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    Planejamento e Elaborao de Projetos

    Um desafio para a gesto no setor pblico

    Jackson De Toni

    Porto Alegre, Novembro de 2003

    Sobre o autor:

    Economista, Mestre em Planejamento Urbano e Regional (UFRGS), Tcnico

    em Planejamento da Secretaria de Coordenao e Planejamento do Estadodo Rio Grande do Sul, Professor do curso de graduao em Economia daUniversidade Luterana do Brasil (ULBRA) e de planejamento estratgicoparticipativo do curso de ps-graduao em Gesto Pblica Participativa daUniversidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Contato com autor:

    [email protected]

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    ndice analtico

    Prefcio .....................................................................................................................................................4

    Introduo ................................................................................................................................................7

    Captulo I As possibilidades de planejamento no Setor Pblico ................................ 12

    1. A experincia brasileira recente .......................................................................................................13

    2. Planejamento e gesto do territrio sub-nacional...........................................................................21

    3. O Planejamento Pblico nos anos noventa......................................................................................26

    4. Buscando um novo desenho para o planejamento de governo. .....................................................29

    5. Possibilidades de democratizao do planejamento pblico..........................................................39

    6. Um Planejamento intensivo em gesto.............................................................................................50

    7. A integrao necessria entre Planejamento e Oramento............................................................55

    Captulo II Planejamento de novo tipo. .............................................................................. 60

    1. O marco referencial ...........................................................................................................................64

    2. A metodologia proposta.....................................................................................................................71

    3. A construo do mtodo: um roteiro de aplicao..........................................................................78

    4. Como organizar o planejamento sntese dos procedimentos ....................................................130

    Captulo III Elaborao e monitoramento de Projetos .................................................. 139

    1. O Projeto no contexto do planejamento........................................................................................139

    2. O que necessrio para fazer um bom projeto.............................................................................140

    3. O ciclo do projeto no marco lgico.................................................................................................147

    4. Monitoramento e Avaliao de Projetos........................................................................................157

    5. A execuo do Marco Lgico na tica do BID/BIRD ...................................................................167

    Capitulo IV Facilitao de grupos e tcnicas de moderao ..................................... 176

    1. A dinmica de evoluo do grupo...................................................................................................177

    2. Tcnicas e dinmica para o trabalho com grupos........................................................................181

    3. A importncia da visualizao dos processos................................................................................186

    4. O papel do moderador.....................................................................................................................188

    Captulo V O planejamento como modernizao da gesto pblica ........................ 1921. A construo da administrao pblica no Brasil: burocracia, insulamento e crise de

    legitimao............................................................................................................................................192

    2. A trajetria do planejamento pblico: desmonte institucional....................................................195

    3. A reforma gerencial e as idias fora do lugar................................................................................197

    4. A reforma (possvel) entre o hiperativismo decisrio e a paralisia crnica................................199

    5. A mudana no paradigma de planejamento..................................................................................203

    http://egap.fundap.sp.gov.br%29/
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    6. Um novo modelo de gesto para um planejamento renovado .....................................................208

    Concluses ............................................................................................................................... 213

    ANEXO I termos utilizados em projetos e planejamento ................................................................218

    ANEXO II Matrizes de Planejamento ...............................................................................................237ANEXO III Sites indicados .................................................................................................................248

    Referncias bibliogrficas ...................................................................................................................250

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    Prefcio

    O planejamento talvez seja um daqueles assuntos, como o futebol ou a previso do

    tempo, em que todos se sentem habilitados a dar opinies seguras com enorme

    convico, todos achamos que entendemos de alguma coisa, ou pensamos entender.

    Isto no deixa de ser um bom sinal, porque revela um consenso praticamente universal

    sobre a importncia do tema, com uma boa dose de bom humor, senso comum e

    expectativas frustradas. Quem j no tentou planejar um empreendimento comercial,

    uma viagem de frias, o projeto de reforma da casa ou quem sabe a direo de uma

    organizao pblica ou um projeto de desenvolvimento ? Quem j no planejou mas na

    hora h no resistiu a pura improvisao? Como em outros temas da vida diria aqui

    tambm h uma enorme distncia entre o bom senso e a intuio popular e a prtica

    efetiva e proclamada cientfica das nossas organizaes, particularmente aquelas de

    natureza pblica e governamental. Infelizmente a histria do planejamento na rea

    pblica tem ser revelado de um lado a montona repetio de experincias burocrticas

    e autoritrias, condenadas ao mofo dos arquivos ou esquemas e tcnicas contratadas

    de consultoria, moda de cada governo, to efmeras e passageiras, no mobilizamuma parte nfima sequer da cultura organizacional pblica, acostumada mais a

    obedecer ordens superiores que pensar criativamente sobre problemas e estratgias

    tcno-polticas.

    Este trabalho representa uma tentativa de lutar contra a corrente e insistir na

    importncia do planejamento como sinnimo do governar bem, alm disso, governar

    de forma participativa e democrtica. As reflexes aqui expostas resultam de vrias

    fontes, da experincia de ensino no curso de Gesto Pblica Participativa da UERGS

    (Universidade Estadual do Rio Grande do Sul) nos anos de 2002 e 2003, alm de

    conferncias, cursos e intensos debates sobre o tema de planejamento na Secretaria

    de Estado da Coordenao e Planejamento (SCP) e na Fundao para o

    Desenvolvimento dos Recursos Humanos (FDRH), ambos ambientes possibilitaram

    uma frtil troca de opinies sobre o tema.

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    Nas prximas pginas h uma tentativa de combinar um tipo de manual de

    planejamento voltado para a rea pblica e governamental, literatura no encontrada

    facilmente, com uma fundamentao terica bsica sobre os principais dilemas da

    modernizao da gesto pblica no Brasil, em particular sobre as experincias recentesdesenvolvidas pelo Governo Federal na reformulao do planejamento de longo prazo.

    A administrao da coisa pblica no objetiva lucro comercial, talvez ele possa ser

    substitudo pela necessidade de crescente racionalidade do gasto pblico para

    assegurar nveis de justia social crescentes. Neste aspecto h muitos pontos em

    comum com o terceiro setor (non profit), por isso os argumentos deste trabalho tambm

    podem ser aplicados com alguma criatividade adaptativa a esta frente de ativismo social

    e organizao das polticas pblicas que cresce rapidamente em nosso pas.Agradeo particularmente aos tcnicos da FDRH que neste perodo contriburam com

    este debate, particularmente Fani A. Tesseler, Daisy Quintana de Aguiar, Nicolas

    Tato, Aragon Dasso Jr. e Afonso Arajo. Na SCP, sou grato aos Tcnicos em

    Planejamento do Estado, sempre tensionados entre os imediatismos da micro-poltica e

    os dilemas da reorganizao do planejamento pblico, especilamente a Rogrio Fialho,

    Romy Bruxel, Roberto Vieira, Herbert Klarmann, Slvio Reis, Cludio Perrone, Joo

    Francisco Costa e Paulo Pereira, isentando-os obviamente da responsabilidade pelas

    opinies emitidas neste trabalho. Devo registrar igualmente meu reconhecimento e

    gratido a todos aqueles alunos que compartilharam comigo os cursos de Planejamento

    Estratgico nas turmas I e II do curso de Gesto Pblica Participativa da UERGS (2002

    e 2003) e particularmente aos meus alunos de Economia, Cincia Poltica e Servio

    Social na Universidade Luterana do Brasil, ULBRA, dos cursos de Poltica e

    Planejamento Econmico, Elaborao de Projetos, Metodologia de Pesquisa e

    Economia Poltica pelos intensos debates, geradores de idias que contriburam para

    melhorar a metodologia proposta.Esta obra destina-se no s aos alunos destas disciplinas, mas todos aqueles que por

    condio profissional ou acadmica trabalham com projetos no setor pblico ou se

    relacionam com atividades na rea de planejamento em suas organizaes. Enfim,

    dedica-se a todos que perseguem uma utopia democrtica na gesto pblica, que

    saiba harmonizar mtodos de gerenciamentos cada vez mais eficazes e profissionais

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    com nveis crescentes de autntica particiapao, dos trabalhadores do setor pblico e

    das populaes beneficiadas pelo seu trabalho.

    O autor

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    Introduo

    A maior parte dos governos tem baixa capacidade para governar. Os problemas s so

    enfrentados quando transformam-se em urgncias na agenda, mas neste ponto os

    custos da soluo, se houver, so muito mais altos. O processamento poltico dos

    problemas acontece sem profundidade tcnica, enquanto os processos tcnicos no

    tm viabilidade poltica. A perda crescente de governabilidade desvaloriza o processo

    democrtico perante a populao e a democracia padece pelos resultados que promete

    e no alcana. O cidado, atravs do voto elege ou castiga os dirigentes polticos

    causadores da sua ltima frustrao, mas no h debate de projetos, nem processo

    participativo que viabilize formas de organizao popular efetivamente independentes

    da tutela e do clientelismo estatal. As eleies tornam-se assim uma concorrncia

    eleitoral entre atores com deficincias mais ou menos semelhantes, embora os

    discursos e o marketing poltico teime em diferenci-los. A capacidade de ganhar

    eleies resulta, assim, proporcionalmente na perda de memria do eleitor sobre as

    ltimas promessas de um candidato, muitas vezes personalista, como a mdia

    especializada freqentemente chama muito melhor que seu prprio governo!. A

    presso das circunstncias e os movimentos limitados da conjuntura o limite em quese move a racionalidade dos nossos governos. Os prprios partidos polticos acabam

    transferindo sua cultura interna, normalmente fragmentada por comunidades

    temticas e sujeito todo tipo de particularismos, para o comando dos governos,

    imprimindo um prprio estilo de governar que s aumenta a falta de profissionalismo

    dos quadros permanentes da burocracia pblica. Infelizmente a maioria dos nossos

    gestores pblicos, eleitos ou indicados, passam a maior parte do tempo distrados com

    problemas corriqueiros, no processados tcnica e politicamente, se acomodam s

    agruras da paisagem poltica e seus problemas aparentemente intransponveis, se

    especializam no gerenciamento da micro-poltica, emaranhados em rituais e disputas

    intestinas pela sua prpria sobrevivncia poltica nos aparelhos de poder. Alm disso as

    assessorias mais prximas cumprem um verdadeiro papel de proteo e blindagem

    contra as frustraes do mundo real, cercam as lideranas de problemas imaginrios e

    do conforto que resulta da ignorncia poltica dos problemas reais.

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    Num sistema de direo de baixa responsabilidade em direo estratgica ou

    descentralizao democrtica, a agenda dos dirigentes vitimada pela lgica do

    carrossel: muitas emergncias do protocolo frio, dos ritos formais do cargo, das rotinas

    burocrticas que a funo exige ou do simples clientelismo eleitoral, problemas demenor ou maior peso, tudo e todos ficam girando em volta do gabinete, concorrendo

    indistintamente por um espao na agenda. Trabalha-se muito, aparentemente os dias

    so curtos e vai-se diariamente at altas horas, mas a sensao ao final de poucos

    resultados. Alm disso a corrupo e o tecnocratismo, entre outras patologias de

    governos com baixa capacidade, no so mais do que sub-produtos detes ambiente,

    sem controle social democrtico ou com formas manipulatrias de participao, nem

    gesto criativas de problemas reais.Como superar esta baixa capacidade para governar ? Como conquistar viabilidade para

    projetos pblicos e coletivos que so exigentes em recursos polticos ? Como melhorar

    a governabilidade das instituies de natureza pblica ? Como mudar a mentalidade

    tecnocrtica e excludente da cultura organizacional tradicional ? Como vencer o

    economicismo arrogante dos planejadores convencionais ? Como construir viabilidade

    poltica estratgia para projetos sem fazer parte da barganha espria do clientelismo

    partidrio ? Muitas perguntas sem respostas. Este livro se prope a problematizar a

    gesto pblica como ela praticada no Brasil a partir destas perguntas, mais com o

    olhar comprometido e interessado de quem participa deste jogo como parte da

    burocracia permanente do Estado e menos talvez com o olhar de um pesquisador fora

    do jogo, com a frieza assptica e distante da cena dos acontecimentos.

    O captulo I investiga as possibilidades de planejamento no setor pblico a partir da

    contextualizao do que se convencionou chamar a crise do planejamento, termo

    comum na literatura especializada nos anos oitenta e noventa. O objetivo demonstrar

    que a crise de planejamento governamental estava associada crise de um padro definanciamento do gasto pblico e transio democrtica inacabada. Um modelo de

    planejamento entrou em crise efetivamente, mas o prprio conceito de planejamento

    precisa ser reconceitualizado para poder sobreviver como ferramenta efetiva para

    governar bem, para aumentar a capacidade de governo. Este modelo se apoia nas

    formulaes originais de Carlos Matus, economista chileno, sobre a necessidade de um

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    novo tipo de planejamento estratgico, flexvel, que incorpore a incerteza como varivel

    gentica para o mtodo de planejamento como uma aposta que precede e preside a

    ao governamental.

    O captulo II apresenta a construo metodolgica do planejamento estratgico voltadoespecialmente para aqueles ambientes que exigem mediao poltica constante,

    concertao entre interesses divergentes e que esto submetidos lgica do

    provimento de bens e servios pblicos, isto , para ambientes de construo e

    implementao de polticas pblicas. Portanto a metodologia proposta inspira-se na

    necessidade de aumentar a capacidade resolutiva da ao de governo e dos projetos

    pblicos. Trata-se de uma ferramenta que procura-se construir atravs e com a

    participao dos atores envolvidos, especialmente os funcionrios e trabalhadores dasorganizaes pblicas, no porque isto represente maior probabilidade de eficcia ou

    eficincia gerencial, mas sobretudo porque a perspectiva de planejamento aqui

    apresentada pretende-se tambm um instrumento de incluso poltica, de afirmao da

    cidadania e de regenerao institucional do setor pblico sobrevivente a quase uma

    dcada de polticas privatizantes que desmoralizaram a prpria condio do servidor

    pblico. Portanto, no prope-se um mtodo de planejamento estratgico meramente

    adaptativo da literatura empresarial ou corporativa, que trabalha com outra lgica e

    outros objetivos, tampouco um conjunto de tcnicas de organizao e mtodos, o

    objetivo contribuir para um novo paradigma de organizao do setor pblico, um

    paradigma baseado na democracia participativa.

    O captulo III dedicado abordagem do Projeto como categoria central do

    planejamento, seu desenho, constituio, caractersticas e monitoramento. O projeto

    demonstra a materializao da vontade de ao do gestor, o emblema mais potente

    da direcionalidade do governo e de um programa, sinaliza com maior fora o sentido do

    governo e para onde ele caminha. O projeto parte do plano, mas se projeto alm doplano porque cria novas institucionalidades, gera novos patamares de problemas e

    solues na esfera pblica, demanda recursos, mas gera novas oportunidades no seu

    prprio desenvolvimento.

    O captulo IV debate a necessidade que o gestor pblico tem em dominar um conjunto

    de ferramentas e instrumentos necessrios moderao e facilitao de grupos. O

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    domnio de uma tcnica de planejamento e mesmo a cincia de um referencial

    conceitual bem fundamentado sobre o paradigma democrtico s se realizam

    efetivamente na relao diria com outros indivduos no cotidiano das organizaes.

    Da a importncia de discutir numa obra sobre planejamento, governo e servio pblico,um conjunto de processos que envolvem a liderana individual, o manejo de situaes

    de conflito, o desenvolvimento de habilidades para a participao e incluso, a

    utilizao de tcnicas e instrumentos de trabalho em grupo. Mas sobretudo tenta-se

    organizar argumentos para a fundamentao das relaes interpessoais na construo

    coletiva e na tolerncia divergncia como requisitos imprescindveis renovao

    democrtica das organizaes pblicas.

    Ocaptulo V

    finaliza com a proposio de um debate sobre a gesto pblica brasileiracontempornea a partir da crtica aos principais dilemas da chamada escola gerencial

    de gesto pblica, que inspirou as ltimas duas administraes federais, fazendo eco

    local s mesmas tendncias verificadas na administrao pblica de diversos pases

    desenvolvidos. No faz sentido criticar in totum a experincia de reforma do Estado tal

    como foi executada nos ltimo anos. H elementos positivos que reforaram a

    transparncia e o controle pblico (accountability), mas o modelo de planejamento

    subjacente a este conjunto de princpios adaptados da micro-economia ainda padece

    de enormes lacunas relacionadas s deficincias normativas e metodolgica abordadas

    nesta seo do trabalho.

    A concluso aponta a necessidade, mais do que a possibilidade histrica, de retomada

    do planejamento governamental, em todas as esferas onde o setor pblico se organiza

    para garantir a produo direta ou o provimento de bens e servios essenciais

    reproduo social e ao desenvolvimento econmico e social. A estabilidade econmica

    e a necessidade de retomada do desenvolvimento, a gerao de grandes consensos

    polticos que renovam o papel do Estado e o imperativo de combate s desigualdadessociais e regionais - aps duas dcadas de predomnio das polticas liberais

    progressivamente viabilizam a redescoberta do planejamento pblico. A retomada do

    planejamento de estilo cepalino no contexto do desenvolvimentismo bastardo j no

    mais possvel, o Estado mudou e a sociedade brasileira tambm. Por outro lado, adotar

    mimeticamente os paradigmas metodolgicos empregados em empresas privadas, sob

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    o primado terico do enfoque da economia neoclssica de fato abandonar a

    perspectiva do planejamento como instrumento de construo dos consensos polticos

    universais. H que se construir uma novo enfoque metodolgico que sirva a um s

    tempo para justificar a democratizao do modelo gerencial pblico e aumentesubstancialmente nossa capacidade de governar, para o bem de nossa democracia.

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    Captulo I As possibilidades de planejamento no Setor Pblico

    ...o congelamento da minha forma de conhecer correparalelamente estagnao dos conceitos que manejo. Se durante

    25 anos no pude renovar minha teoria de planejamento, issodeve-se ao fato de no ter podido ampliar o vocabulrio da teoriasocial atravs da qual me aproximo do mundo...se fixo minhacapacidade de conhecer o mundo, congelo meu vocabulrio, secongelo meu vocabulrio, fixo minha capacidade de conhecer omundo...o mundo dos homens do tamanho do seu vocabulrio,dos conceitos que conhece.... C. Matus, Adeus, SenhorPresidente

    A tradio patrimonialista do Estado brasileiro engendrou uma cultura de planejamento

    no setor pblico marcada pelo domnio normativo da cincia econmica e

    particularmente da subordinao execuo de polticas macroeconmicas, monetria,

    cambial, salarial ou de rendas. A conjuntura dos anos oitenta apresentou elementos

    significativos de questionamento desta prtica terica, enquanto a crise fiscal limitava o

    uso e eficcia dos instrumentos da poltica econmica, a crise de representao agia

    questionando a legitimidade e o protagonismo dos planos e projetos de corte estatal ou

    com o vis conservador do sistema poltico ainda numa transio democrtica

    inconclusa.A primeira parte deste captulo objetiva descrever criticamente os limites do processo

    de planejamento pblico entendido como planejamento das polticas econmicas e sua

    influncia por efeito-demonstrao na cultura de planejamento das demais polticas

    pblicas. Na segunda parte o captulo se organiza a partir de duas direes. Uma

    primeira apontando os paradigmas de um planejamento pblico de novo tipo, intensivo

    em gesto, incorporando endogenamente a dimenso poltica na produo de projetos

    e programas pblicos. O outro objetivo sinalizar a possibilidade metodolgica de

    inovao no paradigma de planejamento pblico atravs da qualificao e

    aprimoramento dos processos massivos de participao, em especial o debate sobre a

    pea oramentria que dispe sobre a alocao dos fundos pblicos.

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    1. A experincia brasileira recente

    Na tradio da economia o abandono do laissez-faire est vinculado cincia de que a

    flexibilidade de preos no conduz automaticamente ao pleno emprego. A crtica ao

    timo paretiano1 a viso clssica implicava em assumir que os preos, num

    mercado no-competitivo, no serviam mais como alocadores timos das foras

    produtivas2. Com o fim das hipteses sobre concorrncia perfeita, a percepo

    crescente da influncia de externalidades (transbordamentos da atividade econmica

    no captados pelos preos) e o conceito de escala, a teoria econmica foi construindo

    os instrumentos necessrios para justificar e legitimar o planejamento econmico em

    sociedades capitalistas. Na maioria das experincias de planejamento econmico fixa-se metas para a renda per capita ou crescimento do PIB, estima-se a evoluo da

    demanda e projeta-se o crescimento setorial necessrio. Para isso so usados funes

    matemticas especializadas, modelos economtricos diversos (como a matriz de

    insumo-produto) e outros instrumentos basicamente quantitativos e de natureza

    determinstica.3

    No Brasil, o movimento conhecido como a Revoluo de 30 transio de uma

    sociedade oligrquica-exportadora para outra do tipo urbana-industrial pode ser

    1 Situao de mxima satisfao dos consumidores e de eficincia produtiva, ningum pode melhorar deposio sem piorar a dos demais.

    2 Na teoria econmica a justificativa para a interveno e regulao dos servios pblicos (seja noprovimento ou na produo direta destes) encontra-se na chamada teoria das falhas do mercado, isto ,nas situaes em que a oferta de bens e servios pblicos, se submetida apenas aos incentivos tpicosdo mercado privado, ficaria abaixo da oferta socialmente tima. Os bens pblicos possuem um consumono-rival e produzem externalidades positivas, alm de sinalizarem investimentos de capital irrecupervel(custos irreversveis) e muitos tm monoplio natural, assim a histria do planejamento pblico est

    associada forma de organizao pblica para fornecimento de bens e servios como as estradas,infraestrutura energtica, telecomunicaes, transportes, etc...As formas de regulao que vo variarem cada contexto histrico, atualmente a flexibilidade e a desregulamentao depois de uma fase deexpanso esto retrocedendo para permitir a retomada de controles estatais mais diretos sobre serviosessenciais.

    3Nos pases de tradio capitalista a adoo do planejamento (econmico) iniciou com o Plano Marshall(1947-1952) para reconstruo da Europa, o Comissariat au Plan na experincia francesa dos anoscinqunta e da criao da Comisso Econmica para a Amrica Latina no mesmo perodo. A Alianapara o Progresso no governo Kennedy, inspirada no sucesso do Plano Marshall, disseminou tambmprticas de planejamento econmico (para o desenvolvimento) nos anos sessenta.

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    considerado como o incio da incorporao do planejamento como uma funo pblica

    moderna. Do prprio movimento consolida-se a idia entre as elites do conceito de

    Estado como o nico ente capaz de superar os particularismos de uma sociedade

    desagregada, subdesenvolvida e marginalizada. Porm, desde j, o regime resultanteno ser o democrtico, o Estado assumir feies bonapartistas, constitudo num

    complexo e sutil mecanismo poltico e social de controle sobre as massas emergentes.

    Estas duas caractersticas, a bifrontalidade a sedimentao passiva foram construdas

    desde os reformas da Revoluo de Trinta e perduram como marcas genticas do

    Estado brasileiro. Conforme Nogueira,

    Disso resultou um Estado precocemente hipertrofiado e todo multifacetado,

    cujas diversas camadas constitutivas superpostas por sedimentaopassiva -, acabam por alimentar a formao de uma macroceflica

    bifrontalidade: ligadas aos mltiplos interesses societais por inmeros e

    muitas vezes invisveis fios, duas avantajadas cabeas uma racional-legal,

    outra patrimonialista iriam se comunicar e se interpenetrar funcionalmente

    em clima de recproca competio e hostilidade, impedindo a imposio

    categrica de uma sobre a outra, retirando coordenao do todo e

    fragilizando o comando sobre as diversas partes do corpo estatal. Do

    imprio ...aos anos 30, da democracia populista ao regime militar

    autoritrio, essa seria uma componente ineliminvel do Estado Brasileiro

    (1998, p. 93)

    Foi no contexto do ps-guerra, entretanto, que o planejamento se consolida como um

    procedimento comum de governo, uma prtica universalmente aceita vinculada

    necessidade de racionalizao permanente dos servios e da mquina pblica. O

    planejamento como organizador da ao pblica nasce, assim, da necessidade

    permanente de suporte e estmulo atividade econmica privada. A soluo deproblemas tais como o estmulo aos setores econmicos, a formalizao do mercado

    de fatores de produo no pas ou o controle das relaes sociais de produo j

    constituam tema de debate no governo Campos Salles (1898 1902).

    Na possvel funo mediadora dos conflitos (reguladora das tenses dos conflitos

    intercapitalistas e compensatria das falhas de mercado) se consolida a viso de

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    planejamento no perodo. Em 1942 foi criada, ento, a Coordenao de Mobilizao

    Econmica e o Setor de Produo Industrial com o objetivo expresso de elaborar o

    planejamento industrial do Pas, situao em que se consolida na estrutura

    administrativa a funo do planejamento como instrumento estatal de organizaosocial e econmica. Conforme Ianni (1986) a trajetria do desenvolvimento brasileiro

    sempre foi submetida a duas grande macro-tendncias, a crescente participao

    estatal na economia e uma poltica econmica planejada ou voltada para objetivos de

    estabilizao macroeconmica. Nas estratgias gerais de construo de um modelo de

    desenvolvimento para o pas o conceito de planejamento sempre foi associado ao de

    organizao e disputa das relaes de poder, por dentro e por fora do Estado. Nas

    palavras de Ianni.No h dvida de que o planejamento governamental discutido aqui

    compreende, sempre e necessariamente (ainda que em graus variveis),

    condies e objetivos econmicos, sociais, polticas e administrativos.

    Entretanto, as duas faces conexas do planejamento so a estrutura

    econmica e a estrutura de poder. Mas os planejadores no tratam, em

    geral, seno das relaes e processos relativos estrutura econmica.

    Alis pode-se dizer que, em ltima instncia, o planejamento um

    processo que comea e termina no mbito das relaes e estruturas de

    poder (Ianni, 1986, p.309)

    Deste perodo histrico anterior ao fim dos governos militares os maiores processos de

    planejamento estatal so caracterizados pelos planos de vis tipicamente

    macroeconmico com objetivos centrados no desenvolvimento e mais recentemente na

    estabilizao monetria e fiscal4.

    No perodo que vai do ps-guerra at o fim do regime militar com certeza o processo

    mais significativo de planejamento estatal foi a elaborao do Plano de Metas (1956-1961) no governo Kubitschek. Pelo menos trs fatores fizeram deste processo um

    ponto notvel: (a) estabilidade institucional e contexto democrtico favorecendo a

    participao, (b) amplo consenso sobre o tema do desenvolvimento nacional e (c)

    4 Alguns exemplos so o Plano SALTE (1948), o Plano Trienal (1963) e os PNDs (1972 e 1974).

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    acertos de poltica externa e interna viabilizando recursos econmicos. Segundo Nunes

    (1999) o governo JK foi um governo notabilizado pelo sincretismo poltico, garantindo a

    permanncia de uma coalizo partidria durante todo o mandato que comeava no PTB

    de Joo Goulart e o controle do Ministrio do Trabalho, passando pelo PSD delemesmo, com fortes vnculos rurais at o apoio parlamentar da UDN. Esta estratgia

    poltica, flexvel, por vezes dbia, apoiada na fragilidade da estrutura partidria garantiu

    viabilidade para o plano. Nas palavras de Nunes (1999):

    ao mesmo tempo que se apoiava nas agncias insuladas para realizar as

    tarefas do desenvolvimento, Juscelino utilizava a poltica tradicional de

    empreguismo para consolidar apoio poltico: protegia as agncias insuladas

    e lhes garantia acesso aos recursos, enquanto geria o resto do sistemapoltico de modo a reduzir potenciais contestaes s metas

    desenvolvimentistas e s suas formas de alcan-las (Nunes, 1999, p 112).

    JK optou por montar uma rede de rgos paralelos administrao direta, com base na

    avaliao de que executar uma reforma administrativa seria custoso demais (Lafer,

    1997). A capacidade de governo repousava, basicamente, na natureza gil e flexvel da

    estrutura administrativa (as ilhas de eficcia), na autonomia financeira e oramentria

    dos rgos envolvidos na execuo das metas setoriais e na neutralizao da

    interferncia parlamentar no processo.5 Nos anos oitenta e noventa o Plano Cruzado

    (1986), o Plano Bresser (1987), o Plano Vero (1989), o Plano Collor (1990) e o Plano

    Real (1994) foram notabilizados muito mais por representarem medidas fiscais e

    monetrias-cambiais de combate imediato inflao com metas quantitativas mais ou

    menos definidas - do que profundos processos de planejamento econmico onde o foco

    central poderia ser a (re)construo de medidas estruturantes de um modelo

    econmico ou de um projeto alternativo de nao.

    Pode-se seguramente, sem a pretenso de esgotar um tema que se confunde com aprpria formao do Estado no Brasil, apontar alguns elementos de sntese que servem

    5 Nunes (op.cit.) denomina de insulamento burocrtico o processo de proteo do ncleo tcnico doEstado contra as interferncias externas (dos atores polticos, p.ex.). A informao super-valorizada, oambiente de trabalho complexo e a arena de disputas e acesso das demandas populares controlada. O insulamento burocrtico associado ao universalismo de procedimentos seriam ocontrapeso para outras duas gramticas do Estado brasileiro, o clientelismo e o corporativismo.

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    para organizar o debate sobre as alternativas possveis ao planejamento democrtico e

    participativo no setor pblico.

    O planejamento pblico tem sido ao longo da tortuosa construo do Estado brasileiro

    fundamentalmente normativo e linear na sua concepo terica e metodolgica deaplicao. Quase todo ele inspirado e nucleado por problemas de inspirao no campo

    da macroeconomia. Reduzir o planejamento pblico a um conjunto de tcnicas de

    racionalizao ou de alocao econmica foi o resultado mais visvel deste perodo.

    Segundo Garcia (2000) os anos de autoritarismo e economicismo deixaram marcas

    profundas inclusive na Constituio Federal de 1988:

    ...A Constituinte...no consegue superar a concepo normativa e

    reducionista do planejamento governamental herdada dos militares e seustecnocratas...mesmo com a democratizao do pas; com a poltica a ganhar

    espao e importncia, com a multiplicao dos atores sociais, com o ritmo

    de produo e difuso das inovaes tecnolgicas acelerando-se; com o

    conhecimento e a informao conquistando relevncia; com a comunicao

    ascendendo condio de recurso de poder e integrao; e com a clara

    percepo de que se ingressara em uma poca de rpida mudana de

    valores culturais; ainda assim, o planejamento governamental foi concebido

    sob um enfoque normativo e economicista. (Garcia, 2000, p. 8)

    As snteses possveis que resumem a construo do planejamento como procedimento

    pblico at a transio para a democracia nos anos oitenta poderiam ser resumidas nos

    seguintes pontos:

    (1) O planejamento subordinado a uma tica reducionista do ponto de vista

    terico que o limita ao manejo e operao de ferramentas de organizao

    estatal e/ou regulao de mercados privados ou setores sob concesso

    federal ou estadual. Os exemplos mais ntidos deste enquadramento terico a confuso comum entre o conceito de planejamento no setor pblico com

    tcnicas de racionalizao de trabalho ou processos produtivos, com o

    simples uso de ferramentas gerenciais ou tcnicas de organizao &

    mtodos transplantadas para a rea pblica.

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    (2) O vis econmico-normativo praticamente organiza todo processo de

    planejamento6. Apesar da ampliao das funes do IPEA nos anos oitenta e

    da criao de uma Secretaria de Planejamento e Coordenao vinculada

    diretamente ao centro poltico do governo federal (Presidncia da Repblica),o tema permanece fortemente vinculado racionalidade econmica e

    corporativamente atrelado ao quadro e as carreiras dos profissionais de

    economia. Os traos desta caracterstica podem ser identificados em todos

    os planos de estabilizao e crescimento Econmico (planos Salte, Trienal,

    PAEG, PNDs, etc...) e na limitao da atividade burocrtica (produo de

    poltica pblica) confeco da pea oramentria anual, sendo esta,

    profundamente normativa e formal. O antigo Oramento Plurianual deInvestimentos (Lei 4.320/64 e Constituio de 1967) foi praticamente a nica

    estratgia de concretizao e materialidade do processo de planejamento

    estratgico pblico.

    (3) O planejamento no setor pblico, como de resto as demais polticas pblicas

    tm a marca gentica da excluso, da no-participao e da ausncia

    absoluta de controle social sobre seus meios e fins. A nossa cultura poltica

    impregnada de golpismos e prticas autoritrias que se expressam na

    cidadania restringida e regulada, na fragmentao do aparelho de Estado e

    no enorme fosso que separa sociedade civil da sociedade poltica fez das

    prticas de planejamento reduto inatingvel aos grupos organizados ou aos

    simples cidados. O economicismo, a ausncia de metodologias mais

    flexveis, o jargo tecnicista em muito contriburam para excluir qualquer

    possibilidade participativa na prtica de planejamento pblico, mesmo

    6 A tradio metodolgica convencional da economia supe a noo de que existe uma simetria perfeitae lgica entre previso e explicao, a chamada tese da simetria (criticada por Blaug, Metodologia daEconomia, EDUSP, 1999), uma racionalidade direta entre causa e efeito, como se a teoria econmicafosse no fundo uma especie de filosofia matmtica . O determinismo formal e positivista desta tradio,tributria do paradigma neoclssico, o grande responsvel pela teora do planejamento como a criticadaneste trabalho.

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    naquele estritamente vinculado ao tema urbano-espacial na esfera

    municipal7.

    Esta tradio na verdade no surge nos anos oitenta, mas na longa relao de

    cooperao internacional para o desenvolvimento fomentada desde o ps-guerra eespecialmente no final dos anos cinqenta entre agncias americanas, especialmente,

    e a burocracia pblica dos governos latino-americanos. Como diz Mattos (IPEA-

    CENDEC, 1986), estabeleceu-se uma verdadeira ortodoxia latino-americana de

    planejamento marcada pelo voluntarismo utpico baseado na ideologia

    desenvolvimentista dos tcnicos em planejamento, no reducionismo econmico e no

    formalismo de procedimentos recomendados e adotados. Destas caractersticas talvez

    a mais representativa das virtudes e fracassos de um modelo de planejamento pblicofosse o voluntarismo utpico. Mattos (1986, p. 104) assim o descreve:

    os tcnicos em planejamento tendiam a antepor sua ideologia do grupo

    social que detinham o controle efetivo dos processos de tomada de

    decises. No essencial, isso resultou em que a orientao e o contedo dos

    projetos que foram elaborados nessa etapa responderam mais s

    aspiraes e aso interesses dos tcnicos em q planejamento do que quelas

    dos que iriam decidir. E tal orientao e tal contedo responderam ao

    modelo normativo adotado, que se constituiu no fundamento da maior parte

    dos projetos elaborados no perodo analisado. No essencial, tratava-se de

    um modelo de tipo estruturalista (ou desenvolvimentista) que tendo sido

    originalmente esboado pela CEPAL, foi , posteriormente adotado e

    impulsionado pela Carta de Punta del Este [conferncia de pases latino-

    americanos em 1961]

    A idealizao da figura do planejador como um burocrata pblico todo-poderoso

    contribuiu para o auto-isolamento do planejamento e a criao de uma iluso ingnua

    7 Uma tentativa de mudana e inovao metodolgica no planejamento urbano pode ser encontrada noPlanejamento Estratgico de Cidades (PEC), originado da experincia de Barcelona (1.988) e divulgadopelo Centro Iberoamericano de Desarrollo Estratgico Urbano (CIDEU), criado em 1.993. Ele incorpora aidia da abordagem sistmica, da negociao com atores sociais, da participao, e de categorias deplanejamento mais modernas: o marketing urbano, a atrao de investimentos, do empreendedorismourbano, a participao, redes locais, etc.

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    que transformava o problema do desenvolvimento num problema de saber aplicar a

    melhor tcnica. Como pode-se inferir, o isolamento da metodologia de planejamento e

    do mundo dos planejadores do mundo real dos movimentos polticos, do jogo de

    presses e da arena movedia das relaes de poder (o Estado como um campo delutas) esteve na base do envelhecimento precoce da tradio de planejamento latino-

    americana. Esta caracterstica reforou, por seu turno, a incapacidade do planejamento

    pblico em lidar com conjunturas internacionais cada vez mais submetidas incerteza e

    processos de complexa racionalidade econmica. A turbulncia que as economia

    latino-americanas viveram no final do anos setenta e at a primeira metade da dcada

    seguinte sepultaram definitivamente esta tradio terica.

    Na mesma direo aponta Rui Affonso (1989), segundo este autor a crise doplanejamento governamental na Amrica Latina explicada pela crise econmica dos

    anos oitenta, baseada na ruptura do padro de financiamento baseado no

    endividamento externo, nas dificuldades da transio democrtica e no surgimento de

    grandes conflitos distributivos. No caso do Brasil a inoperncia do planejamento

    vinculava-se incapacidade das elites locais formularem um projeto articulado de

    desenvolvimento, demonstrado pelo fracasso do II Plano Nacional de Desenvolvimento

    em meados da dcada de setenta. Segundo Affonso o II PND fracassou na sua

    tentativa de criar uma modalidade de capitalismo social, incorporando setores

    marginalizados aos benefcios do crescimento econmico e fortalecendo

    estruturalmente o capital privado nacional por trs tipos de razes: a primeira devido

    inconsistncia do setor produtivo estatal que foi utilizado para combater a inflao e

    perdeu capacidade de auto-financiamento, em segundo lugar a escassa disponibilidade

    de financiamentos produtivos internos e em terceiro lugar a causa de maior relevncia:

    perda de base de sustentao e articulao poltica internamente entre atores estatais e

    destes com os agentes privados.A varivel explicativa central para a desarticulao do planejamento estatal, ou deste

    modelo de planejamento, segundo este autor, foi de fato a falta de coordenao das

    polticas macroeconmicas. Como exemplo ele cita a coexistncia de trs planos

    simultneos no final da dcada de oitenta: o I Plano Nacional de Desenvolvimento da

    Nova Repblica, divulgado em 1985 com metas para 1986-1989 sob a direo da

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    SEPLAN sob a coordenao do ministro Joo Sayad, o Plano de Controle

    Macroeconmico apresentado em junho de 1987 pelo ministro Bresser Pereira e o

    terceiro Programa de Ao Governamental, lanado em 1987 para o perodo 1987-

    1989 por Anbal Teixeira. O resultado da superposio de planos, da incompatibilidadeentre planejamento e oramento e da desconexo entre objetivos macroeconmicos e

    viabilidade poltica produziram resultados insignificantes, diminuindo ainda mais a j

    precria governabilidade federal que foi consumada em 1989 com eleio de Fernando

    Collor.

    Anita Kon (1999), ao resumir cinco dcadas de experincia de planejamento pblico

    federal, na sua dimenso estritamente macro-econmica, assim descreve a situao:

    ao analisar as cinco dcadas de planejamento no Brasil, necessrio acrescentar ainda alguns apsectos relevantes.

    Primeiramente, o planejamento do pas esteve sempre condicionado

    s condies polticas subjacentes, que no decorrer do porodod

    presentaram forte instabilidade, convivendo com situaes

    conjuntuarais que conduziram a uma intensa particpao estatal,

    tanto na esfera da coordenao geral quanto da produo (...) o que

    se observou na maior parte dos planos postos em prtica foi a

    incapacidade da continuao do processo em toda sua trajetria,

    muitas vezes devido s dificuldades tcnicas, como a falta de

    qualificao dos recursos humanos, insuficincia de infra-estrutura e

    mesmo de controle efetivo, que sobrepujaram a insuficincia de

    recursos financeiros ou a instabilidade poltica crnica (p.37)

    2. Planejamento e gesto do territrio sub-nacional

    Uma outra dimenso do planejamento pblico o planejamento regional com objetivo

    de combater as desigualdades regionais que so, como se sabe, abismais num pas

    com a formao econmica e social e as dimenses territoriais como o Brasil. As

    desigualdades regionais esto quase sempre associadas ao surgimento do fenmeno

    do regionalismo. O regionalismo um fenmeno comum na formao social e

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    econmica da sociedade brasileira, desde a perspectiva da autonomia de regies

    marcadas por dinmicas quase-autrquicas de desenvolvimento at o tema da

    integrao territorial e a formao de um Estado sob um pacto federativo instvel e

    complexo. Para o planejamento de governo o tema regional abre a perspectiva de como movimento poltico e administrativo colocar na agenda poltica a ao

    coordenada do Estado focada no territrio. O centro deste enfoque objetiva constituir o

    planejamento do desenvolvimento territorial como objetivo para assegurar maior

    eficcia aos projetos no territrio, integrar e descentralizar a execuo de polticas

    pblicas, especialmente quando as diferenas na dinmica regional de

    desenvolvimento so fontes de tenses e conflitos histricos permanentes, como ilustra

    a longa tradio de revoltas regionais na trajetria poltica brasileira.Haddad (1997) denomina o perodo governamental de 1964 at 1982 (primeira eleio

    para governos estaduais depois do golpe militar de 1964) - no que diz respeito s

    prticas de planejamento pblico - de planejamento para negociao. Num quadro de

    esvaziamento crescente dos instrumentos de poltica econmica sub-nacionais houve

    uma clara induo para simplificao de procedimentos, minimizando a relao entre

    objetivos e instrumentos e aumentando a importncia do controle e monitoramento. A

    prtica de planejamento estadual neste perodo foi quase sinnimo da capacidade dos

    Estados em bem negociar investimentos pblicos federais ou privados no seu territrio.

    Este processo de perda da autonomia decisria sugeriu um roteiro diferenciado de

    planejamento conforme a tabela a seguir:

    Planejamento Clssico-normativo Planejamento para negociaoElaborao do diagnstico dosproblemas potenciais para o

    desenvolvimento

    Gerao de informao sobre o contextoeconmico do Estado

    Formulao de uma estratgia dedesenvolvimento.

    Diagnstico dos problemas potenciais dedesenvolvimento.

    Definio dos objetivos prioritriosIdentificao de oportunidades resultantesde investimentos da Unio, setor privado

    ou agncias internacionais.

    Quantificao dos objetivos em metasProcesso negocial de programas e

    projetos.Organizao de sistemas de controle e

    avaliao do planoOrganizao de sistemas de controle e

    avaliao do plano.

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    As atividades de planejamento estadual, no caso do Rio Grande do Sul, por exemplo,

    neste perodo, estiveram concentradas na preparao de estudos e projetos para

    disputar as oportunidades de investimentos com outras unidades da federao, numquadro permanente de barganha poltica entre os diversos grupos de presso regional

    e o arco de alianas com os setores dominantes a nvel federal. evidente que a

    reduo do planejamento regional ao aproveitamento espasmdico de oportunidades

    de investimento incentivou a fragmentao do pacto federativo, alimentou a guerra

    fiscal entre unidades da federao e consolidou um tipo de postura intelectual nos

    organismos de planejamento de exogeneidade da poltica de desenvolvimento, de

    dependncia dos centros decisores externos

    8

    .A extenso da crise fiscal aos Estados, o processo de redemocratizao dos anos

    oitenta e o reforo da autonomia regional e local ps-constituio de 1988 marcam a

    adoo de estratgias alternativas de planejamento pelos Estados incorporando

    aspectos de (a) reprogramao endgena do desenvolvimento, (b) compensao e (c)

    ativao social (Haddad, 1997).

    (a) reprogramao endgena do desenvolvimento: envolve de um lado o ajuste fiscal e

    financeiro, modernizao da mquina administrativa, privatizaes,

    desregulamentao de atividades e parcerias pblico-privado;

    (b) compensao: esta estratgia centrada na neutralizao dos impactos adversos

    da poltica macroeconmica a nvel regional, atravs de aes mitigadoras ou

    compensatrias;

    (c) ativao social: objetiva atualizar recursos potenciais e latentes na economia

    regional e local, ainda no mobilizados por causa de um padro de organizao

    poltico-cultural inadequado ou no empreendedor.

    8 No caso da cultura poltica rio-grandense, esta sensibilidade subalterna sempre encontrou (ora naresignao em direo integrao ao centro, ora na rebeldia em direo autonomia regional)ressonncia no discurso do fatalismo e da decadncia estadual que a parte o jogo de interesses tinhaeventualmente justificaes concretas na instabilidade da agropecuria, nas oscilaes cambiais, noesgotamento da fronteira agrcola e na concorrncia real de produtos de valor mais agregado do eixo SP-RJ. Sobre o tema do planejamento estudual do RS consultar a obra Planejamento estadual eacumulao no Rio Grande do Sul 1940/1974, FEE, 1992, Porto Alegre, de Renato Dalmazo.

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    Aquela estratgia que mais se aproxima de um modelo mais democrtico de

    desenvolvimento regional seria a funo de ativao social. Este modelo de

    planejamento do desenvolvimento regional adota a perspectiva de baixo para cima,

    isto , pressupe que o crescimento se inicia espontneamente ou de formaincentivada (poltica fiscal ou de crdito, por exemplo) em determinadas reas no

    territrio e posteriormente se difunde para os demais setores. A operao deste

    paradigma est diretamente relacionada ao capital social9 presente no territrio,

    notadamente a fatores scio-culturais, histricos e institucionais que impulsionam ou

    no ambientes de inovao, aprendizado e solidariedade social.

    Os componentes essenciais desta estratgia seriam:

    (a) atribuio de prioridades para programas e projetos que sirvam s necessidadesbsicas da populao (alimentao, habitao, servios de infra-estrutura

    econmica e social, mobilizando ao mximo a utilizao de recursos locais;

    (b) proviso de acesso amplo terra como principal fator de produo e como principal

    base (juntamente com o nvel de renda real) para o consumo nas reas rurais e

    para a formao de patrimnio das famlias de baixa renda em reas urbanas;

    (d) garantia de maior grau relativo de autodeterminao para as reas perifricas, em

    relao utilizao e transformao das instituies existentes (ou criao de

    novas), para a promoo de seu desenvolvimento em funo de seus prprios

    objetivos;

    (e) seleo e adoo de processos tecnolgicos que preservem plena utilizao de

    recursos abundantes localmente (Haddad, 1997, p. 24).

    A estratgia da ativao social d nfase mobilizao de recursos locais contra uma

    concepo de busca quase com fervor quase religioso e incondicional de

    investimentos externos, pblicos e privados. A suposio de que a manuteno do

    9 Emprega-se o termo capital social no sentido em que dado por Putnam (Comunidade eDemocracia, a experincia da Itlia Moderna, FGV, 1996). um conceito que designa um conjunto decaractersticas no diretamente mercantis que organizam as relaes sociais em determinados grupos eterritrios na direo da cooperao, solidariedade e confiana mtua entre os agentes de modo aviabilizar ou facilitar as aes de carter coletivo. Segundo o Banco Mundial so as instituies, relaese normas que conformam a qualidade e quantidade das interaes sociais de uma sociedade como umfator de coeso social, incluem-se as redes sociais, horizontais e verticais, sistemas de governana einstitucionalidade, judicirio e regime poltico.

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    estilo de vida prprio, da pluralidade cultural e das atividades voltadas ao atendimento

    das necessidades bsicas da populao so elementos de diminuio da

    vulnerabilidade das economias locais e regionais aos impactos negativos das crises

    externas e conseguem sustentar e generalizar endogenamente um ciclo dedesenvolvimento. Conceito de desenvolvimento que certamente mais do que o

    crescimento do PIBper capita ou da quantidade de telefones por mil habitantes...

    Ao avaliar as causas do fracasso do planejamento regional no nordeste gestado a

    partir do mesmo contexto do Plano de Metas - Guimares Neto (1999) parece

    confirmar a validade da tese da ativao social pelo que deixou de ocorrer naquela

    regio. Nas palavras do autor o esvaziamento da maior experincia de planejamento

    regional brasileira ocorreou devido (...) a perda de representatividade poltica que est associada

    grande concentrao de poderes, no regime militar, que

    praticamente eliminou o debate sobre a questo regional nordestina,

    no nvel do Conselho Deliberativo [da SUDENE] e do Congresso, do

    que resultou a eliminao, tambm, do papel de mediao entre o

    nvel estadual e federal que a SUDENE e outras entidades regionais

    buscavam exercer, de modo coordenado, atravs de uma estratgia

    regional e de planos diretores peridicos (...) a perda de recursos

    que estavam sob controle do planejamento regional, a partir dos

    quais era exercida uma coorenao de parcela importante dos

    gastos pblicos na regio, envolvendo as aes de ministrios

    pblcios setoriais e governos estaduais (...) surgimento e

    disseminao, a partir do sistema de planejamento nacional, de

    programas especficos (setoriais, sub-regionais) que, com

    freqncia, eram concebidos independentemente do planejamentoregional e articulavam os governos estaduais diretamente com

    outros segmentos do governo federal. ( p. 239)

    Portanto, pode-se concluir que a experincia de planejamento regional no Brasil tem

    marcadamente duas fases muito distintas. A primeira delas iniciada no ps-guerra,

    simbolizada pelo longo perodo e constituio do parque industrial nacional no ciclo

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    desenvolvimentista, foi marcada pelas grandes intervenes no territrio. Grandes

    obras de infra-estrutura rodoviria, energtica ou de transportes para garantir as

    condies gerais de reproduo do grande capital e socializar custos de implantao

    das grandes plantas industriais fase que consolida o planejamento pblico de estilocepalino ou desenvolvimentista. Uma segunda fase inicia com a crise fiscal dos anos

    oitenta com a drstica reduo de recursos pblicos para projetos de desenvolvimento,

    diminuio da capacidade de interveno pblica e esgotamento do modelo

    desenvolvimentista com quase todas as empresas do ento chamado setor produtivo

    estatal em dificuldades financeira e/ou produzindo bens e servios de baixa qualidade

    fase que liquida com o planejamento regional e a eficcia dos seus instrumentos

    (incluive o crdito pblico) e reduz o conceito de planejamento pblico aos planosmacroeconmicos anti-inflacionrios de curto prazo.

    3. O Planejamento Pblico nos anos noventa.

    No decorrer dos anos oitenta a redemocratizao do pas e o aprofundamento da crise

    econmica expuseram totalmente a crise do Estado. As principais caractersticas do

    funcionamento estatal no regime militar deixavam de atender s novas demandas

    sociais: centralidade excessiva, pouca capacidade gerencial, ineficincia na prestao

    de servios, ausncia de mecanismos democrticos de controle e participao,

    corrupo, burocracias feudalizando setores pblicos, etc... O padro de reforma do

    Estado neste perodo foi caracterizado pelo reformismo reducionista e quantitativo

    (Nogueira, 1998) centrado na reduo de cargos, normas, salrios, competncias e no

    formalismo de suas medidas, quase todas sem resultados prticos ou permanncia

    institucional. Temas como o planejamento pblico ou a poltica de recursos humanos

    foram relegados margem da agenda de debates.

    Entretanto; a sada para a crise do Estado no se resolveu no campo da ampliao

    da cidadania, da radicalidade do controle democrtico ou , talvez, num novo tipo de

    planejamento pblico que pudesse descortinar os segredos do Estado para amplas

    parcelas da populao. Ao contrrio - na esfera federal - a primeira sada hegemnica

    foi jogar a favor da corrente, as elites dirigentes do pas optaram pela via da

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    Planejamento e Elaborao de Projetos, Jackson De Toni, Porto Alegre, 2003 27

    globalizao sem condicionamentos, da internacionalizao maior da economia e da

    destruio definitiva do que ainda restara da antiga capacidade estatal de

    planejamento, coordenao ou induo do desenvolvimento, perodo que teve o climax

    no governo Collor. Mais uma vez, nas palavras precisas de Marco Aurlio Nogueira(1998, p.155):

    ...a crise do Estado no Brasil tinha razes, era de longa durao e s

    poderia ser enfrentada a partir de mltiplas operaes polticas e societais,

    fundadas sobre consensos progressivamente consolidados. Tratava-se,

    portanto de pr em curso iniciativas direcionadas para recuperar a

    capacidade de coordenao e planejamento do Estado (grifo do autor),

    para o que seria necessrio tanto uma reforma da administrao demodo a adequar o aparato estatal ao imperativo de plena racionalidade em

    seu funcionamento e dar suporte efetivo aos atos de governo quanto,

    acima de tudo, uma reforma do Estado, de modo a passar em revista as

    prticas, as funes e as instituies polticas, bem como as relaes

    Estado-sociedade civil, cujo padro histrico sempre foi de baixa qualidade.

    Em outros termos, a questo era poltica; dizia respeito democracia,

    criao de grandes consensos nacionais, participao da cidadania, no

    apenas a um mero enxugamento administrativo.

    O pas passou pelo processo de impeachment, ultrapassou a dcada perdida e uma

    nova hegemonia foi estabelecida. Apesar de demarcar na linguagem e nas intenes

    com o receiturio neoliberal a nova administrao perseguiu os mesmos objetivos.

    Buscou pragmaticamente transferir competncias para o setor privado ou o terceiro

    setor, reduzir o dficit pblico mesmo que s custas da precarizao dos servios e

    subordinar a reforma do Estado e da administrao pblica ao cumprimento das metas

    fiscais contratadas com o FMI.Na incapacidade de (re)construir um novo projeto estratgico de desenvolvimento

    nacional, substitudo pela manuteno da estabilidade monetria no curto prazo, com a

    desconstruo da capacidade de interveno do Estado, num contexto de

    vulnerabilidade externa e aderncia aos ritmos da globalizao, restou ao planejamento

    quase uma funo ritual e formalizada, menos que indicativa ou regulatria. Este

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    cenrio foi sinalizado na esfera nacional nos ltimos lampejos do planejamento pblico

    restrito elaborao do Plano Plurianual (PPA), dispositivo previsto pela Carta de

    198810. O primeiro PPA (1991/1995) foi to ineficaz quanto emblemtico do estgio final

    do planejamento na esfera pblica, 94,6% dos investimentos foram paralisados duranteo plano (Garcia, 2.000). O segundo PPA (1996/1999), segundo o mesmo autor

    alcana, quando muito, o carter de um plano econmico normativo de mdio prazo

    (Garcia, op.cit., pg. 14), quando somente 20% dos programas atingem mais de 90%

    execuo.

    A elaborao do terceiro Plano Plurianual (2000-2003) da Unio um momento

    qualitativamente diferenciado comentado com mais detalhes no captulo V,

    fundamentalmente, o uso de tcnicas mais potentes e modernas de planejamentoestratgico no setor pblico representou o maior diferencial em relao aos PPAs

    anteriores. Alm disso, na preparao do PPA foi produzido um estudo denominado

    Estudo dos Eixos Nacionais de Integrao e Desenvolvimento com o objetivo de

    orientar o planejamento estratgico federal.

    A Lei de Diretrizes Oramentrias, a LDO11, teria o papel, neste arranjo institucional, de

    mediao entre a estratgia mais genrica do PPA e os oramentos anuais. Estes

    passariam a ter maior vinculao com o Planejamento Governamental. Em sntese,

    apesar do avano metodolgico e conceitual dos instrumentos de planejamento federal,

    a ausncia de modificaes profundas nas relaes polticas internas e a permanncia

    das prticas de gesto tradicionais, com a permanncia do desenho organizacional

    normativos acabaram por neutralizar boa parte dos resultados teoricamente superiores

    prometidos pela nova metodologia.

    10 Os precedentes do PPA podem ser encontrados no Oramento Plurianual de Investimentos (Lei4.320/64 e Constituio de 1967), vigorou at que a inflao nos anos oitenta neutralizasse qualquercapacidade de orientao e integrao entre plano e oramento pblico. O PPA maior instrumento deplanejamento governamental, previsto pela Constituio Federal (artigos 195 a 167 ), prev diretrizes,objetivos e metas da administrao pblica para despesas de capital e outras delas decorrentes e paradespesas relativas aos programas de durao continuada, trabalha com prazo de quatro anos.

    11 A Lei de Diretrizes Oramentrias o instrumento de planejamento que estabelece as metas eprioridades da administrao, orienta a elaborao da lei oramentria anual e dispes sobre asalteraes na legislao tributria.

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    4. Buscando um novo desenho para o planejamento de governo.

    No senso comum da maioria das pessoas a palavra planejamento est associada a

    alguns preconceitos pejorativos sobre esta atividade o papel dos planejadores. Mesmo

    em empresas privadas o planejamento visto como um processo abstrato dissociado

    da ao12. No setor pblico, a tradio do planejamento autoritrio e tecnicista , em

    parte, culpada pela rejeio.

    A frase to usual planejar uma coisa, fazer outra...: revela com freqncia a

    ridicularizao do esforo de planejamento na organizao de sistemas pblicos ou

    privados. Esta viso surge normalmente em instituies que tem precrio planejamento

    ou feito de modo normativo e determinista. A dicotomia plano versus ao opeprocessos supostamente antagnicos mas que, na verdade, so parte de um nico

    momento, na ao concreta que o plano se decide e prova sua importncia. Os

    mtodos de planejamento tradicionais, ao ignorar a varivel poltica, cortaram o

    caminha para o dilogo entre plano e gesto, relao absolutamente imprescindvel

    para casar o planejar com o fazer.

    Outro argumento comum a constatao aparentemente lgica de que o planejamento

    engessa a organizao.... Ao invs da deciso meramente intuitiva e lotrica, da

    administrao do dia-a-dia, estabelecem-se critrios, metas, objetivos, diretrizes de

    longo prazo, enfim, o planejamento um exerccio sistemtico de antecipao do futuro

    e intensivo em gesto. A crtica ao Planejamento como uma camisa-de-fora

    normalmente vem das lideranas que perdem legitimidade quando sistemas de

    planejamento participativo so implantados. Uma organizao que pensa e planeja

    estrategicamente cria condies para o surgimento de lideranas baseadas na

    democracia interna e na delegao de autoridade, o monolitismo e o dirigente

    autoritrio surgem, quase sempre, no ambiente do planejamento determinista, carente

    de hegemonia poltica, que enfarta o processo democrtico.

    12 Para aprofundar este argumento ver o excelente artigo de Belmiro V. J. Castor e Nelson Suga,Planejamento e Ao Planejada: o difcil binmio, em Planejamento & Gesto, Setembro de 1989, Vol.1, N. 2

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    Muitos pensam ainda que o planejamento um rito formal desprovido de substncia.

    Este preconceito est muito associado com o prprio elitismo intelectual que o

    planejamento tradicional e seus defensores construram ao longo de dcadas,

    venerando modelos abstratos e inteis, particularmente modelos que abusavam detcnicas economtricas fundamentadas em pressupostos irreais e previses sempre

    equivocadas. Neste caso ser sempre verdade o ditado que diz ser o improviso sempre

    prefervel ao planejamento malfeito, isto , burocrtico, formalista. O ritualismo mata o

    bom planejamento e condena mediocridade dirigentes e funcionrios. No mercado

    das consultorias organizacionais comum o surgimento de novas tcnicas e modelos

    esotricos de planejamento ou temas afins. As siglas se proliferam e poucas delas tem

    realmente contedo prtico e a aplicabilidade necessria

    13

    . Quando se caminha paranveis cada vez mais abstratos de raciocnio, variveis cada vez mais agregadas e

    grandes snteses polticas, muito fcil descolar-se da realidade concreta e esta

    armadilha tem apanhado muitos planejadores. Nesta situao sempre recomendvel

    associar a intuio e o bom-senso - a expertise que falta para muitos - com as tcnicas

    e modelos mais estratgicos, governar bem afinal, exige cincia, uma boa dose de arte

    e sorte.

    O planejamento estaria assim, em nome do interesse pblico, livre das

    irracionalidades da ideologia e da poltica. O pretendido apoliticismo, na verdade,

    traduziria uma concepo profundamente conservadora e legitimatria quando a

    centralidade da teoria passa a ser os modelos de equilbrio auto-regulado e no a

    mudana social. Segundo Rattner (1979) no se separa planejamento e interesse:

    Ao perguntarmos aos tecnocratas e planejadores, todavia, em funo de

    que interesses e a partir de que modelo ou teoria da sociedade so

    elaborados planos e projetos e tomadas decises a eles pertinentes, as

    respostas, geralmente, so bem significativas: o interesse pblico ou asnecessidades coletivas, primeira pergunta, enquanto a segunda ser

    eventualmente descartada com a explicao de que os planos e projetos,

    13 Para localizar-se criticamente na proliferao de siglas de mtodos participativos de planejamentopblico deve-se consultar a obra de Markus Brose (organizador), Metodologia Participativa, umaintroduo a 29 instrumentos, Tomo Editorial, Porto Alegre, 2001.

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    por estarem baseados e elaborados a partir do conhecimento cientfico, e

    implantados de acordo com a racionalidade tecnolgica, escapariam do

    subjetivismo e juzos de valor inerentes s teorias sociolgicas. As

    atividades tcnicas de planejamento e de execuo dos projetos, por suaracionalidade cientfica intrnseca, prescindiriam de uma teoria ou de um

    modelo de anlise e explicao da realidade social (Rattner, 1979, p. 126).

    A afirmao de que o planejamento puramente tcnico e deve ser neutro do ponto

    de vista poltico outra incongruncia alimentada pela postura convencional. evidente

    que os planejadores devem ter conhecimento tcnico mnimo sobre o que planejam.

    Tais conhecimentos podem ser apreendidos de forma padro e uniforme, esto

    acumulados historicamente nos mais diversos setores do conhecimento humano.Entretanto, no setor pblico especialmente, seria um suicdio planejado, fazer planos

    sem incluir as variveis de poder e da poltica, em sentido amplo, na sua concepo

    e execuo. No existe planejamento neutro, pelo simples fato de que planejar

    priorizar e resolver problemas e isto pressupe uma determinada viso-de-mundo,

    concepo de Estado, de organizao social e assim por diante. Planejar

    estrategicamente implica necessariamente em manipular variveis polticas, em

    situaes de poder compartilhado, onde os outros tambm planejam e formulam

    estratgias. O planejamento que se diz meramente tcnico na verdade resulta em

    simples adivinhao. A prtica do planejamento governamental (ou pblico) jamais

    pode ser isolada ou dissociada das concepes mais amplas sobre o Estado ou

    distante das disputas mais gerais pela hegemonia social.

    Neste sentido algumas pistas deste novo planejamento devem ser consideradas,

    estudadas, compreendidas e sobretudo transformadas em novos e criativos

    instrumentos tcnico-polticos, capazes de aumentar a capacidade dirigente,

    demonstrar-se ser capaz de atingir resultados concretos, contribuir efetivamente paraaumentar a capacidade de governar.

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    Recusando os mitos e fantasias do planejamento um grupo de pesquisadores14 na rea

    da sade pblica definiu bem o que no deve ser o planejamento:

    O planejamento no deve ser confundido com plano. O plano um dos

    produtos de um amplo processo de anlises e acordos; ele documenta e

    enuncia as concluses desses acordos, indicando para onde queremos

    conduzir o sistema (objetivos gerais ou estratgicos) e como pretendemos

    agir para que nossas metas sejam alcanadas (estratgias e objetivos

    especficos ou de processo). Em verdade, o plano deveria ser encarado

    como uma pea de vida efmera oprocesso de planejamento, em si, que

    deve ser permanente porque rapidamente vai perdendo sua atualidade

    face ao desenrolar da realidade. O plano deve ser permanentementerevisado para se manter atual. Muitas experincias fracassaram ou foram

    traumticas porque as pessoas aderiram de forma inflexvel a um

    documento. A riqueza do planejamento est no processo em si de analisar o

    ambiente e os sistemas e chegar a definir os o que queremos e os como

    alcan-lo. esse processo que deve ser permanente e envolvente dentro

    da instituio. Contudo, embora pea secundria, o plano escrito deve

    existir, at porque preciso documentar os acordos e a direcionalidade do

    trabalho. Ele deve ser preparado em linguagem clara e concisa, de forma

    que todos os que o leiam compreendam claramente a viso de futuro e os

    objetivos perseguidos.

    O planejamento no tarefa dos planejadores; ele deve ser feito pelos

    atores envolvidos na ao. Houve tempo em que os ditos planejadores

    eram agrupados em unidades ou departamentos de planejamento, a

    partir dos quais pretendiam ditar o futuro do sistema e o curso daadministrao. Ainda nos lembramos dos casos de planos centralizados que,

    de cima para baixo, ditavam at os detalhes da execuo do trabalho.

    14 Conforme corretamente afirmam Tancredi, F. Lopez Barrios, S, Ferreira, J. no artigo Planejamentoem sade, da Coleo Sade & Cidadania, disponvel no site www.bireme.br.

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    Muitos casos so hoje lembrados como caricatura, mas a triste realidade

    que vrios dirigentes locais sofreram nas mos de planos que no

    compreendiam sua realidade e de planejadores arrogantes, distanciados da

    prtica. O planejamento deve ser feito pelos atores envolvidos na ao, e afigura do planejador, hoje em dia, deve ser vista como a de algum que

    atua como facilitador do processo. Cada vez mais as organizaes se do

    conta de que perfeitamente possvel apropriar-se dos conceitos e

    ferramentas do planejamento, bem como das vantagens decorrentes do

    envolvimento das pessoas nesse processo.

    No existe a teoria ou o mtodo de planejamento. H uma vasta literatura

    sobre planejamento; h, tambm, uma vasta terminologia. Uma fantasia

    freqente que exista o mtodo de fazer planejamento. Todas as teorias

    e os mtodos no escapam muito do dilema de Alice: definir qual o futuro

    desejado, isto , aonde queremos chegar com o nosso sistema e como

    apont-lo naquela direo, ou seja, que programas e decises implementar

    para preparar a instituio/sistema a direcionar-se para um determinado

    rumo e a produzir resultados que nos levem ao futuro desejado. Muitos

    autores fizeram largas digresses sobre essa coisa to simples, porque,obviamente, o jogo de foras, interesses e ideologias faz com que no seja

    sempre fcil definir esse norte e tampouco as formas de chegar l.

    O melhor mtodo aquele que melhor ajudar numa determinada

    situao...um mtodo bom para o planejamento operacional de um problema

    especfico de sade no se presta para o planejamento de nvel poltico...

    Em suma, pouco provvel que na prtica algum siga ipsis litteris um

    determinado mtodo; mais provvel que na seqncia do trabalho vincorporando diversos instrumentos de trabalho retirados de muitas partes.

    Planejar no fazer uma mera declarao de intenes ... no depende de

    que algum o deseje com intensidade; requer decises e aes imediatas. O

    verdadeiro planejamento no uma lista de desejos ou boas intenes. Ele

    deve enunciar objetivos factveis e alcanveis, caso contrrio perder a

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    Planejamento e Elaborao de Projetos, Jackson De Toni, Porto Alegre, 2003 34

    credibilidade. Planejar exige a ousadia de visualizar um futuro melhor, mas

    no simplesmente sonhar grande. Exige maturidade para se acomodar

    s restries impostas pelo ambiente ou pelo grau de desenvolvimento da

    organizao. Alm disso, o planejamento obriga a selecionar as aesconcretas necessrias para alcanar o objetivo desejado. (p.6)

    A inspirao para as consideraes anteriores teve origem em estudos mais recentes

    do economista chileno Carlos Matus (Matus, 1993, 1997, 2000), onde pode-se

    identificar a emergncia de novas snteses tericas sobre planejamento estratgico de

    governo15. Algumas idias-chave desta nova postura so as seguintes:

    1. O Planejamento como Capacidade para Governar. O ato de governar implica em

    articular necessariamente trs variveis: (a) um projeto de governo, (b) umacapacidade de governo, (c) atuar sobre um nvel determinado de governabilidade.

    A eficcia de um projeto de governo depende, alm das habilidades e

    competncias prprias dos quadros e das organizaes polticas, da relao entre

    as variveis controladas e no-controladas (governabilidade), sejam elas recursos

    de poder sob comando de outros atores sociais ou situaes decorrentes da

    imprevisibilidade da disputa pela hegemonia social. A capacidade de governo

    viabiliza o projeto e pode gerar maior governabilidade quanto se expressa como

    capacidade de direo, gesto, administrao e controle. A anlise destes trs

    elementos induz ao arranjo de trs sistemas de natureza diferenciada: (a) um

    sistema propositivo de aes e projetos, (b) um sistema social sobre o qual tem-

    se diferentes graus de controle e (c) um sistema de direo e planejamento (a

    capacidade de governar).

    2. O modelo normativo de planejamento tem dominado os governos,

    particularmente os governos da Amrica Latina. Um ator social tem o monoplio

    do planejamento (o Estado), h somente um campo do conhecimento capaz de

    propor os instrumentos metodolgicos (a economia), as aes dos demais

    15 o qualificativo novas usado aqui para demarcar com a longa e antiga tradio da literaturaeconmica na abordagem do tema planejamento no setor pblico, seja ela de cunho financeiro-oramentrio ou das polticas macroeconmicas.

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    agentes e atores so previsveis e no criativas, admite-se que a incerteza existe,

    porm, de forma passiva e resignada. As variveis no-controladas ou no so

    importantes ou simplesmente ignoradas. Um outro modelo estratgico e

    situacional de planejamento supe, ao contrrio, que o planejamento umacapacidade comum vrios atores sociais que perseguem objetivos conflitivos na

    arena social. Alm de ser uma teoria e uma tcnica o planejamento um

    mtodo para governar que opera sempre numa situao de poder

    compartilhado, onde s a ao e o juzo estratgicos so eficazes.

    3. O Plano uma aposta. Se os sistemas sociais so extremamente complexos,

    com sujeitos coletivos criativos, de final aberto, onde o conflito engendra

    permanentemente novos arranjos societais, ento, s possvel uma visosituacional da realidade. Isto significa admitir que o sujeito que planeja parte

    intrnseca do objeto planejado, que s vlida uma explicao a realidade a

    partir de um ponto-de-vista diferenciado (e diferenciador) dos demais atores

    sociais. A viso situacional limita drasticamente a objetividade presente nas

    premissas da modelagem economtrica do planejamento normativo tradicional.

    Neste contexto o planejamento assemelha-se mais a um jogo e o plano a um tipo

    de aposta bem fundamentada. O raciocnio tcnico se viabiliza na elaborao da

    poltica e esta se materializa no complemento da tcnica, o planejamento passa

    a ser intensivo em estratgia e gesto, a fase normativo-determinstica foi

    negada e assimilada agora numa nova sntese, ela apenas um dos elementos

    do planejamento estratgico ou de situaes, no o nico, nem o principal.

    4. O centro terico que subjaz noo de viso situacional a idia do clculo

    interativo. A eficcia do plano depende dos efeitos dos projetos dos demais

    atores sobre o mesmo cenrio. A interdependncia, o entrelaamento e o padro

    recursivo das aes mutuamente combinadas constituem o componentefundamental da incerteza, sobre a qual opera o calculo interativo, que precede e

    preside a ao. Esta incerteza no pode ser superada, se fosse possvel, com o

    conhecimento mtuo e a informao perfeita, dado que todos jogadores

    tenderiam a redesenhar suas operaes no momento mesmo em que as

    intenes dos demais fossem reveladas. Esta insegurana estrutural do plano

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    oposto noo do clculo paramtrico, baseado na projeo do futuro com

    base no passado. Trabalhar com a noo de clculo interativo implica em

    planejar iniciando pela identificao e seleo de problemas, na considerao de

    diferentes cenrios futuros e planos de contingncia, na tentativa de estabelecersimulaes atravs dos jogos sociais, no desenho da melhor estratgia.

    5. A viso situacional permite compreender a assimetria das explicaes do jogo.

    O contexto situacional representa a percepo sobre o mosaico de explicaes

    sobre os mesmos problemas. O significado de uma realidade concreta no existe

    fora da situao, assim como no existe texto fora de um contexto. Nas palavras

    de Ortega Y Gasset, ...uma idia sempre reao de um homem a uma

    determinada situao de sua vida. Ou seja, s possumos a realidade de umaidia, o que ela integralmente, se a tomamos como reao concreta a uma

    situao concreta. portanto inseparvel dela. Talvez fique ainda mais claro se

    dissermos:pensar dialogar com a circunstncia. Ns temos sempre, queiramos

    ou no presente e patente a nossa circunstncia; por isso que nos entendemos.

    Mas para entender o pensamento de outrem temos de tornar suas circunstncias

    presente para ns. Sem isso, seria como se, de um dilogo, s tivssemos o que

    diz um dos interlocutores (apud Matus, 1997, pg. 152). A apreciao situacional

    uma abordagem baseada no dilogo entre um ator que assume totalmente a

    posio a partir da qual observa a realidade (diferente dos diagnsticos

    impessoais do planejamento tradicional) e as explicaes (divergentes ou no)

    dos demais atores sociais. Dado que a situao explicada compreende e totaliza

    aquele que explica, no h possibilidade de objetividade absoluta, porque

    significa tambm explicar-se a si mesmo como sujeito que atua neste contexto. A

    apreciao situacional s se define como conhecimento destinado ao numa

    totalidade concreta.O planejamento confinado aos limites do econmico no fundo um sistema impotente

    ou de baixa capacidade para dar conta da complexidade do sistema social. Se no

    houvesse argumentos tericos j suficientemente eloqentes, bastaria simplesmente

    checar as previses feitas e as metas propostas pelos planos econmicos dos

    governos latino-americanos e os resultados efetivos a que chegaram. A articulao do

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    econmico com o poltico passa (a) pela explicitao do contexto poltico do plano

    econmico, em relao aos objetivos e aos meios, (b) na elaborao e uso de mtodos

    capazes de integrar critrios de anlise de eficcia poltico com a econmica e (c)

    viabilizar categoria integradoras tanto na construo do modelo explicativo (anlise deproblemas), no desenho de projetos (incluindo recursos de poder, no-econmicos)

    como na estratgia de viabilidade e gesto. Segundo Matus,

    ...o planejador tradicional, dominado pelo economicismo, assume que ao

    sinnimo de comportamento, no estilo da teoria econmica, a base da

    teoria do planejamento. Essa uma deformao economicista,

    proveniente do modo especial e artificial como est construda a teoria

    econmica. A teoria econmica , via de regra, uma teoria docomportamento econmico segundo a hiptese de que o mundo regido

    por leis sociais de alcance similar ao das leis naturais. Consequentemente,

    o economista tende a raciocinar sobre uma base de comportamentos

    estveis que obedecem a leis. Para ele no existem processos criativos. No

    entanto, a teoria moderna do planejamento refere-se a um tipo especial de

    ao humana ou ao social. Trata-se da ao intencional e reflexiva, por

    meio da qual o autor da ao espera alcanar conscientemente

    determinados resultados. E o fundamento dessa ao um juzo complexo

    que foge s predies...tem uma interpretao situacional, e seu significado

    ser ambguo se no se explicitarem o contexto situacional e a inteno do

    autor...as aes...ultrapassam os limites daquilo que eles afirmam fazer.

    (Matus, 1997, p. 157)

    Segundo este autor os principais equvocos (e marcas) do planejamento econmico

    tradicional e das vises normativas do planejamento pblico em geral seriam as

    seguintes:(a) normativo supondo relaes sociais mecnicas, tipo causa-efeito. A ao

    seria um problema dos polticos enquanto o projeto dos tcnicos, o plano no

    uma mediao entre conhecimento e ao, mas entre conhecimento e

    projeto. Sua normatividade assume ainda o pressuposto da neutralidade, da

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    Planejamento e Elaborao de Projetos, Jackson De Toni, Porto Alegre, 2003 38

    boa forma, o que impede todo e qualquer dilogo com a complexidade real

    do mundo social.

    (b) Valoriza sempre o mdio prazo pois est fora do contexto situacional, da

    mediao entre passado e futuro, no focaliza as relaes da conjunturacotidiana, no presente, o que exige potentes sistemas de gesto.

    (c) profundamente discursivo no seu formato, isto , no operacional nem

    prtico, a materializao da metfora do plano-livro, longo, vazio de

    contedos prticos e com linguagem codificada.

    (d) oficialista, seu vocabulrio e estrutura lgica supe a capacidade de

    planejar como monoplio do Estado, tecnicista, simplifica grotescamente a

    polisemia do mundo concreto.(e) Assume e opera no conceito do tempo rgido, isto , o tempo do calendrio

    impe-se ao tempo da mudana situacional, ao tempo dos eventos. Os

    cortes homogneos do tempo na fixao de metas, por exemplo, assume a

    linearidade e a uniformidade do correr do tempo como sendo rigidamente

    igual para todos atores, em todos os contextos.

    Adotar tais supostos para propor um novo paradigma terico ao planejamento

    governamental e criticar radicalmente as premissas simplificadoras do planejamento

    econmico tradicional exige, por outro lado, estender o conceito de planejamento para a

    esfera da estratgia e da gesto pblica. Fica evidente que as noes de viso

    situacional, de planejamento por problemas, do clculo interativo, e outros

    conceitos bsicos, fazem da estratgia e da gesto questes no triviais para o

    processo de planejamento. Normalmente a baixa capacidade de governo da maioria

    dos nossos pases impede a conscincia plena da brutal fragilidade das tcnicas e

    mtodos para governar. um tipo de ignorncia em segunda potncia: no se conhece

    o prprio desconhecimento. A crise contempornea dos aparelhos de Estado naAmrica Latina, venha ela do esgotamento fiscal ou legitimatrio, acabou expondo com

    mais dramaticidade a ausncia de capacidade de planej