Mão Direita do Diabo

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Primeiras 23 páginas da obra «Mão Direita do Diabo», de Dennis McShade (Dinis Machado), reeditada este ano pela Assírio & Alvim.

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DENNIS McSHADE

M Ã O D I R E I TAD O D I A B O

pos fác io

José Xavier Ezequiel

A S S Í R I O & A L V I M

Page 3: Mão Direita do Diabo

© ASSÍRIO & ALVIM

RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA

© DINIS MACHADO

EDIÇÃO 1199, JUNHO 2008

ISBN: 978-972-37-1283-4

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Voici le temps des assassins.rimbaud

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UM

Quando acabei de falar com Lucky Cassino pelo telefone,cruzei as mãos atrás da cabeça e deixei-me ficar deitado, de luzapagada.

Bem, Maynard, vem aí o dinheiro e vem em boa hora. Há trêsanos que trabalhava com Cassino, executando as encomendasque ele recebia. Tínhamos começado no caso de Schuyler, quese transformou no caso de Palmer, uma vida trocada por outra.Cassino tinha qualidades, à sua maneira. Era dinâmico e ambi-cioso, encontrava encruzilhadas em todos os caminhos e cum-pria escrupulosamente a sua acção diplomática.

Fechei os olhos. Olga, há quanto tempo te não vejo? Senti noestômago a velha moinha, mas deixei-me ficar, procurando ar-dentemente, estupidamente, a cor dos olhos de Olga na escu-ridão fechada dos meus. Estive quase para me levantar, mas nãome apetecia vestir. Apetecia-me ficar assim, embora um poucotriste, ou inquieto, arranhando a solidão, arranhando-a até elasangrar.

Ora bem, Maynard, minha louca sentinela da noite. Virei-mepara o lado direito e senti-me um pouco melhor do estôma-go com a mudança de posição. Deixei-me ficar quieto não seiquanto tempo, sem conseguir adormecer. Durmo muito pouco,três ou quarto horas em cada noite. As noites são sempre longas,estiradas, e eu fico deitado na cama como num rio de silêncio,

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ouvindo o marulhar do próprio coração. Às vezes, tomo compri-midos para as insónias, mas fazem-me mal à úlcera. Bem, May-nard essa tripa velha que trazes dentro de ti é que há-de levar-te aocemitério. És capaz de marchar numa manhã de Outono, comomarcham os tísicos e os solitários, Johnny e Olga seguindo o carrofunerário, uma data de gente mandando rezar uma missa paraque fiques bem enterrado. Um vento rápido fez dançar a cortinada janela e bateu-me no rosto. Acendi a luz, levantei-me e olheipara o espelho. Bem, Maynard, a forma física não é famosa. Tensde reagir. E tens de lavar os dentes, Maynard. Tens de ter cuidadocontigo.

Lavei os dentes e voltei para a cama. Li algumas páginas deBradbury sobre marcianos. Meu bom Bradbury, companheiro dasestrelas, filho de Deus esquecido na Terra, a que bolsos sem fundovais buscar os teus tostões de poesia? Peguei a seguir num livro depoesias de Rilke, mas comecei a sentir as pálpebras pesadas. Nãome iludi. Para mim, sentir as pálpebras pesadas não é a certezade dormir. Muitas vezes, fico de olhos fechados, esperando queo sono venha, muito quieto, para que o sono me surpreenda.Continuei a ler Rilke como quem lê fórmulas de medicamentosou um jornal às avessas. A certa altura, pressenti que o sono che-gava. Lá vem ele, o velho e renitente amigo, o estupor. Olga aindame passou pelo pensamento como uma flecha antes de me sen-tir deslizar pelas quatro horas de esquecimento.

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DOIS

— Estamos lá, dentro de minutos — disse Cassino.O carro devorava quilómetros de estrada numa bela ma-

nhã de Maio. Íamos ao encontro de um homem que queriaque se fizesse algo de muito importante e decisivo — e que esta-va disposto a pagar bem para o conseguir. Cassino, ao volante,carregava no acelerador e fazia o retrato de T.R. Douglas, o mi-lionário que o tinha encarregado de me chamar.

— Ele pede um serviço de primeira classe. Uma obra deluxo. Tem dinheiro para pagar. Naturalmente, não me fez con-fidências, mas quando eu lhe disse que lhe arranjava o melhor,disse-me para te trazer à sua casa de campo. Isto foi ontem. Estáà nossa espera e quer que tu comeces imediatamente. O tipo é umeremita. Comanda os seus negócios à distância, não tem família.Dizem que é implacável, que já liquidou vários concorrentes. Éaccionista de fábricas de material de guerra e tem plantações noSul. É um «self-made-man». Não sei que história ele tem na ca-beça para nos contar, mas deve ser alguma coisa emocionante.

— Pois — disse eu.— É um homem velho — continuou Cassino. — Deve

andar pelos setenta anos. Telefonou-me há dias e pediu-me paraeu ir ter com ele. Conhece relativamente bem o meio. Entroucomigo com pés de lã, mas já sabia que eu podia fornecer-lhe odedo que puxasse o gatilho. Ao fim de cinco minutos já nos tí-

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nhamos compreendido. Não falei no teu nome, «Califa». Disse--lhe só: o melhor. Uma obra limpa, completa, em profundidadee em extensão.

Piscou-me o olho e riu. Já estávamos fora da cidade. Eramonze horas de uma manhã cada vez mais luminosa. Começáva-mos a encontrar pelo caminho vivendas isoladas e descampados,depois zonas com árvores que lançavam a sua sombra sobre aestrada. Cassino virou à esquerda, metendo por um caminhopouco largo, recto e bastante longo.

— Vais ouvi-lo, «Califa». E vais ver a casa. Austera, sólida,com árvores frondosas a envolvê-la e uma pequena piscina.

— Tem criados? — Quando cá estive, não vi ninguém. Só o tipo. E combi-

námos que hoje também estaria sozinho. Sei que não é casado,é dos tais que bebem solidão por uma palhinha. Constou-me jáque era maricas, mas são coisas que se dizem, e hoje está muitovelho. É muito temido nos seus negócios por ser um grande lu-tador. Deve ter gente de confiança nos locais próprios, mas éum tipo discreto, metido na sua torre de marfim.

Cassino passou a mão direita pelo cabelo lustroso e conti-nuou:

— É um homem que pesa muito dinheiro. Quando lhe fa-lei em honorários, disse-me que isso não era problema. Queum serviço bem feito, uma coisa competente, não tem preço.

— É tipo doente?— Não me pareceu muito. Um pouco alquebrado, mas

lúcido. É capaz de ter as doenças da idade, além da misantro-pia: reumatismo ou mal do coração. Mas nada de muito evi-dente.

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Cassino fez, repentinamente, guinar o carro para a direita,metendo por um atalho largo e empedrado. Espetou o dedopara a frente:

— Olha, «Califa», lá ao fundo.Vi uma casa larga, bem assente no terreno, entre árvores.

Toda a parte frondosa, de frente para o atalho, tinha sido elimi-nada, dando lugar a um portão gradeado. À medida que nosaproximávamos, pude ver que a casa era uma sólida construçãoem pedra clara, com degraus também de pedra. Entre os degrause o portão gradeado havia uns cinquenta metros de álea, comflores variadas do lado esquerdo e com piscina à direita. Ao lon-go do portão, para os dois lados, estendia-se um muro alto.

Quando nos aproximámos do portão, este abriu-se comopor encanto. O nosso carro rodou na álea e Cassino encostou-oà esquerda, junto à casa, numa larga sombra. Saímos e começá-mos a subir os degraus. O homem apareceu à entrada da porta:T.R. Douglas em pessoa, presumi. Um rosto de pergaminhonuma cabeça grisalha.

Não esperou por nós. Virou-se para dentro de casa e fez-nossinal com a mão para que o seguíssemos. O corredor era com-prido e amplo e o soalho estava todo coberto por uma alcatifaentrançada amarela e vermelha. No tecto, um candeeiro de cris-tal. À esquerda, uma pequena mesa, onde se viam alguns livrose um relógio. À direita, um bengaleiro vazio.

T.R. Douglas abriu a última porta do corredor e fez-nos en-trar num pequeno escritório. Uma cortina pesada, semi-aberta,permitia que a luz do Sol entrasse na dependência, iluminandouma vulgar secretária de mogno, dois «maples», uma cadeira de

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espaldar e uma mesa verde que suportava um candeeiro. Tudodisposto um pouco ao acaso, sem esmero.

— Sentem-se, sentem-se — disse o velho. — Que bebem?Brandy, sherry, uísque? — E dirigiu-se para a mesa verde, abrin-do um pequeno armário nela incrustado.

— Uísque para mim — disse Cassino. — E nada para May-nard. Não é, «Califa»?

— Pois — disse eu.— Maynard não bebe e não fuma — disse Cassino.— Desculpe se não o acompanho na bebida, mas nunca

bebo antes de almoço — disse T.R. Douglas.Depois de servir o uísque a Cassino, o velho sentou-se na

cadeira por detrás da secretária. Sorriu para mim e disse:— Prazer em conhecê-lo, Maynard. Vem disposto a aceitar

o trabalho?— Depende — disse eu.— Bem — o homem sorriu. Era, realmente, muito velho.

Falava de maneira arrastada. — Compreende, contudo, que selhe vou dizer o que pretendo e você não aceita, fica de posse domeu segredo e da minha intenção.

— Isso não é problema — interrompeu Cassino. — May-nard é um profissional de uma verticalidade absoluta. Respondopor ele.

— Está bem — disse o velho. — Mas é um risco. O que euquero que se faça é só para ser conhecido para quem aceitar odesempenho da missão.

Passaram alguns segundos em silêncio. E eu disse:— Vamos tentar compreender-nos, mister Douglas. Vim

aqui para saber do que se trata. Só digo se aceito o trabalho de-

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pois de estar de posse de todos os dados. De resto, o senhor teráde arriscar em quaisquer condições. Ninguém aceita uma coisadestas sem saber do que se trata. Mesmo que procure o Sindi-cato, não há outra forma de solucionar a questão. Quanto amim, trabalho sozinho. Se o senhor prefere tratar disso doutramaneira ou com qualquer outra pessoa, não precisa de me con-tar nada e eu vou-me já embora.

— Um momento — disse T.R. E voltando-se para Cassino:— E você, o que diz?Cassino fez rodar o copo entre as mãos, olhando pensati-

vamente para o chão. Depois, respondeu:— Há dois aspectos a considerar aqui: o género de trabalho

e os honorários. Se Maynard concordar com ambos, fazemosnegócio. Mas o senhor, mister Douglas, não tem alternativa.Diga-nos o que deseja e entregue-se à sorte.

O velho levantou-se, deu alguns passos pela sala e come-çou a dizer:

— Bem, vou contar por alto uma velha história. Suponhoque rapidamente farão uma ideia do que se trata e decidirão ounão fazer o trabalho.

Acendeu um cigarro, deu mais uns passos e acercou-se dajanela. Ficou de costas para nós. Era alto, mas já muito curvado.Vestia um roupão cinzento e calçava pantufas de veludo azul--escuro. A sua voz soou arrastada, mas nítida.

— Há anos, uma rapariga foi violentada por quatro ho-mens. Ficou transformada num autêntico farrapo. Esteve doisanos numa casa de saúde e acabou por se suicidar.

Fez-se silêncio de novo. Finalmente, Cassino perguntou:— E então?

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— Então — respondeu T.R. — passou muito tempo, maseu não me esqueci. Essa rapariga era minha filha e eu quero apele desses homens. Durante os últimos anos, só uma ideia metem acompanhado: vingar a morte de minha filha. Hoje, tenhodinheiro suficiente para pagar seja a quem for e para me prote-ger de consequências. A missão de Maynard seria a de matar es-ses quatro homens.

Cassino olhou para mim com ar interrogativo. Eu disseque sim com a cabeça. E Cassino perguntou:

— Quem são esses homens?T.R. voltou-se para nós:— Já conhecem as linhas gerais do caso. Antes de continuar-

mos quero saber a opinião de Maynard.Olhou bem de frente para mim. Perguntei:— Quanto paga o senhor?— Diga você quanto quer.Pensei uns momentos. Olhei para Cassino.— Bem — disse eu, finalmente. — Oitenta mil dólares,

com despesas por minha conta. Quarenta mil neste momento,e o resto quando o trabalho estiver feito. Estabelece um prazodeterminado?

— Não. Acabe com eles quando puder. Quanto mais cedomelhor, evidentemente. Creio que seis meses chegam.

— Devem sobrar — disse eu. — Mas estou a falar umpouco por alto. Só depois de saber quem são os tipos é que pos-so fazer uma ideia.

T.R. voltou a sentar-se na cadeira atrás da secretária. Abriua primeira gaveta do lado direito, retirou vários maços de notasde mil e disse:

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— Pode levar já cinquenta mil. Estava a contar com isso. — Não — interrompeu Cassino com um sorriso. — O

«Califa» disse quarenta mil agora. Disse, e pronto. O que inte-ressa é saber quem são os tipos, quando foi a história, etc. Bem,o senhor sabe…

— Foi há oito anos. Um deles namoriscava a minha filha.Um tal Nick Collins. Eu não gostava dele. Vivia de mulheres edo jogo. Katie apaixonou-se por ele. Uma vez fui buscá-la a LasVegas, para onde o tipo a tinha levado. Tinham ido para lá comum tal Max Bolero, que não era melhor peça. Amigo de Collins.Um dançarino. Trabalhava em boîtes. Zanguei-me com Katie ea coisa parecia estar morta. Até que uma noite, em Chicago,apareceu-me em casa completamente desfeita. Tinham sidoquatro, ainda me disse ela. O Collins, o Bolero e mais dois quenão sabia quem eram. Teve um colapso nervoso muito pronun-ciado e ficou uns dias em estado de coma. Melhorou, mas tivede interná-la numa casa de saúde. Ficava dias seguidos a olharem frente, para um ponto indeterminado. Fez uma tentativa desuicídio, que falhou. Uma enfermeira agarrou-a quando ia asaltar da janela. Finalmente, cortou os pulsos com uma lâmina.Encontraram-na de manhã, já morta. Do Collins e do Boleronunca mais tive notícias. Nem aqui, nem em Las Vegas, nem emChicago. A certa altura, decidi parar as minhas investigações.Não queria tornar-me notado. Preparei-me para uma ofensivasistemática. Deixei que o tempo passasse e tudo estivesse maisou menos esquecido. E agora é a altura de você, Maynard, en-trar em acção.

O velho disse tudo isto de um fôlego, como se tivesse medode ser interrompido. A angústia e o ódio misturavam-se nas suas

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palavras. Mas tinha uma maneira de falar de certo modo pom-posa, como um actor desactualizado. Quando acabou, tinha acabeça baixa.

Fez uma pausa antes de levantar de novo a cabeça, olhan-do-me de frente:

— É uma bela causa, Maynard.Não respondi e ele abriu a segunda gaveta da secretária do

lado esquerdo. Tirou de lá uma fotografia.— Katie — disse simplesmente. — Quando morreu, tinha

vinte e dois anos.Peguei na foto: uma rapariga mais simpática do que bonita,

o cabelo castanho puxado para trás, enrolado na nuca. Olhosgrandes e sinceros, boca pequena e mole. Estendi a foto a Cas-sino, que a olhou demoradamente antes de a devolver ao velho.

— A mãe de Katie…? — sugeriu Cassino.— A mãe de Katie — cortou T.R. abruptamente — não

interessa para o caso. Não sou casado, nunca fui. Apenas umadesavergonhada de momento, que não sei se está viva, se estámorta. Katie veio viver comigo quando tinha seis anos.

— Mister Douglas — disse eu — há aqui um pormenor aesclarecer: o Collins e o Bolero desapareceram antes de sua filhase suicidar?

— Sim. Depois daquela noite, sumiram-se definitivamente.— Bem, não deve ser fácil localizá-los. Como o senhor não

estabelece prazo, algo se há-de conseguir. Mas também queroesclarecer que pode algum já ter morrido…

— Melhor para si. Receberá os oitenta mil pela morte dosoutros três. Mas pressinto que estão todos vivos.

— Se estão todos vivos hei-de apanhá-los.

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Cassino pegou nos quarenta mil dólares que estavam emcima da secretária e perguntou:

— Como entramos em contacto consigo, mister Douglas?Preferia não usar telefones.

— Venha aqui, à minha casa de campo. Aos sábados, du-rante o dia não está cá ninguém. Os criados só vêm à noite.Para algo realmente urgente, telefone.

— Não há-de ser necessário — disse eu. — Espero só en-trar em contacto com o senhor depois do trabalho concluído.

— Os quarenta mil estarão cá à sua espera. Entretanto,Maynard, faça isso com descrição.

Cassino riu e levantou os braços:— O «Califa» é o mais discreto dos profissionais. Vão cair

os quatro, um para cada lado, sem se saber como nem porquê.Se os crimes de Maynard não são obras de arte, a arte é que ficaa perder.

— Li uma coisa parecida, creio que em Steinbeck — obser-vou T.R.

— Saroyan — corrigi.

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TRÊS

Esperei três dias em casa, enquanto «Lucky» Cassino coli-gia elementos, a fim de nos assegurar da veracidade da históriade T.R. Douglas. Li um pouco de Ionesco e recitei para o meugravador dois poemas de Walt Withman. Quando estava a lim-par a arma, o telefone tocou:

— Está certo, «Califa» — disse Cassino do outro lado dofio. — A filha dele, Katherine Douglas, matou-se a 7 de Feve-reiro, há oito anos, no Anne Quincey Sannatory. Já pus Herbieno encalço dos dois nomes. As boîtes estão a ser batidas e nãofalta muito para conseguirmos ficha das actividades de MaxBolero. Continua em casa. Em breve, terei notícias concretaspara ti.

Depois de Cassino desligar, fui tomar um banho quente,passei uma vista de olhos pelo jornal e decidi ir ao teatro ver aultima peça de Miller. Se Cassino, entretanto, telefonasse, quetentasse mais tarde. A peça não era grande coisa, saí do teatroantes de acabar e o telefone tocou na altura em que cheguei acasa. Era quase meia-noite.

— «Califa», ouve com atenção — disse Cassino. — Her-bie já conseguiu informações. Max Bolero estava em Frisco hátrês anos, mas o mundo é pequeno. Procuraram-se lá pistas eacabámos por saber que o tipo está aqui, em Nova Iorque, com

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outro nome, e à frente de uma casa de bilhares. Agora chama--se Max Gold. A casa é nas zonas pobres do oeste da cidade.

— Está encostado a algum graúdo? — perguntei.— Possivelmente — respondeu Cassino. — É natural que

por detrás dele haja alguém com dinheiro e posição. Não sei setem quota na casa ou se foi apenas lá colocado como gerente.De qualquer modo, está lá há pouco tempo. Que queres fazer?

— Vamos lá amanhã jogar uma partida de bilhar — disse eu.— Mas eu não sei jogar — disse Cassino,— Também eu não — respondi. — Passa por cá amanhã,

depois de almoço.Quando acordei, na manhã seguinte, já o sol ia alto. Fiz café,

mas não tinha açúcar em casa e não me soube lá muito bem.Tomei um duche, oleei a minha «Beretta» (Dona Beretta, deli-cada como um maitre d’hotel e leve como uma pluma de arara),ouvi um pouco de Bach e saí para comprar jornais e almoçar.Quando voltei, despi o fato claro que tinha vestido, substituin-do-o por umas calças de bombazina e um casaco velho de«sport». Cassino chegou às duas horas.

— Vamos, «Califa»? — Vamos.Atravessámos o centro da cidade e dirigimo-nos para o

lado oeste. Cassino começou a falar:— O nosso amigo Max Bolero, aliás Max Gold, é mesmo

o dono da casa de bilhares. Aquilo não tem nome. Bilhares —e é tudo. Não se lhe conhecem grandes amigalhaços por cá. Deveter trazido o dinheiro de Frisco e aplicou-o ali. Como pensasresolver o assunto?

— Por agora, vamos ver as vistas. E ouvir o que se diz.

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Entrámos numa zona de prédios demolidos, Cassino gui-nou o carro para a esquerda e, pouco depois, estacionámos pró-ximo de uma fila de casas baixas e pobres. Saímos do carro.Cassino disse:

— É ao fundo da rua. Herbie tratou disto tudo. Percorremos a pé três quarteirões, alguns miúdos jogavam

basebol na rua e um polícia fardado fazia vista grossa àjogatana. Entrámos na sala de bilhar. Estava quase vazia. Dasquatro mesas, só uma estava ocupada por uns tipos quejogavam «snooker». Tirei um taco e pedi bolas a um velho coxoque imediatamente retirou o pano da mesa que escolhi.

Um dos tipos que jogava «snooker» gritou:— Ei, bailarino, giz!O velho coxo movimentou-se o melhor que pôde. Bailarino

era com ele. Entregou o giz a um tipo alto e ruivo, que lhe deuuma palmada nas costas.

Cassino pegou também num taco e o velho coxo entregou--nos as bolas. Começámos a jogar. Eu jogava melhor que o Cas-sino. Fiz mesmo uma série razoável de carambolas.

A certa altura, entrou um tipo esgrouviado, de blusão preto.Era novo e bexigoso. Dirigiu-se ao velho coxo:

— O Max? Pergunta-lhe se quer jogar uma partida.— O Max não está — disse o velho coxo — foi a Frisco.Cassino olhou para mim e fiz um gesto vago de assentimen-

to. Acabámos a partida, pagámos e saímos.— Pois é — disse Cassino, já na rua. — O tipo deve ter

coisas em Frisco. Vou pôr o Herbie na pista, pois pode ser queele se demore por lá. Nesse caso, irias a Frisco.

— Pois — disse eu.

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Metemo-nos outra vez no carro. Cassino acendeu um ci-garro e pôs o motor a trabalhar. Eu disse:

— Tenho de falar com o Max antes de fazer o trabalho,por causa do nome dos outros dois. Convém-me, realmente, ira Frisco para descentralizar a acção.

Cassino olhou para mim e sorriu:— Essa conversa deve ter piada.— Pois — disse eu.— Ouve, «Califa». Logo que tiver notícias telefono para ti.

Tens de ficar de novo em casa.— Só me interessa a morada dele em Frisco. Partirei logo

que a souber.— Entretanto — continuou Cassino — também estamos

a tentar descobrir vestígios de Nick Collins. Tem sido um pou-co mais difícil. E terá de ser através de um deles, o Max ou oNick, que poderás saber quem são os outros dois. Espero que oHerbie dê boa conta do recado.

— O Herbie é bom — disse eu. — Um óptimo informador. — Mas é caro.Minutos depois, Cassino parou o carro em frente da mi-

nha porta.— Bem — disse eu — fico à espera.— Ok.Entrei em casa, despi-me e estendi-me um pouco em cima

da cama. Estava um tempo demasiado quente para Maio. Fi-quei algum tempo de olhos fechados, a pensar. Olga. Fiz um es-forço para afastar Olga da ideia. Preocupava-me, nesta altura, opossível diálogo que teria com Max. Se tivesse de o matar antesde saber os nomes que faltavam, ficaria só com uma possibi-

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lidade: Nick Collins, de quem, por enquanto, não se sabia oparadeiro.

Levantei-me, meti-me debaixo do duche e comecei a pre-parar as minhas coisas para uma possível viagem a Frisco. Guar-dei algumas roupas numa mala pequena e deixei espaço nela demodo a caber lá a maleta do silenciador. Seria óptimo que Cas-sino telefonasse cedo, tendo localizado já a morada de Max.Preferia efectivamente tratar com ele em Frisco.

Peguei num livro, mas larguei-o imediatamente e ouvi umpouco de Beethoven. Sentia-me ligeiramente mal disposto, comosempre acontece antes de fazer um trabalho. Beethoven não mefez muito bem. Coloquei Debussy no gira-discos, mas a minhaúlcera começou a dar sinal de si. Tomei um comprimido. Melho-rei, mas decidi que nessa noite só beberia leite. Felizmente, tinha--o, no frigorífico e não precisava de sair. Dei uma vista de olhospela minha «Beretta». Estava em ordem, pronta para matar.

Deitei-me de novo em cima da cama e senti-me um pou-co cansado. Já sabia, era sempre assim. Precisava urgentementede acção. Nem a maldita úlcera deixava de dar sinal de si en-quanto eu não encontrasse Max Bolero.

O telefone tocou. Levantei o auscultador.— Bob? — perguntou uma voz de mulher.— Como?— Mas… quem fala? Não é o Bob?— Não, minha senhora. Enganou-se no número. Coloquei o auscultador no descanso e fui beber leite. Esta-

va a precisar dele. Olhei para a minha mão direita. Felizmentenão tremia.

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Eram cinco e meia da manhã quando o telefone retiniu denovo. Acordei.

— Alô?— «Califa»?— Diz.— Já tenho a morada e a passagem de avião. Vou buscar-te

dentro de meia hora. Está bem?— Pois.Desliguei, lavei-me, vesti-me e dei uma vista de olhos pela

minha bagagem. Tudo em ordem. Ajustei bem o cinto ao tron-co e coloquei a arma no coldre. Estava bastante calmo, quasesatisfeito. Bebi um copo de leite, embora o estômago não medoesse, e cirandei um pouco pela casa. Bem, Maynard, quase nãopregaste olho, pareces contente como um passarinho e quem entrasseagora dentro de ti, sorrateiramente, seria incapaz de descobrir o quese passa. Nem para ti, meu velho, és sincero. Lobo acossado, que atéfoge de si próprio. Que raio de serenidade é essa, Maynard? Ondefoste buscar uma coisa que não pode haver, pelo menos para ti?

Disse que sim com a cabeça a mim próprio, aproximei-meda janela e fiquei a ver o espectáculo do dia a nascer, como umacriança que foi pela primeira vez ao circo. Semicerrei os olhos,passei a mão pelo peito, sentindo a arma, e voltei as costas aonascer do Sol.

Fiquei à espera de Cassino.

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