cf. Êx 2,1ss; Nm 11,17)” (p. 1759, nota e). Como último exemplo, lê-se na Bíblia Vida Nova: “como pomba. Cf. Gn 1:2” (p. 45 do NT, nota 10), e “As palavras por Deus pronunciadas lembram Is 42:1; Gn 22:2 e Sl 2:7 (cf. Mt 12:18)” (p. 45 do NT, nota 11).

Note que cada versão enfatiza diferentes relações intertextuais, e algumas delas já trazem também uma interpretação dessas relações. Isto nos indica que: a) devemos tomar cuidado com o uso de Bíblias de estudo, pois nenhuma delas oferece visões abrangentes do texto nas notas; b) cada uma delas enfatiza aspectos teológicos peculiares; e c) nem sempre podemos concordar com as interpretações propostas nas notas. Veja, também, que nenhuma das versões citadas entendeu que a frase da Galiléia poderia ser interpretada como uma alusão ao discurso da pureza/impureza e acesso à salvação divina. Não há um destaque, também, ao fato de que em Isaías 42:1 se fala da descida do Espírito sobre o servo de Javé (com exceção da menção sutil na Bíblia de Jerusalém). Aqui também não aponto todas as relações possíveis, restringindo-me apenas a textos do Antigo Testamento. Poderia também verificar os textos neotestamentários e os textos não-canônicos da época do Evangelho, judaicos e não-judaicos; mas o projeto de um livro didático não permite tal abrangência (no exemplo a seguir, incluí textos não-canônicos).

Podemos aproveitar esSa observação e distinguir melhor entre relações intertextuais e interdiscursivas. Relações intertextuais são as que um texto estabelece com outros textos, anteriores ou contemporâneos a ele. Relações interdiscursivas são as que um texto estabelece com discursos anteriores ou contemporâneos. Todas as relações intertextuais também são interdiscursivas — mas nem todas as relações interdiscursivas são, também, intertextuais. 2. Analisar as relações intertextuais e interdiscursivas Ao final do item acima, nas citações das Bíblias de estudo, já encontramos análise das relações interdiscursivas. A divisão em passos serve especialmente para fins didáticos; quanto mais praticamos, mais os passos vão se tornando um só, e executamos a análise quase que automaticamente.

Há diferentes maneiras de analisar as relações interdiscursivas. Podemos proceder a uma por uma, ou podemos selecionar temas que unifiquem as diversas relações, ou podemos enfocar apenas um ou mais aspectos das relações, sem analisá-las em sua totalidade. Como o foco do Ciclo 2 recai sobre a dimensão teológica da ação, neste momento da exegese ainda trabalhamos com a hipótese de data adotada previamente. A localização mais precisa do texto em seu contexto, bem como a influência do contexto sobre o texto somente serão analisadas nos Ciclos 3 e 4.

Como exemplo, vou fazer a análise a partir de um tema que unifica várias das relações localizadas: a identidade de Jesus. As relações intertextuais e interdiscursivas nos mostram as seguintes características da identidade de Jesus:

1. Como o filho amado, o novo Isaque (Gn 22:2), ele encarna o verdadeiro Israel, na condição daquele que irá sofrer pelo povo, tal como um cordeiro pascal.

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2. O Filho amado do Pai é ungido como o servo de Deus (Is 42:1): aquele que traz justiça a Israel e a todas as nações, mas também aquele que é rejeitado, sofre e morre para cumprir sua vocação e missão.

3. Ele é também o novo Davi (Sl 2:7), um novo rei que governará como libertador das pessoas impuras e marginalizadas (da Galiléia), e não como conquistador das nações, como aquele que traz a paz e a salvação (cf. Is 11:1ss).

4. Ele é o novo Moisés, aquele que recebe diretamente a palavra de Deus e a ensina para o seu povo, e também para todos os povos.

5. Ele é, assim, o Messias de Israel, ungido pelo próprio Espírito de Deus para realizar a missão messiânica, como um filho fiel e obediente à vocação paterna. 3. Elaborar uma síntese As relações intertextuais e interdiscursivas em Marcos 1:9-11 mostram:

1. A presença de duas vozes discursivas — a do narrador do Evangelho, que conta o episódio, e a da voz do céu, que qualifica Jesus como o filho amado e vocacionado pelo Pai para a missão salvífica.

2. O episódio do batismo funciona, no Evangelho, como um dos trechos que constróem enfaticamente a identidade de Jesus como o Messias e Filho amado do Pai, que irá cumprir a sua vocação salvífica, prenunciando seu sofrimento e morte futuras.

3. A chegada da voz dos céus é sinal de que a era messiânica está começando, na qual Deus cumprirá as suas promessas salvíficas para seu povo, sem depender da Lei como caminho para a libertação e salvação. As relações interdiscursivas sugerem um mundo-da-vida em que a legitimidade teológica da identidade messiânica de Jesus era uma questão em aberto.

EXEMPLO 2 (FORMA DISSERTATIVA ) Isaías 42

1 Eis o meu servo, a quem eu sustento, o meu eleito, em quem tenho prazer. Coloquei meu espírito sobre ele, justiça para as nações fará brotar. 2 Não gritará, e não levantará, e não deixará ser ouvida na rua a sua voz. 3 A cana rachada não esmagará, e a torcida bruxuleante não apagará; fielmente fará brotar a justiça. 4 Não desanimará e não será quebrado, até que estabeleça na terra a justiça e em sua lei as ilhas tenham esperança. Nessa perícope, a estilização é uma das marcas mais importantes das relações

intertextuais. Mediante a imitação do estilo de textos de investidura de oficiais da corte ou do Templo, e também das entronizações reais em outros países do Antigo Oriente, o texto se configura como um relato de investidura, que quebra as regras padronizadas do gênero. A linguagem da investidura pode provir de dois ambientes: 1. Da corte monárquica: O termo hebraico mishpat aparece três vezes nos versículos 1-4. Conforme usado nestes capítulos, pode conotar uma decisão judicial (41:1; 53:8; 54:17), particularmente uma que vindique uma parte inocente (40:27; 49:4; 50:8). Mas o termo aqui tem uma referência mais ampla e se refere a uma ordem social baseada na justiça, que se origina na vontade e caráter da divindade (cf. 40:14; 51:4). Assim entendida, mishpat é vinculada com o papel da lei (tôrâ v. 4, que não deve ser traduzida por “instrução”), conforme imposta e administrada justa e equitativamente, e esta é, mais obviamente, a

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tarefa de um rei do que a de um profeta. A linguagem encaixa com o que sabemos a respeito do início do período persa. Que os antigos aquemênidas não tivessem seu próprio código legal não os impedia de se referirem à “lei do rei” (data sa sarri cf. Data’ dî malka’ Ed 7:26 e dat vadîn, “lei e ordem justa”, Et 1:13-14). Em sua Inscrição de Behistun (#8), Dario I refere-se às terras subjugadas como “caminhando” de acordo com a sua lei. De acordo com o Cilindro de Ciro, o deus Marduque o chamou pelo nome, agradou-se dele, escolheu-o para restaurar a Babilônia e seus habitantes, o que ele fez (diz o texto no Cilindro) pacificamente, ao libertar a população (cf. ANET 315-16 e Is 45:1 referindo-se explicitamente a Ciro). Outra inscrição, da coleção Abu-Habba no Museu Britânico, registra um sonho de Nabonido que, de fato, refere-se ao levantar de Ciro, seu servo, por Marduque (Beaulieu 1989, 108), enquanto o tomar a mão do governante pela divindade é parte da linguagem oficial da corte no Antigo Oriente Médio (cf. Is 45:1 com referência explícita a Ciro). A maneira pela qual ele deve desempenhar sua tarefa parece, primeiramente, contrastar com a violência de suas conquistas indicadas em 41:2-3, 25, mas temos notado que Ciro alegou ter tratado os babilônios sem violência. Alternativamente (com S. Smith 1944, 55), o autor poderia estar se referindo à forma com que se esperava que Ciro tratasse os judeus quebrados, derrotados e desanimados.1 2. Da vocação profética:

A questão crucial nesta passagem é: o servo é descrito como uma figura profética, ou como uma figura real? Esta está intimamente vinculada com o sentido da expressão yôsi’ mispat (English versions: ‘ele trará julgamento’). Em um extremo se encontra Volz, que pensa no Servo como um missionário peripatético; no outro, Sellin em seu período Zorobabel-Jeoiaquim. O título “servo” é usado para reis (2Sm 3:18; Ez 34:23s; Ag 2:3 etc.) e profetas (Am 3:7 etc.). Eleito é usado tanto para Moisés (Sl 106:23) quanto para Davi (Sl 89:4), mas não com profetas; mas no plural se refere aos israelitas (1Cr 16:13; Sl 105:43; Is 65:9,15,22). Mas visto que ambas as palavras são usadas pelo Dt-Is em paralelismo com Jacó—Israel, é provável que a escolha delas no cântico seja determinada por esse fato, e que não devemos argumentar a partir delas para decidir se atributos proféticos ou reais estão expressamente implicados no Servo. A expressão ‘coloquei sobre ele meu espírito’ também é indecisiva, visto que igualmente pode se aplicar a um profeta (Os 9:7) ou a um rei (Is 11:2). A ambigüidade somente é enfatizada por Is 61:1 — onde o falante é claramente um profeta, mas é, mesmo assim, “ungido”. Nem o versículo 2 é decisivo. Aqueles que vêem no servo um profeta ressaltam os contrastes entre ele e os extáticos vulgares, ou ele pode ser um espírito fogoso como Amós. Mas o contraste, igualmente, pode ser com o conquistador Ciro.2

A descrição da tarefa do servo possui elementos derivados tanto da linguagem relativa ao arauto da corte real quanto à atuação de juízes nos tribunais; ou mesmo as noções de justiça e instrução podem ser vistas como derivando de ambientes proféticos. Na opinião de Klaus Baltzer, a principal relação interdiscursiva deste texto é a tradição mosaica, para o que oferece interessante argumentação, embora não plenamente convincente, a meu ver. Cito apenas a conclusão de sua argumentação:

1 1 Joseph BLENKINSOPP, Isaiah 40—55: A New Translation with Introduction and Commentary,

New York: Doubleday, 2000, p. 210s.

2 2 Christopher R. NORTH, The Suffering Servant in Deutero—Isaiah: An Historical and Critical

Study, London: Oxford University Press, 1956, p. 139.

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Embora qualquer um em Israel esteja, certamente, obrigado ao dever de “servir a Deus (como servo)”, o título “servo de Javé” é usado de forma especial para Moisés; há evidência disto em todo o Antigo Testamento.3

Baltzer não menciona Números 12:3 em sua argumentação, mas é possível que esse versículo esteja na base intertextual da descrição do servo como perseverante no cumprimento de sua tarefa (42:4a). Não me parece necessário tomar uma decisão a favor de uma relação interdiscursiva em detrimento das demais possíveis. A ambigüidade é fator característico deste texto e é comum em Isaías 40—55 o deixar-se perpassar por distintas vozes discursivas.

Decisivo é, a meu ver, como interpretar a presença dessas diferentes vozes discursivas em 42:1-4. À luz do conjunto de Isaías 40—55, penso que devemos ver aqui a presença de discursos da corte monárquica (israelita e persa) e do êxodo (o Moisés, de Baltzer), sendo que esses “oficiais” têm de ser interpretados de forma “democratizante”, como o rei Davi em Isaías 55:3. O escravo é descrito propositadamente com linguagem elevada (da corte e da Lei) que ressalta contraste com sua condição de humilhação e falta de poder. Entendo que o servo, aqui, deva ser identificado com o(s) profeta(s) que anuncia(m) o novo êxodo aos exilados judeus na Babilônia — ele é um escravo que, em sua missão, possui as características tanto de um rei quanto de um Moisés libertadores e promulgadores da lei justa, mas não deixa de ser e atuar como um escravo. Sob este aspecto deve-se destacar a linguagem da aliança e lei, elementos constitutivos da ação monárquica, especialmente dos tratados de suzerania firmados entre povos no Antigo Oriente.

As relações intertextuais e interdiscursivas sugerem um mundo-da-vida no qual a identidade e o projeto de vida de uma minoria oprimida estão em jogo. A abrangência das relações mantidas pelo texto sugere que seus autores tinham amplo conhecimento de textos de sua própria cultura e religião, mas também de documentos diplomáticos e religiosos de povos mesopotâmicos e do povo persa. Se, de fato, o texto usou materiais do Cilindro de Ciro, um limite inicial para a data do mesmo está estabelecido.

CONCEITOS BÁSICOS Discurso. Um ou mais temas explicativos de aspectos da realidade humana em geral. Os

discursos são constituídos socialmente. Normalmente, coexistem em uma mesma sociedade diferentes discursos sobre os mesmos aspectos da realidade, seja de forma conflitiva, seja de forma amistosa.

Heterogeneidade constitutiva do discurso. O reconhecimento de que todo discurso é ligado a outros discursos e deles se alimenta e constitui. Não só as palavras são polissêmicas e seu sentido se configura primariamente pela diferença, também os discursos (e os textos) são polissêmicos e constituem seus sentidos primariamente pela diferença. Este conceito também ajuda a entender o caráter social e histórico dos textos, ou seja, seu caráter contextual.

Polifonia. É a presença de mais de uma voz dentro do texto, presença esta normalmente marcada por meio de formas de doação de voz a uma personagem do texto. A polifonia é um desdobramento da heterogeneidade constitutiva do discurso que, diferentemente dela, não está necessariamente presente em todos os textos.

3 3Deutero—Isaiah: A Commentary on Isaiah 40-55, Minneapolis: Fortress Press, 1999, p. 126,

cf. n. 232 (ver aqui: Êx 14:31; Nm 12:7-8; Dt 34:5; Js 1:2,7; 18:7; 1Rs 8:53,56; Is 63:11; Ml 3:22

[4:4]; Sl 105:26; Dn 9:11; Baruque 2:28; Sabedoria 10:16).

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Contexto. O conjunto de discursos explicativos da realidade na qual um texto é formulado, e do qual depende para constituir os seus sentidos. Sob este aspecto, os textos são manifestações de discursos presentes no seu contexto, já interpretados pelo(s) autor(es) ou pela(s) autora(s) do texto. Dada a diversidade de sentidos em que o termo “contexto” tem sido usado, daqui para a frente prefiro usar um termo menos ambíguo: mundo-da-vida.

Conhecimento dicionarístico. O conhecimento do significado das palavras e dos textos (discursos) de um idioma, semelhantemente ao formato de um dicionário, que alista os diferentes usos possíveis de uma palavra, mas fora de suas relações na frase, na sentença, ou na sociedade.

Conhecimento enciclopédico. O conhecimento dos significados das palavras, dos textos e discursos que compõem o mundo-da-vida de uma dada sociedade, em suas inter-relações.

CONCEITOS OPERACIONAIS Intertextualidade. Intertextualidade é o termo que explica o uso que um texto faz de

outros, a ele anteriores, ou contemporâneos. Há três maneiras de uso de outros textos: a citação, quando um texto copia literalmente partes ou o todo de outro(s) texto(s); alusão, quando um texto se apropria não literalmente de partes ou do todo de outro(s); e estilização, quando um texto imita o estilo de outros.

Interdiscursividade. Interdiscursividade é o termo que explica o uso que um texto faz de discursos, a ele anteriores, ou contemporâneos. Há duas maneiras de uso de outros discursos: a citação, quando um texto copia percurso(s) temático(s) de outro(s); e a alusão, quando um texto se apropria mais livremente de percurso(s) temático(s) de outro(s). Tanto na interdiscursividade quanto na intertextualidade, o uso dos outros textos e/ou discursos pode ser de forma contratual (quando há um acordo de idéias), ou polêmica (quando os outros textos e/ou discursos são usados sem concordância).

Marcas lingüísticas das relações intertextuais e interdiscursivas. Há várias maneiras de explicitar as relações intertextuais e interdiscursivas, que ficam marcadas no texto. Pode-se mencionar claramente que se está citando um outro texto ou discurso; pode-se indicar essas relações mediante o uso de aspas, travessões ou outras formas de pontuação (o que não ocorria nos textos bíblicos originais); pode-se usar de recursos estilísticos como a ironia e a paródia; pode-se usar a negação e a implicitação (pressupostos e subentendidos); pode-se usar glosas (comentários ou explicações. E.g., é comum em Juízes o refrão “naquele tempo não havia rei em Israel”, claramente uma glosa. A glosa pode provir de uma redação posterior do texto, ou pode provir do próprio autor do texto.); podem-se usar também diferentes formas de inclusão de outras vozes: discurso direto (a fala da “voz” é citada), e discurso indireto (a fala da “voz” é marcada por um verbo de dizer e uma oração subordinada substantiva objetiva direta).

O mundo-da-vida. Mundo-da-vida é o conjunto de discursos (idéias, ou temas, ou conceitos, ou noções), que se constitui ao longo da história e existe em uma dada sociedade, servindo para explicar a realidade na qual tal sociedade vive, e ordenar as ações e relações humanas nessa mesma sociedade. Pode-se classificar os tipos de discurso presentes no mundo-da-vida como discursos sobre: a cultura (valores, símbolos, noções explicativas, etc.), a sociedade (normas, formas de parentesco etc.), a identidade (paixões, formas de identidade, papéis sociais etc.) e a religião. A realidade ao qual o mundo-da-vida se refere pode, por sua vez, ser classificada como: natural (tudo aquilo que não é feito por seres humanos), social (o que é feito por seres humanos em sua vida em sociedade), pessoal (o mundo “interior” das pessoas) e transcendental (tudo o que se refere às explicações religiosas da realidade).

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Segundo a terminologia sêmio-discursiva, a presença do mundo-da-vida no texto se dá de duas maneiras principais: pela heterogeneidade constitutiva do discurso e pela polifonia. Todo texto e todo discurso são realidades sociais, representam posições, ou tendências dentro do mundo-da-vida de um grupo social e/ou de uma sociedade. Intertextualidade e interdiscursividade são conceitos que operacionalizam a análise da presença do mundo-da-vida no texto.

EXERCÍCIOS 1. Escolha um filme e analise suas relações intertextuais e interdiscursivas com outros

filmes. 2. Escolha tipos diferentes de perícopes da Bíblia (epístolas, poesia, sabedoria, leis) e

analise as suas relações intertextuais e interdiscursivas.

SUGESTÕES DE LEITURA Textos didáticos

DISCINI, Norma. A comunicação nos textos. São Paulo: Contexto, 2005. Lições 2, 3 e 4, p. 45-182.

SAVIOLI , Francisco Platão &FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1996. Lições 2, 3 e 4, p. 27-72.

_____. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1991. Lições 2 e 3, p. 19-33. Textos técnicos

BARROS, Diana Luz Pessoa de. “Dialogismo, polifonia e enunciação”. Em BARROS, D. L. P. de &FIORIN, J. L. (orgs.) Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: EDUSP, 1994, p. 1-10.

FIORIN, José Luiz. “Polifonia textual e discursiva”. Em BARROS, D. L. P. de &FIORIN, J. L. (orgs.) Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: EDUSP, 1994, p. 29-36.

ZABATIERO, Júlio P. T. “As estruturas da ação. Construindo o referencial teórico da Teologia Prática”. Em BARRO, Jorge H. &ZABATIERO, Júlio P. T. (eds.) Práxis Evangélica. Revista de Teologia Prática latino-americana. Londrina: Editora Descoberta & Faculdade Teológica Sul-Americana, nº 3, agosto 2003, p. 81-103.

4 Ciclo 2 Dimensão teológica da ação (parte 2): Estilo e argumentação 9Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo.

Marcos 1 13Por esse tempo, dirigiu-se Jesus da Galiléia para o Jordão, a fim de que João o batizasse. 14 Ele, porém, o dissuadia, dizendo: Eu é que preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim? 15 Mas Jesus lhe respondeu: Deixa por enquanto, porque assim nos convém cumprir toda a justiça. Então, ele o admitiu. 16 Batizado Jesus, saiu logo da água, e eis que se lhe abriram os céus, e viu o Espírito de Deus descendo como pomba, vindo sobre ele. 17 E eis uma voz dos céus, que dizia: Este é o meu filho amado, em quem me comprazo.

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Mateus 4 Preste atenção nas sentenças em itálico. Repare nas diferenças entre elas: 1) “naqueles dias” versus “por esse tempo”; 2) “veio Jesus, de Nazaré da Galiléia” versus “dirigiu-se Jesus da Galiléia para o Jordão”; 3) “e por João foi batizado no rio Jordão” versus “a fim de que João o batizasse”. A esse tipo de diferenças se costuma chamar de estilo, ou seja, as preferências pessoais, de quem escreve um texto, quanto ao uso dos recursos do idioma. Note agora, porém, nas semelhanças entre os dois relatos do batismo de Jesus: ambos começam com uma breve descrição geográfica, seguida da descrição do batismo com uma só sentença (sem nenhum detalhe), seguida de uma descrição (mais detalhada) da visão de Jesus e da audição da voz dos céus. Repare, ainda, que em Mateus há dois versículos que não constam em Marcos. As semelhanças indicam que o estilo de cada autor não é algo puramente individual, mas segue certo padrão estilístico existente no mundo-da-vida dos autores dos textos.

Volte sua atenção aos versículos peculiares de Mateus, que apresentam um diálogo entre João Batista e Jesus Cristo a respeito da propriedade de este ser batizado por aquele. O diálogo está na forma de debate. Em primeiro lugar, João tenta convencer seu interlocutor de que é ele, João, quem precisa ser batizado pelo Messias, e não o contrário. Em sua resposta, Jesus aceita o pensamento implícito na fala de João (que ele é mais importante que João) ao dizer “deixa por enquanto”. Todavia, Jesus acrescenta a necessidade de ele ser batizado pelo Batizador: “... porque assim nos convém cumprir toda a justiça”. João é convencido por Jesus, e aceita batizá-lo: “... então o admitiu”. Este diálogo é um bom exemplo de argumentação, o esforço para convencer alguém a acreditar em algo, ou a fazer alguma coisa, com base em razões aceitas pelas duas partes em debate.

INTRODUÇÃO Como vimos no capítulo anterior, o sentido de um texto também é organizado por meio do estilo (o aspecto estético do texto, que segue, em maior ou menor grau, padrões de beleza do contexto) e da argumentação (o aspecto persuasivo do texto, que também segue os padrões de validade das idéias em um dado contexto). Estilo e argumentação são uma poderosa arma para convencer leitores e leitoras da validade do texto que está sendo lido. Podemos chamá-los, também, de dimensão retórica do texto.

Neste capítulo, conseqüentemente, nosso foco recairá sobre a análise das marcas estilísticas e argumentativas presentes em um texto. Esta análise serve a três propósitos:

1. Ajuda-nos a entender a intencionalidade do texto, ou seja, de que o texto quer nos convencer, nos persuadir.

2. Auxilia-nos a identificar os critérios de verdade e/ou validade presentes no mundo-da-vida do texto e como são usados por autores e leitores, contribuindo também com a análise da dimensão sociocul-tural da ação.

3. Propicia-nos identificar o ator da enunciação, contribuindo também para a análise da dimensão psicossocial da ação.

Um conceito semiótico importante, relacionado à retórica textual-discursiva é o de contrato de veridicção, que visa a explicar as bases mediante as quais, em dado contexto, chega-se ou não a um acordo.

Estilo e argumentação são elementos padronizados da linguagem em uso. Por isso, não são individuais, mas sociais. Isto não quer dizer que indivíduos não possam usar os padrões estilísticos e argumentativos de forma diferente da normal, com mais talento e habilidade do que outras pessoas, nem que pessoas possam criar novas formas de estilo e argumentação. Significa, sim, que em um texto as características de estilo e argumentação não são criadas totalmente do nada pelos seus autores ou autoras. Eles

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escolhem tais características, dentre as disponíveis no seu mundo-da-vida, e impõem, em maior ou menor grau, a sua contribuição particular.

Por um lado, é importante distinguir estilo de argumentação. O estilo tem mais a ver com as qualidades estéticas do texto, enquanto a argumentação tem a ver com as razões pelas quais o texto deve ser aceito por quem o lê. Possuem, assim, regras e utilizações peculiares a cada um, e até são estudados por ciências diferentes (teoria literária e lógica). Por outro lado, em muitos textos o estilo também cumpre as funções da argumentação — como no exemplo acima: no relato de batismo de Jesus do evangelho de Marcos não são usados argumentos para persuadir quem o lê.

Uma vez que são elementos padronizados de um mundo-da-vida e seu idioma, toda tradução de um texto, de uma língua para outra, tende a modificar as marcas estilísticas e argumentativas — uma vez que em cada mundo-da-vida e idioma existem padrões distintos de estilo e argumentação. Graças ao intercâmbio entre grupos sociais e culturais distintos, esses padrões peculiares circulam entre diferentes mundos-da-vida e vários deles acabam fazendo parte do estoque de formas estilísticas e argumentativas de mais de um mundo-da-vida e idioma, o que facilita um pouco nosso trabalho de análise das questões de estilo e argumentação dos textos bíblicos.

Entretanto, é necessário ressaltar que as traduções da Bíblia têm como objetivo primário facilitar a compreensão dos conteúdos do texto, e não se preocupam em tentar recriar os padrões estilísticos dos textos bíblicos originais. E, alguns casos, especialmente na poesia, é necessário transcriar (termo cunhado por Haroldo de Campos) o texto na tradução a fim de aproveitar os elementos estilísticos do original na língua de destino da tradução. Tendo em vista que já vimos algumas das características estilísticas no capítulo sobre o plano da expressão, aqui iremos concentrar nosso foco na força persuasiva dos mecanismos retóricos do estilo e da argumentação.

CICLO 2: AS PERGUNTAS Quais são as possibilidades de sentido de um texto e como elas estão organizadas 1) intertextual e interdiscursivamente; 2) estilística e argumentativamente; e 3) figurativa e tematicamente?

COMO FAZER 1. Identificar as marcas estilísticas e argumentativas. 2. Analisar as marcas estilísticas e argumentativas. 3. Elaborar uma síntese.

EXEMPLO 1 (FORMA DESCRITIVA ) Marcos 1 9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo. Vamos analisar as expressões em itálico. A sentença “os céus rasgarem-se” pode ser definida como uma metáfora, na medida em que o céu é descrito como se fosse uma cortina que se rasga e revela o interior que estava oculto. Não dizemos normalmente que os céus se rasgam; portanto, ao usar essa metáfora, o texto nos sugere uma interpretação específica: esta sentença conecta a isotopia geográfica (céu e terra) à isotopia teológica — o rasgar dos céus corresponde a uma teofania (uma manifestação de Deus), é um evento revelatório. Funciona de forma semelhante a expressão “uma voz dos céus”, neste caso, simultaneamente, uma sinédoque, pois a voz representa o Pai (a parte é usada para significar o todo), e uma metáfora, pois a voz conecta a isotopia da fala à teológica, da revelação. Assim, ambas as metáforas se complementam e nos indicam em

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que direção devemos ler o texto. Podemos perceber, também, um mecanismo de implicitação — uma vez que a voz dos céus diz “tu és o meu Filho amado”, está pressuposto que a voz dos céus é Deus-Pai. Metáfora e metonímia são elementos estilísticos, enquanto a implicitação é elemento argumentativo.

Por último, a expressão “como pomba” é um símile. O texto não quer dizer que, literalmente, o Espírito Santo desceu dos céus na forma de uma pomba; quer significar outra coisa. Este símile nos ajudará a perceber melhor o caráter contextual das figuras de pensamento. Em nossa cultura, a pomba é símbolo da paz, mas tal sentido não existia no mundo-da-vida do texto de Marcos. No Antigo Testamento, por exemplo, a palavra “pomba” 1) é usada para designar a ave pomba; 2) é um nome próprio (Jonas); 3) é usada metaforicamente para indicar fragilidade e captura (Os 7:11); e 4) no Cântico dos Cânticos, é metáfora para a beleza da amada. Nenhum desses casos se aplica a Marcos 1:11.

Essa dificuldade tem gerado duas possibilidades de interpretação entre os estudiosos. A primeira é a interpretação adverbial do símile: o texto estaria dizendo que o Espírito desceu na forma como voa uma pomba (supostamente tranqüila, pronta para pousar). A segunda é a interpretação adjetival do símile: o Espírito representaria Israel (em textos rabínicos, a pomba é usada algumas vezes como símbolo de Israel). Ambas as sugestões não nos ajudam muito, pois qual seria o sentido de o Espírito representar Israel? Ou, para que Marcos compararia a descida do Espírito ao voar de uma pomba?

Outra sugestão foi oferecida por R. T. France, em seu comentário ao evangelho de Marcos, que interpreta o símile com relação a Gênesis 1:2, e cita um comentário judaico ao Cântico que fala da pomba como a voz do Espírito. Ele mesmo, porém, não tem certeza da validade de suas propostas. Faça, então, você mesmo a sua escolha.

Uma última questão a ser examinada: o gênero de Marcos 1:9-11 imita os textos de gênero oficial de investidura em um cargo, o que pode claramente ser percebido mediante a análise das relações intertextuais e interdiscursivas. Mediante o mecanismo intertextual da estilização, o relato do batismo de Jesus alcança proporções fora do alcance do gênero “simples” de relato de batismo. Pode-se dizer que, em certo sentido, Marcos 1:9-11 parodia os relatos de investidura oficial, na medida em que subverte o elemento institucional típico daqueles relatos, pois Jesus é investido na função messiânica fora das fronteiras institucionais legítimas, no pensamento do judaísmo oficial, para a investidura messiânica.

EXEMPLO 2 (FORMA DISSERTATIVA ) Isaías 42

1 Eis o meu servo, a quem eu sustento, o meu eleito, em quem tenho prazer. Coloquei meu espírito sobre ele, justiça para as nações fará brotar. 2 Não gritará, e não levantará, e não deixará ser ouvida na rua a sua voz. 3 A cana rachada não esmagará, e a torcida bruxuleante não apagará; fielmente fará brotar a justiça. 4 Não desanimará e não será quebrado, até que estabeleça na terra a justiça e em sua lei as ilhas tenham esperança.

Usarei as relações intratextuais da perícope como parte da análise dos elementos retóricos, destacando a contribuição que esses elementos dão à compreensão do mundo-da-vida do texto (particularmente aspectos ligados ao seu contrato de veridicção); bem

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como seguirei o formato de um comentário ao texto de Isaías para apresentar o procedimento analítico.

A perícope anterior (Is 41:21-29) possui a forma de um julgamento entre Javé e os deuses das nações e é antecedida por outra na forma de um julgamento entre Javé e as nações (41:1-7), seguida de um diálogo encorajador entre Javé e Israel, “meu servo” (41:8-20). Isaías 42:1-4 + 5-9 corresponde estruturalmente à perícope sobre o encorajamento de Israel por Javé, mas sob a forma hibridizada da investidura em ofício e da vocação para uma tarefa profética,1 exibida em linguagem exaltada do culto e da corte. Após 42:1-9, o livro oferece um convite ao louvor a Deus por sua vitória (42:10-13), seguida de uma afirmação da ação de Deus, em primeira pessoa (42:14-17), que culmina em uma declaração sobre a surdez e cegueira do servo de Javé. O servo/escravo de Javé que é retratado de forma ambígua e tensa em Isaías 40—55 (especialmente na primeira parte da seção, até o capítulo 48): ora é um indivíduo, ora é o povo de Israel (42:18-25). Este elemento estilístico ressalta o caráter algo enigmático do servo que está sendo investido por Javé, reforçado pelo ambiente e auditório que presencia tal investidura, primariamente a corte celestial — mas é claro, ao ser anunciado aos exilados (em forma oral e/ou escrita), o auditório é composto não de dignatários, mas de escravizados ao império. (Não é à toa que, na pesquisa exegética acadêmica, as propostas de identificação do servo existem em profusão, e nenhuma alcançou por ora pleno consenso.)

A perícope de Isaías 42:1-4 é construída com uma profusão de metáforas extraídas de diferentes âmbitos de linguagem: o tribunal, o Templo, a corte e a agricultura — o que funciona de forma magistral como elemento desencadeador/conector de isotopias, direcionando a interpretação para esses vários ambientes socioculturais. Na descrição do servo de Javé e de sua tarefa, um enxame de termos é utilizado de forma irônica: 1) servo e eleito são comumente usados em ambientes da corte monárquica, indicando altos oficiais do rei; 2) estabelecer, fazer brotar a justiça é função de reis; 3) receber o Espírito diretamente de Deus também é uma característica dos reis libertadores (cf. Is 9 e 11); 4) quem anuncia publicamente e com força oficial uma mensagem é o arauto do rei; 5) quem esmaga o oprimido e o fraco são os ricos, os fortes, os poderosos; e, finalmente, 6) é na lei dos reis que destroem impérios que as terras distantes colocam

1

1 “Uma identificação precisa do gênero, com um cenário bem-definido parece impossível. O

estilo costumeiramente usado para anunciar o estabelecimento de alguém em um ofício

específico é claramente empregado, mas somos incapazes de oferecer maior precisão; tentar

ser mais específico seria superinterpretar o texto”(Roy F. MELUGIN, The Formation of Isaiah 40-

55 [Berlin: Walter de Gruyter, 1976], p. 65). Incluí esta citação, pois ela nos permite

diferenciar, sucintamente, a abordagem sêmio-discursiva de gênero e as abordagens histórico-

crítica e literária. Para a análise sêmio-discursiva, não se trata de simplesmente nomear o

gênero (e/ou a forma literária, pois a terminologia usada nos manuais histórico-críticos não é

muito precisa), nem de traçar a história genética do texto (chegando até sua forma oral

original), nem de situar o texto na teoria literária — embora essas três perguntas tenham seu

valor e legitimidade. Na análise sêmio-discursiva, os objetivos da análise do gênero textual são

de cunho retórico e semântico, conforme descrevi acima, na introdução deste capítulo. No

estudo sêmio-discursivo da Bíblia, apesar das diferenças de enfoque, devemos levar em conta

as amplas e detalhadas pesquisas histórico-críticas sobre as formas literárias da Escritura.

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sua esperança (cf. o papel de Ciro no próprio texto de Is 40—48). Quem recebe tais honrarias e realizará tamanha tarefa não passa de um escravo mesmo, um exilado judeu que não tem nenhuma força política ou institucional para ser e fazer aquilo que Javé lhe declara ser e lhe ordena fazer.

No conjunto das marcas de gênero e vocabulário, uma mensagem vai se construindo: Javé é o rei dos deuses (à luz das relações intratextuais temos de dizer que é o único Deus), é ele quem rege a corte celestial bem como todas as nações da terra. Estes dados, enfim, apontam para o caráter acentuadamente polêmico da perícope e da seção do livro de Isaías em que ela se encontra. Indicam também que autor(a) e ouvintes deste texto possuem características socioculturais de pertença a setores “intelectuais”2 da comunidade judaica, uma vez que conhecem formas de falar e escrever de tais setores. Pode-se afirmar, ainda, a possibilidade de que os ouvintes da pregação (judeus exilados) teriam adotado perspectivas e conteúdos da religião dos babilônios, necessitando ser convencidos de que a fé em Javé ainda valia a pena e, de fato, deveria ser mantida de forma exclusiva.

CONCEITOS BÁSICOS Estilo. A análise do estilo, propriamente dito, é um procedimento complexo que tem como

objeto amplos conjuntos de textos em suas formações discursivas — não se confundindo, assim, com a análise de elementos estilísticos que realizamos no estudo de perícopes. Segundo Discini: “... estilo é efeito de sentido e, portanto, uma construção do discurso. Acreditamos que esse efeito emerge de uma norma, determinada por recorrências de procedimentos na construção do sentido, desde os níveis mais profundos até os mais superficiais do percurso gerativo do sentido”.3

Argumento, argumentação. Em perspectiva sêmio-discursiva, argumentar tem um sentido mais lato do que na lógica filosófica. Argumentar é oferecer razões, motivos, crenças, sentimentos, idéias etc. que visam persuadir, fazer que a pessoa que ouve ou lê uma mensagem a aceite, considere-a válida e modifique suas crenças ou seus comportamentos a partir dela.

Retórica. É o ramo de estudos que se especializa na pesquisa sobre as formas de persuasão, entendidas em sentido amplo, incluindo os aspectos lógico, jurídico e comunicativo.

Contrato de veridicção. É o termo cunhado pela semiótica para circunscrever o espaço sociocultural de definição da validade de um discurso. A persuasão só ocorre quando enunciador e enunciatário compartilham de suficientes critérios de validade, em comum, para que cheguem a um acordo, a um consenso. Em semiótica, prefere-se o termo veridicção (dizer verdadeiramente) à palavra verdade. Como diz Diana Barros: “o enunciador não produz discursos verdadeiros ou falsos, mas constrói discursos que criam efeitos de sentido de verdade ou falsidade, que parecem verdadeiros. O parecer verdadeiro é interpretado como ser verdadeiro, a partir do contrato de veridicção assumido”.4 A pesquisa semiótica evita o termo verdade por razões estratégicas, a fim de não entrar em discussões sem fim. O que efetivamente importa na análise do texto é

2 2 A categoria de “intelectuais” pode ser usada para referir-se a pessoas que tenham atuado

como sacerdotes, profetas ou escribas, sem lhes atribuir as características socioculturais de

intelectuais de nosso tempo.

3 3 Norma DISCINI, O estilo nos textos: história em quadrinhos, mídia, literatura, p. 35s.

4 4 Diana L. P. de BARROS, Teoria do discurso: fundamentos semióticos, São Paulo: Atual, 1988, p.

94.

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se esse texto é capaz de persuadir seus leitores e leitoras, que, assim, aceitarão sua validade, veracidade e verdade. A análise do contrato de veridicção será feita mais adiante, no Ciclo 3, mas sua presença aqui é importante em virtude de seu papel no processo de persuasão.

Gênero textual (forma literária). “... os gêneros são tipos de texto que codificam os traços característicos e as estruturas dos eventos sociais, bem como os propósitos dos participantes discursivos envolvidos naqueles eventos. Assim, os gêneros textuais (orais ou escritos) constituem um ‘inventário’ dos eventos sociais de determinada instituição, ao expressarem aspectos convencionais daquelas práticas sociais, com diferentes graus de ritualização”.5 Diferentemente do que supõem alguns estudiosos, normalmente os gêneros são usados de forma híbrida e não pura, pelo que de pouco ajuda simplesmente identificar um gênero textual (ou a forma literária de uma perícope); o que importa é analisar como o gênero contribui para a constituição do sentido do texto em seu mundo-da-vida. Esta é uma área em que a semiótica ainda precisa investir mais esforço, de modo que trago contribuições de outras áreas da análise do discurso, com vistas ao avanço da teoria semiótica dos gêneros textuais (um tipo de trabalho que se insere, por exemplo, nas pesquisas de Norma Discini sobre o estilo). Do ponto de vista operacional, “descrever e explicar gêneros textuais relativamente às representações, relações sociais e identidades neles embutidas poderá servir para evidenciar que, no discurso, e através dele, os indivíduos produzem, reproduzem, ou desafiam as estruturas e as práticas sociais onde se inserem”.6

CONCEITOS OPERACIONAIS Implicitação. Ocorre quando o texto diz algo que parece não dizer, quando comunica algo

sem explicitá-lo (alguns chamam a implicitação de “ler nas entrelinhas”). São dois os mecanismos de implicitação: o pressuposto e o subentendido. Os pressupostos são implícitos que decorrem logicamente do sentido de componentes de uma sentença. Os subentendidos são insinuações presentes na sentença ou período, sem marcas lingüísticas. Os subentendidos são um recurso retórico que coloca sobre o leitor do texto a responsabilidade de sua aceitação, ou não aceitação — o leitor coloca sobre si mesmo a responsabilidade pelo conteúdo que deve ser entendido, mas não é dito na forma direta em que deveria ser dito (e.g., em Is 42:1-4, subentende-se que Javé é um deus-rei, por vocacionar o servo, ungi-lo como a um rei, dar-lhe tarefas de oficiais da corte e até de reis, investindo-o em sua função perante a corte celestial). O pressuposto, por sua vez, é uma informação implícita que, no contrato de veridicção compartilhado por enunciados e enunciatário, é considerada válida tanto pelo autor quanto pelo leitor do texto (e.g.: se a voz do céu chama Jesus de “meu Filho”, logicamente essa voz é o pai de Jesus — não “mãe”, porque, no contrato de veridicção do judaísmo da época de Jesus, Deus era concebido como figura paterna). Mediante a pressuposição, “o enunciador obriga o

5 5 Anna E. BALOCCO, “A perspectiva discursivo-semiótica de Gunther Kress: o gênero como um

recurso representacional”, em J. L. MEURER, Adair BONINI& Désirée MOTTA-ROTH (orgs.),

Gêneros: teorias, métodos, debates, São Paulo: Parábola Editorial, 2005, p. 65.

6 6 José Luiz MEURER, “Uma dimensão crítica do estudo de gêneros textuais”, em José Luiz

MEURER& Désirée MOTTA-ROTH (orgs.), Gêneros textuais e práticas discursivas: subsídios para o

ensino da linguagem, p. 28.

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enunciatário a admitir o conteúdo pressuposto, sem o que o discurso não prossegue, e não lhe dá o direito de discutir, de argumentar enfim, a partir de tal conteúdo”.7

Figuras de pensamento (dimensão sintáxica). Tradicionalmente, metáfora e metonímia têm sido definidas como figuras de palavra: a metáfora se dá quando uma palavra substitui outra, com base em alguma analogia entre essas palavras (e.g., em “Rosa de Hiroshima”, há uma analogia entre o formato da rosa e o formato da nuvem de fumaça decorrente da explosão de uma bomba atômica); um tipo específico de metáfora é o símile, que ocorre quando há uma marca lingüística da analogia (e.g. “como uma pomba”). A metonímia se dá quando uma palavra substitui outra com base em uma relação de contigüidade, de inclusão ou de interdependência entre ambas (e.g., “a cruz de Cristo nos salva”, há uma relação de contigüidade entre cruz e morte, pois efetivamente o que o texto diz é que somos salvos pela morte de Cristo, e não pela cruz enquanto tal). Um tipo específico de metonímia é chamado de sinédoque, que ocorre quando a parte é usada para expressar o tipo (e.g. “ele está de gravata hoje!”, nessa frase a gravata é a parte que representa um todo: o traje social). Metáforas e metonímias, dependendo do uso, podem se desgastar, perder seu valor retórico e se transformar em clichês.

É necessário, porém, superar essa definição tradicional através da compreensão semiótica dessas figuras de pensamento. Segundo Fiorin: “... metáfora e metonímia são procedimentos discursivos de constituição do sentido. Nelas o narrador rompe, de maneira calculada, as regras de combinatória das figuras, criando uma impertinência semântica, que produz novos sentidos. Assim, metáfora e metonímia não são a substituição de uma palavra por outra, mas uma outra possibilidade, criada pelo contexto, de leitura de um termo. Quando entre a possibilidade de leitura 1 e 2 houver uma intersecção de traços semânticos, há uma metáfora; quando entre as duas possibilidades de leitura existir uma relação de inclusão, há uma metonímia.8

Elas podem ser definidas como pertencentes ao componente sintáxico do discurso, pois são um dos mecanismos de organização do sentido, servindo como conectoras de isotopias. Analisar as metáforas e metonímias em um texto não pode, então, se restringir a nomeá-las, mas deve, isto sim, perceber como tais figuras constituem sentido e nos direcionam na interpretação do texto.

Figuras de pensamento (dimensão semântica). Além da metáfora e da metonímia, figuras sintáxicas de pensamento; existem figuras de pensamento tipicamente semânticas (funcionam na dimensão semântica do discurso, são modos diferentes de combinação de figuras e temas), tais como: antítese (estabelecimento de oposições semânticas, figurativas ou temáticas, e.g. “a boca do justo é prata escolhida, o coração dos ímpios vale pouco”, Pv 10:20); paradoxo — ou oxímoro — que ocorre quando o sentido de um trecho do texto unifica traços semânticos, temáticos ou figurativos, contrários ou contraditórios (e.g., Cremos em um só Deus, Pai, Filho e Espírito. O Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito é Deus, são, os três, um só Deus); prosopopéia, um tipo de paradoxo mediante o qual se conferem características humanas a seres não humanos (e.g., a fala da mula de Balaão em Nm 22:22ss; o apólogo das árvores em Juízes 9:8-15); e sinestesia, que é a junção de sensações de diferentes órgãos dos sentidos humanos (e.g. “como és belo, meu amado, que doçura!”, Ct 1:16, que unifica os sentidos da visão e do

7 7 Diana L. P. de BARROS, Teoria do discurso: fundamentos semióticos, São Paulo: Atual Editora,

1988, p. 101.

8 8 José Luiz FIORIN, Elementos de análise do discurso, São Paulo: Contexto, 2005, p. 118.

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olfato), visando produzir um efeito de abrangência, de totalidade — muito comum na poesia.

Dizer uma coisa para significar outra. Um último conjunto de mecanismos retóricos é o que pode ser classificado pela frase-título acima, “dizer uma coisa para significar outra”. Alguns tipos específicos desse conjunto de mecanismos retóricos são: a ironia, ou antífrase, que ocorre quando se diz algo que, de fato, se quer negar. Na fala, o tom da voz geralmente é suficiente para indicar o uso da ironia; em textos, é necessário estabelecer oposições internas para que se perceba o sentido irônico (e.g., a descrição do servo de Javé em Is 42:1-4, conforme vimos acima, ou a pergunta de Judas a Jesus, “Porventura, sou eu, mestre?”, Mt 26:25); o eufemismo, quando se quer atenuar algo cujo sentido é mais intenso e desagradável (e.g., o termo “dormir”, no lugar de “morrer”); a lítotes, quando se nega o contrário do que se quer afirmar, ou vice-versa, recurso geralmente usado por polidez, mas que tem o efeito de enfatizar, no plano do conteúdo, o que é atenuado no plano da expressão (é melhor dizer “você está forte”, do que “você está gordo!”); e a hipérbole, que é o exagero, no plano da expressão, do que é mais leve no plano do conteúdo (e.g. “eu te darei uma posteridade tão numerosa quanto as estrelas do céu e quanto a areia das praias do mar” Gn 22:17). Segundo a terminologia sêmio-discursiva, os mecanismos estilísticos e argumentativos desempenham papel crucial na persuasão de ouvintes e leitores. Sua função retórica só pode ser devidamente entendida dentro dos limites do seu mundo-da-vida e, mais especificamente ainda, no âmbito dos critérios de validade que compõem o contrato de veridicção compartilhado por enunciador e enunciatários.

EXERCÍCIOS 1. Escolha um filme e analise os mecanismos estilísticos e argumentativos que configuram

seu esforço de persuasão. 2. Escolha tipos diferentes de perícopes da Bíblia (epístolas, poesia, sabedoria, leis) e

analise os mecanismos estilísticos e argumentativos que configuram o seu esforço de persuasão.

SUGESTÕES DE LEITURA Textos didáticos

SAVIOLI , Francisco Platão &FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1996. Lições 19 a 21, p. 281-334 (argumentação); Lições 22-23, p. 337-366 (estilo).

_____. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1991. Lições 20 a 27, p. 173-249 (argumentação); Lições 36 a 39 p. 329-370 (estilo). Textos técnicos

BRANDÃO, Helena H. N. Subjetividade, argumentação, polifonia: a propaganda da Petrobrás. São Paulo: Editora UNESP, 1997.

DISCINI, Norma. O estilo nos textos: história em quadrinhos, mídia, literatura. São Paulo: Contexto, 2004.

MEURER, J. L.; BONINI, Adair &MOTTA-ROTH, Désirée (orgs.) Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

OSAKABI, H. Argumentação e discurso político. São Paulo: Kairós, 1978.

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5 Ciclo 2 Dimensão teológica da ação (parte 3): Teologia do texto 9Naqueles dias, veioJesus, de Nazaré da Galiléia, e por Joãofoi batizadonorio Jordão. 10Logo ao sairda água, viuos céusrasgarem-se e o EspíritodescendoCOMO POMBAsobre ele. 11Então foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu FILHO AMADO, em ti mecomprazo.

Marcos 1 Quando lemos um texto apressadamente, logo notamos seus possíveis “temas”; mas, sob um olhar mais cuidadoso, é comum modificar a primeira percepção. Se eu perguntasse a você sobre o que trata Marcos 1:9-11, talvez a resposta seria o batismo de Jesus, ou a unção de Jesus com o Espírito, ou o prazer que o Pai sente em relação ao Filho. Repare, porém, os destaques no texto acima: as palavras em itálico (v. 9) têm em comum o se referirem à solidariedade de Jesus; e as sublinhadas (v. 10 e 11), à vocação de Jesus, após o batismo. Em Marcos 1:9-11 encontramos dois agrupamentos de palavras, conforme as idéias que as mantêm unidas: a solidariedade (v. 9) e a vocação (v. 10-11).

Batismo, unção e prazer são conteúdos superficiais do texto, mas não os temas. São conteúdos que nos apontam para os temas e nos convidam a ler o texto com mais atenção e profundidade. Os temas de um texto são os agrupamentos de palavras e sentenças que partilham características comuns e podem ser explicadas, categorizadas ou classificadas por um tema mais abstrato. Deixe-me explicar brevemente minhas escolhas. Identifiquei a solidariedade como o tema do versículo 9, porque essa é a categoria que explica por que Jesus, não sendo pecador, se apresenta ao batismo de João. Ao ser batizado, Jesus torna pública sua solidariedade com pessoas pecadoras e impuras de seu tempo. Identifiquei o tema dos versículos 10-11 como a vocação de Jesus, porque essa é a categoria que explica a unção do Espírito e a declaração da voz celestial, que servem como declaração formal de investidura. Atente, enfim, para o fato de que, se não tivéssemos estudado as relações intertextuais e interdiscursivas da perícope, dificilmente perceberíamos que esses são os temas do relato do batismo.

A análise semântica do texto deve ser feita, então, depois da análise da interdiscursividade e da estilística e argumentação do texto, complementando-as e lhes possibilitando uma síntese final.

INTRODUÇÃO O sentido é organizado de três maneiras, sendo a terceira a organização semântica do texto em percursos temáticos (ou simplesmente temas), que são a combinação de palavras e frases debaixo de uma idéia (tema) comum, que é o representante dos discursos sociais no texto. Mesmo os textos aparentemente não temáticos (textos figurativos, como narrativas, histórias em quadrinhos etc.) são organizados em percursos temáticos, e nesse caso é preciso trabalhar ainda mais disciplinadamente para perceber os temas escondidos sob as figuras que compõem um texto.

Depois da análise das relações intertextuais e interdiscursivas, das marcas estilísticas e argumentativas, passamos ao estudo da organização das possibilidades de sentido teológico do texto. Neste nível da análise sêmio-discursiva, dizemos que o sentido está estruturado ao redor de percursos temáticos (ou percursos figurativo-temáticos), ou seja: as palavras e sentenças que formam um texto se agrupam, se articulam, ou se

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encadeiam sob uma idéia comum, um tema comum que as explique e as mantenha unidas entre si.

Chamamos de temáticos os percursos que são compostos primariamente por palavras-temas, e de figurativo-temáticos os que são compostos primariamente por palavras-figuras. Temas são palavras abstratas, que servem para explicar, classificar ou categorizar o que existe no mundo. Figuras são palavras concretas, que se referem a coisas que existem no mundo.

O relato do batismo de Jesus é um texto figurativo (composto primariamente por figuras), o que exige muito mais trabalho para descobrirmos os temas, pois em um texto figurativo os temas ficam ocultos sob as figuras que compõem o texto, e só podem ser adequadamente percebidos nos conjuntos de figuras, e não nas figuras isoladamente.

Para descobrir os percursos de um texto é necessário que sejamos capazes de abstrair do texto (palavras e sentenças, organizadas estilística e argumentativamente) as idéias que explicam o que está na superfície, ou seja, o que está presente no texto de forma menos abstrata. A identificação dos percursos pode seguir, em um texto, ou a lógica das personagens, ou a lógica da estrutura do texto, dependendo de cada texto analisado. Os percursos podem estar em seqüência, podem estar misturados, fora da ordem do texto, ou entrelaçados uns com os outros. A criatividade e complexidade do texto determinarão a lógica que deveremos seguir para identificar os seus percursos temáticos.

CICLO 2: AS PERGUNTAS Quais são as possibilidades de sentido de um texto e como elas estão organizadas 1) intertextual e interdiscursivamente; 2) estilística e argumentativamente; e 3) figurativa e tematicamente?

COMO FAZER 1. Reconheça as figuras e temas presentes no texto. 2. Identifique os percursos temáticos que organizam as figuras e temas do texto, nomeando

o tema de cada percurso. 3. Detalhe os sentidos de cada percurso presente no texto e atente para as isotopias nele

presentes. 4. Identifique o tema principal do texto — ou seja, o grande percurso que unifica os

percursos menores e dá coerência ao texto como um todo. 5. Faça uma síntese dos significados do texto, a partir do tema principal.

EXEMPLO 1 (FORMA DESCRITIVA ) Isaías 42

1 Eis o meu servo, a quem eu sustento, o meu eleito, em quem tenho prazer. Coloquei meu espírito sobre ele, justiça para as nações fará brotar. 2 Não gritará, e não levantará, e não deixará ser ouvida na rua a sua voz. 3 A cana rachada não esmagará, e a torcida bruxuleante não apagará; fielmente fará brotar a justiça. 4 Não desanimará e não será quebrado, até que estabeleça na terra a justiça e em sua lei as ilhas tenham esperança.

Reconhecendo as figuras e temas

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As palavras em itálico são temas, ou seja, são termos abstratos que explicam algo que existe no mundo. Vejamos: servo é um termo que explica a condição da pessoa chamada por Javé; sustento explica o tipo de relação que Javé mantém com o servo, assim como os termos eleito e tenho prazer. Justiça é um termo que classifica as relações entre pessoas e sociedade; fielmente é um termo que explica a relação do servo com Javé; lei é um termo que classifica certo conjunto de normas; e esperança é um termo que categoriza o tipo de expectativa que as ilhas têm. As demais palavras do texto são figuras, referem-se a coisas que existem no mundo e a ações que podem ser vistas — são termos concretos. Identificando os percursos A perícope está organizada mediante os seguintes percursos: 1) vocação libertadora (v. 1, 4b); 2) missão solidária (v. 2-3); e 3) missão perseverante (v. 4). O primeiro percurso agrupa os termos e sentenças que têm em comum a vocação do servo (lembre-se que é um texto de investidura em uma função), vocação caracterizada como justiça, lei e esperança, termos que, como vimos na análise das relações interdiscursivas, apontam para a libertação de pessoas e povos oprimidos, marginalizados. O segundo tematiza a solidariedade do servo, no cumprimento da sua missão, com pessoas oprimidas e marginalizadas, o que vimos parcialmente na análise da interdiscursividade e podemos depreender das metáforas do versículo 3. O terceiro tematiza a perseverança do servo no cumprimento de sua missão, pois ele não desanimará enquanto não cumprir a sua tarefa. Detalhando os sentidos A vocação do escravo é descrita de duas maneiras. Em primeiro lugar, pela palavra de Javé à audiência da corte celestial, no versículo 1, e, em segundo, pela retomada e ampliação dessa palavra no percurso sobre a perseverança do servo (v. 4b). É Javé quem escolhe, nomeia e instala o servo (meu). A condição paradoxal do servo perpassa o texto: embora escolhido, sustentado, ungido e chamado por Javé — sinais de dignidade e grandeza — ele é um escravo, sujeito também ao desânimo e ao desespero. É escravo, mas tratado por Javé como também se trataria a um rei (eleição, sustento, unção, proteção, instalação). O tom pessoal, relacional do texto, é ressaltado pelo uso constante dos pronomes de primeira pessoa (meu servo, meu eleito, meu espírito; eu sustento, eu tenho prazer). Como escravo de Javé, sua missão é pesada e ampla: proclamar a justiça de Javé com fidelidade, ensinar e defender a lei que transformará até os confins da terra, que têm esperança em ser libertados por Deus de sua servidão.

No cumprimento de sua missão, ele exercerá algumas funções de reis: defender a justiça, libertar os cativos; bem como de profetas e sacerdotes: proclamação e ensino da lei de Javé. Mas realizará a sua missão de forma solidária: não se aproveitará da função real para anunciar a palavra com a autoridade de um arauto do rei, como se fosse uma mensagem oficial do rei, obrigatória a todos os seus ouvintes. A cana esmagada e a torcida bruxuleante são metáforas para as pessoas sofridas, a ponto de se extinguirem, por causa da opressão e dominação a que estão sujeitas. Simbolizam, também, os exilados do povo de Javé, pagando o preço de seus pecados, mas prestes a ser perdoados e consolados por seu Deus.

A vocação e o sustento de Javé garantem que o escravo realizará a sua tarefa, por mais que esta pareça humanamente impossível. A realização da tarefa, pelo servo, claramente se dará em um ambiente de conflito e confronto — senão, não correria o risco de desanimar antes de cumprir a missão, nem precisaria do sustento de Javé. Esse ambiente conflitivo se dá tanto do ponto de vista do mundo “divino” — Javé derrotando os deuses-ídolos da Babilônia e regendo os deuses-ídolos dos persas (cf. o conjunto de temas em Isaías 40—48); quanto do ponto de vista do mundo “terrestre”, no qual o

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povo de Javé e os povos a quem o escravo direciona sua missão estão subjugados ao império babilônico (são canas esmagadas, torcidas bruxuleantes).

Um termo técnico que a semiótica usa para indicar as diferentes dimensões de sentido de um texto é isotopia. Isotopia é um direcionamento da leitura que o texto apresenta aos seus leitores, a partir dos seus percursos temáticos. Identifiquei nos parágrafos anteriores as seguintes isotopias: 1) teológica, o texto versa a respeito de Deus e dos conflitos teológicos de seu tempo; 2) vocacional, o texto descreve a vocação do servo e sua missão em termos derivados das funções religiosas da época; 3) pessoal, o texto registra os sentimentos e as atitudes do servo; e 4) política, o texto estampa tanto a opressão causada pelo império babilônico aos exilados e demais povos, como a libertação divina. Prestar atenção a este tipo de detalhes nos ajuda a não fazermos leituras reducionistas do texto bíblico, bem como nos impede de enxergar no texto sentidos que nele não estão presentes. Por fim, facilita o nosso trabalho nos ciclos que ainda vêm à frente. Porque um texto possui vários sentidos (polissemia), mas não qualquer sentido, é que precisamos nos deixar ser dirigidos pelo próprio texto na sua interpretação. Identificando o tema que dá coerência ao texto Que grande tema unifica os temas da vocação libertadora, missão solidária e perseverante? Podemos usar dois termos bíblicos para nomear esse tema: êxodo ou libertação. O termo êxodo é mais sugestivo, evocativo; enquanto o termo libertação é mais explicativo. Ambos, porém, retratam a libertação de pessoas de um regime de opressão para iniciar uma nova vida em comum, sob a vontade e direção de Javé. Repare que neste nível da análise estamos buscando por um tema realmente bastante abstrato, pois este tema que dá unidade e coerência ao texto é o elo mais profundo que liga o texto ao seu mundo-da-vida e nos ajuda a localizar o texto nas formações discursivas desse mundo-da-vida. Elaborando uma síntese Podemos entender a missão do escravo de Javé como a libertação dos escravizados pelo império babilônico: Israel e também outras nações — um novo êxodo anunciado por Javé e concretizado com a mediação do escravo (como o antigo escravo Moisés) — que é uma versão ampliada do antigo êxodo dos hebreus do Egito. Um novo êxodo que traz uma nova justiça, uma nova lei e uma nova esperança em escala global, universalizando a justiça, a lei e a esperança que Israel, no passado, vivenciou e representou; da qual se afastou e por isso foi punido por seu Deus, mas está prestes a ser novamente restaurado para glorificar seu Senhor na terra.

EXEMPLO 2 (FORMA DISSERTATIVA ) Marcos 1 9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo. Em vez de seguir passo a passo, apresento a análise de Marcos 1:9-11 na forma de um comentário do texto, organizado ao redor do seu tema central: a messianidade (a identidade messiânica) de Jesus.

A primeira característica da identidade messiânica de Jesus é a filialdade fiel ou fidelidade filial. Ele é chamado de filho (1:11b) pela voz do céu. É interessante destacar que é o próprio Pai de Jesus quem “cita” as Escrituras: “Tu és o meu filho amado

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(único),1 em ti tenho prazer”. A forma da citação merece destaque, pois se dá junção de pelo menos três passagens: Gênesis 22:2 (12,16), Salmos 2:7 e Isaías 42:1. O que esse sincretismo textual conta sobre a identificação de Jesus como filho de Deus?

Como filho amado/único — o novo Isaque — ele encarna o verdadeiro Israel, na condição daquele que irá sofrer pelo povo, tal como um cordeiro pascal: como Isaque, o cordeiro pascal, e servo sofredor, Jesus dará pleno prazer ao Pai nos céus somente quando enfrentar um embate brutal como nada menos do que a própria morte. Não é à toa que a última ocorrência da expressão, no evangelho de Marcos, se dá na voz terrestre do centurião romano que declara ser Jesus verdadeiramente o Filho de Deus. A voz celestial e a voz terrestre confirmam a filiação de Jesus, ambas destacando sua trajetória da morte para a glorificação.

Essa interpretação é reforçada pela citação de Isaías 42:1. O filho do Pai celestial age como o servo de Javé, não só como aquele que traz justiça a Israel e a todas as nações, mas também como aquele que é rejeitado, sofre e morre para cumprir sua vocação e missão. Se, na citação de Gênesis 22, Jesus é apresentado como o novo Isaque, agora ele é exposto como novo profeta e novo Moisés, o servo que dirige o povo de Israel em seu novo êxodo, mas o faz de forma solidária, e solidária até a própria morte.

A citação de Salmos 2:7 caracteriza Jesus como o novo Davi. A dimensão régia da identidade messiânica de Jesus é qualificada pelas identificações anteriores derivadas da citação sincrética. Este é um rei que efetivamente governa como libertador dos pobres, e não como conquistador das nações, o que é demonstrado no evangelho pelas ações de Jesus, mas também pela interpretação que o próprio Jesus faz dessas ações em Marcos 10:35-45. Vimos, na interdiscursividade, a importância do servo de Javé, em Isaías 40—55, para a construção da identidade de Jesus. Este novo rei é um rei-servo, veio para servir, e não para ser servido.

O Messias, filho/servo fiel ao Pai é, simultaneamente, solidário com pessoas impuras e pecadoras. Em Marcos, o batismo de Jesus é a primeira ação concretizadora dessa solidariedade: ele desce da Galiléia e se apresenta para ser batizado (note o contraste entre a fala de João sobre Jesus [Mc 1:2ss] e a submissão voluntária de Jesus ao batismo). Ao ser batizado, Jesus assume simbolicamente a condição de pecador, de pessoa impura, de membro do povo que precisava da salvação e da vinda do Messias. Essa solidariedade messiânica é também marco de esperança, pois, na sua pecaminosidade simbólica, o Messias afirma a pecaminosidade do sistema que mantém o povo judeu sob servidão, e torna iminente a sua destruição.

No espaço-tempo da crítica profética ao judaísmo oficial de seu tempo, Jesus encena uma nova atitude messiânica, e se qualifica como o Messias por se identificar com as pessoas impuras e pecadoras. O tema que deriva desta atitude de Jesus é a sua frontal oposição à identidade legitimadora do judaísmo oficial de seu tempo. A oposição pureza-impureza é, neste episódio, invertida totalmente — o Messias, que deveria ser completamente puro, assume a condição de pessoa impura e pecadora, apresentando-se ao batismo de João. O poderoso ungido de Deus se humilha e demonstra, por sua nova 1 1 À luz da tradição judaica sobre Isaque, o termo agapêtós deve ser entendido na dupla

acepção de filho amado e único. Veja, entre outros, J. D. LEVENSON, The Death and Resurrection

of the Beloved Son: The Transformation of Child Sacrifice in Judaism and Christianity (New

Haven: Yale University Press, 1993). Leve-se em consideração também que “no grego da LXX,

quase metade de todos os usos de agapêtos, ‘amado’, com ‘filho’, significa ‘único’ ” (C. S.

MANN, Mark: A new translation with introduction and commentary, New York: Doubleday,

1986, p. 201).

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prática, que uma nova esperança messiânica era necessária. Os caminhos de Deus, uma vez mais, iriam surpreender seu povo.

Três são, portanto, as características da messianidade de Jesus: fidelidade filial ao Pai, solidariedade com pessoas impuras e pecadoras, e oposição à religião oficial. Não é à toa que Jesus era escândalo para os judeus e loucura para os gregos — e continua assim até hoje!

CONCEITOS BÁSICOS Figuras. Palavras que se referem a coisas que existem no mundo, seja o real, seja o

imaginário do texto. Também chamadas de termos concretos. Sozinhas, as figuras não têm sentido, mas na forma de percursos, ocultam temas, ou seja, revestem idéias abstratas de formas concretas.

Temas. Termos que explicam, classificam ou categorizam as figuras. Também chamadas de termos abstratos. São as idéias, os conceitos, as noções significadas no texto. Os temas do texto também são encadeados em percursos, que são “temas dos temas”, ou seja, explicam, classificam ou categorizam os temas do texto.

Isotopia. Direcionamento da leitura do texto, com base na repetição, na recorrência de uma temática nele presente. Certas palavras, ou frases, nos textos, indicam as diferentes isotopias em que um texto pode ser lido, e são chamadas de desencadeadores de isotopias.

Polissemia. Literalmente, “pluralidade de sentidos”. Todo texto possui mais de um sentido, porém não significa qualquer coisa que nele queiramos encontrar. A polissemia textual é controlada pela organização sintática do texto e é analisada mediante a identificação das isotopias temáticas do texto.

Semântica. Como termo técnico, pode se referir a um dos campos da Lingüística, que estuda o sentido das palavras. Na exegese, normalmente se refere à análise do significado de palavras ou de todo o texto.

CONCEITOS OPERACIONAIS Percursos temáticos e figurativos. Todo texto é composto por figuras e temas. Um

percurso é o encadeamento das palavras que compõem o texto, definido por uma recorrência temática que dá unidade e coerência ao conjunto. Se o texto é predominantemente figurativo, o percurso é figurativo-temático; se predominantemente temático, apenas percurso temático. Analisar semanticamente um texto exige a identificação, a nomeação e o detalhamento dos percursos em que o texto está organizado. Para simplificar, usa-se apenas o termo percurso.

O que figuras como janela, porta, fechadura, sala-de-estar, quarto, banheiro têm em comum?. O que dá coerência a essa lista é o tema moradia. Se, porém, a lista fosse: janela, porta, fechadura, caixa registradora, sala-de-estar, quarto, banheiro — não haveria coerência, pois moradias não se caracterizam por possuir caixas registradoras. O mesmo ocorre com textos temáticos (leia Gl 5:19-21 e depois 22-23). São textos temáticos que já sugerem a definição dos percursos. Nos primeiros versículos, as obras da carne; nos demais, o fruto do Espírito. O que dá unidade e coerência às listas de ações e valores nesses versículos são, respectivamente, a impiedade e a santidade.

Unidade e coerência temáticas. Um texto pode ser constituído por um ou mais percursos. Qualquer que seja o número desses percursos, porém, um texto só terá sido bem formulado se tiver unidade e coerência entre os seus percursos. Na terminologia semiótica, o tema mais abstrato que dá unidade e coerência a um texto é denominado de estrutura fundamental, ou de quadrado semiótico. Em uma linguagem mais conhecida, poderíamos dizer que os percursos correspondem aos sub-temas do texto, enquanto a estrutura fundamental, ou o quadrado semiótico corresponde ao tema principal do texto.

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O procedimento para identificar a estrutura fundamental de um texto é semelhante ao usado para identificar os percursos: há que se descobrir qual é a noção mais abstrata que encadeia e dá unidade aos diferentes percursos que compõem um texto. Voltemos ao exemplo de Gálatas 5:19-23. Vimos dois percursos: o da impiedade e o da santidade. Qual é o tema que unifica e dá coerência a esses percursos? O tema da espiritualidade, ou da vida cristã.

Entende-se, ainda, que a natureza da estrutura fundamental seja a de um conflito semântico. Espiritualidade, por exemplo, é o contrário de carnalidade, e o texto de Gálatas defende uma vida baseada na espiritualidade, e não na carnalidade. Todo texto, então, tem como seu tema principal um conflito semântico, que é a ligação mais profunda que o texto tem com o seu mundo-da-vida, que se constitui mediante a pluralidade de formas conflitivas de explicar a realidade que existem em dada sociedade. Na teoria semiótica padrão, a forma (a sintaxe) da estrutura fundamental é a do quadrado semiótico. Por razões práticas, optei por não trabalhar com esse conceito, muito útil para a compreensão de textos. Caso queira utilizá-lo, recomendo a leitura dos textos técnicos sugeridos ao final do capítulo.

Detalhamento dos sentidos. Em alguns manuais, essa ação é chamada análise semântica ou de comentário, ou análise do conteúdo. Trata-se de compreender e explicar os sentidos das unidades parciais que formam cada percurso do texto (a partir da definição da noção mais abstrata que une os termos que compõem um percurso). O princípio básico para realizar o detalhamento pode ser descrito com este axioma da semântica: “O sentido de uma palavra, na oração, é a menor contribuição dessa palavra ao sentido da oração”; axioma que pode ser ampliado para: “O sentido de uma sentença, num período, é a menor contribuição dessa sentença ao sentido do período”, e assim sucessivamente.

Vejamos um exemplo: “A casa branca foi atacada por mísseis teleguiados”. Casa branca pode ter mais de um sentido: pode se referir a uma casa qualquer, da cor branca; ou pode se referir à sede do governo dos Estados Unidos da América. Na sentença acima, a menor contribuição de “casa branca” ao sentido da sentença é dada pelo sentido “sede do governo” norte-americano, pois dificilmente alguém atacaria uma casa branca qualquer com mísseis teleguiados. Este axioma é o corretivo fundamental para um erro infelizmente muito comum na interpretação da Bíblia: o erro que James Barr chamou de transferência ilegítima da totalidade. Muita gente, ao ler um texto bíblico, procura colocar nas palavras do texto o maior número possível de sentidos que essa palavra pode ter na Bíblia como um todo. Toda palavra é polissêmica, mas o sentido de uma palavra, em um texto, é determinado exclusivamente pelo próprio texto, na forma do axioma ora descrito. Não se pode atribuir a uma palavra, numa perícope, todos os sentidos que essa palavra recebe no léxico, ou no dicionário teológico.

Não custa lembrar que o sentido do texto não é a soma do sentido de suas partes, mas sim o sentido do todo do texto. O movimento para a compreensão dos sentidos de um texto começa com o todo e desce para as partes. O detalhamento do sentido é um procedimento aplicado ao estudo das partes do texto, o que deve ser feito somente depois do estudo do todo do texto — o que inclui as análises que estudamos nos dois últimos capítulos: a das relações intertextuais e interdiscursivas, e a dos elementos estilísticos e argumentativos. Segundo a terminologia semiótica, o sentido está organizado no texto por meio de percursos temáticos e/ou temático-figurativos, estes, por sua vez, são unificados por um percurso mais abstrato e abrangente, chamado na teoria semiótica greimasiade estrutura fundamental ou quadrado semiótico. Uma vez que o sentido caminha na direção do todo para as partes e se concretiza mediante a união da forma com o conteúdo, a parte final do estudo semântico do texto é a análise de sua organização.

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EXERCÍCIOS 1. Escolha um filme e analise seus percursos temáticos, incluindo o grande tema que lhes

dá coerência. 2. Escolha tipos diferentes de perícopes da Bíblia (epístolas, poesia, sabedoria, leis) e

analise seus sentidos.

SUGESTÕES DE LEITURA Textos didáticos

DISCINI, Norma. A comunicação nos textos. São Paulo: Contexto, 2005. Lições 5, 6 e 8 a 10, p. 183-241; 269-358.

SAVIOLI , Francisco Platão &FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1996. Lições 5 a 11, p. 75-170.

_____. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1991. Lições 5, 8 a 15, p. 45-53; 71-135. Textos técnicos

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990. Capítulo 4, p. 53-67.

FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2005 (13a. Edição revista e ampliada), p. 55-118.

TATIT, Luiz. Análise semiótica através das letras. São Paulo: Ateliê, 2001. O livro todo.

6 Ciclo 3 Dimensão sociocultural da ação (parte 1): Narratividade

9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo.

Marcos 1 Preste atenção às frases em itálico, pois elas são as primeiras pistas para a análise da dimensão sociocultural da ação no texto de Marcos. Mas só conseguimos perceber que elas são pistas para essa análise por causa de nosso conhecimento enciclopédico (seja o anteriormente constituído, seja o adquirido ao analisarmos as relações intertextuais e interdiscursivas do texto), que prepara o terreno para este aspecto da interpretação do texto. Sabemos que a Galiléia era politicamente separada da Judéia e social, religiosa e culturalmente marginalizada pelo judaísmo oficial. João, que realiza o batismo de Jesus, o faz em um local fora das margens da instituição religiosa oficial, e ele mesmo não tem autoridade institucional para fazê-lo. A voz dos céus, que investe Jesus do papel messiânico, também está pronunciada fora do lugar institucional esperado — o templo. A dimensão sociocultural da ação inclui a atitude, a posição, a maneira como o texto descreve, aceita, modifica ou critica as diferentes dimensões da vida humana em coletividade. Mencionei as dimensões política, religiosa, cultural e social; poderíamos acrescentar as dimensões econômica e jurídica, que compõem o amplo espectro da vida em sociedade.

Neste momento da exegese, precisamos tomar alguns cuidados especiais:

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1. Evitar que a leitura se transforme em uma tentativa de análise da sociedade, da cultura, da política etc. da época em que o texto foi escrito. Esse tipo de análise deve ser feito com outros métodos e com outras fontes de estudo. É claro que o texto bíblico pode contribuir para a análise da realidade social, econômica etc., mas nossa prioridade ao ler o texto, com este método, é compreendê-lo.

2. Evitar anacronismos (atribuir a uma época da história o que pertence a outra época da história) em nossa maneira de compreender a relação do texto com sua época, pois as sociedades antigas eram diferentes da nossa. Uma das principais diferenças precisa ser aqui ressaltada: nos tempos bíblicos, a realidade não era entendida da mesma forma compartimentada que nós fazemos. Não se faziam distinções classificatórias entre política e religião, economia e religião, sociedade e cultura, racional e mítico etc. Isto exige que nos esforcemos para não reduzir os sentidos do texto a uma ou outra dessas dimensões da vida, e para não julgarmos o texto à luz de nossas concepções de racionalidade.

3. Evitar enxergar no texto as nossas próprias experiências, expressões e instituições da fé cristã (ou da judaica), pois, por mais que a nossa fé seja “bíblica”, ela não é idêntica à testemunhada na Bíblia.

4. Evitar a uniformização dos arranjos socioculturais ao longo de todo o período em que a Bíblia foi escrita, pois as sociedades orientais e ocidentais daqueles tempos passaram por diferentes processos de mudança.

5. Evitar o uso de critérios atuais de avaliação da vida em sociedade. Podemos analisar criticamente a dimensão sociocultural dos textos (seja em perspectiva de gênero, de raça, ideológica, ética, cultural etc.), mas é necessário usar critérios que sejam justos para o texto e seu mundo-da-vida.

Este ciclo também foi dividido em dois capítulos. Neste, enfoco o caminho de análise fornecido pela narratividade e, no próximo, o caminho da interdiscursividade. Ressalto, por fim, que o caminho da narratividade é preliminar ao da interdiscursividade, ou seja, a análise da dimensão sociocultural da ação só se completa com a aplicação dos dois tipos de procedimentos — que são separados neste livro apenas por razões didáticas.

INTRODUÇÃO Há dois caminhos para analisar a dimensão social da ação em perspectiva sêmio-discursiva. O primeiro é moldado pelo próprio texto, e o conceito teórico que o fundamenta é o da narratividade. Diferentemente da narração, ou narrativa (um tipo de texto), a narratividade é uma dimensão de todo e qualquer texto, responsável pelas transformações dos sujeitos e pela busca de valores e da produção do sentido social.

Como analisar a narratividade textual? Toda ação é concebida como um fazer-transformador de estados e pode ser assim analisada. Por exemplo, na sentença “Jesus veio de Nazaré”, o agir de Jesus indicado pelo verbo veio produz transformação no sujeito Jesus: antes, ele não estava no rio Jordão; agora, ele está lá. Para realizar uma ação, o sujeito necessita de intencionalidade e competência, características tanto pessoais quanto sociais. A intencionalidade engloba tanto a motivação para agir, quanto os objetivos da ação, pois quem age sempre o faz em busca de um objetivo, movido por um dever, ou por um querer. Entendendo a motivação como pessoal e social, a semiótica lhe dá o nome de manipulação. Se Jesus foi para o Jordão, é porque ele devia sair de Nazaré para realizar algum objetivo (o objetivo mais superficialmente evidente, no relato marcano, é o de ser batizado).

A intencionalidade, porém, não é suficiente para dar conta da ação. É necessário que o sujeito seja capaz de realizar a ação desejada, que tenha competência para agir. Na linguagem semiótica, a competência se desdobra em saber-fazer e poder-fazer, que

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sintetizam todas as competências reais de pessoas no mundo. O alvo da ação é denominado objeto-valor, e o que é necessário para alcançar o alvo, objeto-modal. Dever, querer, poder e saber simulam todas as motivações e competências que, no mundo real, mobilizamos para agir. A busca de objetos-valor representa, sêmio-discursivamente, as buscas pessoais e sociais por realização, os conflitos socioeconômicos, políticos etc.

A ação realizada é denominada performance, que se desdobra em um fazer-ser (opera transformação no sujeito da ação) e em um fazer-fazer (efetua transformação na relação do sujeito com o objeto-valor). Uma vez realizada, a ação terá sido bem-sucedida ou não, o alvo terá sido alcançado ou não. Ou seja, a ação será avaliada, receberá (na linguagem semiótica) uma sanção, que pode ser positiva ou negativa. Estes quatro elementos compõem o que se chama, então, de percurso narrativo canônico — um simulacro (modelo) da ação humana em sociedade. A narratividade, portanto, é esse movimento, percurso, que vai da intencionalidade (manipulação e objetivo) à sanção, passando pela competência e performance.

PERCURSO NARRATIVO CANÔNICO

Manipulação Competência Performance Sanção Querer-fazer Saber-fazer Querer-fazer Positiva Dever-fazer Poder-fazer Fazer-fazer Negativa

Por fim, o percurso narrativo canônico é composto por três percursos: o do sujeito da ação (que se desdobra em percurso do fazer e em percurso passional, que será objeto de análise no próximo ciclo), o percurso do destinador-manipulador (que instaura a intencionalidade da ação) e o percurso do destinador-julgador (que sanciona a performance). Sujeito e destinadores são construções teóricas, representam sêmio-discursivamente diferentes atores pessoais ou sociais. Em um texto, podem representar pessoas ou instituições diferentes, ou estar sincretizados em uma pessoa textual.

Novamente uma advertência é necessária. A descrição sêmio-discursiva da ação é um simulacro, um modelo explicativo da ação e não uma cópia da ação real. Visa explicar como o texto dá sentido à ação em interação com o seu mundo da vida, não explica a ação realizada fora do texto.

CICLO 3: DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA AÇÃO Como o texto, em interação com seu mundo-da-vida, dá sentido à ação sob a perspectiva 1) da sociedade, 2) da cultura e 3) da religião?

COMO FAZER 1. Identificar as performances principais e seus respectivos percursos narrativos canônicos. 2. Identificar, a partir do percurso narrativo canônico, os objetos-valor em disputa. 3. Analisar a presença do mundo-da-vida (sociedade, cultura e religião) na narratividade. 4. Elaborar uma síntese.

EXEMPLO 1 (FORMA DESCRITIVA ) Marcos 1 9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo.

1. Poderíamos analisar todos os percursos presentes no texto, dirigindo a atenção a todas as performances, ou seja, estudando cada verbo de ação da perícope. É melhor, porém, concentrar esforços na performance principal do texto; neste caso, o batismo de Jesus por João. Uma característica interessante do texto é que, embora João tenha

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realizado o batismo, a ação é descrita com o verbo na voz passiva, deslocando o foco da atenção de João para Jesus, por isso analiso a performance “batismo” tendo Jesus como sujeito e João como destinador-manipulador.

Manipulação Competência Performance Sanção Dever-ser Saber-ser Fazer-ser Positiva

(Pressuposto) (Pressuposto) Foi batizado Espírito descendo e fala da voz dos céus 2. O batismo provoca uma mudança na pessoa de Jesus (fazer-ser), que é sancionada

positivamente no texto pela descida do Espírito e pela declaração da voz do céu. Já sabemos que o batismo de Jesus representou sua investidura, pelo Pai, como o Messias esperado por Israel. Neste sentido, o batismo deve ser entendido como um objeto-modal, pois ele outorga competência ao Filho para realizar sua missão — esta é o objeto-valor.

3. O relato de Marcos não explicita a competência e a manipulação, pelo que devemos reconstruí-las mediante um raciocínio de pressuposição lógica. Se o batismo era um ato de arrependimento e solidariedade, preparatório para a missão, a manipulação primordial tinha a forma de um dever-fazer (a partir das relações intratextuais, podemos inferir que este dever foi instaurado pela pregação de João, descrita na perícope imediatamente anterior à do batismo), e a competência primordial, a forma de um saber-fazer (Jesus precisava saber quem era João, onde e por que ele batizava).

A performance de Jesus é sancionada positivamente pelo Pai celestial que envia o Espírito Santo (unge o Filho) e declara a sua messianidade (Filho amado que dá prazer ao Pai). Como destinador-julgador, o Pai estabelece a validade da identidade messiânica de Jesus, investindo-o efetivamente no cargo. Se voltarmos novamente nossa atenção às relações intratextuais, perceberemos que, logo após a perícope do batismo, vem a da tentação de Jesus (Mc 1:12-13), na qual também ele é sancionado positivamente pelo Pai (ao ser servido por anjos e conviver com as feras), que é seguida, por sua vez, pela perícope que descreve o início do ministério messiânico de Jesus (Mc 1:14-15), na qual a sanção não é explicitada. Podemos, então, ver Marcos 1:2-15 como um grande percurso narrativo: a pregação de João funciona como manipulação, batismo e tentação são performances doadoras de competência, que se concretiza na performance principal: a realização da missão messiânica, tudo sancionado positivamente pelo Pai celestial.

4. Resumidamente, podemos notar: a norma social de que para se realizar um ofício público é necessário ser investido nesse ofício; a prática (ritual) religiosa do batismo, o valor e a prática cultural da solidariedade com pessoas impuras e pecadoras. Na busca de seu objeto-valor (a missão messiânica), Jesus entra em conflito com as outras buscas por esse mesmo objeto-valor em seu tempo, delas se diferenciando basicamente por sua escolha de um espaço-tempo não institucional para a investidura e início do ministério messiânico. Isto, enfim, exige que voltemos nossa atenção aos discursos concorrentes sobre a missão messiânica na época do texto — procedimento que estudaremos no próximo capítulo deste Manual.

EXEMPLO 2 (FORMA DISSERTATIVA ) Isaías 42

1 Eis o meu servo, a quem eu sustento, o meu eleito, em quem tenho prazer. Coloquei meu espírito sobre ele, justiça para as nações fará brotar. 2 Não gritará, e não levantará,

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e não deixará ser ouvida na rua a sua voz. 3 A cana rachada não esmagará, e a torcida bruxuleante não apagará; fielmente fará brotar a justiça. 4 Não desanimará e não será quebrado, até que estabeleça na terra a justiça e em sua lei as ilhas tenham esperança. Procuramos pelas marcas lingüísticas da construção do sentido da “sociedade”

(aquela dimensão do mundo da vida especializada nas ordens legítimas de relacionamentos humanos), e encontramos: 1) no vocabulário da perícope: serviço/escravidão, justiça, nações, dominação/libertação, lei e ilhas; 2) a partir do gênero textual: investidura, ofício do arauto. Quanto à construção do sentido da “cultura”, o vocabulário da perícope nos apresenta os valores da solidariedade, fidelidade, perseverança e esperança. Por fim, quanto à “religião” (excluindo os conceitos teológicos): o vocabulário da unção e ofício profético, somado à estrutura de poder soberano, derivada do gênero textual e da intratextualidade. Conforme adverti anteriormente, no mundo-da-vida da época do texto, as distinções entre essas dimensões são insuficientes para dar conta da unidade das mesmas, do seu caráter sincrético. Desta maneira, o uso dos termos aqui é meramente operacional.

O texto de Isaías 42:1-4 (no conjunto de suas relações intratextuais e também interdiscursivas) nos apresenta uma sociedade marcada por intenso conflito — que podemos denominar como uma situação de dominação. É situação de dominação porque nela estão ausentes a justiça e a lei que, para o povo judeu, eram os termos que representavam as relações e as ordens legítimas da sociedade. O vocabulário que servia para legitimar a situação de dominação foi apropriado e subvertido pelo texto, que retrata o escravo como portador da justiça e da lei, os dominados como aqueles que serão, pela pregação do escravo-profeta, desafiados a resistir à dominação e depositar sua esperança em uma sociedade nova, caracterizada pela ausência de dominação.

O texto de Isaías é, então, um texto subversivo, na medida em que se apropria criticamente das formas de legitimação usadas pelo Império Babilônico para manter sua dominação sobre os povos conquistados, confronta-as com as formas de legitimação derivadas da fé em Javé e oferece, assim, uma possibilidade de resistência contra a dominação, além de anunciar que esta chegará ao fim mediante a obra de Ciro, que será usado por Javé para pôr fim à dominação babilônica (conforme se depreende das relações intratextuais). O escravo de Javé, que será instrumento para mobilizar a resistência das pessoas dominadas, está fora das instituições monárquicas: não é servo do rei, do templo, ou do exército; não é arauto da corte que proclama mensagem com a força político-militar que coage seus ouvintes a aceitá-la; não é servo dos deuses babilônios, que legitimavam a ordem dominadora, mas servo de Javé; embora seja um dos judeus, não restringe seu anúncio ao seu próprio povo, mas sua mensagem alcançará também outros povos, mesmo os mais distantes.

Defende, portanto, um exercício comunicativo do poder, baseado em relações justas (o conceito veterotestamentário de justiça usado aqui será mais bem descrito no próximo capítulo), solidárias (nas quais as pessoas mais fracas não são usadas apenas para o benefício das mais fortes) e libertadoras, que geram esperança, esperança que faz sonhar e agir em busca de formas melhores de viver.

Pressuposto pelos termos justiça e lei está o conceito de aliança, que também é uma apropriação crítica do vocabulário da dominação, pois que os povos conquistadores legitimavam suas conquistas mediante tratados (alianças) de vassalagem com os povos subjugados. A aliança, neste caso, não é entre soberano e súditos humanos, mas uma

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aliança entre iguais. A resistência diante da dominação, porém, exige perseverança, pois se reconhece o caráter intenso, opressor, da situação, e não se diminuem os riscos da reação contra os dominadores.

Por fim, é a fé (religião) que dá sustentação e legitimidade à reação contra a dominação. Como já vimos no estudo da dimensão teológica da ação, o ritual religioso da investidura com unção é apropriado e desinstitucionalizado, de modo tal que o escravo investido na função libertadora encontra a sua legitimidade apenas no Deus que o elegeu, chamou e sustenta, e na aceitação de sua mensagem e ação pelas pessoas dominadas. Contra os deuses da dominação, com seus rituais de legitimação do rei praticados freqüentemente nos festivais de ano novo, a pregação do Isaías do exílio é legitimada apenas pela palavra de Javé. Como veremos na análise das formações discursivas, no próximo capítulo, aos ritos legitimadores da religião oficial do Império, o texto de Isaías contrapõe a palavra poderosa de Javé, única realmente legítima, cuja veracidade pode ser comprovada pela memória histórica das ações libertadoras de Javé, sustentando, assim, a resistência e a esperança.

CONCEITOS BÁSICOS Narratividade. “Parte-se de duas concepções complementares de narratividade:

narratividade como transformação de estados, de situações, operadas pelo fazer transformador de um sujeito, que age no e sobre o mundo em busca de certos valores investidos nos objetos; narratividade como sucessão de estabelecimentos e de rupturas de contratos entre um destinador e um destinatário, de que decorrem a comunicação e os conflitos entre os sujeitos e a circulação de objetos-valor.”1

Objeto-modal e objeto-valor. São os objetos com os quais os sujeitos da narratividade mantêm relação, seja de conjunção, seja de disjunção. Os objetos-valor são aqueles efetivamente almejados pelos sujeitos, e os modais são os necessários para que o sujeito entre em conjunção com o objeto-valor. Adverte José Luiz Fiorin: “... não se pode confundir sujeito com pessoa e objeto com coisa. Sujeito e objeto são papéis narrativos que podem ser representados num nível mais superficial por coisas, pessoas ou animais”.2

Destinador-manipulador. O sujeito sêmio-discursivo que motiva outro sujeito para realizar uma performance. Sendo um papel narrativo, o destinador-manipulador pode ser representado no nível temático-figurativo do texto por uma pessoa, uma pregação, um sentimento, uma instituição social etc. Como simulacro narrativo da motivação, a semiótica sintetiza a manipulação como um dever-fazer ou um querer-fazer. A manipulação pelo dever-fazer se desdobra em intimidação (o manipulador faz com que o sujeito deva fazer algo sob pena de receber uma punição) e provocação (o manipulador faz com que o sujeito deva fazer algo para evitar ser julgado negativamente). A manipulação pelo querer-fazer se desdobra em tentação (o manipulador leva o sujeito a querer-fazer algo em busca de uma recompensa) e sedução (o manipulador leva o sujeito a querer-fazer algo para confirmar um juízo positivo que recebeu). Atente para o fato de que estes termos não são usados com o seu sentido normal, cotidiano, nem com o sentido teológico, no caso da tentação. Exemplos de manipulação: a) tentação: “se você se casar com minha filha, receberá uma rica herança”; b) sedução: “já que você é um cara legal, que tal me emprestar uma grana?”;

1 1Diana L. P. de BARROS,Teoria do discurso: fundamentos semióticos, p. 26.

2 2Elementos de análise do discurso, p. 29.

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c) intimidação: “se você se casar com minha filha, serei seu eterno inimigo”; e d) provocação: “se você fosse mesmo uma pessoa santa, não mentiria para mim”.

Destinador-julgador. O sujeito sêmio-discursivo que constata a realização da performance e a sanciona de forma positiva ou negativa. A sanção desdobra-se em cognitiva e pragmática. Como papel narrativo, o destinador-julgador modifica o ser do sujeito da ação, seja reconhecendo o seu valor (sanção cognitiva positiva), seja lhe recompensando (sanção pragmática positiva), e vice-versa. A sanção pragmática sempre pressupõe a cognitiva, pois sem o reconhecimento (positivo ou negativo) do sujeito, este não pode receber recompensa, nem punição.

CONCEITOS OPERACIONAIS Percurso narrativo canônico. Uma seqüência de quatro fases, ordenadas entre si mediante

encadeamento lógico, que simula a construção social do sentido e a busca social por valores. Todo e qualquer texto tem, na sua narratividade, um ou mais percursos canônicos, embora nem todas as fases do percurso estejam explicitadas — quando não, devemos pressupô-las na análise. Suas quatro fases são: manipulação, competência, performance e sanção.

Sociedade.“Consiste nas ordens legítimas através das quais os participantes na comunicação regulam as suas filiações em grupos sociais e salvaguardam a solidariedade.”3 Distingue-se da cultura principalmente pelo caráter legitimador de seus conteúdos, ou seja, por definir que tipos de comportamentos, que papéis sociais, que relações pessoais etc., são legítimas, podem ser realizadas. O sistema de parentesco, por exemplo, é um componente da sociedade, pois legitima que tipos de relacionamentos podem ser efetuados entre parentes, e também entre não parentes (o incesto é uma das normas sociais presente em quase todos os mundos-da-vida). Aspecto fundamental da “sociedade”, então, é a noção de poder e seus conflitos, uma vez que, na ocorrência de conflitos de poder, sempre há também distintos jogos de legitimação da situação. Legitimidade é, então, um termo relativo ao seu sujeito, à sua formação discursiva, pois ordens sociais que para uns são legítimas, para outros não o serão.

Cultura. “Cultura é aquilo que definimos como reserva de conhecimento à qual os participantes na comunicação, ao entender-se uns com os outros, vão buscar as suas interpretações.”4 Distingüe-se da sociedade pelo fato de não se ocupar das legitimações, mas ser composta de noções mais abstratas — valores, idéias, princípios, que estão na base das legitimações.

Religião. O acervo de conhecimentos, valores, práticas e rituais considerados sagrados, mediante o qual, os participantes da interação social produzem sentido último, com pretensão de universalidade, para a vida humana. Para efeitos da exegese, neste ciclo excluímos os conhecimentos religiosos (teologia), já analisados no segundo ciclo. A distinção entre esses componentes do mundo-da-vida (sociedade, cultura e religião) não deve ser entendida de forma rígida, pois na realidade social existem interligados e na prática não é possível atribuir cada conteúdo simplesmente a este ou aquele componente. Religiões concretas, por exemplo, não são compostas apenas por elementos da “religião”, mas também incluem elementos da “cultura” (noções sobre o

3 3 Jürgen HABERMAS, “Acções, actos de fala, interacções linguisticamente mediadas e o mundo

vivo”. Em Racionalidade e Comunicação. Lisboa. Edições 70: 2002, p. 139.

4 4 Jürgen HABERMAS, “Acções, actos de fala, interacções linguisticamente mediadas e o mundo

vivo”. Em Racionalidade e comunicação. Lisboa. Edições 70: 2002, p. 139.

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mundo, a vida, o bem etc.) e da “sociedade” (o conceito de pecado, por exemplo, tem uma função legitimadora negativa).

Poder. “Max Weber definiu o poder como a possibilidade de impor a própria vontade ao comportamento alheio. Hannah Arendt, ao contrário, concebe o poder como a faculdade de alcançar um acordo quanto à ação comum, no contexto da comunicação livre de violência. Ambos vêem no poder um potencial que se atualiza em ações, mas cada um se baseia num modelo de ação distinto.”5 Conjugando os estudos de Habermas com os de Foucault, podemos entender o poder como um tipo de relação que se estabelece entre pessoas, grupos e instituições sociais, em todos os níveis da vida em coletividade, na qual um sujeito visa direcionar a ação de outros sujeitos. As relações de poder podem ser estratégicas (quando o sujeito que exerce o poder usa os sujeitos sobre quem exerce o poder a fim de alcançar seus próprios objetivos), ou comunicativas (quando o sujeito que exerce o poder integra os sujeitos em relação aos quais o exerce, de modo que haja certo consenso na busca de objetivos comuns a todos os envolvidos). Quando relações de poder exercidas estrategicamente delimitam de forma drástica a possibilidade de reação dos subjugados, cria-se uma situação de dominação. Formas estratégicas de uso do poder são ilegítimas, assim como a situação de dominação. Somente é legítimo o exercício de poder com a anuência explícita de todos os participantes.

Diante de relações estratégicas de poder, as pessoas subjugadas podem se submeter resignadamente, ou coercitivamente; podem também resistir, conseguindo espaço maior de liberdade e justiça dentro dessas relações de poder; ou, ainda, subverter essas relações, libertando-se. O mesmo vale para as situações de dominação, nas quais a intensidade do uso estratégico do poder é muito maior e demanda respostas igualmente mais intensas.

Se focamos o poder enquanto uma ordem social ou estatal: “... o poder manifesta-se em: a) ordenamentos que garantem a liberdade política; b) na resistência contra as forças que ameaçam a liberdade política, tanto exterior como interiormente; c) naqueles atos revolucionários que fundam as novas instituições da liberdade: ‘o que investe de poder as instituições e as leis de um país, é o apoio do povo, que por sua vez é a continuação daquele consenso original que produziu as instituições e as leis [...] Todas as instituições políticas são manifestações e materializações do poder; elas se petrificam e desagregam no momento em que a força viva do povo deixa de apoiá-las”.6 Segundo a terminologia sêmio-discursiva, as relações, os conflitos, as práticas sociais recebem a sua significação mediante a narratividade, uma dimensão do processo de produção do sentido, que tem como elemento básico a transformação de pessoas e situações provocada pela ação dos sujeitos. A narratividade pode ser analisada a partir do percurso narrativo canônico, que engloba os percursos do sujeito, do destinador-manipulador e do destinador-julgador, bem como sintetiza as buscas sociais pelos objetos-valor.

EXERCÍCIOS 1. Escolha um filme e analise como ele constrói o sentido das dimensões sociedade, cultura

e religião de seu mundo-da-vida.

5 5 Jürgen HABERMAS, “O conceito de poder de Hannah Arendt”. Em Bárbara FREITAG& Sérgio

Paulo ROUANET (orgs.), Habermas: Sociologia, p. 100.

6 6 Idem, p. 103.

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2. Escolha tipos diferentes de perícopes da Bíblia (epístolas, poesia, sabedoria, leis) e analise como ele constrói o sentido das dimensões sociedade, cultura e religião de seu mundo-da-vida.

SUGESTÕES DE LEITURA Textos didáticos

DISCINI, Norma. A comunicação nos textos. São Paulo: Contexto, 2005. Lição 7, p. 243-267. SAVIOLI , Francisco Platão &FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. São

Paulo: Ática, 1996. Lição 15, p. 225-236. _____. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1991. Lições 6 e 7, p. 55-

69. Textos técnicos

BARROS, Diana L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual Editora, 1988, p. 7-71.

BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Bauru: EDUSC, 2003, p. 265-353. FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2005. (13a.

Edição revista e ampliada) HABERMAS, Jürgen. “O conceito de poder de Hannah Arendt”. Em FREITAG, Bárbara

&ROUANET, Sérgio Paulo (orgs.). Habermas: Sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 100-118.

ZABATIERO, Júlio P. T. “As estruturas da ação. Construindo o referencial teórico da Teologia Prática”. Em BARRO, Jorge H. &ZABATIERO, Júlio P. T. (eds.). Práxis Evangélica. Revista de Teologia Prática latino-americana. Londrina: Editora Descoberta & Faculdade Teológica Sul-Americana, nº 3, agosto 2003, p. 81-103.

7 Ciclo 3 Dimensão sociocultural da ação (parte 2): Interdiscursividade

9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo.

Marcos 1 Por que Marcos citou três textos do Antigo Testamento para apresentar o conteúdo da voz dos céus? Terá sido uma decisão exclusivamente individual, ou esse já seria um hábito de seu tempo? Você se lembra do texto paralelo em Mateus 1:13-17? Mateus incluiu uma discussão entre João e Jesus a respeito da propriedade de Jesus ser batizado por João. Por que Mateus tem esse trecho adicional e Marcos decidiu não incluir essa discussão em seu evangelho? Que efeitos de sentido essas escolhas provocavam nas pessoas que, participando da mesma sociedade, ouviam e liam estas passagens? Que idéias e lembranças de outros textos estas passagens lhes traziam à mente? Por que a maioria dos judeus não concordou com os primeiros judeus cristãos em sua crença de que Jesus era o Messias esperado?

Vimos, na análise da dimensão sociocultural da ação, pelo caminho da narratividade, que o objeto-valor do texto é a missão messiânica de Jesus, que foi originada e sancionada pelo Pai, e cuja investidura ocorreu fora dos espaços-tempos oficiais da época. Cabe, agora, perguntar pelos efeitos dessa escolha do texto em seu mundo-da-

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vida, ou, em outras palavras, é preciso fazer também a crítica social do texto e a partir do texto.

Estas e outras perguntas poderão ser respondidas a partir da análise do lugar que o texto de Marcos ocupava em seu mundo-da-vida. É a esta tarefa que nos dedicaremos neste capítulo, para concluir a nossa análise da dimensão sociocultural da ação.

INTRODUÇÃO Idéias viajam freqüentemente pelos caminhos do mundo-da-vida. Pense, por exemplo, em como certas gírias se tornam “moda”, ou em como alguns bordões humorísticos “pegam” e são repetidos por milhares de pessoas no seu cotidiano. E pense em como idéias antigas ainda subsistem e são consideradas valiosas por muita gente. Até hoje, a “mensagem da cruz” ressoa em todos os rincões do planeta e continua produzindo efeitos na vida de muitas pessoas. Ficamos até com a impressão de que as idéias voam livremente pelo espaço, soltas, sem amarras, totalmente livres.

Bem, as coisas não funcionam exatamente dessa maneira. A circulação das idéias também tem as suas regras, as suas estruturas, os seus limites e possibilidades. A messianidade, por exemplo. Nas suas origens mais antigas, a idéia de messias deve ter começado a circular entre pessoas nas reuniões familiares, nos encontros religiosos, nas conversas das praças, nos papos informais durante os negócios etc. A idéia “pega”. Alguém se dispõe a escrever sobre ela, e ela se transforma em um texto, no qual passa a ficar junta com outras representações sobre Deus, sobre a vida, sobre a felicidade etc. O texto começa a ser lido publicamente, começa também a circular, e outras pessoas escrevem sobre ele, algumas até reescrevem o texto, aproveitando as conversas e as discussões sobre o primeiro texto. Discussões irão acontecer: será que o novo texto é melhor do que o antigo? Para que tantos textos sobre essa noção de um “messias”?

Os vários textos, as várias conversas, as muitas discussões sobre “messias” vão se juntando, circulando entre mais e mais pessoas — muita gente concorda que um “messias” é necessário —, talvez nem saibam mais de onde veio essa idéia, quem a começou, mas gostam dela. E a ela vão juntando outras representações, outros textos, outras discussões, e juntas se transformam em um discurso messiânico. E o processo continua, vários discursos messiânicos se formam e se juntam para explicar como deve ser o Messias, de onde vem, o que faz etc. Temos, então, uma formação discursiva. Mas nem todos os discursos concordam entre si. Para alguns discursos, o Messias tem um perfil monárquico, para outros, sacerdotal, para outros, profético etc. A formação discursiva messiânica compõe-se de muitos discursos que têm em comum entre si a noção geral do Messias, embora haja diferenças significativas entre os vários discursos messiânicos que a compõem.

Esse processo praticamente não tem fim, pois há muita coisa de que se pode e deve falar na vida em sociedade. Novas representações, novos textos, novos discursos, novas formações discursivas. O tempo vai passando, e uma sociedade fica repleta dessas representações, textos, discursos, formações discursivas — a tudo isso junto damos o nome de mundo-da-vida. Para entendermos bem como um texto funciona em sua sociedade, precisamos ser capazes de situar esse texto na estrutura das idéias dessa sociedade. Precisamos perseguir os caminhos que ele trilhou, as práticas que ele sustentou, as instituições em que ele se fez etc. Na análise das relações intertextuais e interdiscursivas, vimos como esses discursos outros ajudaram a formar o sentido do texto que interpretamos. Precisamos agora realizar uma análise crítica do lugar do texto em sua sociedade.

Tudo isso nos faz lembrar do conhecimento enciclopédico. Quanto maior for o nosso conhecimento enciclopédico sobre os mundos-da-vida dos tempos bíblicos, mais fácil e mais abrangente será nossa interpretação do texto. Para adquirir esse conhecimento não

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há atalhos: estudo, estudo, pesquisa... Todo o conjunto de conhecimentos acumulados na pesquisa acadêmica será de grande valia para nós. O que a perspectiva sêmio-discursiva nos oferece é um caminho para orientar nosso estudo dos contextos históricos do mundo bíblico, caminho moldado por estes conceitos: discurso, formação discursiva, sistema e mundo-da-vida.

Do ponto de vista metodológico, um último aspecto precisa ser ressaltado: uma perícope não oferece material suficiente para uma análise abrangente da vida em sociedade em seu tempo. A leitura da perícope nos oferece um bom ponto de partida, ao situá-la no âmbito das formações discursivas de seu tempo, mas a crítica social só pode ser sugerida, à medida que sua base deve ser, primeiramente, o conjunto dos discursos do livro de que a perícope faz parte e, depois, o conjunto das relações que esses discursos do livro mantêm em sua formação discursiva e, por fim, as relações que essa formação discursiva mantém com as demais de seu mundo-da-vida.

CICLO 3: DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA AÇÃO Como o texto, em interação com seu mundo-da-vida, dá sentido à ação sob os pontos de vista 1) da sociedade, 2) da cultura e 3) da religião?

COMO FAZER 1. Situar o texto nas formações discursivas de seu mundo-da-vida (analisando as suas

relações contratuais e polêmicas). 2. Formular a crítica social a partir do texto, e do texto. 3. Elaborar uma síntese.

EXEMPLO 1 (FORMA DESCRITIVA ) Marcos 1 9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo. 1. Situar o texto nas formações discursivas de seu mundo-da-vida Já vimos que as relações interdiscursivas da perícope nos ligam a discursos messiânicos bem diversificados do Antigo Testamento: o discurso do messias davídico (Sl 2:7), o discurso do Messias solidário (Is 42:1s), e o discurso do Messias abraâmico (Gn 22:2). Vimos, também, que o objeto-valor na dimensão narrativa desta perícope é a missão/identidade messiânica de Jesus, marcada pelas características da filialdade filial ao Pai, pela solidariedade com pessoas impuras e pecadoras e pela crítica à identidade (ou religião) oficial do judaísmo. Tudo isto nos situa na formação discursiva messiânica, em uma perspectiva não oficial, crítica. A partir desta maneira de identificar a messianidade de Jesus, a comunidade marcana se distancia do discurso messiânico judeu oficial, embora permaneça nos limites da formação discursiva messiânica. Ao permanecer na formação messiânica, o discurso marcano se contrapõe aos outros tipos de discurso de salvação de seu tempo — tais como os discursos das religiões salvíficas helênicas, os discursos filosóficos da “vida boa” e o discurso oficial do Império Romano, de que os deuses do panteão romano salvam e que César é seu representante na terra, o kyrios (Senhor). Estamos presenciando, assim, os primórdios da formação discursiva messiânica propriamente cristã. 2. Formular a crítica social A partir deste texto, podemos perceber que a comunidade marcana se posiciona criticamente contra o discurso messiânico oficial do judaísmo (que priorizava a salvação exclusiva de judeus conforme o seu grau de pureza, o caráter nacionalista da ação do Messias, ou seja, a concentração da ação messiânica na libertação política da nação

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Israel do Império). Seu discurso messiânico é ainda tipicamente judeu, mas aberto para pessoas impuras e pecadoras, inclusive gentios; não é nacionalista, mas concentra a ação messiânica na formação de novas comunidades includentes, cuja identidade se constrói em seguimento da identidade messiânica de Jesus.

Ao identificar a ação política do Messias com a solidariedade, o discurso messiânico da comunidade marcana mantém relações polêmicas com o discurso oficial do Império. Não é um discurso nacionalista, nem revolucionário, mas também não é um discurso politicamente neutro. Aparentemente, sua proposta política é de cunho comunitarista, criar comunidades includentes, semelhantes ao movimento de Jesus, as quais, crescendo em número, ofereceriam um espaço alternativo de organização social em contraposição ao modelo imperial. Note dois pontos: a) não é possível ficarmos restritos a uma perícope apenas para este tipo de análise; e b) o caráter hipotético da crítica deve ser reconhecido.

A crítica social do texto (também delimitada pelos dois pontos acima lembrados, e que o espaço não nos permite fazer) poderia ser direcionada aos seguintes aspectos: a) Até que ponto esse tipo de proposta ofereceria condições para uma alternativa política concreta? b) Como o discurso messiânico da comunidade marcana teria afetado a noção e as relações de gênero na comunidade? c) Que atitude perante as outras religiões no Império Romano teria sido promovida pelo discurso messiânico da comunidade? d) Como este tipo de discurso poderia dialogar e confrontar as opções filosóficas de outorga de sentido à vida? Até que ponto, porém, o caráter minoritário e a expectativa apocalíptica da comunidade afetaram sua interpretação da vida em coletividade? Tais questões, porém, não podem ser respondidas exclusivamente mediante a análise da perícope. Do ponto de vista metodológico, isto nos lembra que a crítica social do texto apenas aponta para a crítica social de seu discurso no âmbito de sua formação discursiva — algo que não é possível fazer dentro dos limites de um manual de metodologia exegética. Sua condição de grupo minoritário, tanto no âmbito do judaísmo, quanto no âmbito da sociedade em geral, deve ser levada em consideração ao analisarmos criticamente sua autocompreensão e sua proposta político-social. 3. Elaborar uma síntese A proposta messiânica de Marcos 1:9-11 é de cunho crítico, tanto em relação ao nacionalismo e caráter excludente do judaísmo oficial, quanto em relação ao caráter dominador do Império Romano. Embora não pareça oferecer uma proposta de estratégia de tomada de poder político, não tem caráter neutro em relação à ordenação político-econômica da sociedade de seu tempo. Ao apresentar Jesus como um messias não “oficial”, sugere que a comunidade marcana entendia sua identidade como a de uma comunidade alternativa, cujo estilo de vida deveria ser semelhante ao de Jesus, seu Messias (Cristo). O texto favorece uma compreensão comunicativa das relações de poder e o caráter includente da nova fé no Messias Jesus, bem como a esperança de uma nova realidade, já que a fala da voz do céu evoca o início de uma nova época.

EXEMPLO 2 (FORMA DISSERTATIVA ) Isaías 42

1 Eis o meu servo, a quem eu sustento, o meu eleito, em quem tenho prazer. Coloquei meu espírito sobre ele, justiça para as nações fará brotar. 2 Não gritará, e não levantará, e não deixará ser ouvida na rua a sua voz. 3 A cana rachada não esmagará, e a torcida bruxuleante não apagará;

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fielmente fará brotar a justiça. 4 Não desanimará e não será quebrado, até que estabeleça na terra a justiça e em sua lei as ilhas tenham esperança. Tudo o que vimos até agora sobre este texto nos orienta a interpretá-lo como um

texto crítico ao império babilônico e ao davidismo judaíta. A crítica ao império babilônico dirige-se 1) à sua dimensão sistêmica, na medida em que reconhece o caráter dominador de seu exercício do poder e, 2) à sua dimensão do mundo-da-vida, na medida em que mantém relações polêmicas com suas formas de legitimação — tanto suas noções de justiça e lei, quanto as suas crenças religiosas — todas igualmente quiriárquicas. Em relação ao davidismo judaíta, Isaías 40—55 também se posiciona de forma crítica, ao negar a validade dos seus principais discursos: 1) a posição da dinastia davídica como representante privilegiada do reino de Javé; 2) a conseqüente posição que o culto a Javé assumia sob o governo davídico, subordinado à manutenção da dinastia e legitimação de suas formas estratégicas de condução das relações políticas e econômicas; e 3) o nacionalismo excludente de sua noção do reino de Javé, que lhe permitia reproduzir o discurso imperialista comum no Antigo Oriente, e legitimá-lo teologicamente. Esta crítica ao davidismo deve ser ressaltada, na medida em que a audiência primária destes textos era composta dos grupos outrora dirigentes de Judá, cuja injustiça e infidelidade a Javé foram, segundo o profeta, a causa do castigo divino do exílio.

Acrescentando-se o conteúdo propositivo do aviso de Isaías 40—55, podemos identificá-la com um discurso pertencente à formação discursiva deuteronômica, com esta perícope destacando as noções discursivas de: 1) a atuação libertadora de Javé significada na tradição não davídica do êxodo, que priorizava o caráter pessoal de Javé e a sua ligação direta com as famílias/casas do seu povo, independente da mediação da estrutura monárquica; 2) a noção de aliança como discurso explicativo das relações com Javé, das relações sociais internas e das relações com outros povos. Aliança caracterizada pela justiça social e pela fidelidade à vontade de Javé, expressa na sua lei, em contraste com a forma de aliança típica dos impérios vétero-orientais, centradas na soberania assimétrica do povo mais forte sobre o mais fraco militarmente; e 3) a fidelidade exclusiva a Javé, acima de todas as fidelidades, chegando ao ponto de afirmar claramente — um avanço em relação ao discurso tipicamente deuteronômico — que somente Javé é Deus, todos os demais “deuses” não passam de ídolos, de construção da imaginação humana para legitimar formas injustas e ilegítimas de relações sociais.

Uma série de questões críticas, porém, ainda carecem de melhor e mais aprofundado exame do conjunto das perícopes de Isaías 40—55. As principais são: 1) Qual é o alcance mais exato das noções de justiça e lei, e quem seriam os sujeitos legítimos de formulação da lei e execução do governo justo? 2) Intimamente ligada à primeira questão, temos a segunda: Até que ponto o protagonismo desta libertação seria empoderador não só dos exilados mas também dos que ficaram em Judá? Claramente o discurso de Isaías 40—55 afirma que os exilados, voltando a Judá, serão protagonistas da libertação e, a partir de Jerusalém, o reinado de Javé se expandirá por toda a Judá. Como se dariam as relações entre estes que voltam e os que ficaram em Judá? Haveria um retorno à antiga estruturação hierárquica de poder? Como as terras seriam distribuídas, quem seriam seus legítimos proprietários? 3) Qual é o alcance e o sentido da inclusão das nações e ilhas na libertação anunciada pelo servo? Estaria o discurso de Isaías 40—55 na mesma linha de Amós 9:7-10 e Isaías 19:16-25 que não restringiam a ação libertadora de Javé ao povo judeu e colocavam outros povos no mesmo nível de relações com Deus? Ou estaria na linha de Isaías 2:1-5 e Miquéias 4:1-5, colocando

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Jerusalém no centro do mundo, com as nações peregrinando até ela, em uma forma sutil de imperialismo javista? Por fim, 4) como o discurso de Isaías 40—55 efetivamente interpretava o papel de Ciro e as relações de Judá e das nações em geral com o Império Persa? Claramente Ciro não era regente de um império libertador em sentido amplo. É certo que sua atitude para com os povos subjugados era muito mais aceitável do que a dos babilônios, mas até que ponto seria possível aceitar os persas, que ainda constituíam um império em sentido pleno?

Em uma perspectiva de gênero, as perguntas poderiam começar por esta: terá a base deuteronômica da visão de culto de Isaías 40—55 permitido um olhar diferenciado para o lugar da mulher na vida religiosa e socioeconômica de Judá? O uso da metáfora materna para se referir a Javé (48:9ss) e a Jerusalém (Is 54) permitiria uma melhor compreensão das relações de gênero, ou a afirmação intransigente da exclusividade divina de Javé poderia ser usada para negar toda e qualquer validade às práticas religiosas de mulheres (que, em vários casos, incluíam a crença em deusas, consortes ou não de Javé)?

A análise da dimensão sociocultural da ação torna evidente a necessidade de se ir além dos limites da perícope como unidade a ser interpretada. É preciso levar em conta o discurso com a base interpretativa, a fim de se poder reconstruir as formações discursivas da sua época e, a partir delas, compreender as dimensões sistêmica e do mundo-da-vida para, então, proceder à crítica social.

CONCEITOS BÁSICOS Sistema. Na teoria habermasiana, a sociedade é explicada por meio de dois modelos:

mundo-da-vida e sistema. O mundo-da-vida equivale ao componente abstrato da sociedade (idéias, valores etc.), enquanto o sistema corresponde ao componente concreto da sociedade (instituições, grupos sociais, movimentos sociais, estruturas econômicas, estruturas políticas etc.). Os componentes do sistema são as estruturas derivadas dos meios sistêmicos poder e dinheiro, a saber, estruturas políticas e as estruturas econômicas da sociedade. Assim como, na história da humanidade, cada sociedade desenvolveu diferentes conteúdos e formas do mundo-da-vida, também se produziram diferentes estruturações das relações políticas e econômicas. Na maior parte da história das sociedades humanas, mundo-da-vida e sistema não estavam diferenciados entre si de forma autônoma e concorrente. Nas sociedades modernas, porém, as relações políticas e econômicas foram se tornando cada vez mais estratégicas e geraram estruturas políticas e econômicas que aos poucos assumiram para si a função de coordenar a ação coletiva de modo estratégico. Isso significa que as interações sociais passam a ser comandadas pela eficácia dos meios sistêmicos (poder e dinheiro).

Mundo-da-vida.(Vale a pena repetir a definição, para facilitar seu uso. Na análise da narratividade, tem função explicativa, não operacional.) Mundo-da-vida é um termo técnico da filosofia e das ciências sociais que se refere ao conjunto de discursos (idéias, ou temas, ou conceitos, ou noções), que se constitui ao longo da história e existe em dada sociedade, servindo para explicar a realidade na qual tal sociedade vive, e ordenar as ações e relações humanas nessa mesma sociedade. Pode-se classificar os tipos de discurso presentes no mundo-da-vida como discursos sobre: a cultura (valores, símbolos, noções explicativas etc.), a sociedade (normas, formas de parentesco etc.), a identidade (paixões, formas de identidade, papéis sociais etc.) e a religião. A realidade à qual o mundo-da-vida se refere pode, por sua vez, ser classificada como: natural (tudo aquilo que não é feito por seres humanos), social (o que é feito por seres humanos em sua vida em sociedade), pessoal (o mundo “interior” das pessoas) e transcendental (tudo o que se refere às explicações religiosas da realidade).

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Ideologia. O conceito de ideologia, desde Marx pelo menos, é usado de forma ambígua. Por um lado, tem um sentido neutro e significa qualquer explicação do arranjo sistêmico de uma sociedade, sem emitir juízos de valor sobre a mesma. Por outro, tem um sentido crítico, e se aplica apenas às explicações do arranjo sistêmico de uma sociedade que sirvam para criar ou manter situações ou estados de dominação. Neste Manual, uso predominantemente o sentido neutro, na medida em que uma formação ideológica que, em dado período, serve para manter a dominação, em outros pode perder essa função e não mais se vincular a estratégias dominadoras do uso do poder.

Campo. Um conceito desenvolvido amplamente na sociologia por Pierre Bourdieu, que adapto para complementar a concepção habermasiana da sociedade. Assim como o conceito de mundo-da-vida se refere a uma dimensão altamente abstrata, também o conceito de sistema explica os níveis mais elevados das relações políticas e econômicas. Um campo, conseqüentemente, pode ser definido como uma das várias dimensões do sistema — tais como campo econômico, campo jurídico, campo político, campo religioso, campo acadêmico etc. Os campos são constituídos basicamente por instituições sociais, ou seja, arranjos sólidos de relações entre pessoas, especializados de acordo com suas funções na sociedade, e.g.: igrejas, terreiros, sinagogas, instituições do campo religioso; bancos, financeiras, bolsa de valores são instituições do campo econômico etc.

Gênero. Durante muito tempo se definiu gênero como realidade exclusivamente natural, determinada apenas pela diferença sexual corpórea (o que determinava que formas não heterossexuais de identidade não fossem consideradas senão como aberrações). Especialmente no século XX, porém, constatou-se claramente que gênero é primariamente uma realidade sociocultural, pois a vivência da masculinidade ou da feminilidade é construída na sociedade e recebe diferentes explicações no mundo-da-vida e diferentes configurações de poder no âmbito sistêmico. O movimento feminista, nas suas mais variadas formas, nos ajudou a enxergar o uso estratégico da noção de gênero que permitiu, durante muitos séculos, na maior parte das sociedades humanas, a dominação da mulher pelo homem, e o desenvolvimento de formas estereotipadas de masculinidade e feminilidade (do tipo “homem não chora”, “mulher é frágil” etc.).

Raça. De forma semelhante ao conceito de gênero, no século passado se rompeu com a noção exclusivamente biológica de raça, a ponto de se questionar a própria validade do termo. Uso raça, aqui, como um conceito sociocultural, uma forma de definir um aspecto da identidade de grupos sociais, especialmente a partir de características corpóreas, tais como cor da pele, formato do corpo, altura etc. Aplicada ao estudo bíblico, a noção de raça nos ajuda a interpretar a maneira como, nos textos, se constrói a concepção de raça. Por exemplo, uma definição crucial do judaísmo oficial dos tempos de Jesus era a distinção racial (ou racista?) entre judeus e gentios; na cultura helênica, distinguia-se entre gregos e bárbaros etc. Para a construção de critérios valorativos de raça e gênero, textos bíblicos como Gálatas 3:28 desempenham papel fundamental: “Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”.

CONCEITOS OPERACIONAIS Formação discursiva. O conceito de mundo-da-vida explica a dimensão de conteúdo das

relações sociais em sua forma mais abstrata. Para concretizar a análise, adotamos um conceito primeiramente desenvolvido por Michel Foucault e adotado por diferentes correntes de análise do discurso, inclusive a semiótica. Se o discurso é uma explicação de um segmento qualquer da realidade (e é composto por textos), uma formação discursiva é um conjunto de discursos que partilham de um mesmo ponto de vista. Vejamos o cristianismo, por exemplo. Enquanto uma religião que explica a realidade,

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podemos perceber nele diversas formações discursivas: a católico romana, a ortodoxa, a protestante histórica, a protestante evangelical, a pentecostal clássica, a pentecostal carismática, a neo-pentecostal. As formações discursivas são fluidas ao longo da história, suas fronteiras não são rígidas, pois mantêm contato constante com formações concorrentes e recebem permanentemente novos discursos, rearranjos etc.

Relação contratual ou polêmica. As relações entre textos e discursos, e também as relações entre formações discursivas podem ser de tipo contratual (quando há concordância entre os termos em relação), ou de tipo polêmico (quando não há concordância). Normalmente, os discursos que compõem uma formação discursiva mantêm relações contratuais entre si, e relações polêmicas com os discursos que pertencem a uma formação discursiva que mantenha relações polêmicas com aquela formação discursiva. Entretanto, como as relações entre discursos e formações discursivas são fluídicas, é possível que, sob certas circunstâncias, um discurso mantenha relações polêmicas com outro discurso que faça parte de sua formação discursiva, e contratuais com um discurso que faça parte de uma formação concorrente. Marcos 3:6 nos oferece um exemplo dessa situação: fariseus e herodianos tinham diferentes formas de explicar a religião judaica — podemos dizer que eram sujeitos de formações discursivas concorrentes. Entretanto, diante de uma ameaça maior, uniram-se estrategicamente para combater Jesus. Nesse caso, quanto à definição de quem era o Messias, as formações discursivas concorrentes se uniram para polemizar com o novo discurso messiânico de Jesus.

Crítica social. Na perspectiva habermasiana de sociedade aqui adotada, a crítica social tem duas dimensões. Por um lado, questiona e avalia os componentes do mundo-da-vida e, por outro, os componentes do sistema. Mesmo nas sociedades em que mundo-da-vida e sistema estão sincretizados, a crítica social permanece dual. A crítica sistêmica focaliza as relações econômicas e políticas em uma dada sociedade, bem como as suas estruturações ao longo da história dessa sociedade. O critério fundamental dessa crítica é dado pelas noções de ação comunicativa e ação estratégica. São legítimas as relações econômicas e políticas, e as suas respectivas formas de coordenação da ação, que se dão de modo comunicativo (mediante acordo entre as pessoas envolvidas). São ilegítimas as relações sistêmicas e as formas de coordenação da ação de forma estratégica (que ocorre quando não há acordo na realização da ação, mas imposição da vontade de uns sobre outros, tanto no sentido de relações de poder injustas, quanto no sentido de situações de dominação). A crítica do mundo-da-vida se dirige, por sua vez, aos discursos legitimadores das ações e relações na sociedade. O critério básico dessa crítica é se os discursos legitimam formas comunicativas ou estratégicas de ação e coordenação das ações na sociedade — ou, em outras palavras, se há justiça, solidariedade, paz na sociedade.

Exemplos de crítica social: 1) as formas mediante as quais se constroem e legitimam as relações de gênero podem ser estratégicas e, na maior parte da história das sociedades, têm sido assim, conforme o feminismo tem destacado. Na teologia feminista, por exemplo, Elisabeth Fiorenza cunhou o conceito de quiriarcado, que explica relações sociais de dominação, baseadas numa estruturação e valoração hierárquica dos gêneros, com a supremacia do masculino sobre o feminino e ampliando a escala de superioridade/inferioridade para todas as demais relações sociais (adulto—criança; rico—pobre etc.); 2) as estruturações do poder político tendem a ser dominadoras (logo, estratégicas e não comunicativas), com as pessoas que exercem esse poder usando para seus próprios fins as pessoas sobre as quais lideram. No texto de Isaías, acima, vimos relações de poder dominadoras, em uma situação de imperalismo político-econômico. Em tais situações, o exercício do poder político restringe a

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liberdade das pessoas, subordina os valores da justiça aos imperativos do Império, e subjuga o mundo-da-vida para que este legitime a situação de dominação. Diante de tais situações, é necessário resistir, enfrentar, transformar a realidade. Segundo a terminologia sêmio-discursiva, a compreensão da dimensão sociocultural do texto, bem como a crítica social do texto e a partir do texto, são completadas e realizadas mediante a análise do lugar que o texto ocupa nas formações discursivas de seu mundo-da-vida. Ao analisar o caráter das relações discursivas — contratuais ou polêmicas —, podemos não só entender melhor o texto e efetuar a crítica social, mas também começar a construir mapas das formações discursivas da época do texto bíblico, em diálogo com a pesquisa exegética com outros enfoques disciplinares (histórica, sociológica, antropológica etc.).

EXERCÍCIOS 1. Escolha um filme e analise sua posição crítica em nosso mundo-da-vida atual. 2. Escolha tipos diferentes de perícopes da Bíblia (epístolas, poesia, sabedoria, leis) e

analise as suas posições no mundo-da-vida de suas épocas respectivas.

SUGESTÕES DE LEITURA Textos didáticos

DISCINI, Norma. A comunicação nos textos. São Paulo: Contexto, 2005. Lições 2 a 4, p. 45-182.

SAVIOLI , Francisco Platão &FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1996. Lições 2 a 4, p. 27-72.

_____. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1991. Lições 2 e 3, p. 19-33. Textos técnicos

BARROS, Diana L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual Editora, 1988, p. 135-156.

FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2005, p. 107-112.

ZABATIERO, Júlio P. T. “As estruturas da ação. Construindo o referencial teórico da Teologia Prática”. Em BARRO, Jorge H. &ZABATIERO, Júlio P. T. (eds.) Práxis Evangélica. Revista de Teologia Prática Latino-Americana. Londrina: Editora Descoberta & Faculdade Teológica Sul-Americana, nº 3, agosto 2003, p. 81-103.

8 Ciclo 4 Dimensão psicossocial da ação

9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo.

Marcos 1 Os termos em itálico qualificam o relacionamento do Pai com o Filho: ama-o e nele sente prazer, nele se deleita. São termos que dão significado a sentimentos, ou paixões (ou, ainda, estados-de-alma), que expressam o modo como um sujeito se relaciona com outros sujeitos ou com os seus objetivos de vida. Toda ação humana possui um componente passional (a semiótica prefere o termo paixão ao termo sentimento), na medida em que um ser pessoal não é somente cognitivo e ativo, mas também passional. Juntamente com nossas crenças e ações, nossos sentimentos ajudam a configurar a

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nossa identidade (a maneira como vemos a nós mesmos, mas também como outros nos vêem, ou como imaginamos que outros nos vêem). Algumas pessoas podem imaginar que os sentimentos são algo estritamente individual, mas fato é que os sentimentos também são uma realidade sociocultural, influenciada pelo nosso mundo-da-vida, pelas relações que mantemos com outras pessoas e instituições ou com os nossos objetos de desejo.

Neste capítulo, o foco se voltará, portanto, para a análise dos sentidos que o texto dá às paixões humanas. Iremos analisar efeitos de sentido e não pessoas. Exegese não é psicanálise, psicoterapia ou qualquer outro tipo de análise psicológica ou psiquiátrica. Este é o grande cuidado que devemos ter no Ciclo 4: não confundir análise sêmio-discursiva com análise psíquica. Pode-se dizer que em exegese sêmio-discursiva analisamos paixões de papel, ou paixões textuais, com vistas a compreender como o texto constrói a identidade pessoal de seus sujeitos.

INTRODUÇÃO Até este ponto, a exegese focou primariamente a ação dos sujeitos. Cabe agora voltar o foco ao sujeito, às suas paixões ou aos estados-de-alma. Note, em Marcos 1:9-11, que as paixões do Pai estão explicitadas no texto, mas não as do Filho, de João Batista, do Espírito ou de quem mais ouviu a voz. Uma decisão então tem de ser tomada: se trabalharemos apenas com as paixões explicitadas ou se analisaremos também as implícitas de um ou mais sujeitos textuais. Que critérios usar para tomar essa decisão? O da utilidade (até que ponto vale a pena fazer tal análise) e o da possibilidade (temos tempo para fazer a análise?). Analisarei não só as paixões explicitadas nas perícopes selecionadas, mas também as implícitas de outro sujeito do texto (além daquele cujas paixões estão explícitas).

Para evitar o psicologismo na análise, devemos permitir que os conceitos e princípios sêmio-discursivos de análise direcionem a interpretação. O primeiro conceito aplicável é o de paixão: um efeito de sentido das qualificações modais do sujeito. As qualificações modais (ou modalizações) são as do querer e/ou dever (manipulação) e as do saber e/ou poder (competência). A análise se ocupará, portanto, de interpretar os efeitos de sentido passionais decorrentes das formas, como as relações entre o sujeito e os objetos-valor são apresentadas no texto, bem como as relações entre diferentes sujeitos no texto em sua busca comum por objetos-valor. Tais modalizações podem estar hierarquizadas no percurso, uma assumindo supremacia sobre as demais, categorizando (identificando) assim o sujeito do agir. Lembre-se de que a relação entre sujeito e objeto, na análise da narratividade, é um simulacro da ação no mundo e se configura exclusivamente como relação de junção, desdobrada em conjunção e disjunção. Dessa relação decorrem dois tipos de paixões: as de falta (disjunção) e as de liqüidação da falta (conjunção).

Se o sujeito é modalizado exclusivamente por um tipo de qualificação modal, temos as chamadas paixões simples, todas decorrentes da modalização do sujeito pelo querer-ser (na categorização sêmio-discursiva, as paixões decorrentes da modalização pelo dever estão subsumidas na categoria do querer-ser). Se o sujeito é modalizado por uma combinação das modalizações do sujeito pelo querer-ser e pelo poder-ser (dever-ser e saber-ser estão subsumidos nestas duas categorias, para efeitos da análise das paixões), então temos as paixões complexas. No percurso narrativo, não se pode neligenciar também o fato de que as paixões sempre são inter-subjetivas, na medida em que o sujeito do fazer está sempre em percursos simultâneos aos percursos do destinador-manipulador e do destinador-julgador. Devemos acrescentar aqui, por fim, o anti-sujeito, aquela figura narrativa que se interpõe contra o sujeito na sua busca pelo objeto-valor. Não se esqueça de que, na terminologia semiótica, um objeto-valor não é

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necessariamente uma coisa, pode ser também uma pessoa, e que os sujeitos são figuras narrativas e não pessoas reais, nem mesmo pessoas do nível discursivo.

Por exemplo, se uma pessoa está com fome, está em disjunção com o objeto-valor refeição; logo, sentirá uma paixão de falta, tal como o desejo. Se o desejo for mais intenso, chamamos de anseio, se mais intenso ainda, de avidez etc. Em Marcos, vemos que as paixões do Pai em relação ao Filho estão explicitadas na fala da voz dos céus: amor e deleite (prazer). Note bem que a diferenciação entre amor e deleite não é psíquica, mas semântica: nas Escrituras sempre se fala do amor de Deus como uma relação de gratuidade, ou seja, independente das ações ou identidade da criatura amada. O prazer de Deus por uma de suas criaturas, por outro lado, sempre é mencionado nas Escrituras em virtude de ações dessa criatura que lhe causa o prazer (ou o desprazer). Como efeitos de sentido, as paixões são construídas no mundo-da-vida e nele têm sua história e regras de ordenação semânticas (Habermas denomina de identidade o setor do mundo-da-vida cujos conteúdos são afetivos ou passionais).

Podemos dizer, também, que as paixões são diferenciadas entre si pela relação com a temporalidade — esperança é uma paixão dirigida para o futuro, enquanto o remorso é dirigido para o passado. Igualmente, podem ser diferenciadas segundo o seu objeto e segundo a sua intensidade. Se o objeto do amor for um cônjuge, por exemplo, o amor terá um forte componente erótico; se um filho, chamamos de amor paternal, maternal ou filial ; se um irmão ou amigo, chamamos de amor fraternal etc. Em português, por exemplo, distinguimos entre amar e gostar, ou entre amor e amizade, entre desejo e anseio etc. As paixões, assim, são aspectualizadas (conforme a sua intensidade e duração, sendo seus aspectos idênticos aos da ação: completo e incompleto, desdobrados em incoativo, terminativo, iterativo e durativo. Por exemplo: a impulsividade é uma paixão simultaneamente incoativa e iterativa — a pessoa modalizada pela impulsividade está sempre começando a fazer alguma coisa, nova ou de novo).

Por fim, as paixões também são diferenciadas entre si em virtude de sua eticidade ou moralidade; e.g.: em algumas culturas, a ambição é uma paixão positiva, em outras, negativa; o amor erótico é qualificado moralmente nas diversas culturas, em função, por exemplo, do grau de parentesco entre os amantes, ou até mesmo em decorrência das distinções sociais entre suas famílias. Cada texto dá testemunho, a seu modo, dos juízos morais que se aplicam às paixões humanas em um dado contexto.

Um último aspecto teórico a ser apresentado. A análise semiótica das paixões também formulou, como dispositivo operacional de análise do nível narrativo, um percurso passional canônico em quatro fases, similares às do percurso narrativo canônico (que é um percurso do fazer):1

Disposição Sensibilização Emoção Moralização [Manipulação → Competência → Performance → sanção]

CICLO 4: DIMENSÃO PSICOSSOCIAL DA AÇÃO Como o texto, em interação com seu mundo-da-vida:

1. Descreve as relações passionais no texto? 2. Constitui a identidade dos agentes a partir de seus objetivos, motivos, competências e

relações passionais?

COMO FAZER 1. Reconstruir os percursos passionais dos sujeitos.

1 1 Esse percurso é adaptado de Denis BERTRAND, Caminhos da semiótica literária,p. 374.

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2. Analisar os percursos, semantizando as paixões e desdobrando-as na identidade dos sujeitos.

EXEMPLO 1 (FORMA DESCRITIVA ) Marcos 1 9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo. 1. Reconstruir os percursos passionais A. O percurso passional do Pai Somente a fase /emoção/ está explicitada no texto marcano; as demais devem ser deduzidas logicamente. A moralização passional é positiva, pois é esperado que um pai ame seus filhos e se agrade deles, bem como as perícopes posteriores mostram que o Filho realizou a sua missão, confirmando, assim, o caráter moralmente adequado das emoções paternas. A disposição se caracteriza por uma espera relaxada, algo que se pode esperar para as paixões do grupo da /satisfação e confiança/, e se pode deduzir pela identificação de Jesus como Filho de Deus logo no primeiro versículo do evangelho de Marcos, o que impede que se tenha qualquer dúvida sobre a sua filialdade e, conseqüentemente, que se possa postular uma espera tensa da parte do Pai. Da sensibilização pode-se dizer que o texto aponta para o caráter durativo do amor e prazer do Pai pelo Filho (conforme o verbo ser no presente do indicativo), bem como se indica o caráter proléptico do deleite (antecipa o prazer que, no futuro, o Filho dará ao Pai através de sua obediência messiânica). Deve-se ressaltar que a forma do texto indica que a ênfase semântica está colocada sobre como as paixões qualificam o Filho e não sobre as paixões do Pai propriamente ditas. B. O percurso passional do Filho Não há qualquer informação explícita no texto sobre as paixões do Filho, as quais têm de ser deduzidas a partir do percurso narrativo canônico (do fazer). O objeto-valor do Filho é a missão messiânica, da qual o batismo é objeto-modal. O Filho se apresentou ao batismo, como vimos, movido por um dever-fazer e com a competência primária do saber-fazer. O batismo de João é semantizado patemicamente como de arrependimento, mas esta paixão não se adequa à identidade do Filho de acordo com o evangelho, e conforme a sanção da voz dos céus. O Filho se apresenta ao batismo movido não por arrependimento, mas pelo dever messiânico. À luz da filialdade divina de Jesus podemos deduzir as seguintes paixões: em relação à missão messiânica, a paixão simples do desprendimento (abre mão de outras identidades mais “vantajosas” para ele), e as paixões complexas da compaixão (em relação aos seres humanos) e da fidelidade (em relação ao Pai), que o atualizam como sujeito (sujeito atualizado é aquele sujeito pronto para agir; sujeito realizado é aquele que age; sujeito virtualizado é aquele que ainda está para atualizar). A moralização das paixões do Filho é positiva, pois desprendimento, fidelidade e compaixão são paixões adequadas ao Messias libertador. O aspecto ressaltado das paixões é o da incoatividade: há que se testar o Filho para confirmar seu desprendimento, fidelidade e compaixão — o relato da tentação e a seção inicial do evangelho apontam nessa direção (caps. 1—3), o que o livro como um todo o confirma. À luz da conflitividade da messianidade de Jesus, ressaltada desde o início do evangelho, pode-se deduzir que a espera inicial, disponibilizadora para a emoção, tenha sido uma espera tensa (confira o percurso passional da insegurança para a confiança na categorização de Diana Barros, abaixo).

Um outro tópico interessante, neste caso, seria analisar o percurso passional do anti-sujeito — que não aparece nesta perícope. À luz da perícope da tentação e das perícopes

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que relatam o início do ministério messiânico de Jesus (1:16—3:35), sabemos que o evangelho apresenta Satanás e os fariseus como anti-sujeitos de Jesus, e poderíamos perceber seus percursos passionais, que vão desde a cólera até a vingança — mas esta é tarefa para outra hora. 2. A construção passional da identidade do Pai e do Filho O texto marcano nos apresenta Deus-Pai como seguro e confiante em relação ao seu Filho e que se mantém em relação amorosa com ele até o fim do seu ministério, que consuma o prazer do Pai em relação à fidelidade do Filho à tarefa que lhe fora confiada. A perícope analisada, bem como o conjunto do evangelho, indicam com clareza que as identidades de Pai e Filho se correspondem, pelo que se pode também afirmar que o Pai é uma pessoa desprendida, fiel e compassiva, assim como o seu Filho. Desprendimento é uma paixão de escolha, de definição de prioridades e valores — a pessoa desprendida é aquela que abre mão de valores que lhe seriam individualmente realizadores, em virtude de valores coletivamente realizadores, a pessoa desprendida valoriza positivamente o outro e constrói a alteridade primariamente pelo viés da inclusão e não pelo da diferenciação excludente. O desprendimento (paixão virtualizadora) se completa, assim, pela compaixão (paixão atualizadora), que direciona as relações interpessoais do sujeito, levando-o a priorizar as pessoas que necessitam da compaixão e da inclusão — em outras palavras, quanto maior a distância da alteridade, tanto maior a intensidade da compaixão. A fidelidade (paixão realizadora), por fim, semantiza a persistência desses traços identitários no agir do sujeito, qualificando-o como pessoa confiável, de quem se pode depender. A conjugação destas características passionais identifica Pai e Filho como altruístas (a forma mais intensa do desprendimento, que indica desapego a si mesmo e elevada valorização do outro na construção da própria identidade).

O caráter de boa-nova do livro marcano é enfatizado assim pela identidade do Pai e do Filho que o evangelho constrói, que distingue ambos das identidades de Deus e do Messias mais comumente presentes e predominantes no mundo-da-vida judaico de então. Fica evidente, neste ciclo, a necessidade de transcendermos os limites da perícope para podermos realizar uma análise psicossocial plenamente adequada.

EXEMPLO 2 (FORMA DISSERTATIVA ) Isaías 42

1 Eis o meu servo, a quem eu sustento, o meu eleito, em quem tenho prazer. Coloquei meu espírito sobre ele, justiça para as nações fará brotar. 2 Não gritará, e não levantará, e não deixará ser ouvida na rua a sua voz. 3 A cana rachada não esmagará, e a torcida bruxuleante não apagará; fielmente fará brotar a justiça. 4 Não desanimará e não será quebrado, até que estabeleça na terra a justiça e em sua lei as ilhas tenham esperança. Os dois principais sujeitos narrativos são Javé e o escravo. A identidade psicossocial

de Javé pode ser deduzida de suas ações: simpatia é a paixão subjacente ao ato de eleger. Podemos entender simpatia como emoção de afinidade, que vincula duas pessoas em função de um objeto-valor comum — nessa perícope, podemos dizer que se trata de uma afinidade eletiva. A simpatia é, também, emoção intimamente ligada ao amor, quase idêntica a ele — e se poderia perguntar se, à luz do discurso

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deuteronomista sobre a eleição (baseada no amor), não seria este (amor) a melhor definição da paixão que liga Javé ao escravo. Prefiro, em virtude do caráter iniciatório do texto (a investidura do escravo), manter o termo simpatia. Explícita no texto é a paixão do deleite: Javé tem prazer no escravo que escolheu, um prazer proléptico, voltado para o futuro, que antecipa a fidelidade e a perseverança do escravo no cumprimento de sua missão. À outorga do Espírito ao escravo, bem como ao seu sustento por parte de Javé, corresponde a paixão da generosidade, o presentear, a dádiva não movida por obrigação, ou sustentada por um sistema de trocas. Na conjugação dessas paixões, aliadas ao caráter libertador da tarefa do escravo, pode-se afirmar que Javé é apresentado pelo texto como pessoa amorosa (pensando no amor como a conjunção de simpatia e generosidade) e justa (pois que ajudar a quem está sob dominação é fruto da justa indignação e generosidade compassiva).

Quanto à identidade patêmica do escravo, podemos destacar: sua fidelidade àquele que o elegeu, confiável aos olhos de seu Deus (aspectualizada como incoativa, fidelidade que demonstrará no exercício da sua tarefa). A obra que lhe é posta nos ombros demanda compaixão e coragem. Para identificar-se com pessoas e nações dominadas, é preciso compadecer-se delas (assumir sua condição), e para enfrentar o dominador há que se ter coragem (a bravura e força moral necessárias diante de situações de risco). Explícita no texto está a perseverança (na forma negativa “não desanimará”), que é a coragem em seu estado durativo, a firmeza diante da constante presença dos riscos e perigos que envolvem a ação libertadora — e é irmã da fidelidade, também uma paixão de constância, de firmeza no relacionamento com outras pessoas e no seguimento do projeto de busca de valores. Em síntese, o texto apresenta um escravo decidido, aquele tipo de pessoa que resolutamente enfrenta todas as situações sem se desviar do projeto de vida que estabeleceu, sem abrir mão dos seus valores, não importa quais sejam os perigos que enfrentará, ou os prejuízos que sofrerá.

CONCEITOS BÁSICOS Paixão. Na análise sêmio-discursiva, paixões são efeitos de sentido das qualificações

modais do sujeito da ação (ou seja, da manipulação e competência para sua performance), e o caracterizam como sujeito de estado. Assim, não podem ser analisadas de modo psicológico, mas narrativamente. Há dois tipos de paixões: simples (quando não há combinação de qualificações modais) e complexas (quando há combinação de qualificações modais). As paixões também se distinguem conforme a intensidade e duração (tecnicamente, aspectualização), conforme o objeto visado e sua orientação temporal (para o passado, como no remorso; ou para o futuro, como no medo). A peculiaridade da perspectiva sêmio-discursiva da compreensão da paixão é bem sintetizada por Denis Bertrand: “Distinguindo-se das abordagens filosófica e psicopatológica do passional, a semiótica restringe sua observação à dimensão linguageira e discursiva do fenômeno. Ela procura inscrever seu objeto nos princípios de pertinência e de coerência da teoria geral da significação. Ela se interessa pelas formas culturais dos dispositivos passionais que o discurso configurou. Aliás, é nesse limite que ela interessa ao especialista em análise textual”.2

Paixões simples. Paixões simples são efeitos de sentido do querer-ser (que subsume o dever-ser); decorrem de um único tipo de modalização do sujeito do estado. Veja o quadro dessas paixões:3

2 2

Caminhos da semiótica literária, p. 377.

3 3 Extraído de BARROS, Diana L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos, p. 63.

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Querer(dever) – ser(fazer)

Não-querer(dever) – não-ser(fazer)

Querer(dever) – não-ser(fazer)

Não-querer(dever) – ser(fazer)

Desejo Avareza Desprendimento Desinteresse

Anseio Mesquinhez Generosidade Repulsa

Ambição Usura Liberalidade Medo

Cupidez Vinice Prodigalidade Aversão

Avidez

Curiosidade

Inveja

As paixões do querer-ser são aquelas que modalizam o desejo do sujeito da ação de entrar em conjunção com o objeto-valor. O desejo é a menos intensa delas, marca simplesmente o querer. À medida que aumenta a intensidade do querer-ser (estar em conjunção com o objeto-valor), a língua oferece diferentes vocábulos para expressar esse efeito de sentido — anseio, avidez, cupidez (cobiça). As paixões do não-querer-não-ser são aquelas que modalizam o sujeito pelo não-querer-não-estar em conjunção com o objeto (ou, pelo não querer entrar em disjunção com o objeto), como a avareza e suas diferentes intensidades. As paixões do querer-não-ser são aquelas que modalizam o sujeito pelo não-querer estar em conjunção com o objeto-valor: generosidade e similares (o desprendimento é a menos intensa). Por fim, as do não-querer-ser são aquelas em que o sujeito é modalizado pelo não-querer estar em conjunção com o objeto-valor, desde a menos intensa (o desinteresse) até as mais intensas.

Paixões complexas. São efeitos de sentido derivados de uma combinação de qualificações modais do sujeito do estado. Segundo Greimas, as paixões complexas têm um estado inicial de espera, que é o momento inicial do percurso passional. Quando a espera é simples, o querer(dever)-ser do sujeito não é suficiente para levá-lo a agir. A espera é fiduciária quando o sujeito do estado mantém uma relação de confiança (fidúcia) com o sujeito do fazer para realizar a ação. A espera também é aspectualizada (pode ser relaxada ou tensa). Vejamos um breve quadro descritivo da categorização básica das paixões complexas do querer-ser, também extraído do texto de Diana Barros (p. 64s.) e apresentado como exemplo de trabalho semiótico sobre as paixões:

Aflição e insegurança Esperança e segurança Satisfação e confiança (Espera tensa) (Espera paciente)

Disjunção e tensão Não-disjunção e distensão Conjunção e relaxamento Querer-ser Querer-ser Querer-ser Crer-não-ser Não-crer-não-ser Não-saber-poder-ser Saber-poder-ser Crer-ser (Espera relaxada) (Espera não-paciente)

Conjunção e relaxamento Não-disjunção e distensão Conjunção e relaxamento Querer-ser Querer-ser Querer-ser Crer-ser Não-crer-ser Não-ser-crer-não-ser A partir de formalizações como esta, a semiótica postula a categorização e a classificação

das paixões enquanto efeitos de sentido nas diferentes línguas e seus respectivos mundos-da-vida.

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Segundo Diana Barros, as paixões complexas podem ser assim classificadas: 1) de falta, que se desdobram em fiduciárias (e.g., insegurança) e de objeto (e.g., aflição, ansiedade); 2) de liqüidação de falta (fiduciária), que se desdobram em paixões de virtualização e de atualização (e.g., antipatia, cólera, rancor) e de realização (e.g., revolta, vingança); 3) fiduciárias (não de falta, ou liqüidação de falta), que se desdobram em paixões de confiança (e.g., confiança, decepção, desilusão) e de benquerença (e.g., amor); e 4) de objeto (e.g., alegria, satisfação, tristeza).4

A classificação e listagem das paixões é um trabalho complexo e ainda não acabado, até porque há diversas possibilidades de taxionomia das paixões mesmo em perspectiva semiótica. No caso dos estudos bíblicos, essa é uma tarefa urgente ainda a ser realizada.

Identidade. A resultante de um processo psicossocial de diferenciação e identificação da pessoa em relação às demais em sua sociedade. “O que dá forma à minha própria identidade não é só a maneira pela qual, reflexivamente, eu me defino (ou tento me definir) em relação à imagem que outrem me envia de mim mesmo; é também a maneira pela qual, transitivamente, objetivo a alteridade do outro atribuindo um conteúdo específico à diferença que me separa dele.”5 Guardadas as devidas proporções, esta noção de identidade pode ser aplicada também a grupos sociais, instituições e nações, quando então se destaca a sua dimensão sociocultural.

CONCEITOS OPERACIONAIS Modalização. Termo da sintaxe do nível narrativo que explica a qualificação do sujeito com

relação ao seu fazer (modalização do fazer — sujeito do fazer), a relação do sujeito com os objetos-valor (qualificação do ser — sujeito do estado-paixões), e a relação do sujeito com o objeto, se verdadeira ou falsa, mentirosa ou secreta (modalidade veridictória). Pode-se dizer que o sujeito possui uma existência modal, alterada constantemente pelas relações que se estabelecem entre sujeito e objeto e sujeitos entre si. Como declarou J. C. Coquet: “Do ponto de vista paradigmático, o sujeito é dotado de uma carga modal de maior ou menor complexidade, constituída por modalidades compatíveis, contrárias ou contraditórias que o definem a cada instante de seu percurso. [...] Do ponto de vista sintagmático, a carga modal é apresentada, simultaneamente, como hierarquizada e evolutiva. Uma modalidade dominante define o sujeito, pondo as outras sob sua dependência: por exemplo, o /querer/ regerá, ao longo do percurso, o saber e o poder fazer, formando um ‘sujeito do desejo’, ou será o /saber/ que formará a modalidade diretriz, dominando o querer e o poder fazer, para formar um ‘sujeito de direito’ ”.6

Aspectualização. Mecanismo lingüístico de atribuição de aspecto a uma ação ou paixão. “O aspecto, definido em lingüística como ‘ponto de vista sobre o processo’, articula, como sabemos, as categorias do acabado e do não acabado, do incoativo, do durativo, do iterativo, do terminativo.”7 Na análise das paixões, o aspecto é um dos desdobramentos da paixão, qualificando as relações passionais e distinguindo, em conseqüencia, seus efeitos de sentido e suas respectivas lexicalizações.

Percurso passional. Modelo explicativo do processo narrativo do sujeito passional (patêmico), caracterizado por quatro fases logicamente dependentes e sucessivas: disposição (a abertura do sujeito de estado para encetar a busca dos valores, que se 4 4 Diana L. P. de BARROS,Teoria do discurso: fundamentos semióticos, p. 69.

5 5 Eric LANDOWSKI, Presenças do outro: ensaios de sociossemiótica, p. 4.

6 6DENIS BERTRAND, Caminhos da semiótica literária, p. 367.

7 7 Idem, p. 371.

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caracteriza como espera), sensibilização (aspectualização das relações patêmicas dos sujeitos), emoção (paixão vinculada a um sujeito) e moralização (sanção sociocultural da paixão) — fases que correspondem, grosso modo, aos percurso da ação: manipulação, competência, performance e sanção. Sua função primária é operacionalizar a análise das paixões em uma dada passagem. Consiste em um simulacro da intersubjetividade humana, das relações passionais entre sujeitos na concretização de seus objetivos de vida. Semelhantemente ao percurso do fazer, as quatro fases do percurso passional não estarão necessariamente explícitas em um texto, mas, enquanto forma de organização (sintáxica) da narratividade, estará sempre presente em todo e qualquer texto. Segundo a terminologia sêmio-discursiva, a dimensão psicossocial do texto tem a ver com o percurso patêmico (passional) do sujeito na busca dos valores e na construção da sua identidade. Distinta das abordagens filosófica e psicológica, a semiótica analisa as paixões enquanto efeitos de sentido das modalizações do sujeito do estado, conforme lexicalizadas e sedimentadas tradicionalmente no mundo-da-vida, e dadas à interpretação nos textos.

EXERCÍCIOS

1. Escolha um filme e analise os mecanismos estilísticos e argumentativos que configuram seu esforço de persuasão.

2. Escolha tipos diferentes de perícopes da Bíblia (epístolas, poesia, sabedoria, leis) e analise os mecanismos estilísticos e argumentativos que configuram o seu esforço de persuasão.

SUGESTÕES DE LEITURA Textos didáticos

SAVIOLI , Francisco Platão &FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1996. Lições 19 a 21, p. 281-334 (argumentação); Lições 22-23, p. 337-366 (estilo).

_____. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1991. Lições 20 a 27, p. 173-249 (argumentação); Lições 36 a 39 p. 329-370 (estilo). Textos técnicos

BRANDÃO, Helena H. N. Subjetividade, argumentação, polifonia: a propaganda da Petrobrás. São Paulo: Editora UNESP, 1997.

DISCINI, Norma. O estilo nos textos: história em quadrinhos, mídia, literatura. São Paulo: Contexto, 2004.

MEURER, J. L.; BONINI, Adair &MOTTA-ROTH, Désirée (orgs.) Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

OSAKABI, H. Argumentação e discurso político. São Paulo: Kairós, 1978.

5 Ciclo 2 Dimensão teológica da ação (parte 3): Teologia do texto 9Naqueles dias, veioJesus, de Nazaré da Galiléia, e por Joãofoi batizadonorio Jordão. 10Logo ao sairda água, viuos céusrasgarem-se e o EspíritodescendoCOMO POMBAsobre ele. 11Então foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu FILHO AMADO, em ti mecomprazo.

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Marcos 1 Quando lemos um texto apressadamente, logo notamos seus possíveis “temas”; mas, sob um olhar mais cuidadoso, é comum modificar a primeira percepção. Se eu perguntasse a você sobre o que trata Marcos 1:9-11, talvez a resposta seria o batismo de Jesus, ou a unção de Jesus com o Espírito, ou o prazer que o Pai sente em relação ao Filho. Repare, porém, os destaques no texto acima: as palavras em itálico (v. 9) têm em comum o se referirem à solidariedade de Jesus; e as sublinhadas (v. 10 e 11), à vocação de Jesus, após o batismo. Em Marcos 1:9-11 encontramos dois agrupamentos de palavras, conforme as idéias que as mantêm unidas: a solidariedade (v. 9) e a vocação (v. 10-11).

Batismo, unção e prazer são conteúdos superficiais do texto, mas não os temas. São conteúdos que nos apontam para os temas e nos convidam a ler o texto com mais atenção e profundidade. Os temas de um texto são os agrupamentos de palavras e sentenças que partilham características comuns e podem ser explicadas, categorizadas ou classificadas por um tema mais abstrato. Deixe-me explicar brevemente minhas escolhas. Identifiquei a solidariedade como o tema do versículo 9, porque essa é a categoria que explica por que Jesus, não sendo pecador, se apresenta ao batismo de João. Ao ser batizado, Jesus torna pública sua solidariedade com pessoas pecadoras e impuras de seu tempo. Identifiquei o tema dos versículos 10-11 como a vocação de Jesus, porque essa é a categoria que explica a unção do Espírito e a declaração da voz celestial, que servem como declaração formal de investidura. Atente, enfim, para o fato de que, se não tivéssemos estudado as relações intertextuais e interdiscursivas da perícope, dificilmente perceberíamos que esses são os temas do relato do batismo.

A análise semântica do texto deve ser feita, então, depois da análise da interdiscursividade e da estilística e argumentação do texto, complementando-as e lhes possibilitando uma síntese final.

INTRODUÇÃO O sentido é organizado de três maneiras, sendo a terceira a organização semântica do texto em percursos temáticos (ou simplesmente temas), que são a combinação de palavras e frases debaixo de uma idéia (tema) comum, que é o representante dos discursos sociais no texto. Mesmo os textos aparentemente não temáticos (textos figurativos, como narrativas, histórias em quadrinhos etc.) são organizados em percursos temáticos, e nesse caso é preciso trabalhar ainda mais disciplinadamente para perceber os temas escondidos sob as figuras que compõem um texto.

Depois da análise das relações intertextuais e interdiscursivas, das marcas estilísticas e argumentativas, passamos ao estudo da organização das possibilidades de sentido teológico do texto. Neste nível da análise sêmio-discursiva, dizemos que o sentido está estruturado ao redor de percursos temáticos (ou percursos figurativo-temáticos), ou seja: as palavras e sentenças que formam um texto se agrupam, se articulam, ou se encadeiam sob uma idéia comum, um tema comum que as explique e as mantenha unidas entre si.

Chamamos de temáticos os percursos que são compostos primariamente por palavras-temas, e de figurativo-temáticos os que são compostos primariamente por palavras-figuras. Temas são palavras abstratas, que servem para explicar, classificar ou categorizar o que existe no mundo. Figuras são palavras concretas, que se referem a coisas que existem no mundo.

O relato do batismo de Jesus é um texto figurativo (composto primariamente por figuras), o que exige muito mais trabalho para descobrirmos os temas, pois em um texto figurativo os temas ficam ocultos sob as figuras que compõem o texto, e só podem ser adequadamente percebidos nos conjuntos de figuras, e não nas figuras isoladamente.

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Para descobrir os percursos de um texto é necessário que sejamos capazes de abstrair do texto (palavras e sentenças, organizadas estilística e argumentativamente) as idéias que explicam o que está na superfície, ou seja, o que está presente no texto de forma menos abstrata. A identificação dos percursos pode seguir, em um texto, ou a lógica das personagens, ou a lógica da estrutura do texto, dependendo de cada texto analisado. Os percursos podem estar em seqüência, podem estar misturados, fora da ordem do texto, ou entrelaçados uns com os outros. A criatividade e complexidade do texto determinarão a lógica que deveremos seguir para identificar os seus percursos temáticos.

CICLO 2: AS PERGUNTAS Quais são as possibilidades de sentido de um texto e como elas estão organizadas 1) intertextual e interdiscursivamente; 2) estilística e argumentativamente; e 3) figurativa e tematicamente?

COMO FAZER 1. Reconheça as figuras e temas presentes no texto. 2. Identifique os percursos temáticos que organizam as figuras e temas do texto, nomeando

o tema de cada percurso. 3. Detalhe os sentidos de cada percurso presente no texto e atente para as isotopias nele

presentes. 4. Identifique o tema principal do texto — ou seja, o grande percurso que unifica os

percursos menores e dá coerência ao texto como um todo. 5. Faça uma síntese dos significados do texto, a partir do tema principal.

EXEMPLO 1 (FORMA DESCRITIVA ) Isaías 42

1 Eis o meu servo, a quem eu sustento, o meu eleito, em quem tenho prazer. Coloquei meu espírito sobre ele, justiça para as nações fará brotar. 2 Não gritará, e não levantará, e não deixará ser ouvida na rua a sua voz. 3 A cana rachada não esmagará, e a torcida bruxuleante não apagará; fielmente fará brotar a justiça. 4 Não desanimará e não será quebrado, até que estabeleça na terra a justiça e em sua lei as ilhas tenham esperança.

Reconhecendo as figuras e temas As palavras em itálico são temas, ou seja, são termos abstratos que explicam algo que existe no mundo. Vejamos: servo é um termo que explica a condição da pessoa chamada por Javé; sustento explica o tipo de relação que Javé mantém com o servo, assim como os termos eleito e tenho prazer. Justiça é um termo que classifica as relações entre pessoas e sociedade; fielmente é um termo que explica a relação do servo com Javé; lei é um termo que classifica certo conjunto de normas; e esperança é um termo que categoriza o tipo de expectativa que as ilhas têm. As demais palavras do texto são figuras, referem-se a coisas que existem no mundo e a ações que podem ser vistas — são termos concretos. Identificando os percursos A perícope está organizada mediante os seguintes percursos: 1) vocação libertadora (v. 1, 4b); 2) missão solidária (v. 2-3); e 3) missão perseverante (v. 4). O primeiro percurso

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agrupa os termos e sentenças que têm em comum a vocação do servo (lembre-se que é um texto de investidura em uma função), vocação caracterizada como justiça, lei e esperança, termos que, como vimos na análise das relações interdiscursivas, apontam para a libertação de pessoas e povos oprimidos, marginalizados. O segundo tematiza a solidariedade do servo, no cumprimento da sua missão, com pessoas oprimidas e marginalizadas, o que vimos parcialmente na análise da interdiscursividade e podemos depreender das metáforas do versículo 3. O terceiro tematiza a perseverança do servo no cumprimento de sua missão, pois ele não desanimará enquanto não cumprir a sua tarefa. Detalhando os sentidos A vocação do escravo é descrita de duas maneiras. Em primeiro lugar, pela palavra de Javé à audiência da corte celestial, no versículo 1, e, em segundo, pela retomada e ampliação dessa palavra no percurso sobre a perseverança do servo (v. 4b). É Javé quem escolhe, nomeia e instala o servo (meu). A condição paradoxal do servo perpassa o texto: embora escolhido, sustentado, ungido e chamado por Javé — sinais de dignidade e grandeza — ele é um escravo, sujeito também ao desânimo e ao desespero. É escravo, mas tratado por Javé como também se trataria a um rei (eleição, sustento, unção, proteção, instalação). O tom pessoal, relacional do texto, é ressaltado pelo uso constante dos pronomes de primeira pessoa (meu servo, meu eleito, meu espírito; eu sustento, eu tenho prazer). Como escravo de Javé, sua missão é pesada e ampla: proclamar a justiça de Javé com fidelidade, ensinar e defender a lei que transformará até os confins da terra, que têm esperança em ser libertados por Deus de sua servidão.

No cumprimento de sua missão, ele exercerá algumas funções de reis: defender a justiça, libertar os cativos; bem como de profetas e sacerdotes: proclamação e ensino da lei de Javé. Mas realizará a sua missão de forma solidária: não se aproveitará da função real para anunciar a palavra com a autoridade de um arauto do rei, como se fosse uma mensagem oficial do rei, obrigatória a todos os seus ouvintes. A cana esmagada e a torcida bruxuleante são metáforas para as pessoas sofridas, a ponto de se extinguirem, por causa da opressão e dominação a que estão sujeitas. Simbolizam, também, os exilados do povo de Javé, pagando o preço de seus pecados, mas prestes a ser perdoados e consolados por seu Deus.

A vocação e o sustento de Javé garantem que o escravo realizará a sua tarefa, por mais que esta pareça humanamente impossível. A realização da tarefa, pelo servo, claramente se dará em um ambiente de conflito e confronto — senão, não correria o risco de desanimar antes de cumprir a missão, nem precisaria do sustento de Javé. Esse ambiente conflitivo se dá tanto do ponto de vista do mundo “divino” — Javé derrotando os deuses-ídolos da Babilônia e regendo os deuses-ídolos dos persas (cf. o conjunto de temas em Isaías 40—48); quanto do ponto de vista do mundo “terrestre”, no qual o povo de Javé e os povos a quem o escravo direciona sua missão estão subjugados ao império babilônico (são canas esmagadas, torcidas bruxuleantes).

Um termo técnico que a semiótica usa para indicar as diferentes dimensões de sentido de um texto é isotopia. Isotopia é um direcionamento da leitura que o texto apresenta aos seus leitores, a partir dos seus percursos temáticos. Identifiquei nos parágrafos anteriores as seguintes isotopias: 1) teológica, o texto versa a respeito de Deus e dos conflitos teológicos de seu tempo; 2) vocacional, o texto descreve a vocação do servo e sua missão em termos derivados das funções religiosas da época; 3) pessoal, o texto registra os sentimentos e as atitudes do servo; e 4) política, o texto estampa tanto a opressão causada pelo império babilônico aos exilados e demais povos, como a libertação divina. Prestar atenção a este tipo de detalhes nos ajuda a não fazermos leituras reducionistas do texto bíblico, bem como nos impede de enxergar no texto

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sentidos que nele não estão presentes. Por fim, facilita o nosso trabalho nos ciclos que ainda vêm à frente. Porque um texto possui vários sentidos (polissemia), mas não qualquer sentido, é que precisamos nos deixar ser dirigidos pelo próprio texto na sua interpretação. Identificando o tema que dá coerência ao texto Que grande tema unifica os temas da vocação libertadora, missão solidária e perseverante? Podemos usar dois termos bíblicos para nomear esse tema: êxodo ou libertação. O termo êxodo é mais sugestivo, evocativo; enquanto o termo libertação é mais explicativo. Ambos, porém, retratam a libertação de pessoas de um regime de opressão para iniciar uma nova vida em comum, sob a vontade e direção de Javé. Repare que neste nível da análise estamos buscando por um tema realmente bastante abstrato, pois este tema que dá unidade e coerência ao texto é o elo mais profundo que liga o texto ao seu mundo-da-vida e nos ajuda a localizar o texto nas formações discursivas desse mundo-da-vida. Elaborando uma síntese Podemos entender a missão do escravo de Javé como a libertação dos escravizados pelo império babilônico: Israel e também outras nações — um novo êxodo anunciado por Javé e concretizado com a mediação do escravo (como o antigo escravo Moisés) — que é uma versão ampliada do antigo êxodo dos hebreus do Egito. Um novo êxodo que traz uma nova justiça, uma nova lei e uma nova esperança em escala global, universalizando a justiça, a lei e a esperança que Israel, no passado, vivenciou e representou; da qual se afastou e por isso foi punido por seu Deus, mas está prestes a ser novamente restaurado para glorificar seu Senhor na terra.

EXEMPLO 2 (FORMA DISSERTATIVA ) Marcos 1 9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo. Em vez de seguir passo a passo, apresento a análise de Marcos 1:9-11 na forma de um comentário do texto, organizado ao redor do seu tema central: a messianidade (a identidade messiânica) de Jesus.

A primeira característica da identidade messiânica de Jesus é a filialdade fiel ou fidelidade filial. Ele é chamado de filho (1:11b) pela voz do céu. É interessante destacar que é o próprio Pai de Jesus quem “cita” as Escrituras: “Tu és o meu filho amado (único),1 em ti tenho prazer”. A forma da citação merece destaque, pois se dá junção de pelo menos três passagens: Gênesis 22:2 (12,16), Salmos 2:7 e Isaías 42:1. O que esse sincretismo textual conta sobre a identificação de Jesus como filho de Deus?

Como filho amado/único — o novo Isaque — ele encarna o verdadeiro Israel, na condição daquele que irá sofrer pelo povo, tal como um cordeiro pascal: como Isaque, o

1 1 À luz da tradição judaica sobre Isaque, o termo agapêtós deve ser entendido na dupla

acepção de filho amado e único. Veja, entre outros, J. D. LEVENSON, The Death and Resurrection

of the Beloved Son: The Transformation of Child Sacrifice in Judaism and Christianity (New

Haven: Yale University Press, 1993). Leve-se em consideração também que “no grego da LXX,

quase metade de todos os usos de agapêtos, ‘amado’, com ‘filho’, significa ‘único’ ” (C. S.

MANN, Mark: A new translation with introduction and commentary, New York: Doubleday,

1986, p. 201).

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cordeiro pascal, e servo sofredor, Jesus dará pleno prazer ao Pai nos céus somente quando enfrentar um embate brutal como nada menos do que a própria morte. Não é à toa que a última ocorrência da expressão, no evangelho de Marcos, se dá na voz terrestre do centurião romano que declara ser Jesus verdadeiramente o Filho de Deus. A voz celestial e a voz terrestre confirmam a filiação de Jesus, ambas destacando sua trajetória da morte para a glorificação.

Essa interpretação é reforçada pela citação de Isaías 42:1. O filho do Pai celestial age como o servo de Javé, não só como aquele que traz justiça a Israel e a todas as nações, mas também como aquele que é rejeitado, sofre e morre para cumprir sua vocação e missão. Se, na citação de Gênesis 22, Jesus é apresentado como o novo Isaque, agora ele é exposto como novo profeta e novo Moisés, o servo que dirige o povo de Israel em seu novo êxodo, mas o faz de forma solidária, e solidária até a própria morte.

A citação de Salmos 2:7 caracteriza Jesus como o novo Davi. A dimensão régia da identidade messiânica de Jesus é qualificada pelas identificações anteriores derivadas da citação sincrética. Este é um rei que efetivamente governa como libertador dos pobres, e não como conquistador das nações, o que é demonstrado no evangelho pelas ações de Jesus, mas também pela interpretação que o próprio Jesus faz dessas ações em Marcos 10:35-45. Vimos, na interdiscursividade, a importância do servo de Javé, em Isaías 40—55, para a construção da identidade de Jesus. Este novo rei é um rei-servo, veio para servir, e não para ser servido.

O Messias, filho/servo fiel ao Pai é, simultaneamente, solidário com pessoas impuras e pecadoras. Em Marcos, o batismo de Jesus é a primeira ação concretizadora dessa solidariedade: ele desce da Galiléia e se apresenta para ser batizado (note o contraste entre a fala de João sobre Jesus [Mc 1:2ss] e a submissão voluntária de Jesus ao batismo). Ao ser batizado, Jesus assume simbolicamente a condição de pecador, de pessoa impura, de membro do povo que precisava da salvação e da vinda do Messias. Essa solidariedade messiânica é também marco de esperança, pois, na sua pecaminosidade simbólica, o Messias afirma a pecaminosidade do sistema que mantém o povo judeu sob servidão, e torna iminente a sua destruição.

No espaço-tempo da crítica profética ao judaísmo oficial de seu tempo, Jesus encena uma nova atitude messiânica, e se qualifica como o Messias por se identificar com as pessoas impuras e pecadoras. O tema que deriva desta atitude de Jesus é a sua frontal oposição à identidade legitimadora do judaísmo oficial de seu tempo. A oposição pureza-impureza é, neste episódio, invertida totalmente — o Messias, que deveria ser completamente puro, assume a condição de pessoa impura e pecadora, apresentando-se ao batismo de João. O poderoso ungido de Deus se humilha e demonstra, por sua nova prática, que uma nova esperança messiânica era necessária. Os caminhos de Deus, uma vez mais, iriam surpreender seu povo.

Três são, portanto, as características da messianidade de Jesus: fidelidade filial ao Pai, solidariedade com pessoas impuras e pecadoras, e oposição à religião oficial. Não é à toa que Jesus era escândalo para os judeus e loucura para os gregos — e continua assim até hoje!

CONCEITOS BÁSICOS Figuras. Palavras que se referem a coisas que existem no mundo, seja o real, seja o

imaginário do texto. Também chamadas de termos concretos. Sozinhas, as figuras não têm sentido, mas na forma de percursos, ocultam temas, ou seja, revestem idéias abstratas de formas concretas.

Temas. Termos que explicam, classificam ou categorizam as figuras. Também chamadas de termos abstratos. São as idéias, os conceitos, as noções significadas no texto. Os temas

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do texto também são encadeados em percursos, que são “temas dos temas”, ou seja, explicam, classificam ou categorizam os temas do texto.

Isotopia. Direcionamento da leitura do texto, com base na repetição, na recorrência de uma temática nele presente. Certas palavras, ou frases, nos textos, indicam as diferentes isotopias em que um texto pode ser lido, e são chamadas de desencadeadores de isotopias.

Polissemia. Literalmente, “pluralidade de sentidos”. Todo texto possui mais de um sentido, porém não significa qualquer coisa que nele queiramos encontrar. A polissemia textual é controlada pela organização sintática do texto e é analisada mediante a identificação das isotopias temáticas do texto.

Semântica. Como termo técnico, pode se referir a um dos campos da Lingüística, que estuda o sentido das palavras. Na exegese, normalmente se refere à análise do significado de palavras ou de todo o texto.

CONCEITOS OPERACIONAIS Percursos temáticos e figurativos. Todo texto é composto por figuras e temas. Um

percurso é o encadeamento das palavras que compõem o texto, definido por uma recorrência temática que dá unidade e coerência ao conjunto. Se o texto é predominantemente figurativo, o percurso é figurativo-temático; se predominantemente temático, apenas percurso temático. Analisar semanticamente um texto exige a identificação, a nomeação e o detalhamento dos percursos em que o texto está organizado. Para simplificar, usa-se apenas o termo percurso.

O que figuras como janela, porta, fechadura, sala-de-estar, quarto, banheiro têm em comum?. O que dá coerência a essa lista é o tema moradia. Se, porém, a lista fosse: janela, porta, fechadura, caixa registradora, sala-de-estar, quarto, banheiro — não haveria coerência, pois moradias não se caracterizam por possuir caixas registradoras. O mesmo ocorre com textos temáticos (leia Gl 5:19-21 e depois 22-23). São textos temáticos que já sugerem a definição dos percursos. Nos primeiros versículos, as obras da carne; nos demais, o fruto do Espírito. O que dá unidade e coerência às listas de ações e valores nesses versículos são, respectivamente, a impiedade e a santidade.

Unidade e coerência temáticas. Um texto pode ser constituído por um ou mais percursos. Qualquer que seja o número desses percursos, porém, um texto só terá sido bem formulado se tiver unidade e coerência entre os seus percursos. Na terminologia semiótica, o tema mais abstrato que dá unidade e coerência a um texto é denominado de estrutura fundamental, ou de quadrado semiótico. Em uma linguagem mais conhecida, poderíamos dizer que os percursos correspondem aos sub-temas do texto, enquanto a estrutura fundamental, ou o quadrado semiótico corresponde ao tema principal do texto.

O procedimento para identificar a estrutura fundamental de um texto é semelhante ao usado para identificar os percursos: há que se descobrir qual é a noção mais abstrata que encadeia e dá unidade aos diferentes percursos que compõem um texto. Voltemos ao exemplo de Gálatas 5:19-23. Vimos dois percursos: o da impiedade e o da santidade. Qual é o tema que unifica e dá coerência a esses percursos? O tema da espiritualidade, ou da vida cristã.

Entende-se, ainda, que a natureza da estrutura fundamental seja a de um conflito semântico. Espiritualidade, por exemplo, é o contrário de carnalidade, e o texto de Gálatas defende uma vida baseada na espiritualidade, e não na carnalidade. Todo texto, então, tem como seu tema principal um conflito semântico, que é a ligação mais profunda que o texto tem com o seu mundo-da-vida, que se constitui mediante a pluralidade de formas conflitivas de explicar a realidade que existem em dada sociedade. Na teoria semiótica padrão, a forma (a sintaxe) da estrutura fundamental é a do quadrado semiótico. Por razões práticas, optei por não trabalhar com esse conceito,

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muito útil para a compreensão de textos. Caso queira utilizá-lo, recomendo a leitura dos textos técnicos sugeridos ao final do capítulo.

Detalhamento dos sentidos. Em alguns manuais, essa ação é chamada análise semântica ou de comentário, ou análise do conteúdo. Trata-se de compreender e explicar os sentidos das unidades parciais que formam cada percurso do texto (a partir da definição da noção mais abstrata que une os termos que compõem um percurso). O princípio básico para realizar o detalhamento pode ser descrito com este axioma da semântica: “O sentido de uma palavra, na oração, é a menor contribuição dessa palavra ao sentido da oração”; axioma que pode ser ampliado para: “O sentido de uma sentença, num período, é a menor contribuição dessa sentença ao sentido do período”, e assim sucessivamente.

Vejamos um exemplo: “A casa branca foi atacada por mísseis teleguiados”. Casa branca pode ter mais de um sentido: pode se referir a uma casa qualquer, da cor branca; ou pode se referir à sede do governo dos Estados Unidos da América. Na sentença acima, a menor contribuição de “casa branca” ao sentido da sentença é dada pelo sentido “sede do governo” norte-americano, pois dificilmente alguém atacaria uma casa branca qualquer com mísseis teleguiados. Este axioma é o corretivo fundamental para um erro infelizmente muito comum na interpretação da Bíblia: o erro que James Barr chamou de transferência ilegítima da totalidade. Muita gente, ao ler um texto bíblico, procura colocar nas palavras do texto o maior número possível de sentidos que essa palavra pode ter na Bíblia como um todo. Toda palavra é polissêmica, mas o sentido de uma palavra, em um texto, é determinado exclusivamente pelo próprio texto, na forma do axioma ora descrito. Não se pode atribuir a uma palavra, numa perícope, todos os sentidos que essa palavra recebe no léxico, ou no dicionário teológico.

Não custa lembrar que o sentido do texto não é a soma do sentido de suas partes, mas sim o sentido do todo do texto. O movimento para a compreensão dos sentidos de um texto começa com o todo e desce para as partes. O detalhamento do sentido é um procedimento aplicado ao estudo das partes do texto, o que deve ser feito somente depois do estudo do todo do texto — o que inclui as análises que estudamos nos dois últimos capítulos: a das relações intertextuais e interdiscursivas, e a dos elementos estilísticos e argumentativos. Segundo a terminologia semiótica, o sentido está organizado no texto por meio de percursos temáticos e/ou temático-figurativos, estes, por sua vez, são unificados por um percurso mais abstrato e abrangente, chamado na teoria semiótica greimasiade estrutura fundamental ou quadrado semiótico. Uma vez que o sentido caminha na direção do todo para as partes e se concretiza mediante a união da forma com o conteúdo, a parte final do estudo semântico do texto é a análise de sua organização.

EXERCÍCIOS 1. Escolha um filme e analise seus percursos temáticos, incluindo o grande tema que lhes

dá coerência. 2. Escolha tipos diferentes de perícopes da Bíblia (epístolas, poesia, sabedoria, leis) e

analise seus sentidos.

SUGESTÕES DE LEITURA Textos didáticos

DISCINI, Norma. A comunicação nos textos. São Paulo: Contexto, 2005. Lições 5, 6 e 8 a 10, p. 183-241; 269-358.

SAVIOLI , Francisco Platão &FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1996. Lições 5 a 11, p. 75-170.

_____. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1991. Lições 5, 8 a 15, p. 45-53; 71-135.

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Textos técnicos BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990. Capítulo

4, p. 53-67. FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2005 (13a.

Edição revista e ampliada), p. 55-118. TATIT, Luiz. Análise semiótica através das letras. São Paulo: Ateliê, 2001. O livro todo.

6 Ciclo 3 Dimensão sociocultural da ação (parte 1): Narratividade

9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo.

Marcos 1 Preste atenção às frases em itálico, pois elas são as primeiras pistas para a análise da dimensão sociocultural da ação no texto de Marcos. Mas só conseguimos perceber que elas são pistas para essa análise por causa de nosso conhecimento enciclopédico (seja o anteriormente constituído, seja o adquirido ao analisarmos as relações intertextuais e interdiscursivas do texto), que prepara o terreno para este aspecto da interpretação do texto. Sabemos que a Galiléia era politicamente separada da Judéia e social, religiosa e culturalmente marginalizada pelo judaísmo oficial. João, que realiza o batismo de Jesus, o faz em um local fora das margens da instituição religiosa oficial, e ele mesmo não tem autoridade institucional para fazê-lo. A voz dos céus, que investe Jesus do papel messiânico, também está pronunciada fora do lugar institucional esperado — o templo. A dimensão sociocultural da ação inclui a atitude, a posição, a maneira como o texto descreve, aceita, modifica ou critica as diferentes dimensões da vida humana em coletividade. Mencionei as dimensões política, religiosa, cultural e social; poderíamos acrescentar as dimensões econômica e jurídica, que compõem o amplo espectro da vida em sociedade.

Neste momento da exegese, precisamos tomar alguns cuidados especiais: 1. Evitar que a leitura se transforme em uma tentativa de análise da sociedade, da cultura,

da política etc. da época em que o texto foi escrito. Esse tipo de análise deve ser feito com outros métodos e com outras fontes de estudo. É claro que o texto bíblico pode contribuir para a análise da realidade social, econômica etc., mas nossa prioridade ao ler o texto, com este método, é compreendê-lo.

2. Evitar anacronismos (atribuir a uma época da história o que pertence a outra época da história) em nossa maneira de compreender a relação do texto com sua época, pois as sociedades antigas eram diferentes da nossa. Uma das principais diferenças precisa ser aqui ressaltada: nos tempos bíblicos, a realidade não era entendida da mesma forma compartimentada que nós fazemos. Não se faziam distinções classificatórias entre política e religião, economia e religião, sociedade e cultura, racional e mítico etc. Isto exige que nos esforcemos para não reduzir os sentidos do texto a uma ou outra dessas dimensões da vida, e para não julgarmos o texto à luz de nossas concepções de racionalidade.

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3. Evitar enxergar no texto as nossas próprias experiências, expressões e instituições da fé cristã (ou da judaica), pois, por mais que a nossa fé seja “bíblica”, ela não é idêntica à testemunhada na Bíblia.

4. Evitar a uniformização dos arranjos socioculturais ao longo de todo o período em que a Bíblia foi escrita, pois as sociedades orientais e ocidentais daqueles tempos passaram por diferentes processos de mudança.

5. Evitar o uso de critérios atuais de avaliação da vida em sociedade. Podemos analisar criticamente a dimensão sociocultural dos textos (seja em perspectiva de gênero, de raça, ideológica, ética, cultural etc.), mas é necessário usar critérios que sejam justos para o texto e seu mundo-da-vida.

Este ciclo também foi dividido em dois capítulos. Neste, enfoco o caminho de análise fornecido pela narratividade e, no próximo, o caminho da interdiscursividade. Ressalto, por fim, que o caminho da narratividade é preliminar ao da interdiscursividade, ou seja, a análise da dimensão sociocultural da ação só se completa com a aplicação dos dois tipos de procedimentos — que são separados neste livro apenas por razões didáticas.

INTRODUÇÃO Há dois caminhos para analisar a dimensão social da ação em perspectiva sêmio-discursiva. O primeiro é moldado pelo próprio texto, e o conceito teórico que o fundamenta é o da narratividade. Diferentemente da narração, ou narrativa (um tipo de texto), a narratividade é uma dimensão de todo e qualquer texto, responsável pelas transformações dos sujeitos e pela busca de valores e da produção do sentido social.

Como analisar a narratividade textual? Toda ação é concebida como um fazer-transformador de estados e pode ser assim analisada. Por exemplo, na sentença “Jesus veio de Nazaré”, o agir de Jesus indicado pelo verbo veio produz transformação no sujeito Jesus: antes, ele não estava no rio Jordão; agora, ele está lá. Para realizar uma ação, o sujeito necessita de intencionalidade e competência, características tanto pessoais quanto sociais. A intencionalidade engloba tanto a motivação para agir, quanto os objetivos da ação, pois quem age sempre o faz em busca de um objetivo, movido por um dever, ou por um querer. Entendendo a motivação como pessoal e social, a semiótica lhe dá o nome de manipulação. Se Jesus foi para o Jordão, é porque ele devia sair de Nazaré para realizar algum objetivo (o objetivo mais superficialmente evidente, no relato marcano, é o de ser batizado).

A intencionalidade, porém, não é suficiente para dar conta da ação. É necessário que o sujeito seja capaz de realizar a ação desejada, que tenha competência para agir. Na linguagem semiótica, a competência se desdobra em saber-fazer e poder-fazer, que sintetizam todas as competências reais de pessoas no mundo. O alvo da ação é denominado objeto-valor, e o que é necessário para alcançar o alvo, objeto-modal. Dever, querer, poder e saber simulam todas as motivações e competências que, no mundo real, mobilizamos para agir. A busca de objetos-valor representa, sêmio-discursivamente, as buscas pessoais e sociais por realização, os conflitos socioeconômicos, políticos etc.

A ação realizada é denominada performance, que se desdobra em um fazer-ser (opera transformação no sujeito da ação) e em um fazer-fazer (efetua transformação na relação do sujeito com o objeto-valor). Uma vez realizada, a ação terá sido bem-sucedida ou não, o alvo terá sido alcançado ou não. Ou seja, a ação será avaliada, receberá (na linguagem semiótica) uma sanção, que pode ser positiva ou negativa. Estes quatro elementos compõem o que se chama, então, de percurso narrativo canônico — um simulacro (modelo) da ação humana em sociedade. A narratividade, portanto, é esse

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movimento, percurso, que vai da intencionalidade (manipulação e objetivo) à sanção, passando pela competência e performance.

PERCURSO NARRATIVO CANÔNICO

Manipulação Competência Performance Sanção Querer-fazer Saber-fazer Querer-fazer Positiva Dever-fazer Poder-fazer Fazer-fazer Negativa

Por fim, o percurso narrativo canônico é composto por três percursos: o do sujeito da ação (que se desdobra em percurso do fazer e em percurso passional, que será objeto de análise no próximo ciclo), o percurso do destinador-manipulador (que instaura a intencionalidade da ação) e o percurso do destinador-julgador (que sanciona a performance). Sujeito e destinadores são construções teóricas, representam sêmio-discursivamente diferentes atores pessoais ou sociais. Em um texto, podem representar pessoas ou instituições diferentes, ou estar sincretizados em uma pessoa textual.

Novamente uma advertência é necessária. A descrição sêmio-discursiva da ação é um simulacro, um modelo explicativo da ação e não uma cópia da ação real. Visa explicar como o texto dá sentido à ação em interação com o seu mundo da vida, não explica a ação realizada fora do texto.

CICLO 3: DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA AÇÃO Como o texto, em interação com seu mundo-da-vida, dá sentido à ação sob a perspectiva 1) da sociedade, 2) da cultura e 3) da religião?

COMO FAZER 1. Identificar as performances principais e seus respectivos percursos narrativos canônicos. 2. Identificar, a partir do percurso narrativo canônico, os objetos-valor em disputa. 3. Analisar a presença do mundo-da-vida (sociedade, cultura e religião) na narratividade. 4. Elaborar uma síntese.

EXEMPLO 1 (FORMA DESCRITIVA ) Marcos 1 9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo.

1. Poderíamos analisar todos os percursos presentes no texto, dirigindo a atenção a todas as performances, ou seja, estudando cada verbo de ação da perícope. É melhor, porém, concentrar esforços na performance principal do texto; neste caso, o batismo de Jesus por João. Uma característica interessante do texto é que, embora João tenha realizado o batismo, a ação é descrita com o verbo na voz passiva, deslocando o foco da atenção de João para Jesus, por isso analiso a performance “batismo” tendo Jesus como sujeito e João como destinador-manipulador.

Manipulação Competência Performance Sanção Dever-ser Saber-ser Fazer-ser Positiva

(Pressuposto) (Pressuposto) Foi batizado Espírito descendo e fala da voz dos céus 2. O batismo provoca uma mudança na pessoa de Jesus (fazer-ser), que é sancionada

positivamente no texto pela descida do Espírito e pela declaração da voz do céu. Já sabemos que o batismo de Jesus representou sua investidura, pelo Pai, como o Messias esperado por Israel. Neste sentido, o batismo deve ser entendido como um objeto-modal, pois ele outorga competência ao Filho para realizar sua missão — esta é o objeto-valor.

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3. O relato de Marcos não explicita a competência e a manipulação, pelo que devemos reconstruí-las mediante um raciocínio de pressuposição lógica. Se o batismo era um ato de arrependimento e solidariedade, preparatório para a missão, a manipulação primordial tinha a forma de um dever-fazer (a partir das relações intratextuais, podemos inferir que este dever foi instaurado pela pregação de João, descrita na perícope imediatamente anterior à do batismo), e a competência primordial, a forma de um saber-fazer (Jesus precisava saber quem era João, onde e por que ele batizava).

A performance de Jesus é sancionada positivamente pelo Pai celestial que envia o Espírito Santo (unge o Filho) e declara a sua messianidade (Filho amado que dá prazer ao Pai). Como destinador-julgador, o Pai estabelece a validade da identidade messiânica de Jesus, investindo-o efetivamente no cargo. Se voltarmos novamente nossa atenção às relações intratextuais, perceberemos que, logo após a perícope do batismo, vem a da tentação de Jesus (Mc 1:12-13), na qual também ele é sancionado positivamente pelo Pai (ao ser servido por anjos e conviver com as feras), que é seguida, por sua vez, pela perícope que descreve o início do ministério messiânico de Jesus (Mc 1:14-15), na qual a sanção não é explicitada. Podemos, então, ver Marcos 1:2-15 como um grande percurso narrativo: a pregação de João funciona como manipulação, batismo e tentação são performances doadoras de competência, que se concretiza na performance principal: a realização da missão messiânica, tudo sancionado positivamente pelo Pai celestial.

4. Resumidamente, podemos notar: a norma social de que para se realizar um ofício público é necessário ser investido nesse ofício; a prática (ritual) religiosa do batismo, o valor e a prática cultural da solidariedade com pessoas impuras e pecadoras. Na busca de seu objeto-valor (a missão messiânica), Jesus entra em conflito com as outras buscas por esse mesmo objeto-valor em seu tempo, delas se diferenciando basicamente por sua escolha de um espaço-tempo não institucional para a investidura e início do ministério messiânico. Isto, enfim, exige que voltemos nossa atenção aos discursos concorrentes sobre a missão messiânica na época do texto — procedimento que estudaremos no próximo capítulo deste Manual.

EXEMPLO 2 (FORMA DISSERTATIVA ) Isaías 42

1 Eis o meu servo, a quem eu sustento, o meu eleito, em quem tenho prazer. Coloquei meu espírito sobre ele, justiça para as nações fará brotar. 2 Não gritará, e não levantará, e não deixará ser ouvida na rua a sua voz. 3 A cana rachada não esmagará, e a torcida bruxuleante não apagará; fielmente fará brotar a justiça. 4 Não desanimará e não será quebrado, até que estabeleça na terra a justiça e em sua lei as ilhas tenham esperança. Procuramos pelas marcas lingüísticas da construção do sentido da “sociedade”

(aquela dimensão do mundo da vida especializada nas ordens legítimas de relacionamentos humanos), e encontramos: 1) no vocabulário da perícope: serviço/escravidão, justiça, nações, dominação/libertação, lei e ilhas; 2) a partir do gênero textual: investidura, ofício do arauto. Quanto à construção do sentido da “cultura”, o vocabulário da perícope nos apresenta os valores da solidariedade, fidelidade, perseverança e esperança. Por fim, quanto à “religião” (excluindo os

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conceitos teológicos): o vocabulário da unção e ofício profético, somado à estrutura de poder soberano, derivada do gênero textual e da intratextualidade. Conforme adverti anteriormente, no mundo-da-vida da época do texto, as distinções entre essas dimensões são insuficientes para dar conta da unidade das mesmas, do seu caráter sincrético. Desta maneira, o uso dos termos aqui é meramente operacional.

O texto de Isaías 42:1-4 (no conjunto de suas relações intratextuais e também interdiscursivas) nos apresenta uma sociedade marcada por intenso conflito — que podemos denominar como uma situação de dominação. É situação de dominação porque nela estão ausentes a justiça e a lei que, para o povo judeu, eram os termos que representavam as relações e as ordens legítimas da sociedade. O vocabulário que servia para legitimar a situação de dominação foi apropriado e subvertido pelo texto, que retrata o escravo como portador da justiça e da lei, os dominados como aqueles que serão, pela pregação do escravo-profeta, desafiados a resistir à dominação e depositar sua esperança em uma sociedade nova, caracterizada pela ausência de dominação.

O texto de Isaías é, então, um texto subversivo, na medida em que se apropria criticamente das formas de legitimação usadas pelo Império Babilônico para manter sua dominação sobre os povos conquistados, confronta-as com as formas de legitimação derivadas da fé em Javé e oferece, assim, uma possibilidade de resistência contra a dominação, além de anunciar que esta chegará ao fim mediante a obra de Ciro, que será usado por Javé para pôr fim à dominação babilônica (conforme se depreende das relações intratextuais). O escravo de Javé, que será instrumento para mobilizar a resistência das pessoas dominadas, está fora das instituições monárquicas: não é servo do rei, do templo, ou do exército; não é arauto da corte que proclama mensagem com a força político-militar que coage seus ouvintes a aceitá-la; não é servo dos deuses babilônios, que legitimavam a ordem dominadora, mas servo de Javé; embora seja um dos judeus, não restringe seu anúncio ao seu próprio povo, mas sua mensagem alcançará também outros povos, mesmo os mais distantes.

Defende, portanto, um exercício comunicativo do poder, baseado em relações justas (o conceito veterotestamentário de justiça usado aqui será mais bem descrito no próximo capítulo), solidárias (nas quais as pessoas mais fracas não são usadas apenas para o benefício das mais fortes) e libertadoras, que geram esperança, esperança que faz sonhar e agir em busca de formas melhores de viver.

Pressuposto pelos termos justiça e lei está o conceito de aliança, que também é uma apropriação crítica do vocabulário da dominação, pois que os povos conquistadores legitimavam suas conquistas mediante tratados (alianças) de vassalagem com os povos subjugados. A aliança, neste caso, não é entre soberano e súditos humanos, mas uma aliança entre iguais. A resistência diante da dominação, porém, exige perseverança, pois se reconhece o caráter intenso, opressor, da situação, e não se diminuem os riscos da reação contra os dominadores.

Por fim, é a fé (religião) que dá sustentação e legitimidade à reação contra a dominação. Como já vimos no estudo da dimensão teológica da ação, o ritual religioso da investidura com unção é apropriado e desinstitucionalizado, de modo tal que o escravo investido na função libertadora encontra a sua legitimidade apenas no Deus que o elegeu, chamou e sustenta, e na aceitação de sua mensagem e ação pelas pessoas dominadas. Contra os deuses da dominação, com seus rituais de legitimação do rei praticados freqüentemente nos festivais de ano novo, a pregação do Isaías do exílio é legitimada apenas pela palavra de Javé. Como veremos na análise das formações discursivas, no próximo capítulo, aos ritos legitimadores da religião oficial do Império, o texto de Isaías contrapõe a palavra poderosa de Javé, única realmente legítima, cuja

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veracidade pode ser comprovada pela memória histórica das ações libertadoras de Javé, sustentando, assim, a resistência e a esperança.

CONCEITOS BÁSICOS Narratividade. “Parte-se de duas concepções complementares de narratividade:

narratividade como transformação de estados, de situações, operadas pelo fazer transformador de um sujeito, que age no e sobre o mundo em busca de certos valores investidos nos objetos; narratividade como sucessão de estabelecimentos e de rupturas de contratos entre um destinador e um destinatário, de que decorrem a comunicação e os conflitos entre os sujeitos e a circulação de objetos-valor.”1

Objeto-modal e objeto-valor. São os objetos com os quais os sujeitos da narratividade mantêm relação, seja de conjunção, seja de disjunção. Os objetos-valor são aqueles efetivamente almejados pelos sujeitos, e os modais são os necessários para que o sujeito entre em conjunção com o objeto-valor. Adverte José Luiz Fiorin: “... não se pode confundir sujeito com pessoa e objeto com coisa. Sujeito e objeto são papéis narrativos que podem ser representados num nível mais superficial por coisas, pessoas ou animais”.2

Destinador-manipulador. O sujeito sêmio-discursivo que motiva outro sujeito para realizar uma performance. Sendo um papel narrativo, o destinador-manipulador pode ser representado no nível temático-figurativo do texto por uma pessoa, uma pregação, um sentimento, uma instituição social etc. Como simulacro narrativo da motivação, a semiótica sintetiza a manipulação como um dever-fazer ou um querer-fazer. A manipulação pelo dever-fazer se desdobra em intimidação (o manipulador faz com que o sujeito deva fazer algo sob pena de receber uma punição) e provocação (o manipulador faz com que o sujeito deva fazer algo para evitar ser julgado negativamente). A manipulação pelo querer-fazer se desdobra em tentação (o manipulador leva o sujeito a querer-fazer algo em busca de uma recompensa) e sedução (o manipulador leva o sujeito a querer-fazer algo para confirmar um juízo positivo que recebeu). Atente para o fato de que estes termos não são usados com o seu sentido normal, cotidiano, nem com o sentido teológico, no caso da tentação. Exemplos de manipulação: a) tentação: “se você se casar com minha filha, receberá uma rica herança”; b) sedução: “já que você é um cara legal, que tal me emprestar uma grana?”; c) intimidação: “se você se casar com minha filha, serei seu eterno inimigo”; e d) provocação: “se você fosse mesmo uma pessoa santa, não mentiria para mim”.

Destinador-julgador. O sujeito sêmio-discursivo que constata a realização da performance e a sanciona de forma positiva ou negativa. A sanção desdobra-se em cognitiva e pragmática. Como papel narrativo, o destinador-julgador modifica o ser do sujeito da ação, seja reconhecendo o seu valor (sanção cognitiva positiva), seja lhe recompensando (sanção pragmática positiva), e vice-versa. A sanção pragmática sempre pressupõe a cognitiva, pois sem o reconhecimento (positivo ou negativo) do sujeito, este não pode receber recompensa, nem punição.

CONCEITOS OPERACIONAIS Percurso narrativo canônico. Uma seqüência de quatro fases, ordenadas entre si mediante

encadeamento lógico, que simula a construção social do sentido e a busca social por valores. Todo e qualquer texto tem, na sua narratividade, um ou mais percursos canônicos, embora nem todas as fases do percurso estejam explicitadas — quando não,

1 1Diana L. P. de BARROS,Teoria do discurso: fundamentos semióticos, p. 26.

2 2Elementos de análise do discurso, p. 29.

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devemos pressupô-las na análise. Suas quatro fases são: manipulação, competência, performance e sanção.

Sociedade.“Consiste nas ordens legítimas através das quais os participantes na comunicação regulam as suas filiações em grupos sociais e salvaguardam a solidariedade.”3 Distingue-se da cultura principalmente pelo caráter legitimador de seus conteúdos, ou seja, por definir que tipos de comportamentos, que papéis sociais, que relações pessoais etc., são legítimas, podem ser realizadas. O sistema de parentesco, por exemplo, é um componente da sociedade, pois legitima que tipos de relacionamentos podem ser efetuados entre parentes, e também entre não parentes (o incesto é uma das normas sociais presente em quase todos os mundos-da-vida). Aspecto fundamental da “sociedade”, então, é a noção de poder e seus conflitos, uma vez que, na ocorrência de conflitos de poder, sempre há também distintos jogos de legitimação da situação. Legitimidade é, então, um termo relativo ao seu sujeito, à sua formação discursiva, pois ordens sociais que para uns são legítimas, para outros não o serão.

Cultura. “Cultura é aquilo que definimos como reserva de conhecimento à qual os participantes na comunicação, ao entender-se uns com os outros, vão buscar as suas interpretações.”4 Distingüe-se da sociedade pelo fato de não se ocupar das legitimações, mas ser composta de noções mais abstratas — valores, idéias, princípios, que estão na base das legitimações.

Religião. O acervo de conhecimentos, valores, práticas e rituais considerados sagrados, mediante o qual, os participantes da interação social produzem sentido último, com pretensão de universalidade, para a vida humana. Para efeitos da exegese, neste ciclo excluímos os conhecimentos religiosos (teologia), já analisados no segundo ciclo. A distinção entre esses componentes do mundo-da-vida (sociedade, cultura e religião) não deve ser entendida de forma rígida, pois na realidade social existem interligados e na prática não é possível atribuir cada conteúdo simplesmente a este ou aquele componente. Religiões concretas, por exemplo, não são compostas apenas por elementos da “religião”, mas também incluem elementos da “cultura” (noções sobre o mundo, a vida, o bem etc.) e da “sociedade” (o conceito de pecado, por exemplo, tem uma função legitimadora negativa).

Poder. “Max Weber definiu o poder como a possibilidade de impor a própria vontade ao comportamento alheio. Hannah Arendt, ao contrário, concebe o poder como a faculdade de alcançar um acordo quanto à ação comum, no contexto da comunicação livre de violência. Ambos vêem no poder um potencial que se atualiza em ações, mas cada um se baseia num modelo de ação distinto.”5 Conjugando os estudos de Habermas com os de Foucault, podemos entender o poder como um tipo de relação que se estabelece entre pessoas, grupos e instituições sociais, em todos os níveis da vida em coletividade, na qual um sujeito visa direcionar a ação de outros sujeitos. As relações de poder podem ser estratégicas (quando o sujeito que exerce o poder usa os sujeitos sobre quem exerce o poder a fim de alcançar seus próprios objetivos), ou comunicativas (quando o sujeito

3 3 Jürgen HABERMAS, “Acções, actos de fala, interacções linguisticamente mediadas e o mundo

vivo”. Em Racionalidade e Comunicação. Lisboa. Edições 70: 2002, p. 139.

4 4 Jürgen HABERMAS, “Acções, actos de fala, interacções linguisticamente mediadas e o mundo

vivo”. Em Racionalidade e comunicação. Lisboa. Edições 70: 2002, p. 139.

5 5 Jürgen HABERMAS, “O conceito de poder de Hannah Arendt”. Em Bárbara FREITAG& Sérgio

Paulo ROUANET (orgs.), Habermas: Sociologia, p. 100.

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que exerce o poder integra os sujeitos em relação aos quais o exerce, de modo que haja certo consenso na busca de objetivos comuns a todos os envolvidos). Quando relações de poder exercidas estrategicamente delimitam de forma drástica a possibilidade de reação dos subjugados, cria-se uma situação de dominação. Formas estratégicas de uso do poder são ilegítimas, assim como a situação de dominação. Somente é legítimo o exercício de poder com a anuência explícita de todos os participantes.

Diante de relações estratégicas de poder, as pessoas subjugadas podem se submeter resignadamente, ou coercitivamente; podem também resistir, conseguindo espaço maior de liberdade e justiça dentro dessas relações de poder; ou, ainda, subverter essas relações, libertando-se. O mesmo vale para as situações de dominação, nas quais a intensidade do uso estratégico do poder é muito maior e demanda respostas igualmente mais intensas.

Se focamos o poder enquanto uma ordem social ou estatal: “... o poder manifesta-se em: a) ordenamentos que garantem a liberdade política; b) na resistência contra as forças que ameaçam a liberdade política, tanto exterior como interiormente; c) naqueles atos revolucionários que fundam as novas instituições da liberdade: ‘o que investe de poder as instituições e as leis de um país, é o apoio do povo, que por sua vez é a continuação daquele consenso original que produziu as instituições e as leis [...] Todas as instituições políticas são manifestações e materializações do poder; elas se petrificam e desagregam no momento em que a força viva do povo deixa de apoiá-las”.6 Segundo a terminologia sêmio-discursiva, as relações, os conflitos, as práticas sociais recebem a sua significação mediante a narratividade, uma dimensão do processo de produção do sentido, que tem como elemento básico a transformação de pessoas e situações provocada pela ação dos sujeitos. A narratividade pode ser analisada a partir do percurso narrativo canônico, que engloba os percursos do sujeito, do destinador-manipulador e do destinador-julgador, bem como sintetiza as buscas sociais pelos objetos-valor.

EXERCÍCIOS 1. Escolha um filme e analise como ele constrói o sentido das dimensões sociedade, cultura

e religião de seu mundo-da-vida. 2. Escolha tipos diferentes de perícopes da Bíblia (epístolas, poesia, sabedoria, leis) e

analise como ele constrói o sentido das dimensões sociedade, cultura e religião de seu mundo-da-vida.

SUGESTÕES DE LEITURA Textos didáticos

DISCINI, Norma. A comunicação nos textos. São Paulo: Contexto, 2005. Lição 7, p. 243-267. SAVIOLI , Francisco Platão &FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. São

Paulo: Ática, 1996. Lição 15, p. 225-236. _____. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1991. Lições 6 e 7, p. 55-

69. Textos técnicos

BARROS, Diana L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual Editora, 1988, p. 7-71.

BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Bauru: EDUSC, 2003, p. 265-353. FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2005. (13a.

Edição revista e ampliada) 6 6 Idem, p. 103.

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HABERMAS, Jürgen. “O conceito de poder de Hannah Arendt”. Em FREITAG, Bárbara &ROUANET, Sérgio Paulo (orgs.). Habermas: Sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 100-118.

ZABATIERO, Júlio P. T. “As estruturas da ação. Construindo o referencial teórico da Teologia Prática”. Em BARRO, Jorge H. &ZABATIERO, Júlio P. T. (eds.). Práxis Evangélica. Revista de Teologia Prática latino-americana. Londrina: Editora Descoberta & Faculdade Teológica Sul-Americana, nº 3, agosto 2003, p. 81-103.

7 Ciclo 3 Dimensão sociocultural da ação (parte 2): Interdiscursividade

9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo.

Marcos 1 Por que Marcos citou três textos do Antigo Testamento para apresentar o conteúdo da voz dos céus? Terá sido uma decisão exclusivamente individual, ou esse já seria um hábito de seu tempo? Você se lembra do texto paralelo em Mateus 1:13-17? Mateus incluiu uma discussão entre João e Jesus a respeito da propriedade de Jesus ser batizado por João. Por que Mateus tem esse trecho adicional e Marcos decidiu não incluir essa discussão em seu evangelho? Que efeitos de sentido essas escolhas provocavam nas pessoas que, participando da mesma sociedade, ouviam e liam estas passagens? Que idéias e lembranças de outros textos estas passagens lhes traziam à mente? Por que a maioria dos judeus não concordou com os primeiros judeus cristãos em sua crença de que Jesus era o Messias esperado?

Vimos, na análise da dimensão sociocultural da ação, pelo caminho da narratividade, que o objeto-valor do texto é a missão messiânica de Jesus, que foi originada e sancionada pelo Pai, e cuja investidura ocorreu fora dos espaços-tempos oficiais da época. Cabe, agora, perguntar pelos efeitos dessa escolha do texto em seu mundo-da-vida, ou, em outras palavras, é preciso fazer também a crítica social do texto e a partir do texto.

Estas e outras perguntas poderão ser respondidas a partir da análise do lugar que o texto de Marcos ocupava em seu mundo-da-vida. É a esta tarefa que nos dedicaremos neste capítulo, para concluir a nossa análise da dimensão sociocultural da ação.

INTRODUÇÃO Idéias viajam freqüentemente pelos caminhos do mundo-da-vida. Pense, por exemplo, em como certas gírias se tornam “moda”, ou em como alguns bordões humorísticos “pegam” e são repetidos por milhares de pessoas no seu cotidiano. E pense em como idéias antigas ainda subsistem e são consideradas valiosas por muita gente. Até hoje, a “mensagem da cruz” ressoa em todos os rincões do planeta e continua produzindo efeitos na vida de muitas pessoas. Ficamos até com a impressão de que as idéias voam livremente pelo espaço, soltas, sem amarras, totalmente livres.

Bem, as coisas não funcionam exatamente dessa maneira. A circulação das idéias também tem as suas regras, as suas estruturas, os seus limites e possibilidades. A messianidade, por exemplo. Nas suas origens mais antigas, a idéia de messias deve ter começado a circular entre pessoas nas reuniões familiares, nos encontros religiosos, nas

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conversas das praças, nos papos informais durante os negócios etc. A idéia “pega”. Alguém se dispõe a escrever sobre ela, e ela se transforma em um texto, no qual passa a ficar junta com outras representações sobre Deus, sobre a vida, sobre a felicidade etc. O texto começa a ser lido publicamente, começa também a circular, e outras pessoas escrevem sobre ele, algumas até reescrevem o texto, aproveitando as conversas e as discussões sobre o primeiro texto. Discussões irão acontecer: será que o novo texto é melhor do que o antigo? Para que tantos textos sobre essa noção de um “messias”?

Os vários textos, as várias conversas, as muitas discussões sobre “messias” vão se juntando, circulando entre mais e mais pessoas — muita gente concorda que um “messias” é necessário —, talvez nem saibam mais de onde veio essa idéia, quem a começou, mas gostam dela. E a ela vão juntando outras representações, outros textos, outras discussões, e juntas se transformam em um discurso messiânico. E o processo continua, vários discursos messiânicos se formam e se juntam para explicar como deve ser o Messias, de onde vem, o que faz etc. Temos, então, uma formação discursiva. Mas nem todos os discursos concordam entre si. Para alguns discursos, o Messias tem um perfil monárquico, para outros, sacerdotal, para outros, profético etc. A formação discursiva messiânica compõe-se de muitos discursos que têm em comum entre si a noção geral do Messias, embora haja diferenças significativas entre os vários discursos messiânicos que a compõem.

Esse processo praticamente não tem fim, pois há muita coisa de que se pode e deve falar na vida em sociedade. Novas representações, novos textos, novos discursos, novas formações discursivas. O tempo vai passando, e uma sociedade fica repleta dessas representações, textos, discursos, formações discursivas — a tudo isso junto damos o nome de mundo-da-vida. Para entendermos bem como um texto funciona em sua sociedade, precisamos ser capazes de situar esse texto na estrutura das idéias dessa sociedade. Precisamos perseguir os caminhos que ele trilhou, as práticas que ele sustentou, as instituições em que ele se fez etc. Na análise das relações intertextuais e interdiscursivas, vimos como esses discursos outros ajudaram a formar o sentido do texto que interpretamos. Precisamos agora realizar uma análise crítica do lugar do texto em sua sociedade.

Tudo isso nos faz lembrar do conhecimento enciclopédico. Quanto maior for o nosso conhecimento enciclopédico sobre os mundos-da-vida dos tempos bíblicos, mais fácil e mais abrangente será nossa interpretação do texto. Para adquirir esse conhecimento não há atalhos: estudo, estudo, pesquisa... Todo o conjunto de conhecimentos acumulados na pesquisa acadêmica será de grande valia para nós. O que a perspectiva sêmio-discursiva nos oferece é um caminho para orientar nosso estudo dos contextos históricos do mundo bíblico, caminho moldado por estes conceitos: discurso, formação discursiva, sistema e mundo-da-vida.

Do ponto de vista metodológico, um último aspecto precisa ser ressaltado: uma perícope não oferece material suficiente para uma análise abrangente da vida em sociedade em seu tempo. A leitura da perícope nos oferece um bom ponto de partida, ao situá-la no âmbito das formações discursivas de seu tempo, mas a crítica social só pode ser sugerida, à medida que sua base deve ser, primeiramente, o conjunto dos discursos do livro de que a perícope faz parte e, depois, o conjunto das relações que esses discursos do livro mantêm em sua formação discursiva e, por fim, as relações que essa formação discursiva mantém com as demais de seu mundo-da-vida.

CICLO 3: DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA AÇÃO Como o texto, em interação com seu mundo-da-vida, dá sentido à ação sob os pontos de vista 1) da sociedade, 2) da cultura e 3) da religião?

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COMO FAZER 1. Situar o texto nas formações discursivas de seu mundo-da-vida (analisando as suas

relações contratuais e polêmicas). 2. Formular a crítica social a partir do texto, e do texto. 3. Elaborar uma síntese.

EXEMPLO 1 (FORMA DESCRITIVA ) Marcos 1 9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo. 1. Situar o texto nas formações discursivas de seu mundo-da-vida Já vimos que as relações interdiscursivas da perícope nos ligam a discursos messiânicos bem diversificados do Antigo Testamento: o discurso do messias davídico (Sl 2:7), o discurso do Messias solidário (Is 42:1s), e o discurso do Messias abraâmico (Gn 22:2). Vimos, também, que o objeto-valor na dimensão narrativa desta perícope é a missão/identidade messiânica de Jesus, marcada pelas características da filialdade filial ao Pai, pela solidariedade com pessoas impuras e pecadoras e pela crítica à identidade (ou religião) oficial do judaísmo. Tudo isto nos situa na formação discursiva messiânica, em uma perspectiva não oficial, crítica. A partir desta maneira de identificar a messianidade de Jesus, a comunidade marcana se distancia do discurso messiânico judeu oficial, embora permaneça nos limites da formação discursiva messiânica. Ao permanecer na formação messiânica, o discurso marcano se contrapõe aos outros tipos de discurso de salvação de seu tempo — tais como os discursos das religiões salvíficas helênicas, os discursos filosóficos da “vida boa” e o discurso oficial do Império Romano, de que os deuses do panteão romano salvam e que César é seu representante na terra, o kyrios (Senhor). Estamos presenciando, assim, os primórdios da formação discursiva messiânica propriamente cristã. 2. Formular a crítica social A partir deste texto, podemos perceber que a comunidade marcana se posiciona criticamente contra o discurso messiânico oficial do judaísmo (que priorizava a salvação exclusiva de judeus conforme o seu grau de pureza, o caráter nacionalista da ação do Messias, ou seja, a concentração da ação messiânica na libertação política da nação Israel do Império). Seu discurso messiânico é ainda tipicamente judeu, mas aberto para pessoas impuras e pecadoras, inclusive gentios; não é nacionalista, mas concentra a ação messiânica na formação de novas comunidades includentes, cuja identidade se constrói em seguimento da identidade messiânica de Jesus.

Ao identificar a ação política do Messias com a solidariedade, o discurso messiânico da comunidade marcana mantém relações polêmicas com o discurso oficial do Império. Não é um discurso nacionalista, nem revolucionário, mas também não é um discurso politicamente neutro. Aparentemente, sua proposta política é de cunho comunitarista, criar comunidades includentes, semelhantes ao movimento de Jesus, as quais, crescendo em número, ofereceriam um espaço alternativo de organização social em contraposição ao modelo imperial. Note dois pontos: a) não é possível ficarmos restritos a uma perícope apenas para este tipo de análise; e b) o caráter hipotético da crítica deve ser reconhecido.

A crítica social do texto (também delimitada pelos dois pontos acima lembrados, e que o espaço não nos permite fazer) poderia ser direcionada aos seguintes aspectos: a) Até que ponto esse tipo de proposta ofereceria condições para uma alternativa política

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concreta? b) Como o discurso messiânico da comunidade marcana teria afetado a noção e as relações de gênero na comunidade? c) Que atitude perante as outras religiões no Império Romano teria sido promovida pelo discurso messiânico da comunidade? d) Como este tipo de discurso poderia dialogar e confrontar as opções filosóficas de outorga de sentido à vida? Até que ponto, porém, o caráter minoritário e a expectativa apocalíptica da comunidade afetaram sua interpretação da vida em coletividade? Tais questões, porém, não podem ser respondidas exclusivamente mediante a análise da perícope. Do ponto de vista metodológico, isto nos lembra que a crítica social do texto apenas aponta para a crítica social de seu discurso no âmbito de sua formação discursiva — algo que não é possível fazer dentro dos limites de um manual de metodologia exegética. Sua condição de grupo minoritário, tanto no âmbito do judaísmo, quanto no âmbito da sociedade em geral, deve ser levada em consideração ao analisarmos criticamente sua autocompreensão e sua proposta político-social. 3. Elaborar uma síntese A proposta messiânica de Marcos 1:9-11 é de cunho crítico, tanto em relação ao nacionalismo e caráter excludente do judaísmo oficial, quanto em relação ao caráter dominador do Império Romano. Embora não pareça oferecer uma proposta de estratégia de tomada de poder político, não tem caráter neutro em relação à ordenação político-econômica da sociedade de seu tempo. Ao apresentar Jesus como um messias não “oficial”, sugere que a comunidade marcana entendia sua identidade como a de uma comunidade alternativa, cujo estilo de vida deveria ser semelhante ao de Jesus, seu Messias (Cristo). O texto favorece uma compreensão comunicativa das relações de poder e o caráter includente da nova fé no Messias Jesus, bem como a esperança de uma nova realidade, já que a fala da voz do céu evoca o início de uma nova época.

EXEMPLO 2 (FORMA DISSERTATIVA ) Isaías 42

1 Eis o meu servo, a quem eu sustento, o meu eleito, em quem tenho prazer. Coloquei meu espírito sobre ele, justiça para as nações fará brotar. 2 Não gritará, e não levantará, e não deixará ser ouvida na rua a sua voz. 3 A cana rachada não esmagará, e a torcida bruxuleante não apagará; fielmente fará brotar a justiça. 4 Não desanimará e não será quebrado, até que estabeleça na terra a justiça e em sua lei as ilhas tenham esperança. Tudo o que vimos até agora sobre este texto nos orienta a interpretá-lo como um

texto crítico ao império babilônico e ao davidismo judaíta. A crítica ao império babilônico dirige-se 1) à sua dimensão sistêmica, na medida em que reconhece o caráter dominador de seu exercício do poder e, 2) à sua dimensão do mundo-da-vida, na medida em que mantém relações polêmicas com suas formas de legitimação — tanto suas noções de justiça e lei, quanto as suas crenças religiosas — todas igualmente quiriárquicas. Em relação ao davidismo judaíta, Isaías 40—55 também se posiciona de forma crítica, ao negar a validade dos seus principais discursos: 1) a posição da dinastia davídica como representante privilegiada do reino de Javé; 2) a conseqüente posição que o culto a Javé assumia sob o governo davídico, subordinado à manutenção da dinastia e legitimação de suas formas estratégicas de condução das relações políticas e econômicas; e 3) o nacionalismo excludente de sua noção do reino de Javé, que lhe

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permitia reproduzir o discurso imperialista comum no Antigo Oriente, e legitimá-lo teologicamente. Esta crítica ao davidismo deve ser ressaltada, na medida em que a audiência primária destes textos era composta dos grupos outrora dirigentes de Judá, cuja injustiça e infidelidade a Javé foram, segundo o profeta, a causa do castigo divino do exílio.

Acrescentando-se o conteúdo propositivo do aviso de Isaías 40—55, podemos identificá-la com um discurso pertencente à formação discursiva deuteronômica, com esta perícope destacando as noções discursivas de: 1) a atuação libertadora de Javé significada na tradição não davídica do êxodo, que priorizava o caráter pessoal de Javé e a sua ligação direta com as famílias/casas do seu povo, independente da mediação da estrutura monárquica; 2) a noção de aliança como discurso explicativo das relações com Javé, das relações sociais internas e das relações com outros povos. Aliança caracterizada pela justiça social e pela fidelidade à vontade de Javé, expressa na sua lei, em contraste com a forma de aliança típica dos impérios vétero-orientais, centradas na soberania assimétrica do povo mais forte sobre o mais fraco militarmente; e 3) a fidelidade exclusiva a Javé, acima de todas as fidelidades, chegando ao ponto de afirmar claramente — um avanço em relação ao discurso tipicamente deuteronômico — que somente Javé é Deus, todos os demais “deuses” não passam de ídolos, de construção da imaginação humana para legitimar formas injustas e ilegítimas de relações sociais.

Uma série de questões críticas, porém, ainda carecem de melhor e mais aprofundado exame do conjunto das perícopes de Isaías 40—55. As principais são: 1) Qual é o alcance mais exato das noções de justiça e lei, e quem seriam os sujeitos legítimos de formulação da lei e execução do governo justo? 2) Intimamente ligada à primeira questão, temos a segunda: Até que ponto o protagonismo desta libertação seria empoderador não só dos exilados mas também dos que ficaram em Judá? Claramente o discurso de Isaías 40—55 afirma que os exilados, voltando a Judá, serão protagonistas da libertação e, a partir de Jerusalém, o reinado de Javé se expandirá por toda a Judá. Como se dariam as relações entre estes que voltam e os que ficaram em Judá? Haveria um retorno à antiga estruturação hierárquica de poder? Como as terras seriam distribuídas, quem seriam seus legítimos proprietários? 3) Qual é o alcance e o sentido da inclusão das nações e ilhas na libertação anunciada pelo servo? Estaria o discurso de Isaías 40—55 na mesma linha de Amós 9:7-10 e Isaías 19:16-25 que não restringiam a ação libertadora de Javé ao povo judeu e colocavam outros povos no mesmo nível de relações com Deus? Ou estaria na linha de Isaías 2:1-5 e Miquéias 4:1-5, colocando Jerusalém no centro do mundo, com as nações peregrinando até ela, em uma forma sutil de imperialismo javista? Por fim, 4) como o discurso de Isaías 40—55 efetivamente interpretava o papel de Ciro e as relações de Judá e das nações em geral com o Império Persa? Claramente Ciro não era regente de um império libertador em sentido amplo. É certo que sua atitude para com os povos subjugados era muito mais aceitável do que a dos babilônios, mas até que ponto seria possível aceitar os persas, que ainda constituíam um império em sentido pleno?

Em uma perspectiva de gênero, as perguntas poderiam começar por esta: terá a base deuteronômica da visão de culto de Isaías 40—55 permitido um olhar diferenciado para o lugar da mulher na vida religiosa e socioeconômica de Judá? O uso da metáfora materna para se referir a Javé (48:9ss) e a Jerusalém (Is 54) permitiria uma melhor compreensão das relações de gênero, ou a afirmação intransigente da exclusividade divina de Javé poderia ser usada para negar toda e qualquer validade às práticas religiosas de mulheres (que, em vários casos, incluíam a crença em deusas, consortes ou não de Javé)?

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A análise da dimensão sociocultural da ação torna evidente a necessidade de se ir além dos limites da perícope como unidade a ser interpretada. É preciso levar em conta o discurso com a base interpretativa, a fim de se poder reconstruir as formações discursivas da sua época e, a partir delas, compreender as dimensões sistêmica e do mundo-da-vida para, então, proceder à crítica social.

CONCEITOS BÁSICOS Sistema. Na teoria habermasiana, a sociedade é explicada por meio de dois modelos:

mundo-da-vida e sistema. O mundo-da-vida equivale ao componente abstrato da sociedade (idéias, valores etc.), enquanto o sistema corresponde ao componente concreto da sociedade (instituições, grupos sociais, movimentos sociais, estruturas econômicas, estruturas políticas etc.). Os componentes do sistema são as estruturas derivadas dos meios sistêmicos poder e dinheiro, a saber, estruturas políticas e as estruturas econômicas da sociedade. Assim como, na história da humanidade, cada sociedade desenvolveu diferentes conteúdos e formas do mundo-da-vida, também se produziram diferentes estruturações das relações políticas e econômicas. Na maior parte da história das sociedades humanas, mundo-da-vida e sistema não estavam diferenciados entre si de forma autônoma e concorrente. Nas sociedades modernas, porém, as relações políticas e econômicas foram se tornando cada vez mais estratégicas e geraram estruturas políticas e econômicas que aos poucos assumiram para si a função de coordenar a ação coletiva de modo estratégico. Isso significa que as interações sociais passam a ser comandadas pela eficácia dos meios sistêmicos (poder e dinheiro).

Mundo-da-vida.(Vale a pena repetir a definição, para facilitar seu uso. Na análise da narratividade, tem função explicativa, não operacional.) Mundo-da-vida é um termo técnico da filosofia e das ciências sociais que se refere ao conjunto de discursos (idéias, ou temas, ou conceitos, ou noções), que se constitui ao longo da história e existe em dada sociedade, servindo para explicar a realidade na qual tal sociedade vive, e ordenar as ações e relações humanas nessa mesma sociedade. Pode-se classificar os tipos de discurso presentes no mundo-da-vida como discursos sobre: a cultura (valores, símbolos, noções explicativas etc.), a sociedade (normas, formas de parentesco etc.), a identidade (paixões, formas de identidade, papéis sociais etc.) e a religião. A realidade à qual o mundo-da-vida se refere pode, por sua vez, ser classificada como: natural (tudo aquilo que não é feito por seres humanos), social (o que é feito por seres humanos em sua vida em sociedade), pessoal (o mundo “interior” das pessoas) e transcendental (tudo o que se refere às explicações religiosas da realidade).

Ideologia. O conceito de ideologia, desde Marx pelo menos, é usado de forma ambígua. Por um lado, tem um sentido neutro e significa qualquer explicação do arranjo sistêmico de uma sociedade, sem emitir juízos de valor sobre a mesma. Por outro, tem um sentido crítico, e se aplica apenas às explicações do arranjo sistêmico de uma sociedade que sirvam para criar ou manter situações ou estados de dominação. Neste Manual, uso predominantemente o sentido neutro, na medida em que uma formação ideológica que, em dado período, serve para manter a dominação, em outros pode perder essa função e não mais se vincular a estratégias dominadoras do uso do poder.

Campo. Um conceito desenvolvido amplamente na sociologia por Pierre Bourdieu, que adapto para complementar a concepção habermasiana da sociedade. Assim como o conceito de mundo-da-vida se refere a uma dimensão altamente abstrata, também o conceito de sistema explica os níveis mais elevados das relações políticas e econômicas. Um campo, conseqüentemente, pode ser definido como uma das várias dimensões do sistema — tais como campo econômico, campo jurídico, campo político, campo religioso, campo acadêmico etc. Os campos são constituídos basicamente por instituições sociais, ou seja, arranjos sólidos de relações entre pessoas, especializados de

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acordo com suas funções na sociedade, e.g.: igrejas, terreiros, sinagogas, instituições do campo religioso; bancos, financeiras, bolsa de valores são instituições do campo econômico etc.

Gênero. Durante muito tempo se definiu gênero como realidade exclusivamente natural, determinada apenas pela diferença sexual corpórea (o que determinava que formas não heterossexuais de identidade não fossem consideradas senão como aberrações). Especialmente no século XX, porém, constatou-se claramente que gênero é primariamente uma realidade sociocultural, pois a vivência da masculinidade ou da feminilidade é construída na sociedade e recebe diferentes explicações no mundo-da-vida e diferentes configurações de poder no âmbito sistêmico. O movimento feminista, nas suas mais variadas formas, nos ajudou a enxergar o uso estratégico da noção de gênero que permitiu, durante muitos séculos, na maior parte das sociedades humanas, a dominação da mulher pelo homem, e o desenvolvimento de formas estereotipadas de masculinidade e feminilidade (do tipo “homem não chora”, “mulher é frágil” etc.).

Raça. De forma semelhante ao conceito de gênero, no século passado se rompeu com a noção exclusivamente biológica de raça, a ponto de se questionar a própria validade do termo. Uso raça, aqui, como um conceito sociocultural, uma forma de definir um aspecto da identidade de grupos sociais, especialmente a partir de características corpóreas, tais como cor da pele, formato do corpo, altura etc. Aplicada ao estudo bíblico, a noção de raça nos ajuda a interpretar a maneira como, nos textos, se constrói a concepção de raça. Por exemplo, uma definição crucial do judaísmo oficial dos tempos de Jesus era a distinção racial (ou racista?) entre judeus e gentios; na cultura helênica, distinguia-se entre gregos e bárbaros etc. Para a construção de critérios valorativos de raça e gênero, textos bíblicos como Gálatas 3:28 desempenham papel fundamental: “Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”.

CONCEITOS OPERACIONAIS Formação discursiva. O conceito de mundo-da-vida explica a dimensão de conteúdo das

relações sociais em sua forma mais abstrata. Para concretizar a análise, adotamos um conceito primeiramente desenvolvido por Michel Foucault e adotado por diferentes correntes de análise do discurso, inclusive a semiótica. Se o discurso é uma explicação de um segmento qualquer da realidade (e é composto por textos), uma formação discursiva é um conjunto de discursos que partilham de um mesmo ponto de vista. Vejamos o cristianismo, por exemplo. Enquanto uma religião que explica a realidade, podemos perceber nele diversas formações discursivas: a católico romana, a ortodoxa, a protestante histórica, a protestante evangelical, a pentecostal clássica, a pentecostal carismática, a neo-pentecostal. As formações discursivas são fluidas ao longo da história, suas fronteiras não são rígidas, pois mantêm contato constante com formações concorrentes e recebem permanentemente novos discursos, rearranjos etc.

Relação contratual ou polêmica. As relações entre textos e discursos, e também as relações entre formações discursivas podem ser de tipo contratual (quando há concordância entre os termos em relação), ou de tipo polêmico (quando não há concordância). Normalmente, os discursos que compõem uma formação discursiva mantêm relações contratuais entre si, e relações polêmicas com os discursos que pertencem a uma formação discursiva que mantenha relações polêmicas com aquela formação discursiva. Entretanto, como as relações entre discursos e formações discursivas são fluídicas, é possível que, sob certas circunstâncias, um discurso mantenha relações polêmicas com outro discurso que faça parte de sua formação discursiva, e contratuais com um discurso que faça parte de uma formação concorrente. Marcos 3:6 nos oferece um exemplo dessa situação: fariseus e herodianos tinham

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diferentes formas de explicar a religião judaica — podemos dizer que eram sujeitos de formações discursivas concorrentes. Entretanto, diante de uma ameaça maior, uniram-se estrategicamente para combater Jesus. Nesse caso, quanto à definição de quem era o Messias, as formações discursivas concorrentes se uniram para polemizar com o novo discurso messiânico de Jesus.

Crítica social. Na perspectiva habermasiana de sociedade aqui adotada, a crítica social tem duas dimensões. Por um lado, questiona e avalia os componentes do mundo-da-vida e, por outro, os componentes do sistema. Mesmo nas sociedades em que mundo-da-vida e sistema estão sincretizados, a crítica social permanece dual. A crítica sistêmica focaliza as relações econômicas e políticas em uma dada sociedade, bem como as suas estruturações ao longo da história dessa sociedade. O critério fundamental dessa crítica é dado pelas noções de ação comunicativa e ação estratégica. São legítimas as relações econômicas e políticas, e as suas respectivas formas de coordenação da ação, que se dão de modo comunicativo (mediante acordo entre as pessoas envolvidas). São ilegítimas as relações sistêmicas e as formas de coordenação da ação de forma estratégica (que ocorre quando não há acordo na realização da ação, mas imposição da vontade de uns sobre outros, tanto no sentido de relações de poder injustas, quanto no sentido de situações de dominação). A crítica do mundo-da-vida se dirige, por sua vez, aos discursos legitimadores das ações e relações na sociedade. O critério básico dessa crítica é se os discursos legitimam formas comunicativas ou estratégicas de ação e coordenação das ações na sociedade — ou, em outras palavras, se há justiça, solidariedade, paz na sociedade.

Exemplos de crítica social: 1) as formas mediante as quais se constroem e legitimam as relações de gênero podem ser estratégicas e, na maior parte da história das sociedades, têm sido assim, conforme o feminismo tem destacado. Na teologia feminista, por exemplo, Elisabeth Fiorenza cunhou o conceito de quiriarcado, que explica relações sociais de dominação, baseadas numa estruturação e valoração hierárquica dos gêneros, com a supremacia do masculino sobre o feminino e ampliando a escala de superioridade/inferioridade para todas as demais relações sociais (adulto—criança; rico—pobre etc.); 2) as estruturações do poder político tendem a ser dominadoras (logo, estratégicas e não comunicativas), com as pessoas que exercem esse poder usando para seus próprios fins as pessoas sobre as quais lideram. No texto de Isaías, acima, vimos relações de poder dominadoras, em uma situação de imperalismo político-econômico. Em tais situações, o exercício do poder político restringe a liberdade das pessoas, subordina os valores da justiça aos imperativos do Império, e subjuga o mundo-da-vida para que este legitime a situação de dominação. Diante de tais situações, é necessário resistir, enfrentar, transformar a realidade. Segundo a terminologia sêmio-discursiva, a compreensão da dimensão sociocultural do texto, bem como a crítica social do texto e a partir do texto, são completadas e realizadas mediante a análise do lugar que o texto ocupa nas formações discursivas de seu mundo-da-vida. Ao analisar o caráter das relações discursivas — contratuais ou polêmicas —, podemos não só entender melhor o texto e efetuar a crítica social, mas também começar a construir mapas das formações discursivas da época do texto bíblico, em diálogo com a pesquisa exegética com outros enfoques disciplinares (histórica, sociológica, antropológica etc.).

EXERCÍCIOS 1. Escolha um filme e analise sua posição crítica em nosso mundo-da-vida atual. 2. Escolha tipos diferentes de perícopes da Bíblia (epístolas, poesia, sabedoria, leis) e

analise as suas posições no mundo-da-vida de suas épocas respectivas.

SUGESTÕES DE LEITURA

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Textos didáticos DISCINI, Norma. A comunicação nos textos. São Paulo: Contexto, 2005. Lições 2 a 4, p. 45-

182. SAVIOLI , Francisco Platão &FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. São

Paulo: Ática, 1996. Lições 2 a 4, p. 27-72. _____. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1991. Lições 2 e 3, p. 19-

33. Textos técnicos

BARROS, Diana L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual Editora, 1988, p. 135-156.

FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2005, p. 107-112.

ZABATIERO, Júlio P. T. “As estruturas da ação. Construindo o referencial teórico da Teologia Prática”. Em BARRO, Jorge H. &ZABATIERO, Júlio P. T. (eds.) Práxis Evangélica. Revista de Teologia Prática Latino-Americana. Londrina: Editora Descoberta & Faculdade Teológica Sul-Americana, nº 3, agosto 2003, p. 81-103.

8 Ciclo 4 Dimensão psicossocial da ação

9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo.

Marcos 1 Os termos em itálico qualificam o relacionamento do Pai com o Filho: ama-o e nele sente prazer, nele se deleita. São termos que dão significado a sentimentos, ou paixões (ou, ainda, estados-de-alma), que expressam o modo como um sujeito se relaciona com outros sujeitos ou com os seus objetivos de vida. Toda ação humana possui um componente passional (a semiótica prefere o termo paixão ao termo sentimento), na medida em que um ser pessoal não é somente cognitivo e ativo, mas também passional. Juntamente com nossas crenças e ações, nossos sentimentos ajudam a configurar a nossa identidade (a maneira como vemos a nós mesmos, mas também como outros nos vêem, ou como imaginamos que outros nos vêem). Algumas pessoas podem imaginar que os sentimentos são algo estritamente individual, mas fato é que os sentimentos também são uma realidade sociocultural, influenciada pelo nosso mundo-da-vida, pelas relações que mantemos com outras pessoas e instituições ou com os nossos objetos de desejo.

Neste capítulo, o foco se voltará, portanto, para a análise dos sentidos que o texto dá às paixões humanas. Iremos analisar efeitos de sentido e não pessoas. Exegese não é psicanálise, psicoterapia ou qualquer outro tipo de análise psicológica ou psiquiátrica. Este é o grande cuidado que devemos ter no Ciclo 4: não confundir análise sêmio-discursiva com análise psíquica. Pode-se dizer que em exegese sêmio-discursiva analisamos paixões de papel, ou paixões textuais, com vistas a compreender como o texto constrói a identidade pessoal de seus sujeitos.

INTRODUÇÃO Até este ponto, a exegese focou primariamente a ação dos sujeitos. Cabe agora voltar o foco ao sujeito, às suas paixões ou aos estados-de-alma. Note, em Marcos 1:9-11, que as

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paixões do Pai estão explicitadas no texto, mas não as do Filho, de João Batista, do Espírito ou de quem mais ouviu a voz. Uma decisão então tem de ser tomada: se trabalharemos apenas com as paixões explicitadas ou se analisaremos também as implícitas de um ou mais sujeitos textuais. Que critérios usar para tomar essa decisão? O da utilidade (até que ponto vale a pena fazer tal análise) e o da possibilidade (temos tempo para fazer a análise?). Analisarei não só as paixões explicitadas nas perícopes selecionadas, mas também as implícitas de outro sujeito do texto (além daquele cujas paixões estão explícitas).

Para evitar o psicologismo na análise, devemos permitir que os conceitos e princípios sêmio-discursivos de análise direcionem a interpretação. O primeiro conceito aplicável é o de paixão: um efeito de sentido das qualificações modais do sujeito. As qualificações modais (ou modalizações) são as do querer e/ou dever (manipulação) e as do saber e/ou poder (competência). A análise se ocupará, portanto, de interpretar os efeitos de sentido passionais decorrentes das formas, como as relações entre o sujeito e os objetos-valor são apresentadas no texto, bem como as relações entre diferentes sujeitos no texto em sua busca comum por objetos-valor. Tais modalizações podem estar hierarquizadas no percurso, uma assumindo supremacia sobre as demais, categorizando (identificando) assim o sujeito do agir. Lembre-se de que a relação entre sujeito e objeto, na análise da narratividade, é um simulacro da ação no mundo e se configura exclusivamente como relação de junção, desdobrada em conjunção e disjunção. Dessa relação decorrem dois tipos de paixões: as de falta (disjunção) e as de liqüidação da falta (conjunção).

Se o sujeito é modalizado exclusivamente por um tipo de qualificação modal, temos as chamadas paixões simples, todas decorrentes da modalização do sujeito pelo querer-ser (na categorização sêmio-discursiva, as paixões decorrentes da modalização pelo dever estão subsumidas na categoria do querer-ser). Se o sujeito é modalizado por uma combinação das modalizações do sujeito pelo querer-ser e pelo poder-ser (dever-ser e saber-ser estão subsumidos nestas duas categorias, para efeitos da análise das paixões), então temos as paixões complexas. No percurso narrativo, não se pode neligenciar também o fato de que as paixões sempre são inter-subjetivas, na medida em que o sujeito do fazer está sempre em percursos simultâneos aos percursos do destinador-manipulador e do destinador-julgador. Devemos acrescentar aqui, por fim, o anti-sujeito, aquela figura narrativa que se interpõe contra o sujeito na sua busca pelo objeto-valor. Não se esqueça de que, na terminologia semiótica, um objeto-valor não é necessariamente uma coisa, pode ser também uma pessoa, e que os sujeitos são figuras narrativas e não pessoas reais, nem mesmo pessoas do nível discursivo.

Por exemplo, se uma pessoa está com fome, está em disjunção com o objeto-valor refeição; logo, sentirá uma paixão de falta, tal como o desejo. Se o desejo for mais intenso, chamamos de anseio, se mais intenso ainda, de avidez etc. Em Marcos, vemos que as paixões do Pai em relação ao Filho estão explicitadas na fala da voz dos céus: amor e deleite (prazer). Note bem que a diferenciação entre amor e deleite não é psíquica, mas semântica: nas Escrituras sempre se fala do amor de Deus como uma relação de gratuidade, ou seja, independente das ações ou identidade da criatura amada. O prazer de Deus por uma de suas criaturas, por outro lado, sempre é mencionado nas Escrituras em virtude de ações dessa criatura que lhe causa o prazer (ou o desprazer). Como efeitos de sentido, as paixões são construídas no mundo-da-vida e nele têm sua história e regras de ordenação semânticas (Habermas denomina de identidade o setor do mundo-da-vida cujos conteúdos são afetivos ou passionais).

Podemos dizer, também, que as paixões são diferenciadas entre si pela relação com a temporalidade — esperança é uma paixão dirigida para o futuro, enquanto o remorso é

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dirigido para o passado. Igualmente, podem ser diferenciadas segundo o seu objeto e segundo a sua intensidade. Se o objeto do amor for um cônjuge, por exemplo, o amor terá um forte componente erótico; se um filho, chamamos de amor paternal, maternal ou filial ; se um irmão ou amigo, chamamos de amor fraternal etc. Em português, por exemplo, distinguimos entre amar e gostar, ou entre amor e amizade, entre desejo e anseio etc. As paixões, assim, são aspectualizadas (conforme a sua intensidade e duração, sendo seus aspectos idênticos aos da ação: completo e incompleto, desdobrados em incoativo, terminativo, iterativo e durativo. Por exemplo: a impulsividade é uma paixão simultaneamente incoativa e iterativa — a pessoa modalizada pela impulsividade está sempre começando a fazer alguma coisa, nova ou de novo).

Por fim, as paixões também são diferenciadas entre si em virtude de sua eticidade ou moralidade; e.g.: em algumas culturas, a ambição é uma paixão positiva, em outras, negativa; o amor erótico é qualificado moralmente nas diversas culturas, em função, por exemplo, do grau de parentesco entre os amantes, ou até mesmo em decorrência das distinções sociais entre suas famílias. Cada texto dá testemunho, a seu modo, dos juízos morais que se aplicam às paixões humanas em um dado contexto.

Um último aspecto teórico a ser apresentado. A análise semiótica das paixões também formulou, como dispositivo operacional de análise do nível narrativo, um percurso passional canônico em quatro fases, similares às do percurso narrativo canônico (que é um percurso do fazer):1

Disposição Sensibilização Emoção Moralização [Manipulação → Competência → Performance → sanção]

CICLO 4: DIMENSÃO PSICOSSOCIAL DA AÇÃO Como o texto, em interação com seu mundo-da-vida:

1. Descreve as relações passionais no texto? 2. Constitui a identidade dos agentes a partir de seus objetivos, motivos, competências e

relações passionais?

COMO FAZER 1. Reconstruir os percursos passionais dos sujeitos. 2. Analisar os percursos, semantizando as paixões e desdobrando-as na identidade dos

sujeitos.

EXEMPLO 1 (FORMA DESCRITIVA ) Marcos 1 9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo. 1. Reconstruir os percursos passionais A. O percurso passional do Pai Somente a fase /emoção/ está explicitada no texto marcano; as demais devem ser deduzidas logicamente. A moralização passional é positiva, pois é esperado que um pai ame seus filhos e se agrade deles, bem como as perícopes posteriores mostram que o Filho realizou a sua missão, confirmando, assim, o caráter moralmente adequado das emoções paternas. A disposição se caracteriza por uma espera relaxada, algo que se

1 1 Esse percurso é adaptado de Denis BERTRAND, Caminhos da semiótica literária,p. 374.

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pode esperar para as paixões do grupo da /satisfação e confiança/, e se pode deduzir pela identificação de Jesus como Filho de Deus logo no primeiro versículo do evangelho de Marcos, o que impede que se tenha qualquer dúvida sobre a sua filialdade e, conseqüentemente, que se possa postular uma espera tensa da parte do Pai. Da sensibilização pode-se dizer que o texto aponta para o caráter durativo do amor e prazer do Pai pelo Filho (conforme o verbo ser no presente do indicativo), bem como se indica o caráter proléptico do deleite (antecipa o prazer que, no futuro, o Filho dará ao Pai através de sua obediência messiânica). Deve-se ressaltar que a forma do texto indica que a ênfase semântica está colocada sobre como as paixões qualificam o Filho e não sobre as paixões do Pai propriamente ditas. B. O percurso passional do Filho Não há qualquer informação explícita no texto sobre as paixões do Filho, as quais têm de ser deduzidas a partir do percurso narrativo canônico (do fazer). O objeto-valor do Filho é a missão messiânica, da qual o batismo é objeto-modal. O Filho se apresentou ao batismo, como vimos, movido por um dever-fazer e com a competência primária do saber-fazer. O batismo de João é semantizado patemicamente como de arrependimento, mas esta paixão não se adequa à identidade do Filho de acordo com o evangelho, e conforme a sanção da voz dos céus. O Filho se apresenta ao batismo movido não por arrependimento, mas pelo dever messiânico. À luz da filialdade divina de Jesus podemos deduzir as seguintes paixões: em relação à missão messiânica, a paixão simples do desprendimento (abre mão de outras identidades mais “vantajosas” para ele), e as paixões complexas da compaixão (em relação aos seres humanos) e da fidelidade (em relação ao Pai), que o atualizam como sujeito (sujeito atualizado é aquele sujeito pronto para agir; sujeito realizado é aquele que age; sujeito virtualizado é aquele que ainda está para atualizar). A moralização das paixões do Filho é positiva, pois desprendimento, fidelidade e compaixão são paixões adequadas ao Messias libertador. O aspecto ressaltado das paixões é o da incoatividade: há que se testar o Filho para confirmar seu desprendimento, fidelidade e compaixão — o relato da tentação e a seção inicial do evangelho apontam nessa direção (caps. 1—3), o que o livro como um todo o confirma. À luz da conflitividade da messianidade de Jesus, ressaltada desde o início do evangelho, pode-se deduzir que a espera inicial, disponibilizadora para a emoção, tenha sido uma espera tensa (confira o percurso passional da insegurança para a confiança na categorização de Diana Barros, abaixo).

Um outro tópico interessante, neste caso, seria analisar o percurso passional do anti-sujeito — que não aparece nesta perícope. À luz da perícope da tentação e das perícopes que relatam o início do ministério messiânico de Jesus (1:16—3:35), sabemos que o evangelho apresenta Satanás e os fariseus como anti-sujeitos de Jesus, e poderíamos perceber seus percursos passionais, que vão desde a cólera até a vingança — mas esta é tarefa para outra hora. 2. A construção passional da identidade do Pai e do Filho O texto marcano nos apresenta Deus-Pai como seguro e confiante em relação ao seu Filho e que se mantém em relação amorosa com ele até o fim do seu ministério, que consuma o prazer do Pai em relação à fidelidade do Filho à tarefa que lhe fora confiada. A perícope analisada, bem como o conjunto do evangelho, indicam com clareza que as identidades de Pai e Filho se correspondem, pelo que se pode também afirmar que o Pai é uma pessoa desprendida, fiel e compassiva, assim como o seu Filho. Desprendimento é uma paixão de escolha, de definição de prioridades e valores — a pessoa desprendida é aquela que abre mão de valores que lhe seriam individualmente realizadores, em virtude de valores coletivamente realizadores, a pessoa desprendida valoriza positivamente o outro e constrói a alteridade primariamente pelo viés da inclusão e não

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pelo da diferenciação excludente. O desprendimento (paixão virtualizadora) se completa, assim, pela compaixão (paixão atualizadora), que direciona as relações interpessoais do sujeito, levando-o a priorizar as pessoas que necessitam da compaixão e da inclusão — em outras palavras, quanto maior a distância da alteridade, tanto maior a intensidade da compaixão. A fidelidade (paixão realizadora), por fim, semantiza a persistência desses traços identitários no agir do sujeito, qualificando-o como pessoa confiável, de quem se pode depender. A conjugação destas características passionais identifica Pai e Filho como altruístas (a forma mais intensa do desprendimento, que indica desapego a si mesmo e elevada valorização do outro na construção da própria identidade).

O caráter de boa-nova do livro marcano é enfatizado assim pela identidade do Pai e do Filho que o evangelho constrói, que distingue ambos das identidades de Deus e do Messias mais comumente presentes e predominantes no mundo-da-vida judaico de então. Fica evidente, neste ciclo, a necessidade de transcendermos os limites da perícope para podermos realizar uma análise psicossocial plenamente adequada.

EXEMPLO 2 (FORMA DISSERTATIVA ) Isaías 42

1 Eis o meu servo, a quem eu sustento, o meu eleito, em quem tenho prazer. Coloquei meu espírito sobre ele, justiça para as nações fará brotar. 2 Não gritará, e não levantará, e não deixará ser ouvida na rua a sua voz. 3 A cana rachada não esmagará, e a torcida bruxuleante não apagará; fielmente fará brotar a justiça. 4 Não desanimará e não será quebrado, até que estabeleça na terra a justiça e em sua lei as ilhas tenham esperança. Os dois principais sujeitos narrativos são Javé e o escravo. A identidade psicossocial

de Javé pode ser deduzida de suas ações: simpatia é a paixão subjacente ao ato de eleger. Podemos entender simpatia como emoção de afinidade, que vincula duas pessoas em função de um objeto-valor comum — nessa perícope, podemos dizer que se trata de uma afinidade eletiva. A simpatia é, também, emoção intimamente ligada ao amor, quase idêntica a ele — e se poderia perguntar se, à luz do discurso deuteronomista sobre a eleição (baseada no amor), não seria este (amor) a melhor definição da paixão que liga Javé ao escravo. Prefiro, em virtude do caráter iniciatório do texto (a investidura do escravo), manter o termo simpatia. Explícita no texto é a paixão do deleite: Javé tem prazer no escravo que escolheu, um prazer proléptico, voltado para o futuro, que antecipa a fidelidade e a perseverança do escravo no cumprimento de sua missão. À outorga do Espírito ao escravo, bem como ao seu sustento por parte de Javé, corresponde a paixão da generosidade, o presentear, a dádiva não movida por obrigação, ou sustentada por um sistema de trocas. Na conjugação dessas paixões, aliadas ao caráter libertador da tarefa do escravo, pode-se afirmar que Javé é apresentado pelo texto como pessoa amorosa (pensando no amor como a conjunção de simpatia e generosidade) e justa (pois que ajudar a quem está sob dominação é fruto da justa indignação e generosidade compassiva).

Quanto à identidade patêmica do escravo, podemos destacar: sua fidelidade àquele que o elegeu, confiável aos olhos de seu Deus (aspectualizada como incoativa, fidelidade que demonstrará no exercício da sua tarefa). A obra que lhe é posta nos

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ombros demanda compaixão e coragem. Para identificar-se com pessoas e nações dominadas, é preciso compadecer-se delas (assumir sua condição), e para enfrentar o dominador há que se ter coragem (a bravura e força moral necessárias diante de situações de risco). Explícita no texto está a perseverança (na forma negativa “não desanimará”), que é a coragem em seu estado durativo, a firmeza diante da constante presença dos riscos e perigos que envolvem a ação libertadora — e é irmã da fidelidade, também uma paixão de constância, de firmeza no relacionamento com outras pessoas e no seguimento do projeto de busca de valores. Em síntese, o texto apresenta um escravo decidido, aquele tipo de pessoa que resolutamente enfrenta todas as situações sem se desviar do projeto de vida que estabeleceu, sem abrir mão dos seus valores, não importa quais sejam os perigos que enfrentará, ou os prejuízos que sofrerá.

CONCEITOS BÁSICOS Paixão. Na análise sêmio-discursiva, paixões são efeitos de sentido das qualificações

modais do sujeito da ação (ou seja, da manipulação e competência para sua performance), e o caracterizam como sujeito de estado. Assim, não podem ser analisadas de modo psicológico, mas narrativamente. Há dois tipos de paixões: simples (quando não há combinação de qualificações modais) e complexas (quando há combinação de qualificações modais). As paixões também se distinguem conforme a intensidade e duração (tecnicamente, aspectualização), conforme o objeto visado e sua orientação temporal (para o passado, como no remorso; ou para o futuro, como no medo). A peculiaridade da perspectiva sêmio-discursiva da compreensão da paixão é bem sintetizada por Denis Bertrand: “Distinguindo-se das abordagens filosófica e psicopatológica do passional, a semiótica restringe sua observação à dimensão linguageira e discursiva do fenômeno. Ela procura inscrever seu objeto nos princípios de pertinência e de coerência da teoria geral da significação. Ela se interessa pelas formas culturais dos dispositivos passionais que o discurso configurou. Aliás, é nesse limite que ela interessa ao especialista em análise textual”.2

Paixões simples. Paixões simples são efeitos de sentido do querer-ser (que subsume o dever-ser); decorrem de um único tipo de modalização do sujeito do estado. Veja o quadro dessas paixões:3

Querer(dever) – ser(fazer)

Não-querer(dever) – não-ser(fazer)

Querer(dever) – não-ser(fazer)

Não-querer(dever) – ser(fazer)

Desejo Avareza Desprendimento Desinteresse

Anseio Mesquinhez Generosidade Repulsa

Ambição Usura Liberalidade Medo

Cupidez Vinice Prodigalidade Aversão

Avidez

Curiosidade

Inveja

2 2

Caminhos da semiótica literária, p. 377.

3 3 Extraído de BARROS, Diana L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos, p. 63.

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As paixões do querer-ser são aquelas que modalizam o desejo do sujeito da ação de entrar em conjunção com o objeto-valor. O desejo é a menos intensa delas, marca simplesmente o querer. À medida que aumenta a intensidade do querer-ser (estar em conjunção com o objeto-valor), a língua oferece diferentes vocábulos para expressar esse efeito de sentido — anseio, avidez, cupidez (cobiça). As paixões do não-querer-não-ser são aquelas que modalizam o sujeito pelo não-querer-não-estar em conjunção com o objeto (ou, pelo não querer entrar em disjunção com o objeto), como a avareza e suas diferentes intensidades. As paixões do querer-não-ser são aquelas que modalizam o sujeito pelo não-querer estar em conjunção com o objeto-valor: generosidade e similares (o desprendimento é a menos intensa). Por fim, as do não-querer-ser são aquelas em que o sujeito é modalizado pelo não-querer estar em conjunção com o objeto-valor, desde a menos intensa (o desinteresse) até as mais intensas.

Paixões complexas. São efeitos de sentido derivados de uma combinação de qualificações modais do sujeito do estado. Segundo Greimas, as paixões complexas têm um estado inicial de espera, que é o momento inicial do percurso passional. Quando a espera é simples, o querer(dever)-ser do sujeito não é suficiente para levá-lo a agir. A espera é fiduciária quando o sujeito do estado mantém uma relação de confiança (fidúcia) com o sujeito do fazer para realizar a ação. A espera também é aspectualizada (pode ser relaxada ou tensa). Vejamos um breve quadro descritivo da categorização básica das paixões complexas do querer-ser, também extraído do texto de Diana Barros (p. 64s.) e apresentado como exemplo de trabalho semiótico sobre as paixões:

Aflição e insegurança Esperança e segurança Satisfação e confiança (Espera tensa) (Espera paciente)

Disjunção e tensão Não-disjunção e distensão Conjunção e relaxamento Querer-ser Querer-ser Querer-ser Crer-não-ser Não-crer-não-ser Não-saber-poder-ser Saber-poder-ser Crer-ser (Espera relaxada) (Espera não-paciente)

Conjunção e relaxamento Não-disjunção e distensão Conjunção e relaxamento Querer-ser Querer-ser Querer-ser Crer-ser Não-crer-ser Não-ser-crer-não-ser A partir de formalizações como esta, a semiótica postula a categorização e a classificação

das paixões enquanto efeitos de sentido nas diferentes línguas e seus respectivos mundos-da-vida.

Segundo Diana Barros, as paixões complexas podem ser assim classificadas: 1) de falta, que se desdobram em fiduciárias (e.g., insegurança) e de objeto (e.g., aflição, ansiedade); 2) de liqüidação de falta (fiduciária), que se desdobram em paixões de virtualização e de atualização (e.g., antipatia, cólera, rancor) e de realização (e.g., revolta, vingança); 3) fiduciárias (não de falta, ou liqüidação de falta), que se desdobram em paixões de confiança (e.g., confiança, decepção, desilusão) e de benquerença (e.g., amor); e 4) de objeto (e.g., alegria, satisfação, tristeza).4

A classificação e listagem das paixões é um trabalho complexo e ainda não acabado, até porque há diversas possibilidades de taxionomia das paixões mesmo em perspectiva semiótica. No caso dos estudos bíblicos, essa é uma tarefa urgente ainda a ser realizada.

Identidade. A resultante de um processo psicossocial de diferenciação e identificação da pessoa em relação às demais em sua sociedade. “O que dá forma à minha própria 4 4 Diana L. P. de BARROS,Teoria do discurso: fundamentos semióticos, p. 69.

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identidade não é só a maneira pela qual, reflexivamente, eu me defino (ou tento me definir) em relação à imagem que outrem me envia de mim mesmo; é também a maneira pela qual, transitivamente, objetivo a alteridade do outro atribuindo um conteúdo específico à diferença que me separa dele.”5 Guardadas as devidas proporções, esta noção de identidade pode ser aplicada também a grupos sociais, instituições e nações, quando então se destaca a sua dimensão sociocultural.

CONCEITOS OPERACIONAIS Modalização. Termo da sintaxe do nível narrativo que explica a qualificação do sujeito com

relação ao seu fazer (modalização do fazer — sujeito do fazer), a relação do sujeito com os objetos-valor (qualificação do ser — sujeito do estado-paixões), e a relação do sujeito com o objeto, se verdadeira ou falsa, mentirosa ou secreta (modalidade veridictória). Pode-se dizer que o sujeito possui uma existência modal, alterada constantemente pelas relações que se estabelecem entre sujeito e objeto e sujeitos entre si. Como declarou J. C. Coquet: “Do ponto de vista paradigmático, o sujeito é dotado de uma carga modal de maior ou menor complexidade, constituída por modalidades compatíveis, contrárias ou contraditórias que o definem a cada instante de seu percurso. [...] Do ponto de vista sintagmático, a carga modal é apresentada, simultaneamente, como hierarquizada e evolutiva. Uma modalidade dominante define o sujeito, pondo as outras sob sua dependência: por exemplo, o /querer/ regerá, ao longo do percurso, o saber e o poder fazer, formando um ‘sujeito do desejo’, ou será o /saber/ que formará a modalidade diretriz, dominando o querer e o poder fazer, para formar um ‘sujeito de direito’ ”.6

Aspectualização. Mecanismo lingüístico de atribuição de aspecto a uma ação ou paixão. “O aspecto, definido em lingüística como ‘ponto de vista sobre o processo’, articula, como sabemos, as categorias do acabado e do não acabado, do incoativo, do durativo, do iterativo, do terminativo.”7 Na análise das paixões, o aspecto é um dos desdobramentos da paixão, qualificando as relações passionais e distinguindo, em conseqüencia, seus efeitos de sentido e suas respectivas lexicalizações.

Percurso passional. Modelo explicativo do processo narrativo do sujeito passional (patêmico), caracterizado por quatro fases logicamente dependentes e sucessivas: disposição (a abertura do sujeito de estado para encetar a busca dos valores, que se caracteriza como espera), sensibilização (aspectualização das relações patêmicas dos sujeitos), emoção (paixão vinculada a um sujeito) e moralização (sanção sociocultural da paixão) — fases que correspondem, grosso modo, aos percurso da ação: manipulação, competência, performance e sanção. Sua função primária é operacionalizar a análise das paixões em uma dada passagem. Consiste em um simulacro da intersubjetividade humana, das relações passionais entre sujeitos na concretização de seus objetivos de vida. Semelhantemente ao percurso do fazer, as quatro fases do percurso passional não estarão necessariamente explícitas em um texto, mas, enquanto forma de organização (sintáxica) da narratividade, estará sempre presente em todo e qualquer texto. Segundo a terminologia sêmio-discursiva, a dimensão psicossocial do texto tem a ver com o percurso patêmico (passional) do sujeito na busca dos valores e na construção da sua identidade. Distinta das abordagens filosófica e psicológica, a semiótica analisa

5 5 Eric LANDOWSKI, Presenças do outro: ensaios de sociossemiótica, p. 4.

6 6DENIS BERTRAND, Caminhos da semiótica literária, p. 367.

7 7 Idem, p. 371.

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as paixões enquanto efeitos de sentido das modalizações do sujeito do estado, conforme lexicalizadas e sedimentadas tradicionalmente no mundo-da-vida, e dadas à interpretação nos textos.

EXERCÍCIOS 1. Escolha um filme e analise as relações passionais das principais personagens e como

suas identidades são construídas. 2. Escolha tipos diferentes de perícopes da Bíblia (epístolas, poesia, sabedoria, leis) e

analise as relações passionais das principais pessoas e como as suas identidades são construídas.

SUGESTÕES DE LEITURA Textos didáticos

SAVIOLI , Francisco Platão & Fiorin, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1996. Lição 18, p. 267-278. Textos técnicos

BARROS, Diana L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual Editora, 1988, p. 49-71.

BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Bauru: EDUSC, 2003, p. 357-439. GREIMAS, Algirdas J. &FONTANILLE , Jacques. Semiótica das paixões: dos estados de coisas

aos estados de alma. São Paulo: Ática, 1993. LANDOWSKI, Eric. Presenças do outro:ensaios de sociossemiótica. São Paulo: Perspectiva,

2002. Livro todo, dedicado à análise semiótica da construção de identidade.

9 Ciclo 5 Dimensão missional da ação: A releitura do texto

9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo.

Marcos 1 Não vivemos nos tempos de Jesus nem na Galiléia; Jesus não será rebatizado; a disputa pela messianidade de Jesus não é mais um elemento definidor de identidade das comunidades cristãs (com raríssimas exceções). Que sentidos pode esse texto ter hoje em dia? Que ações pode nos estimular a realizar em resposta à vontade de Deus? Neste quinto ciclo, encerramos o percurso da leitura do texto, enfocando as respostas que o texto nos pede. Que ações realizar? Que novos discursos formular? Neste ciclo, nosso objetivo é colocar em prática as propostas de ação do texto bíblico. Por isso, chamo este ciclo de a dimensão missional da ação. Com a palavra missional, refiro-me a tudo aquilo que Deus nos pede para fazer em resposta ao seu próprio agir no mundo por ele criado. Este sentido do termo não é o mesmo usado de forma técnica, para se referir à missão da Igreja. Uso o termo missional, aqui, em seu sentido mais elementar — ser enviado —, e por isso ele se aplica a tudo o que podemos fazer para responder à vontade de Deus, que nos enviou ao mundo para sermos semelhantes a Cristo e, no poder do Espírito, glorificarmos o seu nome. Não podemos, entretanto, recair no erro de separar teoria e prática. A resposta missional inclui tanto práticas quanto conhecimentos, ações e sentimentos, reflexão aliada à ação.

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Em linguagem sêmio-discursiva, podemos dizer que neste ciclo agimos especialmente como co-enunciadores do texto, usando a imaginação criativa, reescrevemos o texto para nossa realidade, nosso mundo-da-vida. E procuramos fazer isso de forma integral, apropriando-nos dos sentidos do texto em suas dimensões pragmática (do fazer), cognitiva (do saber) e patêmica (do sentir). Em termos teológicos: relemos o texto em perspectiva missional, que inclui as dimensões da teologia e da espiritualidade.

INTRODUÇÃO Nas práticas não-acadêmicas de interpretação da Bíblia, não se costuma fazer

distinção entre o que o texto significava (para o autor e os primeiros leitores) e o que significa (para o leitor ou leitora atuais); o sentido atual do texto é imediatamente percebido. Já nas práticas acadêmicas, a distinção entre o significado contextual do texto e o sentido atual tende a ser acentuada. É tão forte em algumas teorias que se definiu haver dois conjuntos de procedimentos diferentes na interpretação: o primeiro é a exegese (propriamente dita), que se ocupa do significado original do texto; o segundo é a atualização (aplicação, releitura, apropriação, atualização etc.) do significado original do texto para a época da leitura, cuja teoria recebe o nome de hermenêutica. Nesses dois ambientes, as posições concretas não são tão demarcadas assim; de fato, são mais graduais — o que implica, é claro, a existência de extremos, mas indica que a maioria das práticas fica em graus mais moderados dentro da escala. Ou seja, no ambiente acadêmico, não são muitas as pessoas que distinguem absolutamente entre significado original e atual; e nos ambientes não acadêmicos, a maioria das pessoas percebe que há diferenças entre o texto hoje e na época dele.

Na teoria aqui proposta, essa distinção é desnecessária, pois todo o processo de leitura já envolve a “atualização” do texto, toda tentativa de descobrir o sentido “original” já é influenciada pela prática do leitor (com toda sua rede de discursos). Interpretar um texto é um processo complexo que integra o que por vezes se separou — exegese e hermenêutica.

Didaticamente, porém, é interessante destacar este ciclo, a fim de explicitar os procedimentos que realizamos na apropriação dos sentidos do texto. Não nos esqueçamos, porém, que na concretização da leitura, os cinco ciclos acabam se fundindo à medida que nos aperfeiçoamos em sua prática. Você poderia, se quisesse, aplicar os procedimentos do Ciclo 5 ao final de cada um dos ciclos anteriores. Por exemplo, nada impede que você atualize os efeitos de sentido percebidos na análise do Ciclo 1, pois também nossas ações se realizam no tempo e no espaço, que continuam sendo culturalmente construídos por nós, nos limites e possibilidades de nosso contexto; e o mesmo vale para os demais ciclos. Nas práticas interpretativas mais comuns, geralmente o que se faz é o que definimos como análise do plano de expressão e análise do segundo ciclo — conseqüentemente, a atualização do texto se faz a partir da dimensão teológica do texto (ou da sua dimensão semântica), o que não é errado, mas insuficiente, pois dessa forma se perdem amplas possibilidades de compreensão e apropriação do texto que os demais ciclos proporcionam.

Se você tem seguido este método ciclo a ciclo, chegou a hora de formular uma síntese dos resultados dos quatro primeiros ciclos. Imagine que você está explicando a uma pessoa que não conhece nada sobre a Bíblia qual é o sentido do texto lido — coloque-se na pele de Filipe diante da pergunta do eunuco etíope (At 8:26-40). Este é um bom exercício de revisão do seu trabalho interpretativo, bem como de retomada do fôlego para concluir a leitura do texto. Não é raro que não percebamos todas as relações importantes entre os resultados de cada ciclo da leitura. De fato, um dos principais erros na interpretação do texto bíblico é o de fragmentar os resultados das diversas análises

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aplicadas ao texto. Analisar é desmontar o texto — e não é tão incomum que, após desmontar o texto, um intérprete não consiga remontá-lo com todas as suas peças. Por isso, aos movimentos de análise sempre devem corresponder movimentos de síntese (re-unir os elementos separados analiticamente).

O trabalho do Ciclo 5 é uma forma de interdiscursividade. Pomos em diálogo os discursos do texto com os nossos — sejam sobre tempo e espaço, sejam os teológicos, sejam os sociais, sejam os passionais. Nesse diálogo, deveria predominar a reverente atitude de ouvir a Palavra de Deus presente no texto e permitir que ela realize seu trabalho transformador em nossa vida (cf. Hb 4:12-13). Não poderá faltar, porém, também a atitude crítica (de discernimento), pois não só os tempos mudaram, mas, principalmente, porque na própria Escritura já encontramos a perspectiva crítica nas leituras de textos. Repare nas diferenças entre os “códigos legais” dentro do Pentateuco (Êx 19—24; Lv 17—26; Dt 12—26), que dão testemunho de um processo de interpretação de textos na história de Israel. Por exemplo, Êxodo 20:23-26 prescreve que em qualquer lugar que um israelita construir um altar para adorar a Javé, lá ele se fará presente. Já em Deuteronômio 12 prescreve-se que somente no lugar que Javé escolhesse é que ele estaria presente — claramente o texto deuteronômico faz uma crítica ao do Êxodo. Diferentes situações históricas do povo de Israel estão na causa dessa crítica, mas note que a exclusividade de Javé permanece nos dois textos: só ele é o Deus de Israel.

Um caso especial de atitude crítica é a maneira como autores do Novo Testamento interpretam textos do Antigo. A partir de sua nova compreensão de Deus, construída a partir da revelação em Cristo, perceberam que o sistema sacrificial da religião judaica deveria ser abolido; notaram que a compreensão do papel da Lei divina na vida cristã deveria estar subordinado à graça de Deus; enfatizaram que o povo de Deus não poderia ser restringido apenas aos descendentes físicos de um ancestral comum; reconstruíram a concepção apocalíptica, reestruturando o fim dos tempos como uma realidade já iniciada mas ainda não concluída. Os critérios do discernimento, então, derivam da revelação de Deus, e não das preferências de quem interpreta o texto. Este pode ser o maior erro na releitura de um texto bíblico — julgá-lo com critérios que não sejam compatíveis com a revelação de Deus em Cristo. Erro semelhante é o do literalismo fundamentalista — tomar os textos bíblicos ao pé da letra e simplesmente tentar reproduzir o seu significado contextual em nosso tempo. Se no primeiro erro julgamos a Escritura com critérios puramente humanos, neste segundo erro elevamos a Escritura à condição divina e, com isso, impedimo-nos de entender o texto em sua plena humanidade — de fato, nós nos colocamos na condição que Paulo condenou em 2Coríntios, “pois a letra mata, mas o Espírito vivifica” (3:6).

Esses dois tipos de erro nos ajudam a entender por que a ênfase é colocada, neste manual, sobre o trabalho com o texto bíblico. Trabalho cuidadoso, disciplinado, detalhado e exigente de ler o texto nas suas várias dimensões, de prestar atenção a todos os detalhes possíveis do texto, de modo que o texto seja guia de nossa interpretação. Por isso tenho enfatizado também a importância de ler e reler a Bíblia toda, não só para formar nosso conhecimento enciclopédico que possibilita analisar as relações intertextuais e interdiscursivas dos textos, mas porque é no conjunto da Escritura que vamos descobrindo e construindo os critérios de discernimento — e não em textos isolados, de nossa preferência. Toda interpretação lida com três intencionalidades distintas: a do autor, a do leitor e a do texto. Autor e leitor, como vimos, são co-enunciadores, mas não podem ser os guias da interpretação, pois nem sempre aquilo que intencionamos dizer é o que conseguimos colocar no papel; e nem sempre aquilo que percebemos no texto é o que nele está presente. O próprio texto deve ser o guia de nossa

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interpretação, pois é nele que percebemos a intencionalidade autoral e é a partir dele que construímos a intencionalidade interpretativa. No exercício da interpretação, ... o leitor, ao ler, atualiza o texto e seu sentido de acordo ou não com suas expectativas e previsões advindas de sua competência lingüística e cultural. Mas o texto também procura e cria seu leitor: ele o inventa o mais próximo possível da linguagem, na sua substância e nas suas formas, suscitando a dúvida, a inquietude e a surpresa. Por meio da diversidade dos modos de crença que a leitura propõe, eis que se reencontram, invertidas, a experiência sensível da língua e a experiência cultural do mundo.1

A Escritura, mais do que qualquer outro texto, para nós, cristãos, tem essa capacidade de reinventar os seus leitores e as suas leitoras. Como testemunha da palavra viva e eficaz de Deus, como instrumento da ação do Espírito de Deus, a Escritura nos critica, nos discerne, nos desafia, nos transforma. Ler a Bíblia, podemos dizer, muita vez é ler contra nós mesmos — pois a palavra divina descortina toda nossa pecaminosidade. Ler a Bíblia é ler contra nós mesmos, também na medida em que ela nos coloca em contato com a graça de Deus que nos transforma. Por isso, na leitura da Bíblia se encontram as nossas experiências humanas com a nossa experiência de Deus, se confrontam vontades e ações, nela se dá uma das dimensões da luta entre a carne e o Espírito de Deus (Gl 5:12ss).

Por fim, é importante destacar que são várias as formas possíveis de apresentação dos resultados do quinto ciclo. Tradicionalmente, a releitura dos textos bíblicos é apresentada, ou como um tipo de exortação (sermão, estudo bíblico, meditação, homilia etc.) ou como um tipo de explicação (seja um ensaio teológico, um comentário exegético, uma dissertação etc.). Essas formas são válidas, mas não as únicas. Podemos apresentar os resultados de nossa apropriação do texto de várias maneiras distintas e criativas — em forma de poesia, bibliodrama, novas narrativas, novas epístolas, pinturas, fotos, sites de Internet etc. Mais importante ainda do que essas formas de reescrever o texto, devem ser as novas formas de ação mediante as quais tornamos concretos, práticos, os sentidos que construímos na leitura. Nesse sentido, é importante que demos um salto de qualidade na interpretação — um salto de qualidade que só pode ser dado na medida em que a interpretação da Bíblia deixar de ser um trabalho exclusivamente individual. Ler a Bíblia deveria ser, primariamente, uma prática comunitária — pois ninguém consegue, sozinho, praticar a missão de Deus, que criou a igreja como um povo, uma fraternidade, uma comunidade que, unida sob o senhorio de Cristo, capacitada pelo poder do Espírito e voltada para a glória do Pai, é o sujeito da práxis cristã.

CICLO 5: AS PERGUNTAS 1. Que possibilidades de ação e sentido da ação o texto constitui no diálogo conosco? 2. Como podemos praticá-las e/ou reescrevê-las em nossa realidade?

COMO FAZER 1. Formular uma síntese interpretativa dos quatro primeiros ciclos da exegese. 2. Identificar, em nosso mundo-da-vida, discursos similares aos do texto e localizá-los em

suas respectivas formações discursivas; 3. Fazer entrar em relações interdiscursivas os discursos do texto e os de nosso mundo-da-

vida. 4. Reescrever o texto, procurando recriar os seus efeitos de sentido em nosso mundo-da-

vida, em uma das formas possíveis de comunicação do evangelho.

1 1 Denis BERTRAND, Caminhos da semiótica literária, p. 413.

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5. Propor ações missionais (que incluam conhecimentos e paixões) compatíveis com os sentidos do texto e relevantes em nosso tempo.

EXEMPLO 1 (FORMA DESCRITIVA ) Marcos 1 9 Naqueles dias, veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo.

(Apresentarei apenas um ponto de vista possível da dimensão missional da perícope do batismo de Jesus.)

1. Essa perícope tematiza principalmente a instalação divina de Jesus em sua messianidade, em um ambiente espaço-temporal extra-institucional e periférico, também caracterizado pela presença da pregação profética e sua correspondente expectativa da chegada do Messias. A identidade messiânica de Jesus é apresentada com três grandes características: filialdade fiel ao Pai, solidariedade com pessoas impuras e pecadoras e oposição à identidade oficial do judaísmo da época. Tanto Jesus como o Pai são retratados como pessoas amorosas e fiéis, unidas pelo objetivo comum da missão messiânica libertadora. A instalação de Jesus como Messias apresenta alternativa à concepção vigente no judaísmo oficial (e no Império Romano) das relações sistêmicas de poder e do papel da divindade nessas relações, bem como da função legitimadora da teologia no mundo-da-vida.

2. Um tipo similar de discurso, em nossos dias, é o do resgate da identidade oficial das denominações cristãs, cujas relações interdiscursivas são mais de tipo contratual com o discurso judaico oficial e de tipo polêmico com o discurso marcano. A afirmação de que a identidade denominacional é relativamente imutável, cujo critério de verdade está no passado, nas origens da denominação e, especialmente, em sua doutrina e forma oficial de governo e culto sacramental, desconsidera pelo menos duas das características da identidade messiânica de Jesus. Pode-se supor uma formação discursiva institucional conservadora, que perpassa diferentes denominações cristãs, tanto protestantes quanto católicas e se constitui em reação sistemicamente desenhada contra as transformações velozes do campo religioso brasileiro contemporâneo.

3. Neste sentido, o discurso marcano da identidade messiânica de Jesus deveria funcionar como crítica a esse tipo de pensamento e prática institucionais e convidar as igrejas e suas lideranças a repensarem a construção de sua identidade, não mais a partir do passado mítico, mas a partir do compromisso missionário no presente e na expectativa da consumação messiânica no futuro. Convoca a uma revisão doutrinária significativa, especialmente no tocante às questões relativas à relação entre graça e lei (moral e eclesiástica), a partir da noção de filialdade fiel. Convoca a uma revisão das noções de missão, a partir da solidariedade de Jesus, que deveria ser a marca das relações entre igrejas (e seus fiéis) com as pessoas fora da igreja, individual ou organizadamente. Convoca uma revisão da auto-imagem das denominações, especialmente de suas estruturações de poder, que são mais de cunho sistêmico do que comunicativo.

4. O texto marcano sugere, entre outras possibilidades: a) um sermão estruturado a partir das três características principais da identidade de Jesus, visando a questão da construção da identidade eclesial e eclesiástica; b) um sermão focado na solidariedade de Jesus, visando a renovação da ação missionária cristã; c) um sermão sobre a dimensão patêmica das relações entre Jesus e o Pai, visando uma renovação das relações patêmicas entre cristãos e Deus, centradas no amor e na fidelidade, e não na lei e obrigatoriedade. Além de sermões, o texto poderia inspirar canções litúrgicas que

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destacassem as marcas da identidade messiânica de Jesus, temática tão pouco tratada na hinódia protestante contemporânea, centrada nas experiências pessoais com Deus e no próprio louvor.

5. Um tipo de ação compatível com a proposta do texto seria a criação de formas missionais solidárias da igreja local para com pessoas que vivem em seu espaço de atuação. Semelhantemente, no âmbito da espiritualidade individual, o texto convida a buscar a semelhança com Cristo, não só em oração, mas especialmente na definição dos valores e objetivos de nossos projetos de vida, quase sempre mais organizados ao redor de valores da sociedade consumista do que nos valores do Reino de Deus.

EXEMPLO 2 (FORMA DISSERTATIVA ) Isaías 42

1 Eis o meu servo, a quem eu sustento, o meu eleito, em quem tenho prazer. Coloquei meu espírito sobre ele, justiça para as nações fará brotar. 2 Não gritará, e não levantará, e não deixará ser ouvida na rua a sua voz. 3 A cana rachada não esmagará, e a torcida bruxuleante não apagará; fielmente fará brotar a justiça. 4 Não desanimará e não será quebrado, até que estabeleça na terra a justiça e em sua lei as ilhas tenham esperança. (Apresento a dimensão missional dessa perícope na forma de meditação devocional,

relendo o texto a partir da apropriação da identidade do servo por Jesus Cristo.) A sociedade atual é perversa e sem compaixão. Nela só há lugar para pessoas

capazes e competentes, que conseguem cumprir todas as exigências do mercado de trabalho e de consumo. Cada vez mais, empresas exigem maior qualificação profissional e máquinas substituem pessoas no desempenho de funções e realização de serviços — e com isso aumenta o desemprego, a economia informal e a marginalidade. A sociedade atual, dominada pelo “deus Capital (Mamon)”, gera um sistema social de exclusão, mediante o qual um número cada vez maior de pessoas é excluído do mercado de trabalho, da educação, da saúde, da dignidade, da própria vida! As pessoas cada vez mais se refugiam nas drogas, na violência, nas religiões sem compromisso, no sexo sem amor, no individualismo, no consumismo, ou simplesmente caem para o submundo da miséria, da fome e da marginalidade. É a todas essas pessoas que anunciaremos a justiça e a “lei” de Javé, especialmente aos sem compaixão, porque acreditam que a competitividade é o melhor meio de eliminar a pobreza e o sofrimento humano. Pessoas sem compaixão, porque são vítimas sacrificiais de uma economia perversa e se tornaram brutalizadas pelo sofrimento. Nesta sociedade, o grande desafio para a Igreja é a vida de compaixão!

Precisamos de compaixão e solidariedade para proclamar o evangelho da justiça! Jesus, como o escravo de Javé, olhava para as pessoas de seu tempo e via canas esmagadas, pavios se apagando, esperanças mortas e resignação ao status quo, e a elas demonstrava compaixão. A compaixão (solidariedade) era o motor de suas ações a favor das pessoas. Para pregar o evangelho da justiça não posso ver o “outro” como adversário — a evangelização não pode gerar inimigos, mas, sim, pessoas reconciliadas com Deus e, conseqüentemente, conosco e com elas mesmas, amigos e amigas de Jesus Cristo (Jo 15:14-15). Para pregarmos o evangelho precisamos resistir à tendência desumanizadora e brutalizante de nossa sociedade; precisamos resistir à tentação de

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vivermos apenas em função de nós mesmos e de nossos interesses e desejos. Precisamos de solidariedade, compaixão: sentir o sofrimento do outro, como o nosso próprio sofrimento. Essa é a mais importante unçãodivina de que necessitamos.

Assim como Jesus, em sua apropriação da missão de escravo de Deus, fez acompanhar sua pregação de sinais visíveis do amor de Deus pelos pecadores, também a Igreja compassiva, na pós-modernidade, fará sua pregação ser acompanhada dos sinais do reino. Quem ama é compassivo e solidário com a pessoa integral, não faz divisão entre “alma” e “corpo”, pregando para salvar “a alma” e deixando o “corpo” morrer. Jesus cuidava das doenças do corpo e do espírito, dos problemas econômicos e sociais. Paulo, o evangelista aos gentios, recebeu a recomendação de “nos lembrarmos dos pobres, o que eu tive muito cuidado de fazer” (Gl 2:10). A diaconia cristã é a expressão concreta da compaixão evangelizadora da Igreja; é estrutura mediante a qual a Igreja pratica as boas obras para as quais cada cristão foi chamado por Deus (Ef 2:10).

Precisamos discernir quais são as boas obras mais urgentes, ou quais as formas mais importantes de ação diaconal. No âmbito da economia, por exemplo, a esmola já perdeu eficácia (que tinha em períodos muito antigos na história econômica da humanidade). O socorro econômico mediante a esmola é insuficiente para livrar os pobres da miséria. É preciso ações mais eficazes. Por exemplo: projetos sociais de capacitação profissional e de desenvolvimento comunitário; movimentos sociais de luta contra o desemprego e a fome; movimentos políticos pela adoção de mecanismos de defesa econômica dos cidadãos, garantidos pelo Estado — por exemplo: renda mínima, salário-educação etc. No âmbito da saúde, é preciso também atuar por meio de projetos de desenvolvimento (ambulatórios, clínicas voluntárias etc.), e de movimentos sociais e políticos (campanhas contra certos tipos de câncer, instituições especializadas no atendimento a certos tipos de doenças e deficiências etc.; movimentos políticos que visem a forçar o Estado a cumprir as metas de saúde pública mínimas para garantir a dignidade dos cidadãos).

É preciso que a Igreja atue de forma a contribuir para que a cidadania seja uma realidade concreta, e não apenas um direito constitucional. Para que a mensagem de justiça pregada pela Igreja seja entendida, é necessário que ela demonstre os sinais da justiça do reino de Deus em sua vida e na de seus membros. Em nossa sociedade, na qual a pessoa só é vista como consumidora ou produtora de bens, precisamos trabalhar para tornar concreta e justa a cidadania, especialmente para a inclusão na cidadania efetiva de pessoas impedidas, sistemicamente, de concretizar seus plenos direitos e deveres sociais. Para fazer isso, o Espírito que ungiu o servo de Deus também pode nos ungir e instalar na missão de Deus ao mundo.

CONCEITOS BÁSICOS Hermenêutica. Há diferentes maneiras de conceber a hermenêutica. Na exegese acadêmica,

de cunho histórico, as definições são do seguinte tipo: “Exegese é o acesso científico-descritivo ao texto. Os critérios são a totalidade dos métodos filológicos e históricos e a verificabilidade intersubjetiva ligada a eles. Aplicação é a adaptação do texto ao respectivo presente (situação), a “transmissão da mensagem” e outras coisas mais. Hermenêutica é a tentativa de descrever os dois modos de acesso ao texto cada um para si e em sua relação mútua e de classificá-los na perspectiva da teoria da ciência”.2

Neste Manual, uso o termo hermenêutica em dois sentidos: um genérico — sinônimo de interpretação, leitura, exegese; o outro, específico: uma teoria que visa explicar o processo de interpretação de textos. Em que este uso difere de definições como a de

2 2 Klaus BERGER, Hermenêutica do Novo Testamento, p. 91.

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Berger? Na maneira como entendemos a relação entre exegese e aplicação. Não faço separação entre esses dois momentos da interpretação, sendo o primeiro “científico” e o segundo “existencial”. Por quê? Porque concordo com a descrição que Paula M. Martins faz da teoria da interpretação de Donald Davidson: “De fato, todo intérprete inevitavelmente impõe seus valores e padrões de racionalidade àquele que ele interpreta e isto significa que o processo interpretativo (atribuidor de estados mentais) é necessariamente um processo normativo, guiado pelos padrões éticos da ação e da responsabilidade, da liberdade prática e da valoração”.3

Releitura. Nos estudos bíblicos latino-americanos, esse termo se consagrou como o preferido para significar o que, em outras práticas de estudo bíblico, se nomeava de aplicação, apropriação, atualização do texto. Em grande medida, o termo ainda é tributário da distinção moderna entre exegese (explicação científica) e atualização (aplicação existencial), à medida que supõe, antes da atualização do texto, uma leitura que, depois, será criticamente re-lida e concretizada na práxis. Neste Manual, uso o termo releitura como sinônimo de atualização, apropriação, aplicação ou hermenêutica no sentido lato.

Intenção, intencionalidade. Em várias teorias do significado, a noção de intenção é crucial. Na tradição exegética de cunho histórico, por exemplo, tanto a tendência histórico-crítica quanto a histórico-gramatical descrevem preferencialmente a tarefa exegética como a recuperação da intenção do autor — o sentido de um texto corresponde ao que o seu autor quis dizer. Uma forma de reação a essa tradição veio de certos estudos que afirmaram: na leitura, o que realmente conta é a intenção de quem lê, pois é o leitor (ou leitora) quem produz o sentido do texto. Uma terceira maneira de definir a intenção é atribuí-la ao texto — este, uma vez escrito, reveste-se de certa autonomia em relação ao que o seu autor intencionou, de modo que nem a intenção do autor, nem a do leitor realmente definem o sentido, mas a intenção do texto ou da obra. Sozinhas, as três estão erradas — a) pois um texto é sempre uma obra plural, de várias vozes, inclusive a de quem lê; b) pois a intenção de um autor sempre é, também, uma realidade inter-subjetiva, pois o que um autor intenciona é melhor descrito como “ser interpretado de uma certa maneira por seus interlocutores”.4 Para evitar o perigo de recair no psicologismo ou no cartesianismo, a semiótica e outras tendências dos estudos lingüísticos preferem usar o termo intencionalidade, diluindo assim o caráter subjetivo da “intenção”. Intenção ou intencionalidade, o mais importante é evitarmos a noção moderna de sujeito, seja em sua vertente filosófica, seja em sua vertente psicologizante.

CONCEITOS OPERACIONAIS Missional, missão, práxis cristã. Uso esses termos de forma intercambiável. Significam

todas as formas de ação cristã que, elicitadas pelo texto, respondem à nossa compreensão da palavra e vontade de Deus testemunhadas na e pela Escritura. Os termos missão e missional destacam a iniciativa divina no processo e se referem a toda a vida da comunidade cristã, não apenas ao que ela faz fora de suas estruturações — assim, inclui também a espiritualidade cristã em geral. O termo práxis destaca a unidade

3 3 “Como superar o dualismo sem reducionismo: Davidson e a crítica hermenêutica na filosofia

da mente”, em Plínio J. SMITH& Waldomiro J. SILVAFILHO (orgs.), Significado, verdade,

interpretação:Davidson e a Filosofia, São Paulo: Loyola, 2005, p. 253.

4 4 Paula M. MARTINS, “Como superar o dualismo sem reducionismo: Davidson e a crítica

hermenêutica na filosofia da mente”, em Plínio J. SMITH& Waldomiro J. SILVAFILHO, (orgs.),

Significado, verdade, interpretação:Davidson e a Filosofia, São Paulo: Loyola, 2005, p. 251.

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inseparável entre teoria e prática, entre as dimensões cognitiva, patêmica e pragmática da leitura e da própria ação. Nesse sentido, a interpretação do texto já é parte da práxis cristã, à medida que, de forma especial, ela é instrumento do Espírito de Deus na vivência cristã do discernimento. Conseqüentemente, a missão é o espaço no qual e a partir do qual se realiza a leitura da Bíblia, cujo sujeito principal é a comunidade cristã, a quem tanto os indivíduos quanto a academia devem servir. Esses termos nos ajudam a lembrar que: “O ‘ato de ler a Bíblia’, portanto, é muito mais do que aprender técnicas e se tornar perito na exegese e na hermenêutica. Deixa-nos receptivos para sermos inspirados de modo inteligente e afetivo, no caminho da verdade. A Palavra de Deus é o meio de crescimento no viver cristão, abrindo-se para novas situações da fé, como ‘lâmpada que ilumina os nossos passos e luz que clareia o nosso caminho’ ”. Uma vez que ela focaliza Cristo, passamos a conhecê-lo intimamente, à medida que vivemos segundo a sua Palavra”.5

Triângulo interpretativo. No processo de leitura, três fatores estão interligados de forma inseparável, cuja articulação em nossa vida determina em grande medida a construção da dimensão missional do texto. Usando a terminologia criada por Carlos Mesters (cf. “Sugestões de leitura”), esses três fatores são: pré-texto (a realidade na qual vive quem interpreta o texto, já interpretada e discursivizada pelo leitor e pela leitora do texto bíblico), contexto (a comunidade de crentes em Jesus Cristo, que realiza a leitura da Bíblia no âmbito de sua vivência da fé cristã, tanto no momento litúrgico, quanto no momento da ação missional) e texto (o próprio texto bíblico em seu contexto e em sua forma lingüística). O pré-texto e o contexto são os lugares a partir de onde se interpreta, e para os quais se interpreta o texto, interpretação que deve resultar em ações cristãs missionais.

Diálogo interdiscursivo. A atualização do texto não é um momento “separado” do processo de leitura, mas é parte dele, e se concretiza na forma de diálogo entre os discursos que compõem a “mente” do intérprete e os que provêm do texto. Se levamos em consideração que os discursos se organizam em formações discursivas, a dimensão missional da ação corresponde, também, a um diálogo entre distintas formações discursivas. Esse diálogo pode se dar de forma predominantemente contratual ou polêmica; nele, a responsabilidade fundamental de quem interpreta o texto é manter em adequada conversação as vozes do texto e a sua voz, de modo que não imponha ao texto sentidos que lhe são estranhos, nem se subjugue ao texto por meio de um literalismo fundamentalista inadequado. Vista desta maneira, a complexidade e a historicidade da leitura (e do texto) ficam ressaltadas, e as dimensões interna e externa (do texto e da interpretação) se encontram. Nas palavras de Arnaldo Cortina, “O que irá propiciar uma convivência harmônica entre o lingüístico e o histórico no que se refere ao trabalho com a leitura do texto escrito é o fato de se admitir que a lingüística tem a oferecer um aparato teórico bastante desenvolvido no que se refere aos mecanismos de estruturação da língua escrita, enquanto a história conserva o lugar e o tempo discursivos a partir do qual são construídos os textos. O conceito de heterogeneidade constitutiva do discurso é o elo de ligação, a passagem que une o lingüístico e o histórico”.6

5 5 James M. HOUSTON, “Visando a uma espiritualidade bíblica”, em Elmer DYCK (ed.), Ouvindo a

Deus: uma abordagem multidisciplinar da leitura bíblica, p. 213s.

6 6 Arnaldo CORTINA, O príncipe de Maquiavel e seus leitores: uma investigação sobre o processo

de leitura, São Paulo: Editora UNESP, 2000, p. 265.

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Segundo a terminologia semiótica, a releitura do texto é uma prática interdiscursiva, na qual dialogam os discursos do texto com os discursos da pessoa que interpreta. É uma co-enunciação crítica do texto lido, em suas dimensões pragmática, cognitiva e patêmica, mediante a qual realizamos a função retórica de destinador-julgador do texto, mas também abrimos as portas para que o texto exerça a função de destinador-manipulador (nos convocando à ação) e de destinador-julgador (nos convocando ao autodiscernimento).

EXERCÍCIOS 1. Escolha um filme antigo, que recebeu uma nova versão, e analise as releituras que a nova

produção lhe conferiu. 2. Escolha tipos diferentes de perícopes da Bíblia (epístolas, poesia, sabedoria, leis) e faça

suas releituras.

SUGESTÕES DE LEITURA Textos didáticos

CRB. A leitura orante da Bíblia. São Paulo: Loyola/CRB, 1990. MESTERS, Carlos. Flor sem defesa: uma explicação da Bíblia a partir do povo. Petrópolis:

Vozes, 1983. ____. Por trás das palavras: um estudo sobre a porta de entrada no mundo da Bíblia.

Petrópolis: Vozes, 1974. Textos técnicos

BERGER, Klaus. Hermenêutica do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1999. BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Bauru: EDUSC, 2003, p. 399-413. DYCK, Elmer (ed.). Ouvindo a Deus: uma abordagem multidisciplinar da leitura bíblica.

São Paulo: Shedd Publicações, 2001. GUNNEWEG, Antonius H. Hermenêutica do Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal,

2003. VANHOOZER, Kevin. Há um significado neste texto? Interpretação bíblica: os enfoques

contemporâneos. São Paulo: Vida, 2005. 1

1Zabatiero, J. (2009; 2010). Manual de Exegese; Manual de Exegese (139). Editora Hagnos; São

Paulo.