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1 VIVIANE MENNA BARRETO MAPA PICTOGRÁFICO DA CULTURA RIBEIRINHA DA AMAZÔNIA PARAENSE: TRADIÇÃO E MÍDIAS Comunicação e Semiótica PUC/SP Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica - sob orientação Da Professora Doutora Jerusa Pires Ferreira. São Paulo 2005

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VIVIANE MENNA BARRETO

MAPA PICTOGRÁFICO DA CULTURA RIBEIRINHA

DA AMAZÔNIA PARAENSE: TRADIÇÃO E MÍDIAS

Comunicação e Semiótica

PUC/SP

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e

Semiótica - sob orientação Da Professora Doutora Jerusa Pires Ferreira.

São Paulo

2005

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Banca Examinadora:

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Mapa, obra em aquarela sobre seda de 2001.

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Dedico este trabalho à memória de minha mãe Egle Scafuto Menna Barreto, a minhas

filhas Luana, Tainah e Naomi Menna Barreto de Vilhena, ao meu marido Nelson Augusto

Souza de Vilhena, ao meu sogro Miguel Vilhena e a todos os meus amigos pelo importante

apoio recebido ao longo desses anos.

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Agradecimentos

Agradeço a todos os ribeirinhos pelo carinho com que me receberam no Pará. Em especial

agradeço ao PM Castro do Marajó, ao Mestre Zenóbio, a parteira Dona Benedita, a Seu

Procópio, ao professor Jânio Arnaut , ao pesquisador Adilson Valente e a Vital Batista de

Joaba; a Cutaca, Cristina Miranda dos Anjos, Eudes de Aquino e Do Reis de São Caetano

de Odivelas. E a todas crianças da ilha de Sirituba em Abaetetuba.

Agradeço também a Antonio Carlos Franchini e Márcio Silva da GTEC por terem

construindo nosso site; a RGB pelos primeiros projetos gráficos; a Kodak pelos filmes

cedidos; a Granero por ter transportado nossas iconografias; ao Creci PA/SP, as Tintas

Prince do Brasil e a Intertexto Comunicação e a Brasil Connects por terem divulgado

nossas exposições. Agradeço a Paes Loureiro do Instituto de Artes do Pará, a Secretaria de

Cultura do Estado, a PARATUR e a revista Ver-o-Pará e seu fotografo Geraldo Ramos por

todas informações cedidas à esta pesquisa; a Maria do Socorro Simões coordenadora do

Projeto IFNOPAP da UFPA pela chance de ter acompanhado suas expedições; ao Museu

Emílio Goeldi por participar de sua exposição flutuante no rio Tocantins; a CNPq pela

bolsa que viabilizou este mestrado; ao Espaço Cultural TUCA e Casa do Lago da

UNICAMP pela chance de mostrar os resultados pictográficos deste trabalho em SP.

Agradeço a toda equipe do Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP pela

atenção recebida. Em especial agradeço a Jerusa Pires Ferreira pelo privilégio de ter

assistido suas ótimas aulas e pela paciência em me conduzir por este novo caminho.

Agradeço também aos professores Carmem Junqueira, Cecília Sales e Amálio Pinheiro por

tudo que me ensinaram. E a todos amigos do Centro de Estudos da Oralidade pela

solidariedade. Agradeço também aos amigos sempre presentes na minha vida: Felipe

Pugliesi, Valéria Hartt, Marco Aurélio e Adriana Nunes, Tribst, Ana Carla Freire de Sá e

João Quesado; a Dimitri Kuriki, Jr, Alexandre Tripiciano, por todas montagens; a Maria

Amélia pelo projeto gráfico; ao químico Eber Ferreira por viabilizar-nos a fabricação de

tintas naturais; a Heloisa Menna Barreto pela formatação da dissertação; a Marcio Honório

pela revisão, a Chantal Benjamin e Jonathan Nóbrega por cederem suas fotos; a Marluci

Laranjeiras por cuidar de mim esse tempo todo e a Vani Fátima por ser companheira em

mais este percurso.

Finalmente agradeço meu marido Nélson Vilhena, minha sogra Iolanda, ao meu sogro e

conselheiro Miguel Vilhena e a toda minha família paraense pelos deliciosos momentos

que passamos juntos.

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Resumo da Pesquisa

Esta pesquisa situa-se no universo das Cartografias Pictográficas e tem como carta

de itinerário o ciclo de festas populares dos caboclos ribeirinhos da Amazônia

Paraense.Tem como objetivo criar um novo conjunto de imagens sobre a Amazônia e,

através da divulgação nos meios de comunicação, inserir estas paisagens no imaginário do

resto do Brasil. Esse é o diferencial desta dissertação: são duas vias que confluem ao

mesmo ponto, saem da artista e pesquisadora e vão seguindo infinitamente enquanto

representação plástica construída através de uma grande viagem, pelas comunidades

caboclas.

O universo conceitual de Jerusa Pires Ferreira, organizado a partir da transcrição de

aulas gravadas, criou os primeiros tópicos teóricos da dissertação. Utilizamos também a

obra de Ana Maria de Morais Beluzzo sobre os Artistas-Viajantes; o universo de Darcy

Ribeiro e João de Jesus Paes Loureiro sobre a cultura cabocla e suas poéticas; os livros de

Marlyse Meyer para entender as antropofagias da cultura popular; e a teoria do mundo

invertido de Bakhtin para refletir sobre os mascaramentos na festa popular.

Então, ampliamos o universo do festeiro, retirando-o do localismo e

redimensionando-o na universalidade a partir dos estudos de Paul Zumthor. Mas não

pensamos teoricamente com aparelhos estáticos. Pensamos de modo que a teoria nos

propiciasse a deslocação do olhar através da nossa própria obra pictórica, encarada como

veículo de comunicação entre estes dois mundos. Nesse campo, discutimos a possibilidade

de criação e difusão de redes imagéticas através de projetos artísticos midiatizados que

mostram o imaginário das minorias. O corpus de análise adotado trata das mudanças dos

papéis sociais do festeiro e exemplifica processos de atualizações de uma tradição, através

do carnaval de Joaba em Cametá e do Boi de Máscaras de São Caetano de Odivelas. As

conclusões alcançadas mostram como a comunidade festeira cria um território encantado e

como a artista-viajante, midiatizando esta voz, amplia seu alcance.

Palavras-chave: Festa, Cultura popular, Amazônia, Oralidade, Arte.

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Abstract

This is a research within the universe of the Pictographic Cartographies and its

itinerary is the cycle of folk festivals of the riparian caboclo (mestizo) population of the

Amazon region in the Pará state. It intends to create a new set of images of the Amazon

region and, through dissemination in the media, insert those sceneries into the rest of

Brazil’s imagery. There lies the differential of this dissertation: two routes converging to

the same point, departing from the artist and researcher, and moving on indefinitely as a

plastic representation constructed after an extended trip along the caboclos’ communities.

The first theoretical topics of the dissertation derived from Jerusa Pires Ferreira’s

conceptual universe organized through the transcription of tape-recorded classes. We also

based our analysis on Ana Maria de Morais Beluzzo’s work on the Artistas-Viajantes

(Artists-Travelers); on Darcy Ribeiro’s and João de Jesus Paes Loureiro’s universe on the

caboclo culture and poetry; on Marlyse Meyer’s books to understand the folk culture’s

anthropophagies; and on Bakhtin’s inverted world theory to ponder on folk festivals’

masking.

Then, we extended the festivals’ universe by taking them away from the localism

and giving them a universal dimension under Paul Zunthor’s studies. However, we did not

think the theory as a static apparatus, but instead as enabling us to divert the look through

our own pictorial work considered as the communication means between these two worlds.

At this point, we discussed the possibility of creating and disseminating image networks

through mediated artistic projects showing the minorities’ imagery. The corpus of the

analysis deals with the changes in the festival sponsor’s social roles, and gives instances of

tradition updating processes through the Joaba carnival and the Boi de Máscaras (Masked

Bull) in São Caetano de Odivelas. The conclusions show how the community involved in

the festival creates an enchanted territory, and the artist-traveler, by mediating its voice,

increases its reach.

Kew words: Festival, Folk Culture, Amazon Region, Orality, Art.

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Sumário

Introdução, 9

Capítulo I - Os Pescadores do Imaginário, 32

São Caetano de Odivelas/PA

Capítulo II - Comédias Flutuantes, 57

Joaba, Cametá/PA

Capítulo III - O processo e as mídias, 86

Capítulo IV - Vozes da Floresta, 115

Considerações finais, 137

Bibliografia, 142

Anexos, 149

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Introdução

PERCURSOS DE UMA ARTISTA-VIAJANTE

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Menino ribeirinho sobre cestaria dos Wai-wai, obra em aquarela sobre seda de 2001.

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Introdução

Percursos de uma Artista-Viajante

“O rio sempre o rio era o ponto de referência era a praça e a torre da igreja que ali inexistiam”

Milton Hatoun: 1989,123

A pesquisa que desenvolvo sob orientação de Jerusa Pires Ferreira, no programa de

Comunicação e Semiótica, situa-se no universo das Cartografias Pictográficas da

Amazônia Paraense e tem como carta de itinerário o ciclo das festas populares dos

caboclos1 ribeirinhos. O Mapa Pictográfico é um projeto construído através do diálogo

entre o objeto contemplado, ou vivenciado, e o olho, o corpo e a condução imaginária da

artista visual Vivianne Menna Barreto.

Os resultados desta pesquisa exemplificam de maneira muito forte a idéia do

encontro entre o objeto visado e a subjetividade da artista demonstrando seus processos de

apreensão, configuração e mecanismos transmissivos. Neste ponto de encontro, em que se

realiza uma certa tensão, é que se cumpre a idéia de Cartografia realmente.

Vou mapeando, nesta viagem, elementos das festas através de pinturas, fotografias,

desenhos com a comunidade, entrevistas e coleta de iconografias, permitindo que minha

subjetividade alcance o objeto e dele retorne, como parte de um imenso quebra-cabeça. É

um trabalho altamente rizomático, porque não dá para segurar essa viagem em um só

ponto. Ela está cheia de surpresas, o que inclui vivências, descobertas, avanços,

retrocessos, trocas, dádivas, energias corporais vitais.

Por tudo isso, a categoria de Artista-Viajante vai ser o norte desta dissertação. Ela

tem a ver com a viagem em si, ou seja, com a idéia do rio, que tomamos como epígrafe;

tem a ver com a grande viagem pela memória; tem a ver com a idéia da conexão entre o

meu trabalho de reflexão e o meu trabalho plástico. Enfim, ela é a chave desta grande

viagem que é ver, representar e depois conectar para pensar sobre este percurso.

Viajando através do rio Amazonas e seus afluentes falei com os fazedores da festa,

seus filhos, amigos e vizinhos. E percebi que estes artistas, além de estarem ligados à festa,

1 A “civilização” cabocla nasceu, no século XVI, na Amazônia, como um modo de vida primitivo que foi se construindoem resposta às necessidades da vida na floresta. “Seu modo de vida, essencialmente indígena enquanto adaptaçãoecológico-cultural contrasta flagrantemente, no plano social, com o estilo de vida tribal. Enquanto nas comunidadesindígenas a vida é voltada para a satisfação das necessidades existenciais e, portanto manutenção de sua cultura e fartaprodução de alimentos, entre os neo-brasileiros as tarefas produtivas tinham caráter mercantil e não de subsistência,garantindo-lhes apenas o suficiente para não morrer de fome”. DARCY, Ribeiro. 1995,O povo Brasileiro, A formação e osentido do Brasil. Ed.Cia das Letras, P.316

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desenvolvem uma pluralidade de atividades tradicionais: a mesma senhora que é parteira

também mantém a tradição do samba nos roçados de mandioca de Joaba2; o dono da festa

de Nossa Senhora do Rosário bate tambor para o enredo do boi-bumbá; o brincante3 do boi

de máscaras4 dança quadrilha e milita politicamente na juventude da igreja e do PT de São

Caetano de Odivelas5. Estes são alguns dos muitos entrevistados que colaboraram para a

construção desta dissertação. Com eles compartilhei da alegria das festas, brinquei nos

cordões carnavalescos, nas comédias da bicharada6 e nas encenações itinerantes do boi de

máscaras.

Mas não foi só isso. O Mapa Pictográfico se desenvolveu criando mil tentáculos,

muitas idas e vindas, e provocou interferências sobre o social das cidades por onde passou

nestes últimos quatro anos. Integrando-me às expedições fluviais da Universidade Federal

do Pará (IFNOPAP)7 viajei pelo interior da Amazônia e fui onde os artistas populares

estavam. Entrei em suas casas, dormi em suas redes, escutei suas histórias. E foi com esta

intimidade que fotografei e pintei o que me pareceu mais importante da festa. Achei que

dividir os resultados das pesquisas de campo com eles era a coisa certa a se fazer.

Assim, levei as exposições do Mapa Pictográfico a Abaetetuba, Cametá, São

Caetano de Odivelas, ao arquipélago do Marajó e a algumas cidades do rio Xingu,

devolvendo, por meio de mostras de arte, as imagens da festa modificada. Inicialmente as

exposições aconteciam a bordo do Catamarã Pará8, integradas a programação cultural das

expedições. Em julho de 2001, meninos que pegavam carona em nosso navio para vender

palmito e açaí, foram os primeiros ribeirinhos a visitar estas exposições flutuantes.

Entrevistando estes ribeirinhos percebi que conseguiria mais respostas a minhas perguntas

se também coletasse seus desenhos sobre a Amazônia.

2 Joaba: vila quilombola que integra o município de Cametá às margens do rio Tocantins.3 Brincante; nome que se dá às pessoas que, dançando e brincando, acompanham a folia do Boi-de-máscaras.4 Boi-de-máscaras: dança dramática sem enredo verbal que está dentro da categoria de boi-bumbá. Encontrado nonordeste do Pará, em São Caetano de Odivelas, difere dos bois maranhenses por ter duas pernas e não usar saia nemenfeites no corpo. Sai em cortejo acompanhado por um grupo de foliões que usam máscaras,cabeções e trajes de pierrô.5 São Caetano de Odivelas: município que vive basicamente da pesca situado na área do salgado paraense famoso porseus folguedos juninos.6 Bicharada: cordão de bichos fundado por Mestre Zenóbio há cerca de 30 anos, costuma desfilar no carnaval e nas festasda padroeira nas ruas da vila de Joaba e em Cametá, animando e proporcionando distração a própria comunidade.Apresentam-se com cerca de 64 personagens que imitam animais reais da floresta. Usando fantasias de pelúcia, estesanimais, ameaçados de extinção, representam uma comédia em que contam as dificuldades de sobreviver nos tempos dadevastação. Acompanham o cordão uma banda composta por sax, reco-reco, banjo, tambor e cavaquinho .7 IFNOPAP: Encontro organizado pelo programa de letras da Universidade Federal do Pará que pesquisa o imaginárionas formas narrativas orais da população ribeirinha da Amazônia Paraense.8 Catamarã Pará: navio de ferro, com mais de 100 cabines, utilizado como campus flutuante pelo projeto IFNOPAP.,onde durante as viagens pelo interior do Pará, acontecem palestras e mostras itinerantes.

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Elso, Etilena, Raiane e Glemron, obra de 2001.

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Desde então, fiz seis exposições no interior do Pará, coletando mais de cem

desenhos das crianças ribeirinhas. Inaugurei com isso uma forma diferente de

comunicação, através de exposições e de oficinas.

Em um segundo momento, além das exposições flutuantes, comecei a traçar outro

itinerário, pois precisava retornar às festas já pesquisadas. Assim, além de acompanhar os

percursos da universidade, promovi outras exposições. Com apoio da igreja local montei

exposições nas cidades de São Caetano de Odivelas e na vila de Joaba, em Cametá. A

montagem ficou a cargo de meu marido, Nélson Augusto Souza de Vilhena, montador

oficial da Bienal de São Paulo que criou para esta exposição a mesma estética das grandes

mostras de arte. Organizei também, paralelo a isso, laboratórios de participação

comunitária: oficinas de pintura, de desenho, sessões de vídeo onde a comunidade assistia

sua performance em slides digitais.

Desenho do boi Garrote feito por Raimundo em 2001

Continuei desenhando com as crianças da comunidade. E em São Caetano de

Odivelas, coletando desenhos sobre a festa do boi, descobri os “pernas”, como são

conhecidos os meninos que brincam embaixo do boi. Meus pequenos desenhistas, dando

tanta ênfase à perna quanto ao corpo do boi, revelaram a importância de quem carrega

incógnito o boi e a festa nas costas e, assim, ampliei minha pesquisa também para os

brincantes invisíveis que compõem a comunidade festeira.

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Devo grande parte de minhas respostas à colaboração desses pequenos desenhistas.

Em todas as cidades por onde passei estes jovens foram de alguma forma importantes

“pauteiros” desta pesquisa pictográfica. Pintei seus rostos, coloquei seus nomes e desenhos

em meus quadros, ouvi suas histórias.

Quando descobria um assunto nas entrevistas que me parecia interessante de ser

acrescido ao mapa, mas não tinha a foto ideal, retirava as imagens de revistas, jornais,

folhetos turísticos, rótulos, embalagens, em uma pesquisa imagética daquela Amazônia

oficializada pela reprodutibilidade das mídias, e assim acabava recriando, em meu mapa,

tanto imagens que viraram ícones daquela cultura quanto imagens ainda inéditas para o

grande público.

Capa da revista “Ver-o-Pará” de julho de 1999.

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Os jornais e revistas locais foram muito úteis a este processo. A revista “Ver-o-

Pará”, com suas matérias explicativas sobre as festas e belas fotos forneceu-me elementos

para muitos quadros. Na obra “Mascarados do boi de máscaras” (P.56) recriei parte da

capa desta revista em seda. Construí muitos quadros a partir de suas reportagens, inclusive

a obra “Barcos no Trapiche” (P.17), onde recortei da imagem fotográfica de uma maquete

de rio, construída9 dentro de um aquário, a cena de dois barcos amazônicos parados em um

pequeno porto. Estes barcos pintados em grandes dimensões que foram resultados de uma

série de transferências de processos criativos, de alguma forma remetem aos barcos do

impressionismo francês.

Foto de aquário da revista Ver-o-Pará de julho de 1999.

Reportagens de tv, matérias de revistas e jornais exerceram uma poderosa força

sobre minha arte. Foi através da mídia local que consegui as melhores imagens desta

paisagem amazônica e fui me familiarizando com as histórias das festas, os adereços, os

artesanatos, para então poder selecionar o Pará que representaria.

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Barcos no Trapiche, obra de 2001.

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E é disso que tratarei nesta dissertação: falarei do olhar da artista viajante sobre os

fazedores da festa e também sobre o que é veiculado deles nos meios de comunicação.

Portanto, não é o índio, não é o negro, não é o branco, mas sim o caboclo ribeirinho da

Amazônia Paraense e suas manifestações que esta pintora-viajante estuda.

Neste ponto, a dissertação utiliza o formato de narrativa, em uma espécie de diário

de viagem que relata descobertas, encontros e desencontros. Neles encontramos

documentos materiais que explicam as razões internas da construção daquelas culturas. E

são várias viagens que acontecem ao mesmo tempo: a viagem em si pelos rios e pelas

cidades ribeirinhas, a viagem através da representação pictórica que mescla ao texto cores

e detalhes de cerca de 40 aquarelas sobre seda de grandes dimensões, a viagem através das

práticas e dos rituais da festa reunidas em cerca de 50 fitas cassetes de entrevistas e mais

de 1000 fotos, a viagem da memória daquelas comunidades que levam a cartografia de

volta ao Brasil Colônia e a Europa pós Idade Média. E finalmente a viagem teórica que

discute todo este processo através de um itinerário construído dentro do universo

conceitual de Jerusa Pires Ferreira recolhido da obra e das gravações de aulas que durante

três anos foram transcritas e organizadas em tópicos.

No entanto é preciso considerar que esta dissertação é um bosquejo editorial feito

por uma artista visual que apreende os signos mais explícitos da festa para construir um

mapa pictográfico da cultura cabocla. Sabemos que são múltiplas as práticas das

comunidades incluídas nestas festas, assim como são variados os modos de recepção delas:

através de foto, pintura, reprodução de fotografias de outros, artesanatos etc. Linguagens

tão variadas não comportariam uma pertinência. Tendo consciência disso, aviso ao leitor

que não vou entrar neste “lodaçal semiótico”. Ao adotar a forma de um diário vou

arrebatando, conforme o gênero permite, o que é captável da festa.

Estive no rio Trombetas, Xingu, Tocantins, Marajó e região do Salgado e considero

que, entre outras obras, três séries de pinturas foram mais significativas: o ensaio sobre o

rio Trombetas e o Círio fluvial de Oriximiná, sobre o rio Tocantins, onde presenciei a festa

da Bicharada, e sobre a região oceânica paraense onde assisti a brincadeira do Boi de

máscaras. Nas narrativas, por questões práticas, falo das festas de duas regiões do Pará:

Cametá e São Caetano de Odivelas, locais mais próximos a Belém, aos quais tive

oportunidade de retornar várias vezes e aprofundar minhas relações com os festeiros.

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Nas duas cidades as máscaras têm papel de destaque na estética do brincante. Elas

são feitas em uma espécie de papel marchê que troca a cola pela goma de tapioca. A

plasticidade destas indumentárias rendeu-me várias obras e fotos. Os mascarados

representados nas aquarelas parecem se transformar em personagens de histórias em

quadrinhos coloridos e com formas exageradas; acho que foi isso que me seduziu neles.

Em São Caetano de Odivelas muitas pessoas saem mascaradas. Nos dias da

brincadeira do boi, alguns se disfarçam de pierrôs, usam coloridos macacões de cetim,

capacete e uma máscara branca com um enorme nariz pontudo que remete ao carnaval de

Veneza. Outros brincam de cabeçudos ao molde dos cabeçotes ibéricos. Quem não tem

condição de comprar fantasia improvisa, sai de roupa escura e se disfarça com máscaras de

monstros de plástico, destas usadas em São Paulo, nas festas de Halloween. Tantas pessoas

participam da brincadeira na cidade que há uma mistura de atores e platéia. Ao tornar

incógnito o brincante, as máscaras revolucionam os costumes da cidade de São Caetano de

Odivelas possibilitando às mulheres não serem mais excluídas da brincadeira, que antes era

privilégio só dos homens.

No carnaval de Joaba, vila quilombola do município de Cametá situada às margens

do rio Tocantins, quando chega à comunidade algum grupo de mascarados de barco, vindo

das ilhas vizinhas, para encenar comédias carnavalescas, a platéia da cidade não se integra

à brincadeira. Os atores principais chegam e saem incógnitos usando máscara de papel-

marchê, enquanto os coadjuvantes se camuflam com aquelas de plástico que reproduzem o

rosto de políticos como Lula, Bush, Bin Laden etc.

Nestas duas festas do ciclo junino e carnavalesco, apesar da performance dos

festeiros ser jocosa, as máscaras, roupas de cetim colorido, capacetes e bandeiras lhes

conferem uma certa “solenidade visual”10 em meio à grandiosidade da floresta e do rio.

Também em Cametá, relato o encontro com os mascarados da Bicharada, grupo

muito famoso na região, que encena comédias denunciando a ameaça de extinção da fauna,

da floresta e dos rios. Usar fantasias de pelúcia parece uma prática meio surrealista para o

clima de verão amazônico. Mas é o que acontece quando eles tentam reproduzir fielmente,

na aparência e nos movimentos, cerca de 60 animais da floresta.

Para pintar a série sobre a Bicharada convidei os brincantes para uma sessão de

fotos. Apesar de estarem posando, a presença de crianças assistindo ao ensaio fotográfico

acabou gerando interações interessantes entre a platéia e os atores. A pelúcia colorida, a

10 Termo usado por Paes Loureiro.

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fantasia muito bem construída, altera a proporção entre a floresta e os animais que parecem

enormes, assustadores para as crianças que, por mais que conheçam a Bicharada, ainda não

se acostumam com a teatralização da fauna amazônica.

Os brincantes da Bicharada demonstraram grande intimidade com o

comportamento selvagem das aves e mamíferos. Mas a encenação destes animais enormes

desmistifica aquela idéia de que encontramos representada apenas a fauna exuberante da

Amazônia. Parece que ao encenarem esta espécie de ópera cabocla os brincantes criam um

museu vivo onde misturam cópias de pelúcia de animais, como jacarés e macacos da

Amazônia com leões e zebras de florestas alheias.

A Bicharada, uma atualização do cordão de mascarados carnavalescos trocou a

comédia de costumes por apelos ecológicos; uma resposta cultural para a devastação

ambiental do rio Tocantins em conseqüência da implantação da usina hidroelétrica de

Tucuruí.

Nas duas cidades pesquisadas, a comunidade festeira é composta, em sua maioria,

por pessoas bem simples – pescadores e agricultores – do mundo rural ribeirinho, semi-

letrados, que vivem muito próximos da natureza e dependem dela para seu sustento. Mas,

apesar disto, muitos festeiros que encontrei são poderosos artistas multimídias: tocam

instrumentos musicais, navegam, fazem teatro, cantam, pintam, constroem barcos e

iconografias. Conhecedores de vários ofícios, os ribeirinhos (pensando em conceitos de

Durkheim) superam, através do ritual da festa, as distâncias e aproximam os indivíduos,

criando conexões com outros povos da floresta.

Por suas habilidades estes festeiros são muito conhecidos em seus municípios.

Entre os iniciados, que obedecem a toda complexa “etiqueta social” da festa, estas pessoas

são chamadas de mestres. Mestres são homens que dominam todo um conjunto de práticas,

ritos e saberes de um ofício. São muito respeitados e sempre são solicitados para darem a

última palavra nos assuntos da cidade. Mas ao terem interferências da mídia, estes festeiros

ampliam ainda mais seu campo de atuação e sua popularidade ultrapassa os domínios da

comunidade ligada à festa, atingindo também as esferas políticas e sociais de outros

municípios. Eles são transformados “em celebridades e deixam a condição de meros

indivíduos para adquirem o status de pessoas, exemplos de vida pública. 11

11 Conforme Antônio Teixeira de Barros fala no artigo “A mídia entre o privado e público uma, leitura a partir dopensamento de Gilberto Freire”

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A Bicharada, obra em aquarela sobre seda de 2003.

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Objetivando sua perpetuação, o brincante dirige com seriedade a festa. À medida

que ela torna-se mais popular, mais pessoas querem integrá-la. Assim, as regras tornam-se

mais rígidas. Como me disse um senhor dono de boi em São Caetano de Odivelas: o nome

é brincadeira, mas o negócio é sério!Há toda uma solenidade a ser cumprida no dia da

festa; as pessoas sabem seu papel e o que a boa etiqueta determina como comportamento

correto dentro daquela comunidade.

Toda festa, mesmo quando puramente laica em suas origens, tem certas

características de cerimônia religiosa, pois, em todos os casos ela tem por efeito

aproximar os indivíduos, colocar em movimento as massas e suscitar assim um

estado de efervescência, às vezes mesmo de delírio, que não é desprovido de

parentesco com o estado religioso.[...] Pode-se observar, também, tanto num caso

como no outro, as mesmas manifestações: gritos, cantos, música, movimentos

violentos, danças, procura de excitantes que elevem o nível vital etc. Enfatiza-se

freqüentemente que as festas populares conduzem ao excesso, fazem perder de vista

o limite que separa o lícito do ilícito. Existem igualmente cerimônias religiosas que

determinam como necessidade violar as regras ordinariamente mais respeitadas.

Não é, certamente, que não seja possível diferenciar as duas formas de atividade

pública. O simples divertimento, [...] não tem um objeto sério, enquanto que, no seu

conjunto, uma cerimônia ritual tem sempre uma finalidade grave. Mas é preciso

observar que talvez não exista divertimento onde a vida séria não tenha qualquer

eco. No fundo a diferença está mais na proporção desigual segundo a qual esses

dois elementos estão combinados. Durkheim, 1968.

Falamos de festa, de cultura popular, de Amazônia, mas é preciso frisar que esta

dissertação está sendo escrita por uma artista visual. Não estou vendo a festa com o olhar

do folclorista, nem estou querendo preservar o status quo daquela cultura, nem uso os

óculos do jornalista ou do antropólogo.

Penso na festa enquanto imagem, dentro de um processo de comunicação. Enxergo

como as festas estão sujeitas também à máquina maior da indústria cultural e como os

brincantes incorporam estes elementos. Assim ao invés de detectar “pastorinhas” vejo nas

belas meninas, que dançam na festa, “pin-ups” caboclas. Nas máscaras tradicionais me

interessa a estética daquelas fantasias que incorporam os escudos de futebol e vêm

modificando a cor mais comum das fantasias dos pierrôs do boi-de-máscaras de

antigamente.

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Pin-up cabocla, obra em aquarela sobre seda de 2004.

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Gosto de ver refuncionalizadas as máscaras de monstros de plástico - que são

vendidas na rua 25 de março, em São Paulo, para as brincadeiras de Halloween. Para a

festa nacional que acontece no interior da Amazônia estas máscaras servem apenas como

uma nova categoria de brincante, que mistura ao medo uma certa jocosidade. Aí está a

ênfase do olhar desta artista-viajante. Tento trazer em meus quadros e narrativas, uma

Amazônia que combina em um universo rudimentar esta organização complexa da festa.

Assim, nesta viagem, evidencio na estética tradicional, elementos apropriados da estética

pop, do mundo veiculado pela grande mídia. Como acontece, por exemplo, na festa de São

José, na vila de Joaba, onde o santo é homenageado com missas-aeróbicas ao estilo do

Padre Marcelo Rossi, e só então sai a procissão tradicional.

Brincante do boi de São Caetano de Odivelas.

Para enfatizar que esta representação de realidade não busca encontrar uma pureza

perdida ou uma realidade sacralizada, eu pinto tudo isso com tintas industriais sobre um

suporte têxtil. Poderia ter escolhido a tela e pintar estas cenas a óleo ou a acrílico, que têm

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um maior valor de mercado, mais durabilidade, mas preferi me aproximar dos artesãos,

utilizando um suporte que pode ser encontrado em roupas, papelaria, objetos de uso

pessoal. Um suporte meio descartável. E mudei a temática usual do suporte. Ao invés de

manchas e flores coloquei cenas desta cartografia Amazônica.

Em meu processo criativo parto da fotografia para pintar os quadros. Sou uma

colecionadora voraz de instantes fotográficos. A partir deles, utilizo um episcópio

(aparelho ótico que amplia e projeta imagens) para desenhar na seda o que serão os claros e

escuros e as formas. Em uma seqüência de enquadramentos a imagem amazônica vai sendo

editada. E finalmente deixa de ser digital para ser fixada sobre a seda através de técnicas

milenares de vaporização têxtil.

Posteriormente, organizo as mostras nas comunidades e com a repercussão da

Mídia, acabo dando voz ao festeiro. Assim ao invés de destruir a festa, os meios de

comunicação vão legitimando-a. Desta forma transversal, criando processos intertextuais

dentro da mesma série, tento devolver pra essas pessoas o que foi cartografado.

Desta forma estamos criando uma nova cadeia através desses dois projetos que

acontecem simultaneamente: o artístico e o didático. O projeto de recuperação dessa

cultura, passada pelo filtro da artista-viajante, proporciona uma resposta para aquelas

comunidades, através de oficinas e exposições. Nesta operação de ir e vir, a festa e a

Amazônia representada fica diferente a cada retorno, porque há um diálogo com os

festeiros que será devolvido à sociedade através do meu olhar e posteriormente pelo olhar

da mídia.

Organizei sete exposições pelo interior do Pará e duas retrospectivas da cartografia

em São Paulo. No Espaço Cultural TUCA da PUC de São Paulo e no Espaço Cultural Casa

do Lago, na UNICAMP. O resultado destas mostras foi uma ampla divulgação da cultura

paraense.Tanto aqui no Sudeste quanto no Pará tivemos um público direto durante a

própria exposição e tivemos a exposição da Amazônia conhecida através da notícia

veiculada nas mídias, que atingiu outro número significativo de leitores. No Pará foram

publicadas matérias no jornal Liberal, em São Paulo, no jornal Estado de São Paulo e na

revista Carta Capital.

De modo geral parece que as notícias da cartografia se adequaram às pautas das

mídias porque geraram imagens de cores fortes, em um cenário paradisíaco. Falam do

homem comum que vive em um local distante. Revelam aspectos do Brasil que ainda

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detém algum ineditismo. Acho que por todos estes motivos, a revista semanal Carta

Capital disponibilizou para esta viagem pela Amazônia sua capa e um caderno com dez

páginas onde produzimos um especial com alguns momentos da cartografia.A revista

Guest, que é distribuída na rede hoteleira Accord, também deu ao projeto um destaque

especial.

Capa da revista Guest

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Apresentarei nesta dissertação, por razões práticas, fotos de algumas das obras

produzidas durante a cartografia. Entre elas estão algumas imagens que foram escolhidas e

midiatizadas pelos grandes veículos de comunicação de São Paulo e Belém, dentre as

várias que estavam disponibilizadas em um site com imagens em alta resolução, em cds

que levávamos às redações ou ainda entre as que estão exibidas no site do projeto:

www.amazoniasbrasileiras.com.br.

Capa da revista Carta Capital de 15 de setembro de 2004.

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Nesta introdução contei um pouco do meu percurso de pesquisador, comunicólogo

e artista porque é preciso pensar que esta dissertação contém um conjunto de resultados.

Através da coleta de desenhos com as crianças locais encontrei o caminho para entender a

festa; com a fotografia e o gravador percorri um longo caminho, recolhendo memórias; e

com o pincel finalizei esta primeira retratação da Amazônia e do Brasil. Digo primeira,

pois escrever este texto e pintar estes quadros iniciais foi a forma de eu me preparar para

um longo período em campo através do que pretendo verticalizar, a partir de 2005, esta

pesquisa que por hora apresenta vários caminhos abertos para serem desenvolvidos no

futuro em uma tese de doutorado e em outras exposições e inserções na mídia.

*****

Mas antes de terminar esta introdução é necessário conceituar um pouco melhor o

que entendo por festa, uma vez que nossa pesquisa de campo se realiza nas cidades apenas

a partir deste momento de ebulição social. Entendo que as festas da Amazônia devem ser

pensadas de maneira bem ampla. O termo festa é muito ambíguo. Em geral designa uma

festa específica, depois generalizada não tem competência e abrangência para ser entendida

enquanto conceito. Os cientistas dizem que a festa é uma prática coletiva ritualizada

encontrada nas sociedades primitivas e que tem um caráter sagrado que em nossa

sociedade já teria decaído; que é o momento de suspensão planejada da vida cotidiana, ou

mesmo o tempo de sua completa inversão, momento de aliviar as tensões reprimidas;

manifestação grupal popular, que se distingue pelo riso, pelo grotesco etc. “Tais definições

não são a rigor incorretas. São, no entanto incompletas, imperfeitas, na medida em que

assumem festas particulares, ou características especificas de determinadas festas, como

parâmetros para julgar o que é ou não uma festa12.”

Dentro deste contexto considerei a festa em termos bem amplos, para reunir nesta

pesquisa várias manifestações. Considero a festa como

um trabalho social específico e coletivo da sociedade sobre si mesma. E se

aceitarmos, mesmo que provisoriamente a validade de uma conceituação tão ampla

e abstrata, podemos nos aproximar da festa, fundir no mesmo conceito, atos

12 Norberto Luiz Guarinelo em artigo publicado no volume I do livro Festa cultura e sociabilidade na AméricaPortuguesa. JANCSÓ, István e KANTOR, Iris (org.) , Volume I. São Paulo, Editora EDUSP/HUCITEC, P. 970.

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coletivos aparentemente tão diferentes como os funerais, as procissões religiosas, os

carnavais, uma final de campeonato ou um aniversário13.

Assim reunimos o fiel, o festeiro, o promesseiro, a dançarina cabocla, o construtor

de brinquedos de miriti como participantes de um trabalho social específico e coletivo da

sociedade sobre si mesma. Portanto, ao encontrar o “fazedor de cultura” da Amazônia

Paraense, e depois ouvir suas histórias, presenciar suas festas, conversar com seus filhos,

uma pergunta me pareceu fundamental para ampliar a análise deste fenômeno cultural:

Posso considerar este fazedor-da-festa como construtor de um território “encantado”?

Antes de responder a esta pergunta faz-se necessário pensar no termo encantado dentro de

parâmetros do homem amazônico e seu estado de maravilhamento diante da realidade

cotidiana. João de Jesus Paes Loureiro, referindo-se aos ribeirinhos da Amazônia paraense,

fala que lá

as pessoas ainda vêem seus deuses, convivem com seus mitos, personificam suas

idéias e as coisas que admiram. A vida social ainda permanece impregnada do

espírito da infância, no sentido de encantar-se com a explicação poetizada e

alegórica das coisas. Procuram explicar o que não conhecem, descobrindo o mundo

pelo estranhamento, alimentando o desejo de conhecer e desvendar o sentido das

coisas em seu redor. Explicam os filhos ilegítimos pela paternidade do boto; os

meandros que na floresta fazem os homens se perderem pela ação do curupira; as

tempestades pela ação enraivecida da mãe-do-vento etc14.

Esta faculdade natural do caboclo de criar uma realidade condizente com seus

desejos facilitou também a esta autora vivenciar a Amazônia, no desenvolvimento de sua

pesquisa de campo, dentro de um estado poético envolvido com a percepção mágica do

mundo da festa e dos artistas locais. Assim acontece o encontro destas duas poéticas. E a

viajante deixa-se envolver por uma espécie de devaneio propício à poesia deste mundo

encantado do caboclo. A artista, em pleno século 21, percebe a existência destes territórios

não mais como devaneios, mas como territórios permeados, no tempo presente, por uma

herança ancestral.

13 JANCSÓ, István e KANTOR, Iris org. Festa cultura e sociabilidade na América Portuguesa.Volume II, São Paulo,Editora EDUSP/HUCITEC, P. 974

14 LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica – uma poética do imaginário. Editora Escrituras, 2001, P.110.

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Esta herança se manifesta nas vestes, nos adereços e na iconografia da festa.

Utilizando a estética das máscaras os brincantes ocultam a fisionomia e revelam uma das

mais belas faces da Amazônia, uma floresta repleta de marcas culturais, onde Pierrôs da

Comédia Del’Arte e cabeçudos aos moldes ibéricos convivem com máscaras de plástico de

monstros deformados, de políticos, de palhaços etc. E onde animais de todos os tipos –

araras, zebras e dinossauros – fazem o papel de boi-bumbá ou encenam comédias

ecológicas numa apresentação um tanto sem enredo, transformando a floresta em um

imenso palco ao ar-livre.

Em happenings coloridos, músicos e atores se deslocam nas noites escuras das

pequenas cidades inseridas na floresta. As máscaras, as fitas e as fantasias assustadoras

tornam familiar o indomável e servem para espantar os fantasmas de viver tão próximo da

mata e do rio. Servem também como suporte para incorporar elementos estéticos retirados

da cultura de massa; máscaras com emblemas de time de futebol, fantasias de pierrô nas

cores do Timão (Corinthians), bumba-meu-boi em forma de dinossauros, personagens da

Disney fabricados como brinquedos de miriti. Estes são alguns dos elementos que

podemos encontrar misturados aos brinquedos de forma e cores tradicionais. Eles estão

atualizando e transformando a cultura rural e ribeirinha paraense.

Quanto aos brincantes e aderecistas, a maioria, claro, tem televisão e muitos têm até

antena parabólica. As cenas de igualdade entre os sexos assistidos nos programas de

televisão certamente reforçam muitos comportamentos entre os ribeirinhos: alguns seguem

a moda das tocas de lã dos rappers e dos atores jovens da Globo. As mulheres, protegidas

pelas máscaras, libertaram o desejo de brincar na festa, que antes era privilégio dos

homens. O anonimato dos atores travestidos com roupas de cetim e capacetes é sinônimo

de ruptura dos papéis sociais. Mascarados homens se vestem de mulher, e mulheres se

passam por homens. E as crianças vão atrás da brincadeira. No entanto mulheres ainda não

conquistaram o direito de ter em seus armários os macacões em cetim colorido dos

brincantes do boi; usam-no escondidas ou ainda quando falta algum homem para a

apresentação.

Em ambas as cidades, por uma opção estética, a modelagem das fantasias não foi

adequada ao calor amazônico. Usam roupas com mangas e calças longas talvez por

conferir-lhes um aspecto mais solene. Com retalhos de cetim, franjas e fitas estes artistas

misturam cores e adereços. No encontro desta estética, muitas vezes não sabia para onde

olhar diante de tantas informações que os brincantes carregavam no corpo e na alma.

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A relação entre a simetria e a visualidade ribeirinha na construção estética da

Amazônia traduz-se em todos os casos, pelas próprias coisas – fachadas de casa

residências ou de comércio, barcos, vestuário tornam-se suporte de cores. A

impressão que se tem é de que o homem diante da exuberância tropical de seu

teatro de cores numa ânsia de diferença buscasse a síntese a redução ao essencial,

ao elemento universal. Uma delicada operação de adorno que parece constituir-se

ornamento materializa a fantasia. Longe de um estilo simplesmente decorativo,

trata-se da configuração de uma certa solenidade visual, que confere a tudo uma

vaga intemporalidade. E essa solenidade visual ocorre sem que se perca a

simplicidade expressiva resultante de uma atitude pela qual o homem rivaliza com

o luxo visual ostentado pela natureza15.

Esta complexidade estética das fantasias da Amazônia, e todo texto cultural da festa

que a cada nova geração renova suas marcas culturais constituem um território vivo. O

mapa pictográfico e o ato de produzi-lo é uma atividade subversiva de resistência histórica;

um ato de uma artista-formiga que pacientemente vai colocando sobre si e sua arte o

enorme manto das memórias amazônicas.

A seguir apresento duas narrativas construídas a partir da memória de minhas

vivências de campo em São Caetano de Odivelas e em Cametá.

15 Idem ibidem. P.121

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Capítulo IOS PESCADORES DO IMAGINÁRIO

São Caetano de Odivelas/PA: 00º45’00”, 48º01’12”

Verão Amazônico

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Capítulo IOs Pescadores do Imaginário

São Caetano de Odivelas/PA:Julho, 2001

“O carnaval de Roma não é propriamente uma festa que se dá ao povo, mas que o povo dá a si mesmo”1

Na copa das árvores que margeiam a estreita rodovia que leva a São Caetano de

Odivelas, a cerca de mais de seis metros do solo, um movimento ágil tremula os galhos,

cipós e folhas, que em vários tons de verde formam a textura do mato fechado. São

criaturas da floresta Amazônica que parecem anunciar que entramos em um mundo

desconhecido. Um bando de 15 “macacos de cheiro” amarelos, com cerca de 45

centímetros cada um, avança com agilidade entre as árvores. Suas longas caudas dão-lhes

equilíbrio quase perfeito para voar de galho em galho carregando nas costas seus filhotes.

Como uma onda eles desaparecem. Enquanto isso nosso carro, aos trancos e barrancos,

tenta se desviar da lama e dos buracos da estrada de terra.

A monotonia da paisagem de floresta só é rompida de tempos em tempos por um

açaizal e alguns pés de bananeira que anunciam quase sempre a presença de uma pequena

casa escondida no mato. Muito verde depois se passa por outra casa e assim a cidade de

São Caetano vai chegando quase como uma ilha cercada por florestas, águas do mar e do

rio Mojuim. Em seu entorno intermináveis arquipélagos fluviais circundados por

manguezal formam uma cerca viva com extensão equivalente a 26 mil campos de futebol

de onde saem diariamente cerca de 20 mil caranguejos que abastecem Belém e arredores.

Por um lado esta parede protege as embarcações pesqueiras das ondas e correntes

do mar, por outro priva esta cidade, banhada pelas águas sépias do rio, da visão do oceano.

Mas onde estão as praias deste município às margens do Atlântico? Em São Caetano as

praias parecem encantadas, estão em alto mar e têm hora certa de desaparecer. Ficam além

do mangue, distantes cerca de meia hora, viajando-se em “pó-po-pó”2. Mas são praias

muito perigosas porque aparecem na maré vazante e quando a maré enche rapidamente

somem.

1 BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e Renascimento. Tradução de Yara Frateschi Vieira. SãoPaulo, HUCITEC/ Editora Universitária de Brasília, 1993.2 “Pó-po-pó” : designação onomatopéica de um barco movido a óleo. Este meio de transporte, meio lento e barulhento, émuito comum na região Amazônica.

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São Caetano é, assim, pouco descoberta, pouco procurada pelos turistas talvez por

esta falta de praia ou pela precariedade da estrada de acesso. Lá ainda pode–se andar

tranqüilo pelo meio da rua de paralelepípedos ou de terra batida, que tem um fluxo de

carros reduzido. As bicicletas são o meio de transporte mais popular da cidade e dominam

a paisagem plana por onde às vezes em uma esquina mais tranqüila uma manada de cabras

pasta distraidamente.

O ofício da pesca

Longe dois quilômetros do centro, nas margens de Odivelas, fica o bairro de

Cachoeira e o porto pesqueiro: uma das maiores fontes de renda da cidade. No trapiche3 de

Edilson Ribeiro da Silva a movimentação de barcos lota o igarapé4 estreito, de onde se

avistam os furos5 do rio e as ilhotas, que ficam do outro lado da margem, à cerca de cem

metros de distância. Durante toda a manhã os barcos entram e saem e às vezes ficam

parados, esperando no rio, em frente ao trapiche, ou em outros igarapés menores, por sua

vez de descarregar.

Os pescadores são homens fortes, morenos, usam pouca roupa e têm os pés

descalços. Eles trazem, nas costas ou em cestas, peixes amarelos de um metro de

comprimento sob um sol de quase 40 graus. São as famosas Pescadas amarelas; um dos

peixes mais comuns daquelas águas, vendidos a três reais o quilo nos mercados da cidade.

Mas nesta região pesca-se também Corvina, Serra, Tainha, Dourado, Uritinga Branco,

Xaréu, e Burijuba: um peixe grande que chega a pesar 50 quilos.

A única sombra existente no trapiche é a de um galpão cheio de janelas, muito

ventilado, com cerca de oito metros, construído com madeiras pintadas de um branco já

meio gasto pelo tempo. Neste local se guardam redes de pesca penduradas no teto e as

bóias e bandeiras que territorializam os mares.

3 Trapiche: espécie de atracadouro onde as pessoas e as cargas embarcam.4 Igarapé: riacho pequeno que atravessa túneis de vegetação, com águas bem frias e de cor escura devido a sedimentosem seu leito. Costuma ser utilizado pela comunidade local para banhos ou como caminho de canoas e pequenasembarcações.5 Furos: canais sem correnteza própria que cortam um arquipélago fluvial.

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Artista- Viajante

Sou uma Artista-Viajante desenhando um porto amazônico. As dificuldades de

pintar em “campo” é um dos motivos que me levaram a optar pela técnica de aquarela

sobre seda, já que o tecido pode ser esticado em um bastidor de madeira desmontável de

pequenas dimensões. A tela está precariamente apoiada no vão da janela que escolhi como

recorte da paisagem que será representada. Não me lembro de neste local ter sentido o odor

desagradável de peixe que senti no mercado Ver-o-peso6 ao fim do dia. Aqui os peixes não

são comercializados no porto, não ficam expostos ao sol porque ao lado do trapiche fica

um grande galpão frigorífico de uma indústria pesqueira que centraliza toda produção.

“Recorto” da paisagem árvores, embarcações, homens e recrio no quadro a minha

Amazônia. Alguns pescadores colocam os peixes em paneiros7 reforçados que suportam o

peso de até cinco peixes ou cinqüenta quilos. Possuem alças que facilitam o trabalho dos

dois homens necessários para se carregar a carga direto para as geladeiras da empresa

pesqueira. Uns homens estão deitados no piso do barco protegidos do sol sob precárias

lonas plásticas coloridas cor de laranja, amarelas e azuis. Outros ainda aproveitam o tempo

para lavar a sujeira do barco. Memória de mais uma madrugada de pesca em oceano aberto

distante da costa três ou quatro horas.

Entre as várias tarefas do dia-a-dia do trapiche, busco fotografar na postura corporal

do trabalhador imagens que demonstrem a dureza do ofício deste pescador que vive

subordinado à indústria pesqueira, com seus baixos salários.

Estou desenhando e fotografando detalhes aos quais não quero me deter agora no

esboço, mas que não desejo perder na memória. Minhas tintas ainda estão guardadas na

caixa de plástico preta amarrada na garupa da bicicleta que usei como meio de transporte

pela cidade. O fato é que desenhei durante toda manhã uma síntese de vários momentos

do porto. Agora, no meu trapiche, espero que a luz ideal incida sobre os barcos e sobre a

floresta para só então pintá-los. O dia vai passando, o calor aumentando e a maré vai

vazando.

6 Ver-o-peso: mercado que reúne, em centenas de barraquinhas, mandingas, remédio, garrafadas, encantarias, aromas esabores paraenses. Situado em Belém, às margens do igarapé do Piri, na Baía do Guajará, acolhe diariamente centenas depescadores que na madrugada vêm comercializar seus pescados. No período colonial era esse o local de verificação depeso das mercadorias para as transações comerciais. Na verdade, trata-se de um complexo que abrange o Mercado deFerro, o Mercado Municipal e a feira-livre, sendo, portanto, um dos centros responsáveis pela distribuição de alimentosde Belém.7 Paneiros: Cestas com uma trama aberta, feitas de talos de miriti ou de outras palmeiras.

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Rio Mojuin, obra em aquarela sobre seda de 2002.

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De repente, depois do almoço, às 13 horas, as águas desapareceram totalmente do

igarapé e os barcos ficam atracados na lama. O barco fica paralisado, só as bandeiras

vermelhas, azuis e brancas das estacas ainda tremulam, como que se lembrando do balanço

do mar. Estas estacas servem como marcação para definir o local onde foi lançada a rede

de pesca em alto mar. Mas agora elas misturam-se aos mastros, assim o barco ocupa o rio e

ocupa um espaço do céu.

A rotina de trabalho destes homens esta condicionada aos ciclos da natureza, e

quando a maré vaza só lhes resta esperar. Os homens estranham minha presença e alteram

seu comportamento. O que lhes incomoda não é tanto o fato de eu estar pintando, mas

minha movimentação ao estar fotografando. Um caboclo forte me chama para fotografá-lo.

Ele exibe orgulhoso uma enorme Pescada amarela.

Ele ergue o peixe como um troféu e ao fundo o céu azul divide, com os mastros e as

copas das árvores distantes, a composição deste recorte de cenário que fotografo. Os

companheiros do pescador acham graça da pose. Eles têm a cor do rio, a cor do sol de todo

dia. Cor do verão nos trópicos, verão fora de época, que acontece em julho, quando

diminuem as chuvas na região amazônica.

Esta cena virou outro quadro de uma série de ribeirinhos “amostrados”, orgulhosos

do que fazem. O pescador exibido no encontro com a Artista-Viajante vira um personagem

de Hemingway, vira representação de um entre tantos ribeirinhos, que fazem este ofício ser

talvez o mais relevante na cadeia de produção de Odivelas, pelo menos até chegar o fim do

ano, época da festa do Caranguejo, quando muito pescadores trocam de ofício e se enfiam

nos mangues desta cidade conhecida também como terra do caranguejo.

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O homem e o peixe, obra em aquarela sobre seda de 2002.

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Preparativos da festa na periferia da cidade

Mas vamos tratar aqui do ciclo junino, do verão amazônico, quando a maioria

destes homens além de pescar, tecer as redes, construir seus paneiros ou até mesmo

construir suas embarcações, alimentam seu universo simbólico com uma expressão

artística singular: o boi de máscaras, espécie de boi-bumbá apresentado em uma encenação

itinerante pelas ruas da cidade, que apesar de ser chamada de boi reúne, nesta espécie de

teatro ao ar-livre, uma multiplicidade de animais, reais ou imaginários. Eles exibem-se em

uma coreografia livre, em uma “dança dramática”8 sem enredo verbal predeterminado, que

pode conter dinossauros, zebras, garrotes, rinocerontes, bodes montezes, alces etc. A cada

dia se apresenta um bicho, seguido por um cordão de brincantes mascarados. Pierrôs,

cabeçudos, vaqueiros, caçadores, diabos e monstros completam a folia itinerante do boi,

em uma descontraída criação cênica e ritual.

Raimundo Santa Rosa dos Santos, ou “Cutaca”, como prefere ser chamado, é um

destes pescadores produtores de cultura. Na comunidade Odivelense este homem de 46

anos, cabelos negros, bigode vasto sobre pele morena é conhecido por ser, como ele

mesmo diz, sócio-proprietário do “Boi Garrote”, que se apresenta nas quadras juninas da

periferia de São Caetano. Cutaca exibe uma expressão contrariada e barba por fazer;

expressão das dificuldades financeiras vencidas a duras penas depois de dias de trabalho

para organizar a saída de seu boi pela periferia da cidade, sem nenhum apoio

governamental. Em torno dele seis crianças de idades variadas estão brincando. São seus

filhos, Joelson, Elielson, Edielson, Jolvane, Waleson, Nilvana.

Cutaca há 24 anos organiza as apresentações do boi Garrote no bairro da Cachoeira,

na periferia da cidade, local onde ele mora com sua família, em uma casa de pau a pique de

dois cômodos e chão de terra batida. Uma casa quase sem móveis e sem água encanada. Na

gaveta do único móvel, uma espécie de bancada, Cutaca guarda um papel amassado com

letras meio rabiscadas que é considerado uma jóia: este papel contém as letras da música

inédita do Boi Garrote de 2001.

No exíguo ambiente de sua casa um boi pendurado no teto divide o espaço com as

redes de dormir que estão agora enganchadas na estrutura de madeira do telhado da casa.

Em um canto Cutaca exibe dois enormes tambores de couro que são seu orgulho. Ele conta

que os tambores são de veado branco e de bode, e eram do seu sogro, que tinha um

8 ANDRADE, Mário de. Danças Dramáticas Brasileiras. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1959. t. 1º.

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conjunto de carimbó. Os instrumentos lhe foram vendidos porque o grupo acabou quando o

sogro morreu.

Estou alojada em uma casa vizinha que é de Cristina, cunhada de Edílson Ribeiro

da Silva, dono do trapiche aonde passei o dia pintando. Ela cria, em casa, um macaco de

cheiro, que fica amarrado a uma árvore desde que caiu das costas de sua mãe e foi pego

pelas crianças em uma floresta distante de sua casa um ou dois quilômetros, na saída da

cidade. Cristina tem dois filhos e é esposa de um marceneiro. Seu Ribeiro conhece muito

bem as madeiras da região e os usos que se fazem dela. Ele trabalha nas casas da elite de

São Caetano, por isso tem um padrão de vida melhor. A floresta, de certa forma, apesar de

servir como matéria prima, convive com estes ribeirinhos “urbanos” como o outro, um ser

desconhecido, um reduto mágico que deve ser respeitado, mas que deve ser domesticado,

assim como os macacos, as preguiças, as araras.

As casas populares desta Amazônia não têm muros; às vezes um conjunto de oito

ou dez casas delimita com galhos seu território, sem portões. Assim, neste grupo, todos

vivem em um quintal comum. A mulher de Cutaca prepara as refeições ao ar livre. Ela é

uma mulher muito alta e magra que usa um longo vestido rente ao corpo. Ela limpa o peixe

do almoço em uma bacia e joga suas escamas e entranhas no chão da cozinha improvisada

no quintal. A cozinha na verdade é apenas uma bancada que serve de mesa para a bacia de

água. Uma cobertura feita com forração vegetal serve como teto e um deque improvisado

no chão de terra separa os pés da cozinheira da lama. A extrema falta de estrutura favorece

ao caboclo a criação de soluções adaptativas de alta esteticidade, aproximando-o dos

costumes e dos conhecimentos indígenas no uso da floresta e de seus derivados. As folhas

grandes da Abacaba que forram o teto da cozinha servem também para forrar o banheiro

que fica no fundo do quintal coletivo, onde as crianças brincam descalças.

Cutaca e os músicos tocam trombone, tambor, sax tenor e trompete durante o

ensaio que antecede a apresentação. Eles bebem pinga e cerveja entre uma música e outra.

Quando os músicos descansam um CD de música brega é tocado a todo volume, enchendo

o ambiente com o clima da festa que virá. Os vizinhos ficam preocupados com as

conseqüências do excesso de álcool em Cutaca e sua esposa, mas a banda apenas toca cada

vez mais animada suas marchas, xotes, e um gênero musical muito singular: o samba de

boi9. Estas músicas “constituem um corpo estilístico próprio e de fácil identificação.

9 Samba de boi: uma mistura de toada de boi e carimbó tocada pelos músicos da região de São Caetano de Odivelas.Carimbó: dança e música tipicamente nortista, originária da fusão das danças de índios tupinambás com os ritmosagitados dos negros africanos. Desenvolvido provavelmente a partir do batuque e roda de samba maranhense acrescido deoutros instrumentos.

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Servem, ao mesmo tempo, para reunir os brincantes e para o deslocamento da cena pela

cidade”10.

São quase cinco horas da tarde e todos estão aguardando a chegada dos brincantes,

pois, apesar da família de Cutaca ser numerosa, eles não têm fantasias para vestir. Fantasia

de Pierrô é pra quem tem dinheiro ou apoio político. Só quando já estava escurecendo

chegam os primeiros brincantes vestidos de pierrô, com capacetes cheios de fitilhos

coloridos a sacolejar com seus passos ligeiros. Atrás deles, pela estrada de terra, vem um

grupo de moleques seguindo três cabeçudos pink de formas desproporcionais e braços de

boneco. Os personagens da festa são grotescos, grandes cabeças, pierrôs com máscaras

narigudas, diabos, “buchudos”, enfim personagens nos quais um elemento corporal, seja a

cabeça, nariz, ou a barriga, é exagerado. Nesta caracterização trajam uma indumentária

muito quente e por isso eles esperam escurecer e aparecem com a noite, quando uma brisa

vinda do mar esfria um pouco a cidade.

Então é “como se uma estranha e intemporal representação da Comédia del’Arte”

se fosse organizando. “Uma realidade mágica se vai configurando e aceita com

naturalidade por todos. Uma naturalidade densa de interesse do que pode ocorrer. Em tudo

vai acrescentando uma espécie de expectativa crispada. Todos sentem que “algo” vai

acontecer dentro de momentos – o momento que é por todos esperado”11.

“Comédia del’Arte”

Durante o século XIX, e desde muito antes, a arte dramática estava dividida em

duas grandes tendências; o teatro culto dirigido à aristocracia e à burguesia mais

endinheirada, e o teatro popular dirigido à massa, ao povo. No teatro culto se cultivava a

tragédia e o drama, enquanto no teatro popular se cultivava a farsa, a sátira, a comédia e

outras formas “menores”. Dentro deste grupo encontra-se, de origem muito antiga, a

chamada Comédia Del’Arte, que acredita-se teve origem nas encenações feitas nas praças

públicas, pelos atores da Idade Média. Era um mundo de comicidade “inferior” dos artistas

de feira.

De origem italiana esse teatro popular improvisado, feito por atores profissionais

seminômades, mesclava circo, magia, mímica e comédia o que resultava em um espetáculo

10 LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica, uma poética do imaginário. São Paulo, Editora Escrituras, 2001,p. 302.11 Ibidem ibidem,, pp. 307-308.

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muito atrativo, hilário e cheio de paródias. Como teatro improvisado que era deveria ter, e

tinha, algumas linhas condutoras através das quais os atores podiam construir a

representação cênica, modelando-a segundo o momento e os acontecimentos recentes do

povoado onde estavam. Esta linha condutora se estabeleceu com bases em personagens

pré-concebidos nos quais se caracterizavam determinados vícios e características humanas.

De certa forma podemos pensar nos personagens da Comédia Del Arte

como “deuses pagãos destronados” que representam virtudes públicas e

privadas universais que o público podia imediatamente identificar e

transportar a sua realidade cotidiana. Assim a Comédia Del Arte tinha um

repertório limitado de personagens que tinham seu nome próprio, sua

vestimenta fixa12.

Mattasin, Comédia Del Arte de 1642.

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São eles, Pantaleão, um crédulo e velho mercador que tentava disfarçar sua idade para

atrair as mulheres; o Doutor, que usava frases pedantes e sem sentido e sugeria, às vezes,

perigosos remédios para os males imaginários dos outros personagens; o Capitão, um

covarde que alardeava suas vitórias na guerra e no amor; Polichinelo, um pícaro cruel

deforme e barrigudo; Colombina, mulher de um dos homens velhos da comédia que

demonstrava encanto em um mundo de estupidez e avareza; o personagem Arlequim, que

era astuto, oportunista e avarento, além de ter o gênio de uma criança malvada; e

finalmente o seu oposto, sua vitima, o Pierrô, que encarnava o serviente, o bobo do teatro

espanhol, aquele que é enganado pelos falsos amores de Colombina.

Esse é um breve resumo do imemorial passado do personagem Pierrô, um

personagem símbolo do fracasso pessoal e dos amores não correspondidos, que saiu da

Itália, atravessou toda Europa e chegou na Amazônia paraense para brincar com o boi.

Através da história, em re-montagens constantes, o povo foi gostando de Pierrô, talvez

porque construir a fantasia de Arlequim fosse muito complicado, talvez porque o viam

como fraco e se identificaram com ele.

Deuses pagãos na festa da Amazônia

Os Pierrôs paraenses, uma tradução cultural desta tradição, também são meio bobos

e são chamados de palhaços. Eles vestem um macacão colorido de cetim, com manga e

calça comprida. Sobre ele é vestido um pano de costas de chita florida chamado romeira;

nos pés meias longas, brancas; cobrindo a cabeça, toalha de banho estampada; e sobre ela

um capacete em estilo mourisco. Completa o anonimato do brincante a máscara nariguda

que lembra as máscaras do carnaval de Veneza, onde um nariz exageradamente grande

pode ser pensado como um índice de virilidade.

O nariz é sempre substituto do falo. Laurent Joubert, jovem contemporâneo

de Rabelais, célebre médico do século XVI (...) é autor de um livro sobre

preceitos populares em matéria médica. No Quinto Livro do cap. IV, ele fala

de uma crença solidamente estabelecida no espírito popular, segundo a qual

se pode julgar o tamanho e a potência do membro viril pela dimensão e

forma do nariz13.

12 TAVIANI, Ferdinando. La Comedia del arte. Tradução para o espanhol de Sergio Brunel. Artigo retirado da Internet eatualizado em Janeiro de 1998.13 BAKHTIN, M., Op. Cit., p. 276.

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Mascarados do boi ,obra em aquarela sobre seda de 2001

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De uma forma ou de outra brinca-se com o que é temido. E o medo dá lugar ao

chiste. Assim, o brincante da festa popular caçoa de tudo, da exagerada barriga das

grávidas, dos medos das crianças, do pudor das virgens, da desigualdade social.

E quem não tem dinheiro para sair vestido de Pierrô sai de diabo ou de monstro

mesmo, ou ainda inventa outras variantes criativas de um personagem mascarado

deformado criado para divertir o público. Entre eles o mais popular e provocador são os

buchudos, em geral homens travestidos de mulher grávida, de ventre inchado. Este

personagem cria uma nova forma de se comunicar com as pessoas presentes. Uma forma

que só acontece por ocasião da festa que coloca o mundo de ponta cabeça. O buchudo cria

uma intimidade desmedida com a platéia, faz mímica, pega, abraça, gesticula grosserias

para as mulheres de forma constrangedora, enfim, vale-se de uma forma de expressão

típica da cultura cômica popular da Idade Média.

O Cabeçudo, com sua enorme cabeça pink, exagerando um único dos seus

elementos corporais, em detrimento dos outros, muda a situação no espaço daquele

dançarino. Dentro de uma cesta vedada o jovem sente muito calor, mal consegue enxergar

ou mexer os braços. Todo este incômodo vale para dar vida a este personagem grotesco,

elemento importante desta festa. Os cabeçudos andam em grupos, brigando entre si,

rodeados pela molecada; apesar da enorme cabeça não têm juízo. Esta é a fantasia dos

meninos pré-adolescentes. Eles vestem até a cintura uma enorme cabeça feita de papel

marche de onde pende um paletó com braços acolchoados, que lhes da impressão de terem

pernas ridiculamente pequenas.

A origem dos cabeçudos é vulgarmente associada às meias máscaras da

antigüidade, resquício dos negócios marítimos dos portugueses e de

expedições a Itália, grande centro comercial da Europa no fim da Idade

Média. Em Braga, Portugal, existe uma outra explicação para a sua origem:

da mesma forma que, na Catedral de Santiago de Compostela, os

personagens gigantes aludiam à grandeza dos Reis Católicos Fernando e

Isabel, os Cabeçudos poderiam lembrar os bobos que em todas as cortes da

época faziam parte de cada séqüito14.

14 Texto retirado da internet em página criada e mantida por Rui Faria, ligado à Universidade do Minho/ Portugal. Páginaatualizada em 17 de novembro de 1997.

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O menino e o cabeçudo, obra em aquarela sobre seda de 2002.

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Para montar o cabeçudo paraense, é feito um molde em tabatinga, uma espécie de

barro tirado do fundo do poço. Depois se constrói o cabeção no formato desejado. O

paneiro deve ter o tamanho suficiente para caber um adolescente até a cintura. Este paneiro

é revestido com jornal picado molhado, colado com goma de tapioca, tipo papel-machê,

que, finalmente é pintado com tinta óleo rosa. O menino imobilizado dentro da cesta

gigante enxerga através de um furo feito na testa da enorme cabeça. Como detalhes da

fisionomia, nota-se barba e bigode preto, ou cavanhaque, ou ainda o emblema de algum

time de futebol. Os detalhes do rosto são pintados com um pincel feito com pelo de cavalo.

Boi Ápis e outros bois.

Os cabeçudos da Amazônia são feitos por Seu Luiz Ferreira de Melo, o

“Cobózinho”. Ele tem 40 anos, também é pescador, tirador de caranguejo, e artesão:

constrói cabeçudos há oito anos. Mas do que mais se orgulha este caboclo é ser

proprietário da Zebra, “Boi” que, em dia de festa, sai de dentro de sua casa feita com barro

aparente e fica no quintal, aguardando a hora da festa começar, mostrando-se para as

crianças da vizinhança misturado às redes de pesca e às canoas que secam ao sol.

Cobózinho brinca com o boi desde os 12 anos. Ele conta que “primeiro brincava de

boi com a ‘fofóia’15 de coco, quando fiquei maiorzinho eu brincava com a fofóia de

Abacaba”, árvore de talo mais pesado. Só depois foi brincar em baixo de um boi de

verdade, que era uma girafa feita de vara, bem forte, toda amarrada e que pesava cerca de

vinte quilos. Hoje tem uma zebra feita de paneiro. Ele mesmo que fez, porque pegou

prática em construir adereços.

Mas quem faz mesmo todos os bois da cidade e das imediações não é ele, e sim Seu

Antonio Reis, ou simplesmente “Do Reis”. Vaidoso, aos 71 anos de idade sempre sai de

chapéu, relógio dourado, óculos Ray-ban marrom e camisa social. Ele é reconhecido como

o maior artesão de São Caetano. Um artista versátil, um mestre: Seu Do Reis é um

daqueles criadores multimídia da cultura popular. Ele trabalha como carpinteiro faz

letreiros, pinta anjos na igreja, restaura bois, pinta paisagens, toca violão e teclado. Ele me

recebeu na sala de sua casa de tijolo aparente. Uma casa simples, mas bem arrumada com

fotos na parede, imagem de santo na estante e dois sofás.

15 Fofóia: espécie de brinquedo feito com o talo do coqueiro que colocado sobre as costas da criança, lembra o dorso deum boi e permite que se treine a postura e os passos necessários para se brincar em baixo do boi-bumbá.

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No outro cômodo da casa fica guardado o teclado e o violão. Fora dela, na “sacada-

ateliê”, está a estrutura de varas de mais um boi em construção. Com uma bacia de água,

um banquinho e muita paciência as mãos do artista transformam sacos de cimento e papel

picado na primeira camada de pele que reveste o corpo do bicho.

Na descrição que fez de todos os bois que já construiu conta muito da história da

festa:

Muito boi eu já fiz. O primeiro foi o Estrela Dalva para Pereru da Fátima16. Depois

fiz o Boi Simpatia pra lá também. Depois fiz o Boi Resolvido, Boi Tinga, Búfalo,

Vaca Velha, vários tipos de veados, gazela, alce, dinossauro, elefante, leão, camelo,

bode montês, bisão, hipopótamo, zebra, girafa, antílope negro etc.

Acima Dos Reis e abaixo Cobozinho.

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Do Reis usa pau de Geniparana para construir o boi. Um pau que entorta quando

verde. Ele amarra e deixa secar a madeira, daí põe uma espuma fina, cobre com saco e

depois forra com cobertura de pelúcia ou veludo. A cabeça faz de isopor ou madeira. “Às

vezes uso cabeça de boi verdadeiro, natural, como o Tinga. O olho leva Durepóxi e

Araldite e a boca é de madeira. A gente faz porque gosta”.

Na obra Uma Viagem ao Amazonas, Sanches de Frias apresenta a hipótese

de uma origem africana para esta expressão artística que é o Boi-bumbá.

Considera que é uma encenação ritualizada equivalente ao culto do boi Ápis

no Egito antigo, com a inclusão ritual da imolação do boi. Sanches Frias

conjectura que esta espécie de veneração e culto popularizado pelo animal

tem origem africana, em conseqüência de ter sido inexplicavelmente

poupado por uma epidemia que dizimou todas as espécies de animais17.

Bakhtin, pensando na Idade Média representada por Rabelais, conclui que o riso

(...) que venceu o medo e o mistério do mundo e do poder, temerariamente

desvendou a verdade sobre o mundo e o poder. Ele se opôs à mentira, à

adulação e à hipocrisia. A verdade do riso degradou o poder, fez-se

acompanhar de injúrias e blasfêmias, e o bufão foi o seu porta voz.(...) Fazer

rirem-se do deus Ápis, na Idade Média, é transformar o animal sagrado em

um vulgar touro18. É dizer adeus a toda uma hierarquia.

O boi de máscaras de São Caetano em sua performance carnavalesca vai fazendo

evoluções meio empurrado pelo público ou chicoteado pelo vaqueiro. “Esses bichos são

próprios de brincar. O boi é forte, feito de vara, prego, todo amarrado... Na fugida dele é

gente correndo, se defenda quem estiver na frente, é animação garantida19”, explica

Cutaca.

Outro indício da presença de bois em procissão pode ser notado em algumas

cidades da França onde

havia um costume conservado até quase a época moderna, de durante o

carnaval (isto é, assim que se autorizava o abate dos animais e o consumo de

16 Pereru de Fátima, localidade vizinha a São Caetano.17 LOUREIRO, J. , Op. Cit., p. 300.18 BAKHTIN, M. Op. Cit., p. 80.19 Cutuca, em entrevista em julho de 2001.

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carne, assim como o ato carnal e as bodas interditas durante o jejum)

conduzir-se um boi gordo pelas ruas e praças da cidade numa procissão

solene ao som da viola, donde seu nome ‘boi violado’. Sua cabeça era

enfeitada de fitas multicores. Infelizmente ignoramos em que consistia

exatamente o jogo. Pensamos que deveria haver certamente alguns socos.

Pois esse boi violado destinava-se ao matadouro, era a vítima do carnaval.

Era o rei, o reprodutor e ao mesmo tempo a carne sacrificada...20

Vicente Salles, que interpreta o papel da cultura negra na formação da cultura

amazônica, reconhece a origem negra do Boi-bumbá:

Em meados do século passado, certos traços característicos deste folguedo,

na Amazônia, já se achavam estabilizados, ou quiçá cristalizados, tais como:

ser um folguedo de escravos, realizar-se na quadra junina, apoiar-se numa

vanguarda aguerrida, a malta de capoeiristas21.

Falando das festas do Brasil Colonial, Mary Del Priore diz que do imaginário

popular parecem sair também as pessoas vestidas de bichos. Representantes de “aves dos

continentes” eram comuns. Ela comenta que estas figuras eram

precedentes de um folclore muito antigo, retocado por novas fórmulas pela

ótica cortesã, somam-se máscaras grotescas com cabeças de animais ou de

pássaros que, ao mesmo tempo em que evocam as forças demoníacas,

lembravam também tradições totêmicas ou o simples gosto pela natureza(...)

A presença nas procissões de um grande boi manso a que o vulgo chama o

Boi Bento(...) levando ao pescoço um rico sendal de boa seda com algumas

fitas remete ao hábito pré-cristão de ter animais abençoados pelos

sacerdotes, sobretudo aqueles que participavam do labor camponês. Para a

cultura popular o boi continuava representando a transfiguração do que

podia ser inquietante em algo doce e tratável. Personificação da vítima

espiatória, o boi foi desvestido de sua significação pagânica ao figurar como

símbolo de São Marcos ou representar Jesus Cristo na Eucaristia como pão e

vítima para salvar o mundo22.

20 BAKHTIN, M. Op. Cit., p. 176.21 LOUREIRO, J., Op. Cit.,. p. 300.22 DEL PRIORE, Mary. Festas e Utopias no Brasil Colonial. São Paulo, Editora Brasiliense, 2000, p. 54.

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Estamos esperando a chegada dos brincantes para colocar o boi de São Caetano de

Odivelas na rua. Estou no quintal da casa de Cutaca e enquanto os músicos da banda do boi

interrompem o ensaio ele me deu mais um pedaço do quebra-cabeça desta festa singular.

Contou-me rindo: “o padre proibiu qualquer boi de sair em dia de procissão, porque

quando o boi sai, ninguém segue o santo”. Fora destas datas podemos dizer que a igreja

incentiva estas práticas, abrindo as portas do seu salão paroquial para os ensaios da

juventude local que está ligada a outro boi: o Faceiro.

Este boi reapareceu há quinze anos organizado por jovens do centro de São

Caetano. Eles tentam recuperar o título de primeiro boi da cidade para o Faceiro, que

apareceu em 1935 e foi abandonado por seus antepassados em 1947. Mistura-se, no espaço

paroquial, catequese com bichos juninos, carimbó e outras danças típicas com encenações

da paixão de Cristo. Mary Del Fiore em Danças e Utopias no Brasil Colonial, falando do

imaginário que constituía as festas coloniais, informa que no século XVI a dança “estava

presente como resquícios de catequese. A igreja permitia que índios e negros bailassem,

pois a dança era considerada uma maneira de glorificar a Deus”23. Hoje as manifestações

folclóricas e um time de futebol reúnem na igreja 120 inscritos na Associação Artística e

Cultural Arte da Terra. Destes, cerca de sessenta jovens são os mais ativos; são estes que

produzem as festas e bingos para levantar algum capital e organizar as apresentações do

boi Faceiro.

Mas o título de boi mais antigo da cidade ainda pertence ao boi Tinga de José

Chagas Zeferino, o “Zé do Lodi”, a quem nas festas juninas todas pessoas gostam de

cumprimentar. Ele é um respeitado senhor de cabelos e bigode branco bem aparados, de 74

anos de idade. Um pescador aposentado sério que reconhece seu papel naquela sociedade.

Tinga há 64 anos inaugurou esta tradição. Sua apresentação reúne, no Centro de São

Caetano de Odivelas, centenas de brincantes e quase todos os moradores da cidade.

Quando convidam um boi de São Caetano para ir se apresentar em Belém é sempre este o

boi que viaja. De certa forma o Tinga é o boi oficial. Mas isso pode se modificar, pelo

movimento de organização dos jovens do boi Faceiro que são apoiados pela igreja, ou pelo

fato da prefeitura local ter mandado construir um boi e agora estar disputando com os

artistas originais as apresentações e os cachês.

23 Idem ibidem , p. 55.

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Estes donos de boi, principalmente os de bairros periféricos, mais pobres, sofrem

com a desunião dos donos de boi, decorrente das disputas de espaço e do reconhecimento

público. As famílias destes produtores culturais muitas vezes ficam divididas, diante de

tantas dificuldades, sobre a validade de se pôr o boi na rua, e quando falece o dono original

do animal a viúva quase sempre acaba desistindo da tradição. Todos concordam que o

problema é a falta de apoio: as verbas são reduzidas, mal cobrem os custos com a troca do

couro do animal e muitas vezes nem são repassadas. Apesar disso a brincadeira, desde

1930, continua acontecendo.

Quem começou esta tradição foram dois pescadores: Laudelino, pai de Zé do Lódi

e Tito Ferreira. Eles decidiram “pôr o boi”24 e para isso compraram uma cabeça de verdade

no Marajó, no igarapé de Pocoroá. Raimundo Cunha compôs a primeira música. Francisco

Rocha fez o primeiro boi. E assim, acompanhados de uma pequena banda, começaram a

brincadeira. O capacete, as máscaras e o Pierrô foram surgindo, têm sua origem perdida

pela memória. Hoje existem cerca de 90 militantes brincantes que saem com o Tinga,

outros tantos saem com o Boi Garrote, com a Zebra, com o Dinossauro, mas eles não se

misturam, cada um tem seu território e podem ser identificados pelo tipo de flor que decora

seu capacete. Algumas vezes, quando um território é invadido, a brincadeira acaba em

confusão, podendo até terminar com um brincante-adversário cortando o couro do boi

invasor.

No entanto são os mesmos músicos que tocam para todos os bois. Em média, entre

metais e tambores, são doze instrumentistas. Cada um deles cobra do dono do boi R$ 20,00

por apresentação. Eles saem em procissão e passam por até 38 casas, e em cada casa tocam

duas marchas e dois sambas. Na semana que antecede a folia organiza-se o roteiro do

evento. É quando acontece o “cartiá”25.

À noite começa a festa

Às nove horas da noite as pessoas já estão deitadas em suas redes, dormindo ou

vendo o Fantástico na Tv. Há dois dias estou andando de bicicleta para conhecer e

entrevistar donos de bois, aderecistas, artesãos, bonequeiros que são ao mesmo tempo

pescadores, marceneiros, catadores de caranguejo, letristas. Pessoas simples com famílias

24 Pôr o boi: ato de produzir, organizar e apresentar o boi-bumbá nas festas juninas.25 Cartiá: ato de sair oferecendo a visita do boi pelas casas da região, com objetivo de dividir os custos dos músicos.Quem pede o boi colabora com três ou cinco reais. A palavra deriva do costume antigo de fazer cartas para oferecer o boi,hoje substituído pelo convite oral.

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numerosas que dedicam boa parte do seu tempo fazendo cultura; até esqueci que o boi

vinha em casa. Então um sino começa a tocar insistentemente. Cristina, minha anfitriã, me

pergunta se eu pedi o Boi-bumbá. Respondi que sim, à tarde, quando Cutaca tinha feito o

“cartiá”, falei que queria o Boi.

Levantei-me e abri a janela de madeira. As cores da festa saltaram aos meus olhos:

Capacetes brilhantes feitos de lantejoulas, flores de plástico e fitas variadas contrastavam

com o escuro da floresta. O cetim verde, amarelo, vermelho e preto dos trajes coloridos em

movimento hipnotizava. No passado, no Brasil colonial, tecidos acetinados, brilhos e

vidrilhos tinham finalidades mágicas, funcionando como amuletos.26 Hoje a composição

visual da festa cria um espaço encantado no território dos festeiros, anunciando que é

“tempo de máscaras, tempo de identidades encobertas, falsificadas, numa constelação de

utopias”27. A festa une a população que se sente dona de seu futuro. Criam-se ilhas

temporais que transformam o pescador em senhor de si, homem livre da pobreza, da

massificação cultural, das diferenças sociais, dos preconceitos.

Os músicos, encostados na parede da casa, tocam animados os metais (trompetes,

trombones, saxofones etc). Eles vestem camisetas e chapéus de plástico amarelo com a

bandeira do Brasil estampada. Com eles acontece toda a síntese da apropriação do nacional

pelo local. Os três saxofones rentes à parede de bloco refletem, na noite escura, sobre a rua

de terra, o tom dourado e prateado do instrumento bem polido. Na paisagem árvores,

bananeiras, casas de pau a pique, às vezes aparecem em baixo do poste aceso cercado de

escuridão por todos os lados.

Esse boi de quatro “pernas”, que tem o tamanho de um boi natural, exige grande

vigor dos dois jovens que o carregam nas costas. São as “pernas” do boi, e correspondem à

denominação de “tripas”, usada entre os brincantes dos bois tradicionais”28. Um intenso

preparo físico, que se inicia logo na primeira infância, molda os músculos do corpo destes

jovens que dançam em baixo do boi ou dentro dos Cabeçudos.

Seguindo o cordão junino, dois cabeçudos, cor de rosa brilhante, brincam de brigar,

dando barrigadas entre si em uma coreografia muita bem ensaiada. Dezenas de crianças se

divertem, acompanhando as performances dos brincantes. Os donos de cabeçudo tiram a

fantasia e comentam algo rindo enquanto são observados por todas crianças como pop

26 DEL PRIORE, M. , Op. Cit., p. 32.27 Idem ibidem , p. 41.28 LOUREIRO, J. Op. Cit., p, 302.

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stars. Enquanto isso, um vaqueiro, simulacro de cavaleiro montado, toca o boi que investe

contra a platéia,

composta de espectadores fieis, entusiasmados, cheios de refinamento na

maneira de julgar, sabendo distinguir perfeitamente o que é bom. Olhando

com espírito crítico as evoluções coreográficas, em geral bastante

complicadas mas sempre de grande beleza, quer sejam improvisadas, quer

sejam – o que é mais comum – tradicionais29.

Desenho coletado entre brincantes do Boi Garrote.

A música dá forças para Joelson e Fabrício mostrarem sob o peso e o calor do boi

passos bem ensaiados. O Garrote pula, dança e as crianças olham mais para os pés do boi

que para seu corpo. Conhecem os dançarinos-heróis do bairro, assistem a seus ensaios que

hoje, com brilhantismo de seus animados passos, dão vida ao animal de quatro patas .

29 MEYER, Marlyse. Pirineus, Caiçaras. Da Comédia dell’ arte ao bumba-meu-boi. Campinas/SP, Editora da Unicamp,1991, p. 60.

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Quando os dançarinos se cansam, acabam deixando a cena suados e felizes e, ao

saírem de baixo do corpo do boi, se abraçam, rindo, comentando uma corrida mais

violenta, e dão lugar para que outros dois jovens carreguem o boi até a próxima casa onde

o grupo irá apresentar uma nova performance. Na próxima casa a folia irá recomeçar. Mais

uma vez o vaqueiro vencerá o boi e o indomado vencerá as forças da natureza e restaura a

paz. Pierrôs e diabos brincarão em harmonia. O riso abafa os medos dos monstros da

floresta como a mais de quinhentos anos vem acontecendo quando os “monstros e gigantes

que significavam as forças sobrenaturais eram neutralizados pela igreja e pela técnica da

festa (...)” Onde a presença deste imaginário, destes “demônios familiares”, que já se

manifestavam nas festas do Brasil colônia , tinham sua função na cultura popular. Neste

momento o homem brutal, o monstro ou animal devastador, eram enfim domesticados,

tranqüilizando o homem comum.

O riso típico da festa acompanha “o alívio e também a revanche dos homens, agora

“urbanos”, contra as forças naturais e selvagens do campo”30 e da vida, ao mesmo tempo

que tira do anonimato pescadores, que na época esquecem todas as dificuldades financeiras

porque criam um novo espaço para sua existência. Um espaço no qual eles são os

criadores, Semi-Deuses que fazem aparecer e desaparecer estas criaturas da festa. A cada

novo ciclo junino confirmam seu reinado e vestem-se com a capa protetora da tradição,

sentindo-se cada vez mais donos da sua terra. Criar territórios encantados parece permitir a

esses reis da floresta que sabotem a hierarquia feudal da Amazônia contemporânea sem

que sejam jogados na fogueira.

30 DEL PRIORE, M. Op. Cit., p. 54.

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Na próxima narrativa reúno, as experiências vividas durante as viagens para Joaba/Cametá

ocorridas em julho de 2003 e de 2004 .

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Capítulo IICOMÉDIAS FLUTUANTES

Joaba, Cametá/PA: - 02°14’ 40”, 49°29’45”

Verão de 2003/2004

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Capítulo II

Comédias Flutuantes

Joaba, Cametá /PA:

Julho de 2004

“Os caminhos da minha terra são líquidos e correm”

Lílian Silvestre Chaves1

“Teia de redes”

Na noite escura com poucas estrelas a nau de passageiros avança solitária. Toda

iluminada é a única luz na noite. No resto da paisagem as trevas da floresta se misturam

com as do rio.

Dentro do barco centenas de redes preenchem todo o espaço de passageiros. Estão

“armadas em tudo que as podia sustentar, em todas as direções, umas por cima das outras,

atropelando-se, chocando-se, empurrando-se, oscilando ao sabor das guinadas do navio”.2

As redes são cheias de cor: vermelhas, amareladas, verdes, estampadas nos mais variados

motivos: xadrez, camuflado, rendado, florido... Instaladas por uma noite no barco

compõem uma trama multicolorida de panos e estampas que embalam em um único espaço

muitas historias. “As noites são teias de redes”3 nas naves que carregam pessoas em

deslocamento pela Amazônia. De minha rede imagino um quadro formado com estas

texturas, cores e estampas misturadas a tantos rostos. Estou meio tensa em minha primeira

viagem em um barco deste tipo.

Familiarizado com longas distâncias o homem amazônico faz do barco sua casa.

Mantém igual o ritual de todos os dias, quando se prepara para dormir. A toalha pendurada

no teto do barco indicia a familiaridade da jovem senhora ao percurso. Ela viaja com sua

família, toma banho e veste pijamas antes de dormir. Só depois aconchega suas duas

crianças nas redes e se deita também. Seu corpo adota uma posição curvada na rede e

preguiçosamente ela descansa oscilando ao sabor do embalo do navio em movimento. As

1Estrofe retirada do livro Poesia do Grão Pará organizado por SAVARY, Olga 2001. Rio de Janeiro Graphia Editorial.P. 284 .2 CASCUDO, Luis da Câmara. 2003. Rede de Dormir, uma pesquisa etnográfica. São Paulo. Editora Global. P 1973 Idem ibidem.

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bolsas, penduradas no teto, ficam sob discreta vigilância. A viagem acontece sempre à

noite quando o calor alivia. De Belém a Cametá demora cerca de dez horas.

Estou deitada gravando descrições da viagem em meu pequeno gravador. O vizinho

de minha rede é de Cametá. Ele foi a Belém fazer um tratamento de saúde. Seu nome é

Benedito e ele tem um bar. É um homem franzino que ficou o tempo todo deitado em uma

rede comum, de algodão xadrez, destas compradas em feiras, com varandas4 curtas. Do

outro lado, uma família tipo classe média viaja em grupo. Estão acomodados em outras

seis redes. As jovens irmãs, de salto-alto e calça colada colorida, parece que fizeram

escova no cabelo. A matriarca da família mostra seu poderio deitada em uma rede branca

com enormes varandas, quase arrastando no solo, que às vezes lhe serviam de coberta. Sob

ela estão muitos pacotes com eletrodomésticos comprados em um grande magazine de

Belém. A rede, presença constante na história da aristocracia rural do norte e nordeste, é

“tanto quanto o cavalo senhorial que só o amo montava, um signo heráldico”5.O pai

demonstra estar feliz; o corpo, familiarizado com o uso da rede, indica que talvez na

intimidade ele preferisse a rede à rigidez da cama.

A rede colabora na movimentação dos sonhos. O leito obriga-nos a tomar

seu costume, ajeitando-nos nele, procurando o repouso numa sucessão de

posições. A rede toma nosso feitio, contamina-se com nossos hábitos,

repete, dócil e macia, a forma de nosso corpo. A cama é parada, definitiva.

A rede é acolhedora, compreensiva, coleante, acompanhando tépida e

brandamente, todos os caprichos da nossa fadiga e as novidades imprevistas

de nosso sossego. Desloca-se incessantemente renovada à solicitação física

do cansaço. Entre ela e a cama há a distância da solidariedade à resignação6.

Pelo rio chegam os passageiros clandestinos.

A maioria das pessoas entra no barco oculta do olhar do cobrador. Armam suas

redes e se acomodam. Mantêm-se deitadas, quietas, entregues ao balanço da maré,

assistindo ao movimento de passageiros que o tempo todo estão chegando, como quem

assiste à uma novela.

4 Varandas: nome regional de bordados, dos próprios fios das redes ou colocados, que pendendo das bordas livres dasredes enfeitam-na.5 Idem ibidem, P. 31.6 Idem ibidem, P. 15.

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O som constante do motor em movimento mistura-se ao som das vozes das pessoas

que se despedem, dão as últimas recomendações e acenam... Viajar pela Amazônia requer

paciência. Nos poucos horários que saem os transportes da capital nunca há sincronismo

nas conexões. Você viaja dez horas, chega no interior de madrugada e fica na dependência

de outro barco por horas a fio. Então se descobre que o horário dos transportes é relativo

porque às vezes uma carga ou um passageiro importante atrasa e o barqueiro tem que

esperá-lo. Com isso o tempo do deslocamento às vezes é duplicado pelas diferentes

modalidades de espera: atrasos, horários das marés, a incompatibilidade de horários das

conexões, ou até, de repente, uma falha no motor que obrigue o barco a simplesmente

parar na margem para reparos.

O homem da Amazônia, o caboclo, vivendo fora do contexto das grandes

cidades – Belém e Manaus especialmente – não se encontra completamente

integrado à moderna sociedade de consumo... Os homens estabelecem, em

plenitude, sua relação com o tempo. Sob a liberdade que o devaneio

permite, o espaço é quase como que absorvido pelo tempo, assumindo uma

leveza que compensa as duras fainas e jornadas na floresta ou nos rios7.

Ao lado do trapiche de embarque, em um bar, os homens jogam cartas sobre uma

mesa forrada com uma toalha verde enquanto esperam a hora de partir. O barulho do

celular tocando mistura-se ao barulho de fundo: ruído da água, motor do barco, vozes, o

som de madeira raspando. Enquanto aguardam a partida duas meninas de pele morena e

cabelo bem negro se despedem longamente de alguém do barco, observadas pelo guarda

que está na porta de entrada e saída. Ele controla quem embarca pelo porto, mas ignora os

passageiros clandestinos que chegam pelo rio. Quem entra no Leão de Breves8 saindo de

pequenos barcos que aceitam fazer frete entre as ilhas e vilas próximas, paga depois, à

noite quando o cobrador passa conferindo de rede em rede quem tem o bilhete.

Sempre é uma aventura subir e descer de barcos na Amazônia: quando o acesso não

acontece através de tábuas de mais de três metros que substituem as pontes de embarque,

tem-se que superar a diferença da altura entre o navio e as canoas, que obrigam o

passageiro a fazer uma escalada, ou usar outros barco como ponte. Tudo muito fácil para

os ágeis ribeirinhos que chegam o tempo todo e sobem pelas paredes externas do barco

7 Loureiro, João de Jesus Paes. 1991. Cultura amazônica – uma poética do imaginário. Belém, CEJUP, P. 67.8 Leão de Breves: barco de passageiros que navega pelo rio Tocantins fazendo a rota Belém-Cameta, ao preço de 15reais.

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para logo atarem suas redes. Onde parece não ter mais como pendurar uma nova rede, as

mãos experientes dos viajantes retardatários descobrem um espaço escondido e amarram

mais um punho9. Uns irão dormir rente ao teto, outros, rente ao chão.

A senhora e a neta viajam levando uma mala, uma sacola de nylon azul e um

“paneiro”10 de médio-porte que imobiliza uma galinha escura com suas talas de miriti. A

ave teima em emitir alguns cacarejos. Uma voz de moça recomenda ao vizinho: “dê uma

olhada aí pra mim...” E a pessoa que estava deitada incógnita, entre as muitas redes que me

cercavam, se levanta e surge do anonimato. “Ora, a voz é querer dizer e vontade de

existência, lugar de uma ausência que nela se transforma em presença”11. A moça resolveu

dar uma volta. É jovem, tem cerca de dezesseis anos e está viajando com seus pais que já

estão dormindo. Mas, ela está sem sono, entra no bar e se integra às pessoas que bebem

cerveja e escutam “brega”12 alto.

A viagem transforma-se em uma balada.

Em uma mesa cinco jovens com corpos malhados bebem e conversam meio aos

berros. Tiram sarro uns do outros, chamam atenção sobre si. São lutadores de boxe que

saíram de Belém para competir e vencer em um torneio em Cametá. Enquanto comentam

suas lutas, juntam moedas sobre a mesa para comprar mais uma cerveja. A menina insone

passa pelos atletas, e senta no último lugar disponível no banco coletivo, chamando a

atenção dos jovens. A “azaração corre solta” no bar. Aos poucos se formam novos casais

que ficam juntos durante toda a viagem. Alguns, pelos cantos do barco, se beijam. Outros

desaparecem para “ficar” em uma ou outra rede desocupada. Os mais tímidos vão bebendo

mais uma cerveja e conversando, olhando a noite escura, sentindo o balanço do rio.

As coisas fervem no bar até três ou quatro horas da manhã, então ele se transforma

em dormitório. Os últimos clientes dormem agora no único lugar sem redes que restou no

barco. Quem esperou até esta hora estica sua rede recompensado. Pelo bar flutuante do

9 Punho da rede: as extremidades não tecidas de uma rede que se prende a um “esse” ou a corda.10 Paneiro: espécie de cesto feito de talas de palmeira com ou sem asas, muito utilizado na Amazônia para o transporte defrutas, legumes, aves etc. Há paneiros de vários tamanhos sendo que os menores são usados como vasos para o plantio demudas de pequeno e médio porte. Paneiros em tamanho especial são também usados como base para se moldarcabeçudos e bois.11ZUNTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. São Paulo. Ed. HICITEC/EDUC, 1997, P.1112 Brega: É um ritmo paraense, muito popular, e, por extensão, um folguedo que se dança colado, de par, de forma muitosensual. Tem variações como brega tradicional, tecno-brega; zuke love (ritmo caribenho). Tem sua origem no Bangüê,pequeno conjunto musical e, por extensão, de dança, que executa uma espécie de samba.

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barco, que se desloca pelo rio de águas amarelas, beirando a floresta, passam muitas vidas.

As pessoas viajam felizes, por algumas horas apenas de passagem, em um momento de

ruptura com a rotina. Chegar à capital muitas vezes é uma aventura rara na vida de alguns

ribeirinhos. Porque viajar sai caro.

Enquanto alguns viajantes dormem, quem está na noite se diverte. A paisagem

oculta pelas trevas surge às vezes iluminada por alguns segundos quando o farol do barco

procura uma curva de rio. Sobre as águas, aningais13 formando ilhas, praias de areia clara,

casas construídas sobre palafitas, pequenas igrejas de madeira. No céu, no skyline verde,

encaixado às copas das árvores, folhas de palmeiras. Rente à praia, bananeiras – são sinais

que ali há mais um povoado escondido na floresta.

Na única parede do barco ficam os coletes salva-vidas, certamente insuficientes

para todos passageiros. Ficam ao lado da inscrição “Boa Viagem”, pintada com tinta a óleo

vermelha, na parede branca do barco. A frase encantada parece uma benção, ecoa nos

nossos olhos e mais uma vez tudo corre bem. O Leão de Breves viaja a noite toda pelo rio

Tocantins apesar de sobrecarregado.

Burburinho no porto.

Muita gente já havia desatado sua rede e desembarcado quando acordei. Chegamos

na cidade de Cametá ainda de noite. Quatro estivadores trabalham no piso inferior do Leão

de Breves. Eles desembarcam fardos com arroz em pacotes de um quilo. Chegam muitos

barcos.

Canoas, igarités14, montarias15 e barcas foram, durante muito tempo, o

principal meio de locomoção tanto para os homens amazônicos, como para aqueles

que com o objetivo de desbravar e conquistar percorreram a região em várias

direções16.

13Aninga: palavra de origem tupi. Planta que brota vigorosamente dos pântanos, lagoas, águas represadas. Nomecientífico: caladium arborescens. Possui troncos cônicos, coroado por um buquê de largas folhas alinhadosverticalmente . As flores e os frutos servem para isca na pescaria, a raiz em pó é empregado como diurético. As folhassão usadas no tratamento de úlceras e as fibras do seu caule são têxteis (cordas,cabos,papel). SALLES, Vicente.Vocabulário Crioulo. Contribuição do negro ao falar regional amazônico. Belém, 2003, IAP, P. 55.14 Igarités: embarcações cavadas em tronco de árvores, agilíssimas e curvas, como se formassem com aquele que elanavega, a híbrida figura mítica de homem peixe. Pp. 179/180. Em João de Jesus Paes Loureiro, Obras Reunidas: CulturaAmazônica Uma Poética do Imaginário.São Paulo, Ed. Escrituras, 2001.15 Montaria: pequenas embarcação típicas da Amazônia, com bancos que medem em geral de 2,50m de comprimento por0,50cm de largura... OLIVEIRA, Odaisa. Vocabulário terminológico Cultural da Amazônia Paraense. Belém, Ed.UFPA,P. 2816XIMENES, Tereza. A navegação fluvial no desenvolvimento da Amazônia. Belém, Universitária/UFPA, 1992, P. 3.

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O porto, apesar do escuro, está em ebulição. Dezenas de paneiros ocupam quase

todo o chão. Um homem careca, só de bermudas jeans ilumina com uma lanterna o paneiro

cheio de açaí, mostrando a qualidade e o tamanho da fruta a uns compradores. Negócio

feito o pagamento acontece sob o foco da lanterna. Alguns carregadores saem do cais

levando na cabeça paneiros com açaí, enquanto outros descarregam fardos de sabão em

barra, vodka, óleo, farinha de trigo. Os homens vão jogando a carga de mão em mão até

depositá-las em uma pilha de quase dois metros de altura.

Crianças correm pelo barco agora vazio de redes. O que lidera a brincadeira é

fanhoso. Ele usa calça e blusa muito maiores que suas medidas. Eles só param de correr e

gritar, brincando de pega-pega, quando começam a ser descarregados do porão peixes

congelados e porcos vivos amarrados pelos pés. O som do porto mistura-se ao som de

guinchos dos animais e dos motores que retiram a água acumulada pelo barco ao longo da

viagem. O barulho da madeira de um barco se encostando a outro é rompido pelo ruído de

passos de alguém que para desembarcar pulou do Leão de Breves para o teto de metal de

um barco bem menor.

A luz do dia vai iluminando mais detalhes da cidade de Cametá. Na avenida Beira-

rio aparecem os casarões cheios de janelas coloridas e que formam uma espécie de

muralha, escondendo a floresta. Destacam-se entre eles a Câmara de Vereadores e a praça

onde fica o coreto, a Igreja de São João Batista e o obelisco branco que em todas cidades e

vilas marca uma data importante. Na praça quase deserta está a igreja branca construída em

1745 pelos freis capucinos. Lá fica um dos orgulhos da cidade: o altar feito pelo mestre

Geremias Rodrigues e a Imagem de Nossa Senhora das Dores esculpida em madeira por

seu filho de criação, Mestre Penaforte, falecido em 2001, um artista multimídia famoso no

meio de restauração do Pará e ilustre na cidade de Cametá.

O emadeiramento sob o porto da cidade esconde muita sujeira, mas torna bela a

paisagem. Na fachada de Cametá alguns comércios estão sobre palafitas. Pelas ruas planas

da cidade já circulam algumas pessoas. Cinco moto-taxis estão parados em frente ao

trailer-bar. Os motoristas das motos são jovens de pele morena que tomam canjica, café e

tapioca enquanto esperam os fregueses. As bicicletas começam a tomar conta do cenário.

Os produtos que saem do porto vão transformando as ruas em um enorme mercado ao ar

livre. “Conectivo entre o homem e a vida amazônica, as embarcações, especialmente no

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Pará, representam admiravelmente a circulação integradora de bens e serviços adequados a

uma terra entrecortada de rios”17.

O porto fica forrado de cascos18, montarias vindas das ilhas e de regatões19 que

circulam pela beira do rio fazendo o comércio varejista. Os homens descarregam mais

sacos de farinha, animais vivos e mais e mais paneiros de açaí.

Paisagem da vila de Joaba vista do rio Tocantins

Ignorando o movimento local, o Leão de Breves parte rumo ao depósito da

cervejaria Antártica. Lá uma embarcação ancorada, da distribuidora de Tocantins,

descarrega por mais de três horas centenas de caixas de cerveja. Essa rotina que reúne

múltiplos barcos se repete todos os dias na cidade, mas duas vezes por semana o

17 LOUREIRO, João de Jesus Paes. Op. Cit., P. 17918 Casco: canoa pequena, feita de uma só peça de tronco de árvore cavado, sem banco, para transportar duas ou trêspessoas, sendo que o tripulante, ou canoeiro, senta na proa para consuzi-lá. “Ele pegou o casco e foi embora”.OLIVEIRA, Odaísa. Op. Cit., P. 28.19 Regatões: pequenos navios do comércio varejista, navegando e negociando ao longo dos rios e cidades ribeirinhascomo supermercados flutuantes. Neles a semelhança das casas de aviamento, existiam e existem a moradia do patrão edos empregados, hierarquicamente distribuídos tornando essas embarcações uma espécie de microcosmo da vidaamazônica, tanto na distinção de categorias e classes, como nas atividades de trocas simbólicas. LOUREIRO, João deJesus Paes. Op. Cit., P. 179/180.

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movimento se intensifica, quando navegam pelo rio os grandes navios de carga e

passageiros, que abastecem e agitam a vida dos ribeirinhos de Cametá, município distante

apenas 167 quilômetros em linha reta de Belém. A cidade tem pouco mais de cem mil

habitantes, grande parte dos quais não vive no perímetro urbano, mas em vilas e ilhas ao

longo das margens do rio Tocantins.

Quilombos20 do nordeste Paraense

Em Cametá existem oito comunidades quilombolas já identificadas e reconhecidas

oficialmente, fora outras tantas em estudo para ser ou não reconhecida sua autenticidade.

Segundo Vicente Salles21, todas as comunidades que estão em cima do rio Tocantins são

originárias do quilombo do Itapocu, que surgiu em 1710 como uma das primeiras regiões a

receber negros na Amazônia. Quando este quilombo se acabou foi dividido em oito

comunidades. Foi assim que nasceu a Vila de Joaba, hoje com cerca de 20 mil habitantes

considerada como o mais importante pólo cultural da região.

Estamos viajando agora em um pequeno barco de passageiros. No interior dele,

quinze pessoas dividem o espaço com meio boi pendurado no teto, e com uma bomba de

água, que durante todo o percurso teima em falhar, quase afundando o barco que toda hora

foge do meio do rio para as margens.

Um quinto da população do distrito de Joaba vive na vila, o resto está espalhado

entre as ilhas e o interior. A luz chegou lá há cinco anos e o telefone há três. O sistema de

água é puxado através de uma bomba elétrica para uma caixa central que distribuí água

para todos os habitantes. Estes são brancos em sua maioria, porque os negros só aparecem

na vila aos domingos, dia da feira.

O carro de boi através dos tempos

Os colonos, negros em sua maioria, vêm do interior até a vila em carros de boi para

vender seus gêneros, farinha principalmente, e comprar outras mercadorias. Então, vão

embora novamente para os sítios, para as colônias, com seus carros de boi e suas bicicletas.

Dificilmente se encontra um colono que não tenha duas, três bicicletas e dois ou três bois,

20 Quilombos: Povoações de ex escravos negros foragidos; coletivo de mucambo, que é a habitação propriamente dita.21 SALLES ,Vicente. Quilombos da Amazônia,um enfoque interdiscipolinar. 1999.

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porque o boi ajuda em todos os seus trabalhos, substituindo a força de trabalho de mais dez

homens no roçado.

“O carro tirado por bovinos, remonta, no velho mundo, ao período

neolítico, ou idade da pedra polida, contemporâneo dos primórdios da agricultura e

pastorícia... Na Roma antiga a presença do carro como veículo de transporte e

arma de guerra é assinalada desde suas origens...

Carro de boi , Vila de Joaba

Com os anos, as formas e espécies de veículos se multiplicaram, não

só por natural desenvolvimento, mas também pelo contato de outros povos e

civilizações que foram sendo subjugados ao inexorável domínio romano...

Ao Brasil trouxeram-no os portugueses em suas primeiras tentativas de

colonização”, foi usado na construção das vilas e cidades, transportando

pedras, sinos, colunas, madeiras, mercadorias de ultramar e é claro “pessoas

e famílias em seus passeios, em seus divertimentos, em suas visitas

recíprocas, em suas necessidades de contato e comércio”22.

22 Idem ibidem, P.175

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A casa de farinha e roçado cultural da mandioca

A cidade de Joaba tem no máximo dez quadras, o resto são sítios em meio a

florestas com árvores abundantes no alto de onde pode-se observar muitos ninhos de

pássaros e ouvir o cantar de Japiís, Rouxinóis e Bem-te-vis. Neste cenário silencioso,

próximo aos igarapés, ficam as casas de farinha: um dos gêneros mais importantes no ciclo

econômico da cidade. Geralmente, as casas de forno, como também são chamadas as casas

de farinha, são construções muito simples que ficam próximas à casa do dono do sítio. O

conjunto de equipamentos para a fabricação da farinha – o tacho de assar a farinha, o forno

e a mesa de socar a mandioca – ficam sobre o chão de terra batida, em uma construção

tosca protegida por uma forração vegetal.

O catitu23, o tipiti24 ficam do lado de fora da casa, que sempre fica perto de um

igarapé. Fazer farinha de mandioca dá muito trabalho: são quatro ou cinco dias

dependendo da quantidade da mandioca. Mas muito antes é preciso plantar, fazer o roçado.

A época ideal para o plantio da raiz é o verão, nos meses de janeiro, fevereiro e

março. Nesta época de chuvas abundantes é marcado o convidado25. No dia combinado,

chega ao sítio uma porção de gente. Uns vão cortar a maniva, outros levam nas costas um

paneiro, juntam a raiz cortada e colocam-na na cesta para começar a plantar.

A produção é feita em série: tem quem cava a terra, quem põe a maniva na cova, e

durante todo este trabalho uns ficam cantando, outros gritando, ou caçoando de alguém. É

muita falação e gargalhada, e o trabalho vira uma festa. Os homens saem na frente

plantando e desafiando as mulheres em uma competição que termina com a roça plantada e

com o samba de cacete26.

23 Catitú: máquina de ralar mandioca feita com roda de uma bicicleta que funciona com a força das pedaladas dadas noalto da estrutura de madeira. A mandioca desce como uma massa através de canaletas .24 Tipití: significa no Tupi: tipi – espremer; ti líquido. É um instrumento tecido com talas de arumã de forma tubular comas extremidades afuniladas que terminam em alças. Serve para retirar a água da massa da mandioca ralada. Revista NossoPará, número 07, p. 18, Editora Ver, Dez. 2000.25Fazer o convidado: organizar uma reunião de agricultores da comunidade para plantar coletivamente um roçado Alémdo almoço organizam ao fim do trabalho um samba de cacete, bangüê ou outra manifestação cultural26 Samba de cacete: “variação coreográfica do mineiro-pau, dança dos paliteiros, como em Portugal, em que osdançarinos simulam luta de cacete. Acontece em Cametá, no baixo Tocantins, principalmente nas comunidadesremanescentes de quilombos .” O samba de cacete só passou a ser tocado na cidade de Cametá na década de 50. Atéentão era a dança e a festa dos negros, onde brancos não podiam entrar. SALLES,Vicente. VocabulárioCrioulo.Contribuição do negro ao falar regional amazônico.Belém. IAP, 2003, p.231.

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Benedita Cardoso Gomes, 75 anos, é agricultora e parteira em Joaba. Ela gosta do

samba, tem um sobrinho que é profissional pra bater tambor e todas as suas oito filhas

sabem dançar. Mas ela é uma exceção. Grande parte dos agricultores hesitam em investir

em grandes plantações; conseqüentemente a roda de samba, a cada ano que passa, está

mais rara de acontecer.

Dona Benedita

Este ano, quando eu plantei a minha roça, que eu estou capinando agora, eu fiz um

samba durante o dia, quando o pessoal chegou do roçado. Depois do almoço, eles

viraram no samba até cinco horas da tarde. O batedor de tambor, sabendo bater o

tambor, é muito bonito. O bangüê, quando o chefe deles esta cantando bem

explicado, a mudinha do bangüê é muito bonita de se dançar. Ano passado nós

também dancemos, na casa de Dona Jandira. Assim trabalhando cooperativamente,

Dona Jandira e Dona Benedita conseguem plantar seus roçados.

Quando chega julho a plantação é capinada e a raiz vem da roça em carro de boi

para a casa de farinha. O carro vem de longe, trazendo a mandioca de outro sítio. O

agricultor, usando um chapéu de palha para se proteger do sol, demonstra cansaço. O eixo

do carro de boi se inclina para um lado e para o outro. A roda girando produz um ruído

constante de madeira raspando. O carro parece gemer pelos caminhos esburacados.

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Catitu, obra em aquarela sobre seda de 2004.

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Marquei com Dona Benedita para fazer um ensaio fotográfico na época do roçado.

Assim a pesquisa de campo vai sendo construída ano após ano com novas descobertas. As

imagens do carro de boi, da casa de farinha, inauguraram uma nova série de quadros sobre

estes ofícios rurais em suas diferentes etapas.

Primeiro, quando a mandioca ficou depositada na água do igarapé de molho pra

amolecer, o ir e vir de pessoas carregando mandioca nas costas dentro de um paneiro que

serve como uma mochila produziu uma cena. No dia seguinte, quando a raiz foi descascada

na beira do tanque para ser ralada a mão, na tábua, ou passada no catitu, produzi outra série

de imagens de alta esteticidade. A roda da bicicleta do catitu colocada a dois metros do

chão me lembrou a roda de Duchamp. O objeto tradicional, quase uma instalação pronta,

um ready-made. O trabalho organizado em equipe parece uma performance que usa

adereços retirados da natureza: um senhor soca a mandioca, na tábua de madeira, outro

carrega as mandiocas dentro de um talo de palmeira, duas crianças sentadas dentro do rio

descascam cinco quilos da raiz. Somente depois de socada a massa branca vai pro tipiti

ser espremida por cerca de trinta minutos, pra se retirar toda água e finalmente será torrada

no forno de barro.

Quem não tem condições de ter sua casa-de-farinha, paga pelo processamento da

mandioca ao dono do sítio. “Em geral se paga uma conga27 de 4 litros por lata de 20 litros,

isto é 20% pelo beneficiamento do produto”28. Depois do trabalho concluído eles voltam

pela estrada de terra, avançando aos trancos e barrancos, desviando dos trechos alagados.

Um ônibus intermunicipal cruza com eles se arriscando pelas pontes improvisadas.

Desviando da lama, dois meninos seguem de bicicletas à frente dos carros de boi .

Somente no domingo os agricultores irão para Joaba, comercializar sua farinha. Um

senhor de cabelos brancos levanta com esforço a canga29 de madeira e a coloca sobre o

pescoço de um enorme boi marrom. Ele pretende conduzir no carro de boi sua mandioca

para o porto. Um outro carro passa com a farinha. As crianças correm atrás dele tentando

pegar carona. Durante toda manhã, enquanto estiver acontecendo a feira, a vila ficará

cheia de bois pastando pelas suas ruas gramadas.

27 conga: remuneração que o lavrador paga ao dono da casa-de-farinha pelo processamento da mandioca.28 SALLES,Vicente. Op, Cit. ,P.12629 canga: trave de madeira adaptada ao pescoço dos animais e usada nos carros de boi. SALLES,Vicente. Op. Cit.,P.126

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Em Joaba não há empregos, nem carros. Trabalho fora da roça, só quem é

professor, funcionário público ou quem tem algum bar ou vendinha. A maioria dos

moradores da comunidade vivem no interior, pois a pesca abundante no passado

desapareceu desde 1984 com a chegada da Hidroelétrica de Tucuruí. O rio e todo

ecossistema já não são os mesmos depois da construção da barragem – um monumento de

72 metros de altura que se estende por 1190 metros para compor a maior obra de energia

elétrica do Brasil: 8 milhões de metros cúbicos de concreto.

Antigamente o rio era movimentado, a praia ficava cheia e todo mundo descia até a

água a toda hora. É difícil acreditar que hoje as águas deste rio tão belo estão poluídas.

Hoje o rio só fica movimentado quando falta água em Joaba. Então o pessoal da vila passa

pela praça descendo para lavar roupa no rio; umas mulheres sobem com lata d’água na

cabeça, outras descem carregando baldes, crianças vão se banhar por lá, enfim, todo

mundo volta à beira, o dia todo.

Depois de Tucuruí as pessoas geralmente evitam banhar-se no Tocantins porque a

água provoca irritação e coceira na pele. O pescador perdeu seu ofício. Desapareceu o

Tucunaré graúdo, o Mapará, o Cunhatã, mas, a energia elétrica ainda custou 14 anos para

chegar em Joaba e até hoje ninguém recebeu royalties pelo uso destes recursos naturais –

uma coisa que quase todos os ribeirinhos do baixo Tocantins comentam sentados na frente

de suas casas de madeira, conformados sob a sombra das poucas mangueiras que restaram

por lá, depois que um prefeito resolveu, para limpar a cidade, cortar também todas as

árvores que “sujavam” as ruas com folhas e mangas em abundância.

Sumiram as mangas, sumiram os peixes, mas no princípio o problema maior que os

ribeirinhos sofreram foi com a impossibilidade de usar as águas do rio que mudou

de cor e de textura. Depois o baixo Tocantins parece que foi secando: secaram os

poços de criação de peixes, desapareceram as grandes espécimes.

Além disso, de tempos em tempos aparece, boiando nas águas do rio Tocantins,

um limo muito verde que suja o rio e mancha as praias com o movimento das

mares, explica Alquimides Vital Batista, 48, homem muito magro e com fartos

cabelos negros que pendem na face morena marcada pelo tempo.

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Apresentaram-me a ele como um importante produtor cultural. Vital, também

conhecido pela sigla VB, é músico, casado e tem nove filhos. Ele tem dois cds gravados,

uma banda de bangüê30 ecológico, o “Engole Cobra”, e dirige o Cordão de mascarados

carnavalescos31 “Última Hora”.

Fiquei encantada com a visualidade de suas performances. No grupo musical ele se

veste de extraterrestre, transformando uma cuia em capacete futurista. No cordão de

mascarados abusa de cores fortes e capricha nas franjas, bordados, porta-se como um rei .

Fiz centenas de fotos deles que ainda pretendo transformar em quadros; a imagem fechada

com enquadramento no brincante revela todo meu encantamento.

Sua performance e sua música servem “de memória histórica, como ensinamentos

de princípios básicos da moral comunitária e, de uma maneira sutil, garantem a

possibilidade do exercício da fantasia para o indivíduo habitualmente limitado a uma

função produtiva”32. Para Vital, que vive sem emprego fixo, a saída para sobreviver é viver

em um sítio e acreditar nos resultados da lavoura de cacau e de açaí. Também costuma

todos os dias sair cedo para lancear33 ao longo do rio Tocantins. Quando a maré está cheia,

nas proximidades do seu sítio, começa a pesca com matapis34. Na vazante, dezenas de

armadilhas aparecem jogadas pela maré na areia da praia, amarradas por uma corda a um

pau. Oito ou dez matapis são a única esperança de proteínas para o ribeirinho que hoje,

quase sem pescar, vive “faminto”.

Mas toda esta mudança ambiental modificou também a rica produção cultural da

vila de Joaba que tem, entre outras manifestações culturais, o bangüê, o bambaê35, o samba

de cacete, as pastorinhas, o boi-bumbá e os cordões de mascarados carnavalescos.

30 Bangüê: No baixo Tocantins, Igarapé-Miri, Abaetetuba etc é conjunto instrumental típico e de dança, que executa umaespécie de samba, “Samba tradicional que, no Pará , tem diferentes denominações: lundum, samba matuto, carimbó,retumbão. É composto de tambor, xeque-xeque, onça (espécie de cuíca), banjo e, eventualmente, qualquer instrumentosde corda ou sopro... Nas apresentações a música é sempre executada de “enversada”, ou seja, composições musicais comversos de improviso” Apresentam-se em bailes, festas, aniversários, com ou sem dançarinos. SALLES, Vicente. Op. Cit.,P. 67.31 cordão de mascarados: ópera cabocla de cunho carnavalesco que mescla as linguagens do teatro, da dança, da música,das artes plásticas, da poesia, numa única manifestação popular.32 KLINTOWITZ , Jacob. Máscaras Brasileiras. São Paulo, Editado pela Rhodia, 1986, P.2333 lancear : sair pra pegar camarão com matapi.34 matapis: armadilhas utilizadas na pesca do camarão. Utensílio de forma alongada com extremidades afuniladasconfeccionado de talas de miriti35 bambaê do rosário: dança ritual nas comunidades remanescentes de quilombos mola, itapocu e Juaba no município deCametá. Consiste na coroação do rei e rainha do Congo. SALLES,Vicente. Op. Cit., P. 63

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Rio Tocantins, antes e depois de Tucuruí

Em 1908, no tempo do finado Bazilio Machado, quando começou a tradição dos

mascarados carnavalescos, segundo recorda a parteira Dona Benedita, a floresta era cheia

de árvores grandes nobres que integravam uma flora e fauna variada. Naquele tempo a

pesca era farta.

Naquele tempo era o tempo bão, muita caça, muito peixe, camarão, tudo era

à vontade. Só o que não era à vontade era o nosso gênero: a farinha, o arroz,

o jerimum, a melancia... Esse não tinha valor, não era vendido, não vendia,

não vende. O valor do nosso gênero aqui em Joaba é o comprador que vem

dar e é sempre muito pouco, conta Benedita, uma cabocla que faz uso de

tecnologias primitivas em resposta às necessidades da vida na floresta,

conhece plantas, animais, frutos da floresta, e, para sobreviver sua família

caça, pesca, navega, conhece os segredos do rio e com isso tenta superar as

dificuldades que ainda enfrenta para comercializar as mercadorias.

Da mesma forma o preconceito social parece ainda se manifestar na cidade. Dos

costumes racistas que imperavam no início do século XX, na vila quilombola, restou ainda

um racismo velado, expresso nas danças populares que encenam com desdém a vida dos

negros e na quase absoluta ausência de afro-descendentes morando na vila. Benedita, que é

de uma das famílias negras da vila, também mora no interior. É ela quem relata também

como eram as festas mais importantes de Joaba no passado:

Naquele tempo, durante as festas de São José e na festa de Nossa Senhora

do Rosário, brancos e negros ficavam separados, tinha o barracão da festa,

mas tinha a sala dos brancos e a sala dos pretos. Era separado: a cor morena

dançava em uma sala e os brancos dançavam em outra. Em baixo o barracão

era de tábua. Em cima os brancos dançavam, lá pro sobrado.

A festa mudou muito, depois que veio a comunidade branca morar na vila de Joaba.

Ela lançou mão da festa que antes era do festeiro. Cada ano uma família fazia a festa da

Nossa Senhora do Rosário, um Círio feito pelo rio onde os santos padroeiros todos

ornamentados com flores e folhagens eram levados em um casco grande pelo rio

Tocantins, seguidos de perto por um cortejo de barcos. Dona Bendita ainda se lembra:

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A gente embarcava no rio e ia deixar os santos lá, na boca do furo do

Mutuacaba. De lá a gente vinha cantando naquela grande aporfia36, todos

cascos ao redor da santa e vinha que vinha! A procissão fluvial passava

aqui na frente da vila e voltava. Só então os santos eram desembarcados na

praia, porque naquele tempo não tinha trapiche. A procissão subia pra

cidade, “arrudava” a vila que era pequena, com duas ou três ruas e logo

vinha um capoeirão muito maduro de pau muito grande.

Vital e o Bloco de Mascarados Última Hora

O barcos no passado estavam ainda mais presentes na vida dos ribeirinhos porque

também serviam para os rituais sagrados da festa de santo e para os dias de festa profana,

como as festas de carnaval, onde cordões de mascarados, para apresentar suas comédias

sobre o cotidiano local, viajavam a remo pelos furos do rio Tocantins.

Naquele tempo, no carnaval, o Cordão de mascarados tinha as palestras

dele. Não era assim estas palavras de hoje. Porque naquele tempo os

carnavalistas ajogavam poesia. Hoje em dia não, a poesia deles é

balanceando a família: se o camarada bebe, se fica porre, se a mulher não

trata bem o marido; é isso a poesia deles. Naquele tempo não, eram aquelas

lindas poesias que eles falavam, igual como a Princesa Isabel falou o

discurso dela pro D.Pedro..., conta Benedita.

Sob a tradição do entrudo português os ribeirinhos, que já se pintavam e faziam o

carnaval em família muito antes de1946, começaram com essa tradição dos cordões.

Chama-se entrudo o antigo Carnaval português, o termo significa “entrada”,

segundo dizem para festejar a entrada da primavera... As práticas festivas

eram gerais no país; existiam, sobretudo em determinadas regiões e

aldeias... um cortejo seguia um boneco chamado Entrudo ou João... Em um

ou vários festins se comia chouriços, salpicões, presuntos... Aconteciam

troças entre os jovens de ambos os sexos ou entre as famílias da vila...

Aspersão de água ou mesmo de líquidos repugnantes, arremesso de farinha,

lama, cinzas...

36 Remando a aporfia significa remando ligeiro

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Grupos de mascarados perambulavam pela aldeia ou iam de uma aldeia a

outra, cantando e fazendo o maior barulho possível com tamborins, sinetas,

cornetas, ou até mesmo panelas e outros utensílios de metais37.

Vital Batista e brincante

Segundo alguns relatos, os antepassados de Vital criaram o Cordão de Mascarados

Última Hora, para brincar em um aniversário. Ele conta que

no dia marcado, umas seis horas antes da festa começar, eles se esconderam

com as máscaras na floresta rio abaixo, se prepararam no mato escondidos e

a noite se mascararam pra não serem identificados pelos convidados.

Naquela época, antes da festa de aniversário começar, era feito uma reza

em ação de graças para o aniversariante e só depois a música começava.

Quando os brincantes chegaram na vila a reza já havia acabado. Então eles

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foram remando devagar, em um casco grande, tocando e dançando o samba

de cacete só com as máscaras e a roupa do corpo. Então, quando terminou a

fornada do samba, como eles dizem em Cametá, eles não se mostraram,

foram embora mascarados, e ninguém soube quem eles eram.

O rito de travestimento é comum a muitas crenças e rituais “ligados com o culto de

um só ser andrógino original que logo se dividiu em duas formas separadas...o princípio

masculino e feminino... o yin e yang”38. Vital descreve o cordão Última Hora original

como “um grupo composto por dez personagens, sendo cinco homens vestido de mulheres

e cinco mulheres vestidas de homem que saíam em um casco grande, com remos de faia39.

Hoje em dia o grupo é formado somente por homens que ainda saem travestidos. “O

travestimento é considerado como uma instância de neutralização ritual de oposições

semioticamente significativas, e neste caso a oposição macho/fêmea”40. Mas a androgenia

e a bissexualidade não tem nenhuma relação com a sexualidade propriamente dita. Para

entender este conceito “é necessário não se limitar à interpretação biologicamente sexual

do conceito de opostos e pensar na imagem de um super-homem imaginado que unifica

pelos opostos”.

A turma fantasiada não remava, porque eles precisavam ficar bonitos, só dançando

e tocando. Por isso, além dos dez atores, iam ao barco o piloto e três remeiros: dois deles

iam no faia e um ia na parte de traz da embarcação. Assim nasceu o Bloco de Última

Hora, do Tem-Tem, um entre os muitos grupos existentes ainda hoje nas ilhas em torno de

Joaba. Além dele, tem o Rei da Brincadeira do Rio Pacovatuba, o Pirata do Amor do

Turema, o Bola Preta do Viseu, o Linguarudo de Santana e os Príncipes Foliões de

Mutuaca. Esses cordões trazem junto ao nome a designação da sua ilha ou de um furo de

rio - denunciando sua origem.

Hoje os blocos não viajam mais de barco a remo, são transportados em barcos a

motor. Mas a trupe continua com a mesma hierarquia de palhaços que saem das ilhas

mascarados com fantasias de cetim encenando comédias carnavalescas sobre

37 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. Carnaval Brasileiro, o vivido e o mito. São Paulo, Ed.Brasiliense, 1992, P.30.38 ECO, Umberto, IVANOV, V.V., RECTOR, Mônica. Carnival! Tradução de MônicaMansur. México. Tezontle Fondo de Cultura Econômica, 1994, P. 24.39 Remo de faia: remo comprido que fica preso ao barco por uma forquilha.40 Idem ibidem, P. 25.

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acontecimentos da época, e fatos que durante o ano movimentaram a opinião pública de

Joaba e do Brasil .

Entramos no barco a óleo quando já estava quase escurecendo. A banda vai tocando

marchinhas de carnaval. A música do sax, trompete e dos tambores cobre o som de popopó

do motor a óleo de nossa barca que por vinte minutos avança pelo rio até o sítio de VB. Por

algum tempo a paisagem era só de mata. A música, o vento e o pôr do sol. Mas logo

surgiram algumas casas cercadas de muitas plantas: açaizais, capins, miritizeiros,

ucubeiras, turiás, aningais. A floresta domina por um bom tempo o cenário das margens do

Tocantins e só então começam a surgir pequenas praias. Logo avistamos crianças

empinando pipas, namorados caminhando abraçados mais adiante em outra praia, parece

que todos aproveitam o pôr do sol na orla que se formou na maré vazante.

O sítio de Vital só tem uma casa. Alguns patos nadam no rio ao lado das crianças.

Três delas, com cerca de nove anos, trocaram as brincadeiras no rio pelas delícias de comer

mangas ao pé da árvore. Outras, sentadas na praia sobre uma canoa, usam roupas de cetim

colorido. Quando elas vêem que a banda chegou, não esperam o barco ancorar. Começam

a dançar e chamar os brincantes que estavam dentro da casa. Logo mais pessoas

fantasiadas aparecem na janela, na porta da casa, na praia.

“O vestuário é o primeiro elemento de comunicação, o primeiro que impressiona o

público e produz uma sensação visual de profunda significação. Ele transmite mais

segurança aos participantes que o ritmo ou a melodia”41. As pessoas mascaradas assumem

novos papéis sociais. No total são nove pessoas usando chapéus e capacetes pintados,

coloridos, alguns enfeitados com penas. Homens vestidos de mulher trajam saias coloridas

bordadas, uma mistura de cores fortes com lantejoulas e rendas. Os outros usam uma

espécie de terno de cetim. Todos estão anônimos com máscaras de papel marche coloridas

amarela, verde, rosa onde dentes enormes ou bocas exageradas criam um mesclado de

medo e bom humor. “A máscara reveste. A máscara despe. O homem perde a sua

personalidade social, é o seu escudo protetor, a sua representação diante do social. A

máscara veste o indivíduo de uma personalidade arquétipa, de um padrão ancestral, de uma

nova potencialidade”42.

41 Idem ibidem. P. 160.42 KLINTOWITZ , Jacob. Máscaras Brasileiras. São Paulo, Editado pela Rhodia, 1986, P.26.

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Casal de mascarados.

Às máscaras artesanais do cordão Última Hora misturam-se às de plástico industrial

compradas em qualquer mercadinho na época do carnaval e que reproduzem pierrôs e

políticos que estão no poder. Mas em Joaba elas são transformadas com bigodes,

cavanhaques e outros grafismos. Os detalhes são feitos a mão, o que dá o toque da

personalidade do brincante.

A máscara significa o espírito, o sopro inatingível, o imaterial, o espírito

vital da natureza. A máscara tem a função de concretizar o abstrato e

travestir o ser humano da qualidade espiritual. Quando um homem reveste-

se da máscara e das roupagens e pinturas rituais, ele abandona sua

encarnação cotidiana e mortal para, naquele momento ser e representar o

espírito43.

43 Idem ibidem., P. 7.

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Mestre Zenóbio é o músico que acompanha com seu sax tenor a maioria dos

cordões de mascarados de Joaba.Ele criou um novo tipo de cordão: a bicharada.

Bicharada do Mestre Zenóbio e a comunidade da festa

Em 1975 Zenóbio Gonçalves Ferreira começou a se preocupar com as coisas que

vinham acontecendo no ecossistema da Amazônia: poluição, desmatamento, assoreamento

dos rios. Então ele reuniu os amigos e

(...) tivemos a idéia de criar um grupo de animais que levassem uma

mensagem aos nossos governantes para que parassem com a devastação. No

primeiro ano criamos 28 bichos de malva e juta, criamos um domador e

fomos fazer comédias. O cavalo, o boi, o leão, o urubu, a girafa, o jacaré

contavam um pouco das dificuldades da sobrevivência na selva.

E impressionavam os ribeirinhos que nunca tinham ficado tão próximos dos

animais ou escutado o que falavam. Zenóbio, criando a Bicharada, fez uma atualização do

Cordão de mascarados. Mudou os personagens e o discurso e, nestes últimos 30 anos, vem

ganhando cada vez mais popularidade. Apresenta-se no carnaval, nas festas da padroeira,

nas ruas da vila de Joaba e em Cametá onde lota o estádio de futebol. Hoje são mais de 64

personagens, feitos de pelúcia que imitam com detalhes a pele, os pés, as caudas, as jubas

dos animais da floresta.

Os atores imitam os movimentos dos animais. A preguiça move-se lentamente, o

jacaré rasteja, o gorila, entre um e outro pulo, pára um tempo para se coçar, enquanto os

músicos tocam marchinhas carnavalescas ao som do sax, reco-reco, banjo, tambor e

cavaquinho. Um dia a mídia descobriu mestre Zenóbio e ele apareceu no Fantástico; dizem

que foi neste dia que Joaba entrou no mapa (sic). Depois disso, os brincantes sonham com

o dia em que as festas de Joaba ficarão tão famosas quanto as festas do boi de Parintins.

A apresentação da bicharada sempre é a atração principal do fim de semana festivo

que encerra as homenagens feitas aos padroeiros São José e Nossa Senhora da

Misericórdia. Por dez dias, desde cedo, Zenóbio, homem alto, magro e meio calvo, começa

a trabalhar pela festa.

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Detalhe da obra Mestre Zenóbio e a Bicharada, aquarela sobre seda de 2004.

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Além da apresentação artística da bicharada e de acompanhar com seu sax as

apresentações de vários grupos, ele é responsável pela organização do Festival Cultural

Joabense, no qual se apresentam cerca de trinta manifestações da cidade e da vizinhança.A

comunidade prepara a praça para a festa com bandeirinhas e estandartes coloridos.

Enquanto as mulheres organizam as prendas do leilão e enfeitam a igreja com flores de

plástico os brincantes da bicharada se revezam: uma hora consertam as fantasias dos

animais re-colocando o que caiu na última apresentação com cola quente, agulha e linha;

outra hora preparam o arraial. Os homens montam o palco e, depois da estrutura pronta,

começam a fazer a decoração dele com folhas e galhos para simular uma floresta. Hoje a

bicharada se apresentará lá, no palco-floresta, hipnotizando a criançada que quando pode

assedia a bicharada puxando o rabo dos animais, tentando passar mão na pelúcia macia.

Menina-borboletada Bicharada.

Longe de lá, outros brincantes

também se preparam.O dono do boi

Campineiro retira do forro de sua

casa o boi todo enrolado em

plásticos e tira o pó acumulado por

cerca de um ano para começa a

enfeitar o couro do animal.

É o Mestre Zenóbio quem

consegue também os materiais

necessários para a manutenção

das brincadeiras.

Boi Campineiro

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Passeando pelas ruas de Joaba pode se ver fantasias de quadrilha no varal tomando

sol, em outra casa um homem, devoto de Nossa Senhora do Rosário, ajeita a farda que vai

usar na sua apresentação. Seu nome é João Procópio de Aragão Tavares, 68 anos, lavrador,

ele é coordenador do Bambaê do Rosário. Apesar de ter perdido uma das mãos trabalhando

em uma serralheria ele ainda toca tambor para muitos grupos da cidade.

Todos dançantes do Bambaê dançam porque fazem a promessa pro santo.

Eu fiz promessa de um ano cantar na festa. São quinze versos um

independente do outro em um rito permeado de rezas e da coroação do rei e

rainha da festa. Mas o meu irmão, que era um representante da festa, morreu

e eu no mesmo ano peguei a responsabilidade pra mim de coloca o santo.

Explica seu Procópio, como é conhecido na vila.

Foi de sua mãe Maria Lopes de Aragão, que era muito católica, que ele herdou sua

fé. Além dele ela teve mais cinco filhos, poucos para a média local.

Um pouco mais adiante, andando através de uma rua toda gramada, em uma casa de

madeira, uma mulher de cabelos brancos passa com cuidado suas melhores roupas para

usar no dia da festa. Ignorando que as ruas de Joaba são de areia ela separa um sapato preto

meio surrado com salto carrapeta para engraxar. Mais uma vez ela irá sair pelas ruas da

vila arrecadando verbas para comprar fogos, velas para colocar no altar do padroeiro.

Dulcinéia Garcia Machado, 73, é ornamentadora da festa de São José. Ela dá uma

cooperação de dez reais para comprar flores, lâmpadas e tudo que for de bom para enfeitar

o altar. Além disso, ela cuida da Praça São José Machado Silva, que será responsável pelos

rojões, que de hora em hora deverão ser disparados em reverência à santa por conta da

novena.

Dulcinéia prometeu ao santo ser ornamentadora. Como ela muitos devotos no dia

da festa estão pagando promessas. Tem devoto que no dia da missa dá farinha para tudo

quanto é criança, outros fazem promessa de varrer ou lavar a igreja. Cada noite tem uma

que faz sua promessa de ornamentar o altar. Dulcineia explica: “Por exemplo, hoje é minha

mordomagem44. Aí eu vou, faço o melhor que eu puder lá e assim que é essa festa”.

44 Mordomagem - ato de se responsabilizar pela decoração da igreja, arrecadação de verba para a compra de velas erojões para a festa do santo padroeiro.

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Na verdade em muitas ruas, às vezes, mora apenas uma família. Entre sobrinhos,

primas e irmãs foi se formando, por exemplo, a rua Correia de Mendonça, que será

responsável nesta noite pelos fogos de artifício da festa de São José. Através dessa rua

chega-se à igreja da vila. Lá, durante toda a festa, Manoel Tavares Alho, 74 anos, um

trabalhador rural de pouca estatura e muita disposição, desempenha uma função muito

importante para festa: ele é responsável por bater o sino para São José e para Nossa

Senhora do Rosário durante o período de rezas.

Como todos os moradores da comunidade ele também acumula outras funções na

festa. Ele vende rifa durante o leilão dos donativos arrecadados e participa da

mordomagem: joga fogos pro santo, compra velas, distribui a sopa para a comunidade

visitante que vem das ilhas para rezar por São José. Mas o que Seu Manoel mais gosta

mesmo é de bater o sino da igreja, coisa que só faz por ocasião da festa de santo ou quando

chega algum cadáver.

Assim vai se formando a paisagem do Festival Cultural Joabense. No arraial

chegam os ambulantes vendendo roupas e brinquedos. Mas, a sensação das crianças este

ano foi o vendedor de bolinhas. Um negão carioca da baixada fluminense que, com roupa

de jogador de basquete americano, viaja de festa em festa fazendo uma performance

circense para vender, por 50 centavos, uma espécie de iô-iô. As crianças seguem o homem,

conhecido por Bolinha, até um carrinho de hambúrguer que está estacionado ao lado do

tabuleiro da tacacazeira45. Ele come um lanche observado pelas crianças que não estão

familiarizadas com fast-food e se dirige a uma mesa de jogos de azar, onde um homem

ardilosamente manuseia dados sobre um tabuleiro colorido que mistura emblemas de

futebol com jogo do bicho.

Desde cedo, uma aparelhagem de som toca brega ininterruptamente até o pôr do

sol, quando todos se rendem ao ritmo e dançam sensualmente na praça. Não muito longe

dali, aonde ainda se escuta o som da aparelhagem, uma senhora não poderá ir à festa. O

nome dela é Benedita Cardoso Gomes. Ela é a parteira da cidade e, enquanto todos

estavam no “leva- leva”46 do festival, ela corria para fazer mais um parto.

45 tacacazeira: mulheres que trabalham em bancas de tacacá vendendo na rua esta espécie de sopa muito popular no Pará,que contém uma porção de tucupi, uma porção de goma encorpada, quentíssima, camarões secos, folhas de jambu entreoutras iguarias. É servida em uma cuia pela qual é ingerida em pequenos goles.46 Leva-leva : brincadeira, agito.

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Às vezes passemos a noite tudo, sete horas na assistência. Os médicos se

admiram da minha resistência. E tem vez que eu só chego de uma casa e vou

pra outra. Tem casa que ainda é bão, que tratam bem a gente, mas tem casa

que a gente passa devagar. Tudo isso bole com a gente. Tem casa que

anoitece e só de manhã a gente vai ver um gole de água e de café. As

pessoas não sabe reconhecer não.

Dona Benedita não recebe quase nada pelos partos que faz. Alguns dão dez reais,

outros dão cinco. Mas o máximo que já recebeu foi a quantia de quinze reais. Ela conta que

trabalha nisso porque fica com pena de não salvar aquela vida, de ficar se culpando porque

não foi ajudar a salvar mais um bebê. No mês de julho Benedita aparou47 doze crianças.

Ela aprendeu o ofício no seu corpo mesmo, não foi em ninguém. Ela teve seus oito

filhos em sua casa, que era distante da vila: “eu mesmo preparava tudo, aí quando a

parteira chegava, eu já tinha tomado meu café e eu mesmo cortava o cordão umbilical.

Ihhhh, o bebe já tava mamando, que tempo, eu já tinha preparado tudinho”. Nenhuma de

suas filhas seguiu a profissão, mas todas tiveram muitos filhos. “Olha, esta aqui teve nove

filhos, todos caiu na minha mão. Tem a outra que teve dez, um só não caiu na minha mão,

nove caiu na minha mão e tudo nove graças a Deus ainda estão. Um que o marido insistiu

de tirar fora de mim, minha filha morreu no acesso do parto,” conta ela com tristeza. E

concluí: “nós mulheres, nós não somos só de um tipo. Nós temos mulher esguia. Nós

temos mulher alta. Nós temos mulher de pente baixa e essas mulher é que fica mais

dispendioso atender”.

Neste festival, mesmo que não tenha que fazer mais partos , dona Benedita não vai

aparecer na festa porque morreu sua neta que iria completar 16 anos e ela não suporta

estar no meio das pessoas e ver as amigas da jovem dançando. Porque gostar de dançar, ela

gosta. Nas redondezas Dona Benedita é famosa não apenas por ser parteira – função muito

importante nesta vila distante duas horas de barco da cidade de Cametá, dos hospitais, dos

médicos e das farmácias. Ela é famosa por suas rodas de samba de cacete que organiza por

ocasião do plantio de seu roçado.

No dia em que encontrei Dona Benedita ela vinha andando do interior carregando

um paneiro cheio de mandioca nas costas. Ela vinha preparar farinha. Eu estava fazendo

um ensaio fotográfico em uma casa de farinha. Começamos a conversar através de sua

47 aparou: ato de segurar a criança no momento do nascimento.

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filha que parecia o personagem ideal para ilustrar a figura da mulher agricultora. Ela, de

pele escura, usava um lenço colorido amarrado a cabeça e nas costas fazia de um paneiro

uma espécie de mochila.

Decidi que, na próxima viagem, vou acrescentar a este diário digital, imagens dos

ofícios tradicionais de cada região: vou coletar imagens da pesca, do catador de

caranguejos, do trabalho do juteiro. Assim, a cada novo encontro, descubro e mapeio mais

um pedaço deste Brasil ribeirinho, país eminentemente caboclo, uma nação que vive às

margens do desenvolvimento, fruto de uma complexa fusão, de uma interação, nem sempre

isenta de conflitos, entre o branco e seu patrimônio colonial português, e o índio com sua

fórmula adaptativa à floresta tropical.

Neste cenário “onde a igreja tem um peso decisivo, os homens comuns vão

elaborando também sua cultura; um modo específico de sentir, de se relacionar, de se

exprimir, de narrar, de imaginar, de comemorar, de festar”48.

48 MEYER, Marlyse. Caminhos do Imaginário no Brasil. São Paulo, EDUSP, 1993, P..20.

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Capítulo III

OS PROCESSO E AS MÍDIAS

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Capítulo III

O Processo e as Mídias

Depois de anos pintando tecido para várias confecções de São Paulo comecei a

odiar a pintura. Já havia aprendido a trabalhar com cor, desenvolvido meu traço e não

havia mais sentido em ficar pintando quilômetros de estampas repetitivas. Então, decidi

parar de pintar. A repetição do trabalho artesanal estava me matando. Resolvi ir atrás de

um sonho antigo que nutria desde a década de 1990, quando produzi uma releitura das

primeiras representações do Brasil: ser Artista-Viajante e sair a procura das cores e

temáticas brasileiras.

Defini que iria iniciar esta pesquisa pelo Pará, terra de meu marido Nelson Vilhena.

E assim cheguei à Amazônia por Belém, em 2000, durante o fim do ciclo junino de festas

populares. Lá, acompanhando pelo jornal a programação cultural da cidade, fui

conhecendo os grupos musicais tradicionais: quadrilhas, carimbós, lundus, sírias, pássaros

juninos etc. Mas foi quando assisti à dança do boi de máscaras de São Caetano de Odivelas

que resolvi entender melhor estes folguedos. Comecei a colecionar revistas e matérias de

jornais que tratavam de cultura popular, construí um arquivo de referências com folhetos

turísticos, rótulos, pôsteres que poderiam me ajudar a entender as festas e desenhá-las.

Em uma destas buscas fui à Universidade Federal do Pará procurar informações

sobre aquela cultura. Foi quando vi um pôster que anunciava a viagem do projeto

IFNOPAP ao rio Trombetas. Falei aos organizadores do evento que queria acompanhar a

expedição enquanto Artista-Viajante e fui a Oriximiná. Quando voltei, dez dias depois,

trouxe comigo a certeza de ter encontrado um caminho para minha pintura.

Criação das primeiras imagens

Da viagem ao rio Trombetas trouxe também vários artesanatos, cestarias,

plumagens, cerâmicas e cadernos de campo repletos de desenhos feitos por mim e pelas

crianças ribeirinhas. De um barco em movimento fui colecionando o detalhe das folhas,

dos caules de cerca de seis ou sete tipos de plantas que se repetiam ao longo da paisagem.

A partir destes esboços recortei as árvores sempre desenhadas separadamente em meus

cadernos e, multiplicando-as no xerox, produzi minhas primeiras colagens da floresta

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Amazônica. Com estes desenhos construí a floresta e as margens do rio dos quadros

Furos(P. 93) e Surf de canoa(P89 ).

Para tornar verossímil esta paisagem nesta viagem

inicial fui definindo a escala de cada objeto: as curvas

dos rios, as ilhas, as plantas e os barcos. Nesta escala as

casas vão ficando cada vez mais escondidas, as árvores

vão crescendo e os barcos ganhando muita

importância. Foi assim que fiz um estudo das

proporções amazônicas. A escala da floresta imensa

a casa minúscula, a proporção entre as curvas de rio e

igarapés, o contorno dos espécimes mais comuns desta paisagem amazônica. Durante

vários momentos desenhava, em outros fotografava e filmava.

As cores de minha Amazônia foram esboçadas definitivamente nesta viagem que

me extasiava todos os sentidos. São cores emocionais, cores de descoberta. A cor

amarelada dos rios sempre manchados por correntezas de ocres. O céu róseo do pôr do sol,

a floresta de tantos verdes às vezes sangrada por um cacho de açaí, a delicadeza da madeira

crua das casas, dos trapiches, tinham um apelo poético quase dramático nas manchas sobre

a seda. Mas, na obra final, estas referências de cores, dialogando com a composição, se

deslocaram. Então a cor original do rio, por exemplo, virou a cor do céu, na obra sobre o

Círio de Oriximiná(P. 26), ou virou a cor das crianças na obra Elso, Etilena, Raiane e

Glemron(P. 13). Há neste estudo um comprometimento em sintetizar a cor da Amazônia

porém acontece também transferências poéticas que dão o toque subjetivo da cartografia.

O que não havia percebido na época é que estas imagens feitas do alto de um navio

reproduziam também o abismo social existente entre este pesquisador e os ribeirinhos.

Assim, de longe, comecei a identificar na floresta índices de humanidade nas bananeiras e

açaizais, que se destacam na paisagem em movimento, anunciando que logo apareceria

mais uma casa, um curral de pesca uma praia. Foram cerca de seis dias a bordo do

Catamarã Pará sem paradas. O homem amazônico apareceu-me de forma surpreendente,

pirateando esta composição elitizada da Amazônia.

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Surf de Canoa, obra em aquarela sobre seda de 2001

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Viajava pelo rio há alguns dias quando notei que jovens subiam pelo casco do navio

como aqueles piratas dos filmes da TV. Pulavam de cordas que enganchavam na popa do

barco e deixavam suas pequenas canoas seguirem arrastadas por quilômetros. Eram

dezenas de canoas tentando enganchar-se ao navio. E enquanto um jovem tripulante,

valendo-se do remo, direcionava o pequeno barco, outro – menino ou menina – escalava a

corda enganchada ao navio para, já dentro do catamarã, ajudar seu companheiro a subir

também. Logo a parte baixa da popa do navio, ao lado da casa das máquinas, ficou cheia

de jovens e crianças locais. Eles conversavam com intimidade com os tripulantes.

A bordo do catamarã primeiro contato com os ribeirinhos

Um menino notou que eu estava desenhando a paisagem através da escotilha da

sala de vídeo; aproximou-se da janela e começou a olhar o meu trabalho. Comecei a

observá-lo e desenhá-lo. Ele gostou disso e chamou o resto dos seus amigos para verem o

que acontecia. A escotilha, naquele momento, parecia uma moldura pequena demais para

tantos rostos que se juntavam para me observar, arregalando enormes olhos.

Foi um primeiro encontro engraçado. Quando acabei a caricatura, saí do interior do

barco para encontrá-los, mostrar-lhes melhor meu desenho e saber enfim quem eram eles.

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Um deles, chamado Elso, me explicou que morava nas ilhas próximas ao Estreito de

Breves, que era assim que comercializava seus produtos: açaí e palmito. Contou-me que

isso, às vezes, virava uma brincadeira e que havia os “feras” que sempre conseguiam pegar

carona nos velozes barcos grandes, praticando uma espécie de surf de canoa.Saí deste em

encontro com minhas primeiras entrevistas e vários desenhos coletados, pois pedi às

crianças que também desenhassem o rio. Elas, ao contrário da minha expectativa, não

desenharam barcos, mas aviões e helicópteros.

Ao longo de minha pintura usei muito esse desenho. Na obra Círio de Oriximiná(P26)

construí uma procissão fluvial reproduzindo os barcos desenhados pelos ribeirinhos.

Recortava os desenhos ampliava,

reduzia, reproduzia com xerox

aquelas imagens.

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Na obra Elso Etilena, Raiana e Glemron, de 2001, retratei os meninos que subiram

no nosso navio no estreito de Breves cercados por seus barcos e helicópteros. Nela os

desenhos dos ribeirinhos do Estreito de Breves aparecem com suas assinaturas.

Esboço da obra Elso. Etilena, Raiane e Glemron.

Na obra Furos de rio,(P.93) do mesmo ano, em meio aos arquipélagos fluviais

esses desenhos estão reproduzidos dezenas de vezes assim como no quadro de 2003

Abaetetuba e a Ilha de Sirituba da série sobre o rio Tocantins onde o fluxo de barcos entre

a ilha e a cidade também foi feito com o mesmo tipo de colagem. Finalmente o barco

desenhado pelos ribeirinhos reaparece também minúsculo e solitário sob imensa árvore na

obra Mangue (P94)produzida também em 2003.

A cena dos barcos sendo rebocados pelo Catamarã virou outro quadro – Surf de

canoa(P.89) – no qual, ao longo do rio amarelado, vê-se uma ilha construída a partir dos

esboços de todas as árvores coletadas durante o percurso de Belém até o rio Trombetas.

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Esboço do quadro furos .

Furos, obra em aquarela sobre seda de 2001.

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Mangue, obra em aquarela sobre seda de 2002.

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Pintando fotograficamente

No ano seguinte mudei meu processo criativo. Apesar de ainda desenhar, a

fotografia ocupou a maior parte do meu tempo. Primeiro porque diferentemente da

expedição anterior não ficamos vários dias a bordo. O nosso destino, o arquipélago do

Marajó, ficava a apenas algumas horas de Belém. Assim, estivemos mais tempo em terra

que a bordo, e visitamos muitas ilhas.

Além de acompanhar a expedição da Universidade Federal do Pará, neste ano,

também fui a São Caetano de Odivelas assistir às festas do boi, expor e fazer uma oficina.

Na cidade muitos bois preparavam suas apresentações. E assim, diante de tantas

descobertas, já não havia tempo para desenhar por horas apenas uma cena. As

conseqüências disso podem ser vistas nas série seguintes. Se nas primeiras obras usei

desenho de observação coletado em campo, nas obras de 2002 em diante foram as fotos e

as matérias de jornais e revistas que acionaram o desejo de pintar.

Na apropriação destas fotos, muitas do fotógrafo Geraldo Ramos, acontecia a

ampliação ou o re-enquadramento dos temas amazônicos. Na obra Barcos no

trapiche,(P.17) pode-se observar como determinados ícones que se concentram no nosso

imaginário se manifestam no momento que escolhemos as imagens que serão

representadas. Na pintura desses barcos aconteceu uma interessante transferência de

processos. Ney Bastos, um artista paraense que trabalha com miniaturas, fez

representações de cenas amazônicas dentro de um aquário. Tomei conhecimento deste

aquário ao ver um detalhe da obra reproduzida fotograficamente na revista Ver-o-Pará. Na

representação desta imagem em seda, fundi com a imagem amazônica referências de um

imaginário ocidental que já trazia comigo. Dentro do que Yuri Lotman nos fala da

memória icônica, onde inclusive trazemos referências cromáticas.Daí, estes barcos

pintados nesta obra de 1,40 X 1,03 remeterem aos barcos dos impressionistas franceses.

Barcos tornados populares nos livros, fascículos, revistas, slides, jogos e livros escolares.

Em minha viagem através das mídias re-descobria, nos veículos de comunicação

impressos, os portos e barcos ribeirinhos que encontrei ao longo do rio Amazonas em 2000

e não conseguia fotografar. Então resolvi me apropriar de imagens alheias, que mostrassem

estes portos. Neste processo o Mapa Pictográfico da Cultura Ribeirinha coloca sob a

autoria da artista muitas presenças autorais1.

1 São co-autores desta obra Elso, Etilena que colaboraram com desenhos; PM Castro, que com suas narrativascinematográficas da Amazônia nos auxiliou a entender o mundo ribeirinho; Ney Bastos com suas miniaturas; Geraldo

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Então esse projeto artístico, que está sendo construído em cima de um projeto de

captação de memória, retomou definitivamente também a dimensão fotográfica que foi

deixada de lado pelas pinturas depois da invenção da câmera fotográfica. O que seria o

desenho, o diário de viagem dos primeiros viajantes, virou agora um álbum fotográfico e

só depois uma série de desenhos.

Em meus diários de viagem, a partir de 2001, restaram apenas as anotações de

campo, legendas de fotos, depoimentos e dados pessoais dos entrevistados. Passei mais

tempo fotografando e escutando aquelas pessoas que as desenhando. A pintura começou a

usar a fotografia regularmente como registro. Em 2003, por razões econômicas, adotei a

imagem digital e comecei a compor um arquivo fotográfico com mais de mil fotos onde

registrei passo a passo minhas descobertas. Coletava imagens esperando a luz ideal para

construir a foto do quadro. Outras vezes fotografava pensando que através da pintura e do

computador poderia tirar o fundo, limpar a cena para então transformar a foto em um

quadro de grandes dimensões.

Assim, uso fotos de minha autoria misturada a fotos de revistas, de jornais, de

folhetos turísticos. Misturo imagens inéditas a imagens consagradas pela reprodutibilidade.

Uso imagens de dançarinas que, em movimentos eternizados, ilustram, com suas saias

rodadas, folhetos turísticos, uso fotos dos mestres veiculadas nas capas de discos etc.

E para reproduzir estas imagens fotográficas e gerar os quadros uso técnicas de

ampliação adotadas pelos operários da cenografia e montagem, que no dia a dia pintam

cenários teatrais imensos, reproduzem obras de arte, fazem complicados fundos para

instalações artísticas etc. Eles fazem imagens em grande escala, usando aparelhos óticos.

Isso não é nenhuma novidade no mundo artístico. David Hockney, o pintor

britânico – mais conhecido pelo seu fascínio por nadadores e piscinas de Los Angeles – há

30 anos começou uma série de experiências usando lentes, espelhos e câmeras em sua arte.

Ramos com suas fotos etc. Todos colaboraram para a construção imagética de meus barcos amazônicos. Além disso, acartografia também acontece nas representações teóricas de realidade feitas por minha orientadora Jerusa Pires Ferreira,por Paes Loureiro, Marlyse Meyer entre outros. As conseqüências deste longo processo, que em vários momentos foidifundido por diversos jornalistas, incluí também nos resultados deste projeto uma versão midiatizada: Flávio Lobo editorda revista Carta Capital; Esperança Bessa do jornal Liberal; a equipe da GTEC, que fez meu site; Maria Amélia, que fez aprogramação gráfica do livro; Felipe Pugliesi da assessoria de imprensa; e Valéria Hartt, minha escritora-fantasma,colaboraram de forma decisiva para a divulgação da versão midiatizada deste projeto.

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Dançarina de quadrilha, obra de 2003.

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Na obra O Conhecimento Secreto: Redescobrindo As Técnicas Dos Grandes

Mestres, da Cosac&Naify, Hockney conta um pouco da relação dos artistas com estes

artifícios. Ele conta que o grande Diego Velazquez (1599-1660) não fez segredo nenhum

em utilizar-se de espelhos, chegando a abertamente reproduzir um (como na tela As

Meninas, onde ele mesmo se retrata, aparecendo o seu reflexo ao fundo dela, trabalhando

com pincéis a mão em frente ao cavalete). Recolhe também registros biográficos que

indicam o uso de câmara escura nas oficinas de Caravaggio, no fim do século XVI.

A câmara escura é uma técnica que reproduz, em um quarto escuro, através de um

buraco na parede, a imagem invertida de uma cena qualquer que se passe do lado de fora.

Em uma de suas obras Caravaggio pinta um menino dedilhando um alaúde e ainda coloca

um violino, ambos com delineamento magnífico que, segundo Hockney, seria impossível

de ser feito a olho nu. Aliás, ele conta que Caravaggio tinha como patrono o cardeal Del

Monte, que aconselhara Galileu sobre como aperfeiçoar seu telescópio.

Parece óbvio que o cardeal possuía diversos instrumentos ópticos e deve ter

emprestado algum para o seu artista. O livro conclui que vivemos o surgimento de uma era

pós-fotográfica, com a câmara e suas lentes voltando a se misturar à mão do artista com a

ajuda do computador.

Na obra Meninas de Sirituba sobre parede de matapis, da série rio Tocantins 2003,

assumo tudo isso. Esta obra tem fundo negro sobre o qual aparece claramente que a cena

das meninas é uma foto.

Às vezes passo muito tempo tentando obter a foto ideal. E quando digo “obter”, no

fundo tanto faz se esta foto será retirada de uma revista ou do meu próprio ensaio

fotográfico.

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Meninas de Sirituba sobre parede de matapi, obra de 2003.

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No Marajó, em 2001, conheci as esculturas do PM Castro. Uma pessoa singular,

poeta e artista plástico que construía embarcações imaginárias a partir de formas

tradicionais da construção náutica. Através de sua obra me interessei por este assunto.

Comecei nesta época a fotografar barcos em construção e visitar estaleiros. Até finalizar a

obra Esqueleto de Barco demorei dois anos. Fui encontrar a imagem ideal de um barco em

construção em uma antiga revista Veja que folheava casualmente.

Nesta obra aparece a estrutura de barco sendo construída pelo homem. Mas o que

existe de especial a ser visto neste quadro? Os tons da estrutura e a forma de esqueleto com

um centro de onde saem espécies de braços são o retrato do momento de tragédia familiar

que vivia com o câncer terminal de minha mãe. Mas esta estrutura de barco apesar de das

cores densas remete ao principal meio de transporte da Amazônia. E também a uma

infinidade de outros barcos que variam sua forma segundo sua utilidade: barco de

passageiros, barco de passeio, barco de carregar tijolo etc. Percebi que ao longo desta

cartografia foram muitas as obras sobre barcos.

Na embarcação em construção aparece a noção de ilhas, rios, furos, igarapés,

pensados como estradas, caminhos, formas de comunicação. Pensamos no barco como

brinquedo de criança. Barco de promesseiro feito em miriti, igualzinho aos barcos de

transporte. Barco feito em estaleiro no Pará, mas com madeiras vindas do Amapá e

Amazonas, onde ainda se encontram as grandes árvores da floresta amazônica.

O construtor está curvado sobre a estrutura e sua figura mistura-se com as madeiras

do barco, ele tem cor de madeira de tanto que “é madeira” como carpinteiro caboclo que

vive sob os raios do sol. A profundidade da obra é marcada pelo pequeno e agachado

homem. Seu tamanho é a medida da grandiosidade da construção. A criação enquanto

processo de esforço que petrifica as mãos e pés pela dureza do ofício.

O homem constrói, transporta, viaja e o movimento de reconstrução da memória,

vem reproduzindo a tradição portuguesa de construção náutica entre os ribeirinhos há mais

de 500 anos. Através desta memória transmitida oralmente o ribeirinho aprende este ofício

e vence o isolamento construindo sua própria embarcação.

Na estrutura do barco em construção eclode a história da Amazônia, a colonização

portuguesa, as tardes de sol, as mãos duras e os pés calejados do artesão. É provável,

entretanto, que só possamos entender tudo isso porque ele está sendo observado em um

quadro.

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Esqueleto de barco, obra em aquarela sobre seda de 2003.

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O construtor, ao contrário, ao terminar de pregar as madeiras do farcame do barco,

simplesmente vai para casa descansar depois do árduo dia de trabalho. Desta forma, o

ribeirinho pode sentir que a Amazônia se faz cada vez mais familiar e o mundo cada vez

mais seu.

A técnica dos artesãos

Na contramão do progresso tecnológico estão todos artesãos. Eles mantêm as

tradições imemoriais; não se enquadrar no sistema produtivo. Entre eles, muitos são

artistas que por motivos práticos fazem artesanatos. Aí está uma chance real para

manipular materiais, fazer experiências de suporte e cores de forma remunerada. Isso é

realidade para muitos pintores da moda da mesma forma que para muitos escultores, as

montagens de carnavais, exposições, cenografias, são uma boa escola. Restam a nós,

também, artistas pobres da capital, esses segmentos de mercado. Somos como os cantores

de churrascaria, os vira-latas, os primos pobres dos artistas plásticos.

Mas o que muitos desconhecem é que por trás da repetição do artesanato muitas

vezes pulsa um impulso visceral, que impede que o artesão construa sua vida longe da arte.

Solidariamente resolvi assumir minha história de artesã e abandonar suportes

convencionais como óleo ou acrílico sobre tela para desenvolver este projeto. A escolha

deste suporte tem implícita, além do questionamento sobre a validade das dicotomias entre

artista e artesão, a intenção de re-pensar o ateliê enquanto oficina e acabar com as

separações entre criação e a execução da obra.

Assim, todas obras do Mapa Pictográfico são em aquarela sobre seda. Desde o

início do processo de pintura decidi que iria usar esta técnica tradicional chinesa usada para

tingir tecidos nobres. A idéia de usar seda e tinta têxtil para retratar imagens inéditas da

Amazônia foi também uma forma de levantar esta bandeira dos artesãos. Afinal este

suporte vem sendo usado no segmento de pintura para moda do Brasil há muito tempo e

teve uma grande divulgação na década de setenta em lenços, roupas, agendas, sempre com

motivos decorativos: florais, manchas etc. Refuncionalizada a seda encontra um novo

motivo e vira suporte desta redescoberta do Brasil.

Atualmente as pessoas que pensam dicotomicamente a cultura e arte, dividem-na

em cultura popular e erudita. Reservam para os pintores ricos as artes plásticas e para os

pobres o artesanato. O que talvez estas pessoas não entendam é a proximidade entre a arte

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e a vida. Entendem a arte apenas de forma conceitual e não manifestam uma adesão vital e

poética a ela como muitos artesãos e festeiros manifestam. Acreditando nisso, adotei cada

vez mais formas participativas de pesquisa de campo onde descobri minha Amazônia

através do diálogo com os artistas ribeirinhos.

Artistas locais

Na Amazônia, para encontrar os artistas ribeirinhos precisei procurar os artesão, as

casas de serigrafia, ou ainda as lojas onde letristas fazem faixas. Se em São Paulo é difícil

viver de arte, no interior da Amazônia é quase impossível. Os concursos de arte locais,

quando existem, oferecem prêmios reduzidos para os primeiros colocados. Em muitos

lugares não há exposições nem galerias ou centros culturais. Nem lojas de artesanato

existem nas cidades ribeirinhas, mesmo porque pela falta de infra-estrutura hoteleira o

turismo ainda esta pouco desenvolvido por lá.

É mais fácil achar a casa do artesão e de lá contatar os outros artistas da região.

Além disso, enfrenta-se um outro problema para se tentar catalogar estes artistas: a falta de

um acervo ou mesmo do registro das obras produzidas é total. Muitas vezes andei pela

cidade para tentar resgatar o processo criativo de um artista sem obter resultados

significativos. Na verdade toda impossibilidade do artista gira em torno da precária

condição social em que vivem e da falta de acesso aos estudos. Um censo desta natureza

seria muito útil à sociedade paraense.

Castro de Leão, pintor de Cametá.

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A representação da Amazônia feita pelos artistas ribeirinhos muitas vezes forneceu

subsídios para a construção das narrativas das viagens, às vezes indicou novos rumos para

os ensaios fotográficos ou novos quadros. Quando no capítulo dois descrevi Cametá, na

verdade descrevia cenas de um quadro de Castro de Leão da fachada da cidade. Quando

descrevi a cena da chegada do boi em São Caetano de Odivelas usei desenhos das crianças

locais para valorizar mais detalhes. Além disso, anotações de campo, entrevistas e fotos

foram reavivando a memória das expedições.

No mais, pinturas em lojas, murais, restaurantes que reproduzem a paisagem ou a

vida local também foram referências para minhas obras. Como os grafites urbanos estas

obras anônimas, escondidas atrás de uma mesa, retratam o descaso com a arte no interior

do Brasil. Cataloguei estes artistas e ainda tento colocá-los no mercado, mas ainda não tive

êxito. Se por um lado não consegui divulgar estes artistas por outro esta pesquisa, as festas

e os festeiros representados nas exposições itinerantes têm atingido muitos públicos.

Exposições itinerantes, uma

nova forma de comunicação

Como já falei, minha primeira viagem pelo interior do Pará aconteceu ao longo do

rio Amazonas em 2000. No ano seguinte, quando passei novamente pelo Estreito de

Breves a caminho do arquipélago do Marajó, pude expor meus primeiros quadros para os

meninos vendedores de açaí. Os cientistas da expedição e eles foram os primeiros

espectadores do que viria a ser o Mapa Pictográfico da Cultura Ribeirinha da Amazônia

Paraense. Depois desta exposição foram montadas mais duas exposições dentro do

catamarã: pelo rio Xingu e pelo rio Tocantins.

As primeiras exposições aconteceram na parte superior do navio, perto do local

onde aconteciam os congressos, o que favorecia a visitação aos pesquisadores, mas

dificultava a visitação em grande escala dos ribeirinhos.

Já a exposição que aconteceu ao longo do rio Tocantins foi diferente. Ela foi

montada em parceria com o museu Emílio Goeldi, transformou com cenografia e monitoria

uma área do navio onde era acumulado lixo em área de visitação. Assim, com esta

exposição que se deslocava através dos rios da Amazônia, inauguramos realmente uma

nova forma de comunicação na qual uma mostra de arte montada de modo diferente do

habitual e envolvendo diversos públicos atendia a princípios integradores que incluíam a

população local.

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Exposição sobre o rio Tocantins montada a bordo

A exposição montada perto da casa das máquinas possibilitou um grande fluxo de

visitantes nas duas cidades em que paramos: Abaetetuba e Cametá. Foram mais de mil

pessoas que chegaram à exposição através da divulgação da rádio local e do boca-a-boca

na saída das missas.

Os espectadores de Abaetetuba foram levados de barco ao Catamarã que, por seu

tamanho, teve que atracar no meio do rio. As crianças participaram de oficinas de arte e

escutaram a apresentação da exposição feita pelos monitores.

Em Cametá, depois de divulgar a exposição, saí a campo, de moto-taxi, para

pesquisar a festa da Bicharada na vila de Joaba. Ao final da tarde, depois de duas horas de

estrada de terra, encontrei os festeiros e assisti aos seus preparativos. No fim do dia voltei

de carona no barco deles até o Catamarã.

Aproveitei para levar todo o grupo da Bicharada, composto por mais de cem

brincantes, à exposição. Em um primeiro momento o fluxo intenso de pessoas assustou a

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organização do catamarã que definiu que entrassem apenas dez ou quinze pessoas, pois o

horário da visitação havia se encerrado. Mas a tripulação reconheceu Mestre Zenóbio e,

passando por cima da deliberação dos organizadores, liberou a entrada de todos os

integrantes da Bicharada. A visitação virou uma festa. Os músicos tocaram por uma hora

seus repertórios carnavalescos, transformando a exposição em cenário de um animado

baile que uniu ribeirinhos e pesquisadores.

Além destas mostras fluviais organizei, em outros anos, mais duas exposições em

terra firme, em Joaba, em 2004 e em São Caetano de Odivelas, em 2002. Lá montei a

exposição no salão paroquial com apoio dos brincantes do boi Faceiro. A exposição, como

já falei, foi montada pelo meu marido Nélson Vilhena – montador da Bienal de São Paulo

– e ficou muito atraente.

Atividades participativas

Havia falta de interesse pela exposição em São Caetano. Para eles não havia

sentido em ir apenas olhar quadros. Resolvi então dar uma dupla função àquele espaço

cultural. De um lado ficaram meus quadros, do outro um ateliê coletivo onde ensinei as

técnicas de pintura em tecido que utilizo. Para definir o tema das pinturas, na oficina tentei

adotar um método de aula que utilizei junto às crianças de rua de São Paulo, na década de

1990. Trata-se de algo muito simples; ao invés de ficarmos fechados em uma sala de aula

desenhando, andávamos pela cidade fazendo esboços e escrevendo sobre o que interessava

realmente para as crianças. Devido as enormes distâncias e ao calor amazônico, mudamos

um pouco os planos. Colocamos os materiais de pintura nas mochilas e de bicicletas

circulamos por alguns pontos da cidade. Fomos ao porto, ao igarapé e também a algumas

casas onde havia amostras do artesanato da região.

As crianças desenharam o boi, o cabeçudo, o porto, os barcos. E foi isso que

pintamos sobre tecido em cerca de dez cavaletes montados no ateliê. Enquanto pintávamos

uma costureira tratava de transformar os tecidos em roupas de praia, um bom produto para

ser comercializado nesta região que fica próxima do mar. Ora, para quem não vê motivos

para ir a uma exposição e certamente não tem dinheiro para comprar tintas, pintar para

moda deu um sentido a esta atividade.

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Exposição integrada a oficina em São Caetano de Odivelas

Foi assim que comecei a pintar na década de 1970. Sem dinheiro para comprar

tintas e pintar quadros comecei a pintar para moda, uma forma de aprender arte ganhando

dinheiro. Foram quilômetros de tecido onde estudei cor e desenvolvi o traço. E foi assim

que resolvi ensinar minha arte para eles, mostrando que poderiam transformá-la em fonte

de renda e ainda aproveitar para aprender técnicas de cor e de pintura têxtil.

Safári artístico

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Havia outra questão a superar: a dificuldade de achar tintas no interior do Pará. O

que me ajudou foi um guia prático de tingimento com plantas, resultado de uma pesquisa

desenvolvida por mais de 10 anos pelo bioquímico Eber Lopes Ferreira, que criou uma

imensa cartela de cores apenas com tintas orgânicas.

As oficinas foram um sucesso. As pessoas representadas nos quadros vieram se ver

e aproveitaram para aprender a pintar em tecido também. Graças a presença delas na

exposição, tive chance de fazer mais algumas entrevistas. O interesse desses mais de

quarenta jovens, que participaram da oficina, pelas câmaras e flashes utilizados,

transformou a rotina de pesquisa em uma espécie de talk-show. Assim fui construindo a

cada novo contato com as comunidades, a partir de suas respostas, as minhas atitudes em

campo e uma metodologia de pesquisa. Adotei a oficina de arte, o talk-show, safáris

pictóricos de bicicleta e garanti audiência e pautas muito interessantes também para as

mídias.

Imagens digitais

Uma outra forma de interagir com a comunidade foram as projeções de slides.

Utilizando uma câmera digital, a partir de 2003 baixei os custos de minha pesquisa e

experimentei uma nova forma de dialogar com as comunidades. Como a câmera digital

tem um limite de memória, ou seja, é capaz de arquivar apenas 200 imagens com boa

resolução, fotografo revejo as imagens e deleto aquelas que não puderam ser aproveitadas

logo após concluir um ensaio. Assim a seleção de imagens virou uma atração para os

ribeirinhos. Dezenas de crianças ficavam me rodeando para ver as fotos. Atendendo a esta

demanda, organizei pela primeira vez uma sessão de imagens fotográficas no rio

Tocantins.

Mas o planejamento desta sessão de fotos teve início muito antes em meu ateliê em

São Paulo. Estava fazendo a transcrição de uma fita cassete com entrevistas feitas em uma

comunidade ribeirinha que trabalhava com brinquedos de miriti, quando ouvi depoimentos

das crianças da ilha contando sobre suas brincadeiras de círio, ou seja, de procissão, com

uma boneca de plástico. E pensei: “preciso desta imagem”.

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Brincadeira de Círio na ilha de Sirituba.

No ano seguinte voltei a esta ilha para encontrar as crianças e pedir-lhes que

brincassem de círio para que pudesse fotografá-las. No começo foi um simulacro de

brincadeira, mas, cantando e batendo palmas, as crianças começaram a se empolgar. O

ensaio durou mais de duas horas e elas fizeram todo o rito, de maneira compenetrada.

Neste dia o catamarã Pará estava parado em frente à ilha, com uma exposição minha sobre

o rio Tocantins. Convidei as crianças para verem a exposição que retratava um pouco da

história daquela ilha. Foram cinqüenta pessoas de canoa ao Catamarã. Elas se viram nas

pinturas, contaram suas histórias para a reportagem, e tornaram-se as estrelas da exposição.

A primeira observação que fizeram sobre as pinturas da ilha foi que nelas

apareciam reproduzidas as bandeirinhas da decoração da festa da padroeira. Eles me

contaram tudo sobre o padroeiro e como tinham feito o festejo. Depois, levei-as à sala de

vídeo, pluguei o cabo da câmera na TV e comecei a apresentação dos slides digitais. Foi

um show: as crianças repetiram as canções, batiam palmas, clamavam por Nossa Senhora e

oravam ao mesmo tempo em que se viam nos slides.

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Definitivamente, depois disso, adotei também esta prática como metodologia de

contato com os ribeirinhos. Os processos de pesquisa, a captação e a vida, misturaram-se

nesta cartografia. Os meios surgiram a partir da experiência vivida e a pintura contou um

pouco desta história.

Suporte bastidor usado para expor as obras.

A partir dos depoimentos sobre a festa da padroeira agendei uma nova visita a esta

festa, que infelizmente ainda não pôde acontecer. Nesta troca com as comunidades, através

das imagens da exposição, recolho novas informações, descubro novas festas e divulgo

sempre que posso alguns mestres da cultura popular em meus quadros.

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Mestre Lucindo, obra em aquarela sobre seda de 2004.

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Tradição e mídia

A mídia leva em suas páginas uma outra exposição para centenas de leitores. Nela

divulgamos várias histórias da festa e do festeiro, imagens e depoimentos recolhidos em

campo.As imagens selecionadas para divulgação têm cores fortes belas paisagens e vêm

cheias de informação, o que acaba interessando à imprensa. Quando as revistas e jornais

dão destaque a nossa notícia, acabamos legitimando o artista ribeirinho frente ao poder

público local.

Por exemplo, ao voltar a Cametá, em abril de 2005, irei levar para os artistas locais

as matérias de revista e jornais que falaram deles e de suas festas. Entre elas, destacamos a

matéria da revista semanal Carta Capital intitulada “A Amazônia Espanta seus Males”, na

qual um dos brincantes de um pequeno grupo de carnaval denominado Última Hora foi

capa de uma reportagem com dez páginas. Outro, de São Caetano teve vários depoimentos

seus transcritos no corpo da matéria. Levando isso para o brincante e para a prefeitura

favoreceremos o reconhecimento destes artistas. Foi o que aconteceu em menor escala no

Marajó com o PM Castro.

Conhecemos o PM durante um evento oficial da prefeitura de Ponta de Pedras. Ele

mostrou suas poesias e seus quadros surrealistas e com isso chamou a atenção de muitos

pesquisadores. Fomos, depois do evento, a sua casa, onde ele foi entrevistado e

fotografado. Este artista descrevia tão bem a vida marajoara em suas poesias que teve sua

entrevista como destaque no jornal do catamarã Pará. A prefeita da cidade que viajava

conosco percebeu a atenção que dedicávamos àquele artista. Então ele, que até o momento

trabalhava imensas peças de madeira utilizando apenas as mãos, conseguiu sua primeira

serra elétrica, bem como um trabalho na Secretária de Cultura do Município. Assim o

Mapa Pictográfico retorna para a comunidade e a mídia, que muitos folcloristas acusam de

destruir a festa popular, colabora para o reconhecimento destes arquitetos da cultura.

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As constantes re-descobertas do Brasil.

Ao longo desses últimos 500 anos foram “constantes as descobertas e

desvendamentos do Brasil”2. As narrativas dos primeiros viajantes3 misturaram com tensão

experiências vividas com ficção, reproduzindo paradigmas dos colonizadores em diferentes

momentos históricos de nossa construção identitária. O Mapa Pictográfico da Cultura

Ribeirinha da Amazônia Paraense se inscreve nesta categoria de retratação do Brasil.

Usando a fotografia no lugar dos desenhos de campo destes Artistas-Viajantes do passado,

redefine a forma de representar a realidade encontrada. E redefine também a experiência

pictórica porque trata de fatos da memória, com técnicas que recuperam um realismo

perdido pela pintura com a descoberta da câmera fotográfica.

Dialogando com os meios de comunicação, o projeto alcança públicos novos de

diferentes formas. Alguns jornais em suas matérias ao falar do projeto falam dos caminhos

criativos da Artista-Viajante outros, dão ênfase para as pinturas das máscaras e os

cabeçudos da festa. A revista Carta Capital falou das festas em contraponto à realidade

social local. E associou as histórias dos festejos da cultura cabocla a uma forma de luta

lúdica pela vida em meio ao desmatamento e exploração predatória. Em sua matéria “A

Amazônia espanta seus males” mostrou como a opulência da Amazônia é mantida na mão

2 MEYER, Marlyse. Caminhos do Imaginário no Brasil. São Paulo, EDUSP, 1993, p.19.3 Naqueles primeiros momentos as imagens das descobertas das grandes expedições eram veiculadas nos mapas e nasliteraturas de viagem. Devemos a Hans Staden “a memória fundadora desta literatura de viagem”. Neste texto culturalaparece a contraposição entre americanos e europeus, selvagens e civilizados.Thevet e Lery reproduziram várias versões destas ilustrações em projetos gráficos que pretendiam organizar o novomundo de maneira enciclopédica. Mas foi com os artistas da comitiva de Maurício de Nassau, Albert Eckhout e FransPost que a arte entrelaçada a conteúdos culturais adota regras de observação pré-científicas, em oposição às crençasreligiosas. Os holandeses misturam às suas tradições artísticas, os novos estímulos visuais que encontraram no Novo-Mundo: atmosfera luminosa, imensidão da paisagem despovoada, estranhamento provocado pela fauna e flora ediversidade de tipos humanos. Com isso, contribuíram para que se estabelecesse novas relações com a natureza. Com asobras de Frans Post aparecem, nas retratações do Brasil, as primeiras marcas do tempo: em suas pinturas a representaçãoda arquitetura, de ruínas, aparecem integradas às paisagens ideais onde detalhes da floresta crescem no primeiro plano.Para Post, pintor oficial da comitiva, caberia também outras responsabilidades: retratar a topografia, a arquitetura e a vidamilitar.Na metade do século XVII, o projeto enciclopédico que inventariava a natureza desde o século XV deslancha graças àsistematização da história natural. Em 1758 o biólogo Lineu inclui o Brasil na décima edição do seu inventário SystemaNaturae, graças às contribuições dos holandeses. Assim começa a organização das plantas, animais e minérios do Novo-Mundo. Nos anos seguintes, os discípulos de Lineu irão in loco pesquisar a natureza dos trópicos. Então o desenho virailustração e adota um caráter utilitário, servindo de apoio técnico para as novas descobertas da ciência. A expedição de Alexandre Von Humboldt consolida as novas concepções científicas, iniciadas após a abertura dosportos às nações amigas. Na metade do século XIX, com a descoberta da câmara escura, definitivamente o mundo nãocomporta mais a subjetividade. Em 1856, acompanhando uma Comissão Científica, Gonçalves Dias cria, com oindianismo, a literatura romântica, ou seja, nacional, e inaugura a fotografia no Brasil. Este roteiro foi posteriormenterefeito pelas viagens do modernista Mário de Andrade, que tentou traçar “na medida de suas possibilidades, ascoordenadas de uma cultura nacional, tomando o folclore e a cultura popular como instrumentação para seuconhecimento do povo brasileiro”3.Oswald de Andrade também usou os relatos dos viajantes para escrever seu manifestoantropofágico, no qual devorava os paradigmas europeus devolvendo-os digeridos. Depois disso a aproximação das artescom a cultura popular foi menos visceral, limitando-se a inspirar motivos decorativos.

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de poucos e como estas regiões sempre foram encaradas como espaço de passagem de

onde deveriam ser retiradas todas suas riquezas. Quando a festa ocupa espaços na mídia

entram na propagação desta rede imagética o pauteiro, o editor de foto, editor da revista.

As formas como esta Amazônia será propagada obedecem a possibilidades infinitas. Afinal

os repertórios a festa, o festeiro, a Amazônia passam por varias edições até chegar ao

grande público. Por tudo isso não dá para imaginar aonde os caminhos futuros irão nos

levar. Mas com certeza as festas amazônicas, graças a sua alta esteticidade, atingirão muito

mais que ilhas e cidades vizinhas. Em 2005 e 2006, além das pesquisas de campo vou me

dedicar a essa divulgação no Brasil e no exterior.

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Capítulo IVVOZES DA FLORESTA

São Caetano de Odivelas

Joaba/Cametá, 2004.

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São Caetano de Odivelas / Joaba:Julho de 2004, quatro entrevistas.

Este capítulo é dividido em duas partes.Na primeira parte apresento quatro

entrevistas que foram feitas em julho de 2004 com produtores culturais das

comunidades ribeirinhas de Cametá e São Caetano de Odivelas. Na segunda parte

apresento a festa do ponto de vista de três jovens que são “pernas” do boi Garrote .

Tentei reunir depoimentos de diferentes tipos de festeiros, com quem estive

conversando ao longo destes quatro anos de pesquisas de campo: o dono de boi semi-

letrado e poeta, seu filho, o jovem candidato a vereador, o mestre reconhecido pela

mídia e o dono de um pequeno cordão carnavalesco compõem parte desta amostra.

Encontrei, nestas pessoas, duas gerações de festeiros e muitas formas de fazer a festa.

Todos os entrevistados são protagonistas das minhas memórias narradas nos

capítulos anteriores. Aqui tentei entender seus motivos, a forma como eles sentem sua

inserção na comunidade e como se percebem dentro do repertório da cultura nacional.

Falamos sobre a organização da festa, as dificuldades do cotidiano, o reconhecimento

social e a fama.

Busquei transcrever as entrevistas sendo fiel, na medida do possível, à maneira de falar

dos entrevistados. A idéia deste procedimento é de manter o tom de um discurso oral,

que se dá no encontro da pesquisadora com os detentores de uma sabedoria dos modos

de fazer as festas abordadas neste trabalho.

O primeiro entrevistado é dono do Boi Garrote, boi da

periferia da cidade de São Caetano de Odivelas. Chama-se

Raimundo Santa Rosa, foi pescador na juventude e é

conhecido pelo apelido “Cutaca”. Atualmente, por estar

enfermo, passou o comando da festa para suas filhas. A

família mora em casa de taipa de dois cômodos, com

forração vegetal e todos, incluindo os mais jovens, são

semi-letrados.

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O segundo entrevistado, Eudes, vive no centro da cidade

de São Caetano. É filho de um festeiro tradicional da

cidade e criou o boi Faceiro para recuperar a memória do

pai. Seu boi era bem famoso até 2003, quando foi

abandonado pela nova prefeitura devido a divergências

políticas. Apesar das dificuldades com o boi-bumbá, Eudes

Aquino, que já foi secretário de cultura do município na

gestão passada, e que nas horas vagas é pintor, ainda

arruma tempo para ensaiar uma quadrilha junina. Para

tentar reverter este quadro político desfavorável, foi

candidato a vereador em 2004, mas não foi eleito.

O dono da Bicharada, Mestre Zenóbio, é um importante

saxofonista e promotor de cultura de Joaba, Cametá. Ele

toca com vários cordões de mascarados e, junto com outros

amigos, foi o criador da Bicharada. Com seu apelo

ecológico e sua estética super realista o grupo teve, em

2004, o trabalho amplamente reconhecido pela mídia. Eles

apareceram no Fantástico, no Faustão, em uma reportagem

que misturava bichos humanizados, música de carnaval,

com floresta, rios e barcos. A Bicharada em Cametá lota

estádios; é uma atração que merece tratamento de Pop Star.

O quarto entrevistado desta série chama-se Vital Batista,

tem 58 anos e está coordenando o cordão carnavalesco

Última Hora há 40 anos. Em suas apresentações usa roupas

de cetim de aparência andrógina, capacetes e bandeiras

coloridas. Encena comédias ao longo do rio Tocantins, em

vilas e ilhas. Mora com seus nove filhos em uma casa de

madeira escondida por um açaizal.Além desse cordão,

veste-se de astronauta e faz da cuia seu capacete nas

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apresentações do conjunto musical Engole Cobra, projeto também ecológico e

humorístico com o qual já gravou dois cds.

QUAL O SENTIDO QUE A FESTA DÁ PARA A SUA VIDA?

CUTACA: A festa do boi eu tenho pra mim assim como uma alegria pra gente. Porque

a gente já tá acostumado todo ano. A gente tem aquela alegria porque coloca o boi na

rua e agrada todo mundo.Todo mundo vai atrás, é tipo uma procissão. Isso é uma

tradição, uma alegria pro lugar. Quando a gente não coloca o lugar vive triste. Aí o

povo já fica... Não tem mais aquela esperança. Esse ano eu não ia colocar, adoeci

muito. Quase eu morro. Já coloquei por causa dos meus filhos, que entraram num

acordo. Entreguei na mão das mulher. Minha nora, minhas filhas são agora as donas do

boi.

EUDES: Pra gente que dá continuidade em tudo que o meu pai fez...ele que foi cantor

desde 18 anos no boi Tinga, ele foi um grande incentivador pra gente, ele resgatou

algumas músicas... Então, a festa tem um significado muito grande, porque tá no nosso

sangue. E pra gente tem uma importância muito grande, porque faz parte da nossa vida.

Nós vivemos isso e a cada dia que passa, a gente vai tendo mais amor pelo que faz.

VITAL BATISTA: A turma que gosta, nesta época se prepara e todo mundo se sente

feliz em comemorar o carnaval. No Brasil já é o maior espetáculo da terra criado na

Bahia pelo Zé Pereira. É batalhado pelo grupo e a comunidade espera a apresentação.

ZENÓBIO: O sentido mais forte pra mim é o contato com o povo. Aquelas pessoas me

chamarem pelo nome: Mestre Zenóbio, Zenóbio. E muitas vezes eu fico até sem graça

porque eu não sei o nome daquela pessoa que tá querendo se aproximar de mim,

querendo conversar comigo, eles me conhecem pelo nome. Essa é que é a minha maior

recompensa estando em festa, o contato com esse povo. Hoje aqui, amanhã ali em

vários municípios, eu acho que me faz muito bem isso aí.

QUAL A IMPORTÂNCIA DA ARTE NA SUA VIDA?

VITAL BATISTA: Arte eu gosto, amo, mas não vivo dela porque nosso lugar não

valoriza. Se eu sou um artista também, não vivo dela. Se sou um músico, não vivo da

música. Trabalho na roça, no plantio da mandioca. Até já trabalhei pra outro no roçado.

Já trabalhei em banda como vocal, como dj de aparelhagem, mas mais eu sou da terra .

Minha carteira profissional é de lavrador.

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ZENÓBIO: Quando eu cheguei aqui em Belém, em 76, eu experimentei parar entreguei

tudo lá, a Bicharada né? Que eu vinha embora de lá (Joaba). Disse: Fica com isso aqui

pessoal, zela, vê o que vocês fazem com isso aí, porque eu vou embora. Vou cuidar da

minha vida que meu filho tá querendo estudar. Eu trabalhei uns seis meses de pedreiro.

Eu ganhava até sem comparação que hoje. Eu não tenho ganho nenhum da Bicharada.

Eu ganhava, naquele tempo, 20, 25 por dia como pedreiro. Eu não ganho o suficiente,

mas aquilo não é meu forte eu não gostava de trabalhar. Gosto daquele trabalho que a

gente gosta de fazer, da arte mesmo. Mesmo não sendo remunerado, mas eu me sinto

bem. Eu não quero competição, quero trabalhar naquilo que eu gosto.

COMO SE SENTIRIA SEM A FESTA?

ZENÓBIO: Acho que pra mim não tem sentido ficar sem... Porque eu tenho na verdade

outra profissão: pedreiro, pintura geral, mas eu não me sinto bem não.

VITAL BATISTA: Teve anos que a gente não saiu. Quando passa outro cordão que é

de outro lugar, eu não sei nem como eu fico. Esse bloco ficou parado 15 anos só na

lembrança. Ele tá muito mudado, era mais sofisticado, mais caprichado, as fantasias, as

músicas, as piadas, conservava aquele negócio de ninguém saber quem era, aonde a

gente ia, chegava mascarado, fazia tudo e saía.

CUTACA: Eu me sentiria no mesmo que estou, porque quando eu coloquei brincadeira

não tinha. Eu venho colocando brincadeira há muitos anos coloquei um bocado de

bichos, mas antes a gente não tinha coisa de nada, eu me sinto como hoje mesmo.

Apoio não tá tendo. Faço das franquezas a força pra colocar o que é meu.

EUDES: A gente tá passando por esse momento difícil devido as perseguições políticas

né? Os grupos que não se afinam com a política imposta pelo prefeito do município são

perseguidos. Ele acha de se vingar não dando nenhum tipo de apoio, patrocínio

nenhum esse ano. O Boi Faceiro, ele sofreu, teve uma dificuldade muito grande devido

a este problema: a gente não pode reformar e nem ter novos instrumentos e parte da

indumentária, por parte destas perseguições que teve.

COMO ORGANIZA A FESTA?

CUTACA: As minhas coisas não sai muito pesado, porque eu mesmo organizo. O Boi

eu mesmo arrumo, já não levo pro Seu Do Reis, porque se levar pra ele é duzentos

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reais que ele quer pra arrumar. Pra fazer o Pai do Campo ele cobrou 500 reais. Eu não

dou mais aquele dinheiro pra fazer como eu dava porque eu não sabia. Olha a minha

mulher ali ela faz o Pirrô; quando vier pano pra fazer ela já sabe. Ela que senta na

máquina e faz. Com tempo até o mês de novembro ela apronta. O capacete quem faz é

meu cunhado Vitor (que mora bem perto da caixa d’água), o Cação faz as máscaras.

EUDES: Olha, tem muita coisa que não acontece nos outros grupos que ainda acontece

no Faceiro. Olha, os outros grupos, eles pagam os “pernas” do Boi. E já no Boi

Faceiro, os caras disputam a calça pra brincar debaixo do Boi. Os do Mascote recebem

20 reais cada um, pagos pela prefeitura. O nosso, os caras disputam.Tem mais que três

pares de pernas, aí, os caras se revezam. O Boi sai com aqueles seis quando recolhem

já é com outro. E a gente sempre tentou manter algumas figuras: a questão do

Vaqueiro, do Buchudo, que o Rondi (irmão de Eudes) diz que o buchudo é o pirrô do

pobre. Nós ainda mantemos esta questão do cartiá: a gente vai dois dias antes, entrega a

carta, fala com a pessoa que tá lá pra nos receber dizendo que a aquela carta vai valer

durante o mês todo . Aí aonde tá carteado a gente vai, se apresenta com o Boi. Por

exemplo, em São Caetano hoje, não dá pra brincar a cidade toda. Existe dois bairros

que a gente toma como referência: Umarizal e Pepeua. Então uma saída brinca só o

bairro de Umarizal em torno de quarenta, cinqüenta casas, e na outra saída a gente já

parte pro outro lado da cidade também neste mesmo número... A gente depende das

pessoas pra pagar os músicos.

VITAL BATISTA: Na época do carnaval o cordão de mascarados sai assim, das

comunidades, é muito bonito, é muito emocionante. Eles vão dançando nas

comunidades de barco, eles colocam a refeição deles, vão nas comunidades. Eles

compram um quarto de porco, fica assim a critério de fulano de tal, ele vai preparar a

refeição do dia de manhã. Ele vai comprar o porco, preparar o porco, o arroz. De

manhã reúne o pessoal e sai fazendo os convites. Chega na casa de fulano na

comunidade tal. Quando chega a hora do almoço vamos parar pra fazer a refeição a

gente pára no beirarão, troca de fantasia, almoça a bordo, deixa descansar um pouco.

Na apresentação tem as disputas críticas: humorista, falador, fresco, invocado, eles

criam um monte de personagem e na hora pra outra eles mudam. Cada um faz a sua

fantasia, manda fazer, compra os materiais e faz. Agora é tudo homem: tem os homens

vestido de homens e os homens vestidos de mulher. Não inclui mulher fêmea não. São

24 homens porque o símbolo é o relógio que só marca 24 horas.

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ZENÓBIO: Hoje a Bicharada se compõe com setenta e poucos pessoas participantes.

São garotos de oito, dez anos de idade que participam, dão aquela alegria é sei lá,

inocentemente, porque gosta. A gente admira o talento de um menino de oito, dez anos

participar da Bicharada e usar uma fantasia daquela que é muito calorenta, e não fuma,

não bebe, não faz confusão e é o primeiro que coloca fantasia e é o ultimo que tira

.Enquanto que os outros adultos tão assim: às vezes envolve a bebida e começa a

sufocar porque sabe tá um calor aí!!! Porque pai de família não vai sair, vai passar três

dias fora e não tem um... A nossa localidade é muito carente então os pais de família

que participa da Bicharada não pode sair de suas casas sem... Porque não tem a menor

condição de deixar... A maioria das pessoas trabalham. No caso a lavoura, a farinha.

Todo santo dia um pai de família tem que ir lá colocar uma mandiocazinha pra fazer

uma farinha. E quando não tem o produto a roça dele tem que trabalhar pra um outro,

na roça dele pra ganhar dois, três frascos de farinha por dia pra manter a família. Então

não se pode tirar um pai de família do seu lar pra passar dois, três dias pra numa

viagem, numa apresentação da Bicharada agora. Porque eles chega, não temos nada de

recurso. Não temos cachê nenhum. O cachê que a gente cobra não é o suficiente pra

oficina, pra manutenção da Bicharada. Porque pra cada manutenção o mínimo é 300,

400 reais, porque toda vez que sai tem que fazer os reparos senão na próxima tá tudo

estourado.

COMO VOCÊ SELECIONA OS PARTICIPANTES DA BRINCADEIRA?

VITAL BATISTA: A gente leva estatutinho pra dizer como vai ser. AÍ, vai todo

mundo que quer dançar. Aí, a gente vai formando os pares. Esse tipo de bloco só é bom

com metal. Saímos com o Zenóbio ou com o Caferana, a banda que tem 80 anos. Eles

tocam tudo. Eles têm metais. A gente não pode mais sair sábado nem domingo porque

não consegue músicos pra este dia. Constantemente estão viajando pra tocar. O que a

gente faz? Quando a gente quer pegar músico bom pra tocar o cordão? A gente

programa pra sair só na quarta feira porque na quarta constantemente os músicos não

têm tocata. Toda quarta feira das semanas de fevereiro a gente sai. Pra gente consegui

músico é assim. Então a dificuldade que tem pra arrumar músico, porque músico que

serve é pelo menos um saxofone e um trompete, ou trombone, um surdo e aquele

tamborzinho barulhento. Esse não é um instrumental completo, mas já dá pra levar.

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ZENÓBIO: A gente eu não classifico. As pessoas todos nós somos aprendizes...

Muitas vezes eles dizem: “Mestre Zenóbio pare lá dê aqui uma opinião”. Eu digo: “Eh,

tu já sabe tanto tempo.Tu já sabe fazer isso aí. Tu já fizeste bacana”. E eu vou dar

aquela força pra eles e eles já se sentem responsáveis pelo que eles fazem e sabem: eu

dou conta disso, já sei como é... Existem pessoas disponíveis pra trabalho que não têm

ajuda de nada. Eu digo: “Aqui nós vamos fazer o seguinte. Vamos comer uma

merenda, vamos ver se ajuda uma vaquinha comprar uma merenda fazer uma refeição

aqui mesmo”. Os músicos não se paga, tudo é de dentro da Bicharada do grupo, mesmo

os que não querem brincar com fantasia brincam como músicos. Os que não podem

brincar com fantasias, que não sabe tocar, vai na comissão de apoio, vai ajudar a vestir

as fantasias dos garotos.

CUTACA: Eu sou dono do Garrote, aí quando os outros Bois vêm aqui, vêm

diretamente aqui em casa pedir autorização: se pode trazer o Boi pra brincar aqui. Eles

já vêm com gente aqui. Quando não, é pra gente ajeita os brincantes, pra ajudar o Boi

deles. Porque às vezes vem o Boi, mas não vêm os brincantes. Que os brincantes dele

têm medo de ter confusão. Porque não são unidos, o pessoal daqui com o pessoal da

cidade. Aí chega aqui a gente manda organiza os brincantes daqui, faz de conta que é

Boi daqui. Os brincantes são todos daqui. A responsabilidade é toda nossa. O dono do

Boi só faz entregar e se sai, só vai receber lá no fim. Faz de conta que o Boi é nosso. A

gente tem aquela responsabilidade com o Boi. O dono fica escutando quando terminou

ele vem buscar. Olha, tá aqui o Boi, tá aqui o que deu. Agora eles dá uma

gratificaçãozinha e vai embora. Inclusive, o ano retrasado minha filha tomo conta

porque eu tava envolvido pra levar meu Boi pra Belém e eles vieram e queria que eu

tomasse conta. Aí, eu mandei minha filha toma conta. Minha filha tomou conta. Tomar

conta é ir nas casas assim pra brinca, né? Aí, vai tomando conta até findar. Pro pessoal

ter respeito, essas coisas todas pelo Boi. Porque tem quem gosta de bagunçar. Porque

no meio de muitos, têm cinco, seis que gostam de querer bagunçar... Querer jogar

pedra, é cortar, coisar, então o pessoal dá em cima pra eles... Aí eles param. Aí, não

finda enquanto ele não entrega aquele Boi pro dono e sai a responsabilidade da costa

dele. É uma ajuda que a pessoa dá. Aí agradecem e vai embora.

EUDES: O Faceiro tá com vinte Pirrôs. A gente coloca o boi com vinte depois

multiplica pra cem. A gente tem dois Cabeçudos, quatro Cavalos com roupa e uma pá

de máscaras pra Buchudo. Aí escolhe entre eles. A gente dá prioridade pelos que

dançam melhor. Tem o Marcilon, ele dança muito bem embaixo do Boi. Ai a gente diz:

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“Olha Marcilon, tá aqui as seis calças. Escolhe os caras lá que tu acha que tem que

brincar”. Aí a gente deixa por conta dele, ele faz o acordo com os caras. Tal hora o

fulano passa a calça pra ti... Eles vão negociando entre eles. A idade de um perna gira

entre 15 a 25 anos, tem que ter força...

SOBRE CONTINUIDADE DA FESTA.

VITAL : Em primeiro lugar tem que ter força de vontade pra festa não acabar. No

início de nossos antepassados, o bloco de mascarados andava a remo nos cascos

grandes com aquele remo de faia, um remo comprido que mexe aqui numa forquilha.

Então já na nossa nova geração a gente já passou a ser transportado a motor. Acho que

o pessoal tinha mais vontade que a gente. Agora é uma nova geração de participantes

do grupo. E tem muitos desde pequenino. Já tem ...Está com aquela intuição... Ele tem

um menininho que inclusive nós já quase teimamos, porque este tipo de bloco não

permite menores de idade, mas as crianças quer ir por aqui pelo setor. A gente leva não

em todas apresentações. Elas ficam com a vontade. A maioria vai aprendendo quando a

gente vai dançar naquela localidade. Aí já vão olhando como é. Aí, quando chega numa

certa idade ele já está por dentro de tudo como vai acontecer. Aí eles diz que quer

brincar.

ZENÓBIO: Existe uma oficina direto porque eu me disponho a ir pra lá consertar

fantasia da Bicharada e isso é uma oficina que acontece lá em Joaba direto sem apoio

de poder público. A gente compra o material, vai pra lá. No momento que eu chego lá

todo mundo diz: “Chegou mestre Zenóbio. E aí, vai ter serviço?” Eu digo: “Vai!”; “E

então, vai começa a trabalha?” Muitas vezes vêm aquelas crianças... Vai tá

atrapalhando e aí muitas vezes a gente diz: “Tu tá atrapalhando! Vai pra lá...” Aí depois

a gente volta atrás e diz: “Senta aí, fica quietinho”. Ele quer participar, quer fazer um

qualquer coisa com o material eu digo: “Olha, não estraga porque é só isso que nós

temos de materiais... Porque não é à vontade”...

A TRADIÇÃO ESTÁ AMEAÇADA?

EUDES: A tradição não tá ameaçada pelo fato de estar no nosso sangue, de fazer parte

da nossa vida. Sempre vai ser dado um jeito pra que a gente coloque o Boi; que a gente

não desiste.

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CUTACA: Garantido, garantido a gente não está. Porque agora quando a gente tinha

mais uma garantiazinha, quando tinha pouco Boi. Porque era o Garrote, o Tinga e o

Faceiro. Não se falava em outros Bois. Agora tem Alce, tem Leão, tem Búfalo, tem o

Boi do prefeito, tem o Rei do Campo, tem o Pai do Campo. O Dinossauro não sai

mais. O dono dele toca pra nós e assim vai indo. Tem Touro, tem um tal de Leão e o

Caribu que é lá do Pereru. Eles tão vendo que tá crescendo, que a gente tá sendo

enxergado e todo mundo tá pondo.

VITAL BATISTA: Nós somos a cabeça deste negócio. Se nós larga de mão, acaba. Os

mais novos pode até querer de fazer, mas não como nós. Se eu e ele largar, aí acaba

mesmo. Não sei daqui de quando eu morre e ele morre, se vai existir o Última Hora,

pra frente.

ZENÓBIO: É muita dificuldade, fazer a festa. Quem faz a festa tá se enterrando. Vive

momentos difíceis e até mesmo de constrangimento, de falta de recurso. É querer fazer

uma trabalho, desempenhar, e a gente não tem. Grita e não tem quem ouça. E aquilo

desespera a gente.

RECONHECIMENTO

ZENÓBIO: Eu pedia assim: “Meu Deus, quando é que vem o reconhecimento?” Tanto

sacrifício e eu queria que alguém de fora visse essa beleza daqui, falasse por lá mesmo.

Cada vez que eu chego em Cametá é um povo a mais. Foi tão de repente que a gente

não tava esperando. A maior recompensa que a gente recebe é aquele reconhecimento

do público. Que valoriza. Reconhece e valoriza o trabalho que a gente faz. E a maior

recompensa que a gente recebe é do povo; um povo maravilhoso, onde tudo que a

gente faz a gente ganhou como crédito. A gente ganhou um crédito. Eu ganhei um

crédito do povo que me chama de mestre. Eu não sou mestre, eu tou aprendendo. Eu,

sabe como é, eu sou curioso, eu insisto naquilo. Quando eu digo vamos fazer, vamos

fazer mesmo. Qualquer horário que marquem pra mim, começo sem dificuldades

nenhuma. Vamos fazer então. Isso daí que é meu forte, taí.

VITAL BATISTA: Bem poucos reconhecem e dá valor. O reconhecimento que eles

têm é de pagar aquele cachezinho que dá pra pagar a lancha, pagar os músicos, a

despesa que a gente faz.

EUDES: Hoje, a gente já é reconhecido. Não só pelo que a gente faz, mas pela luta que

nós temos diante de todas dificuldades no município. Essa questão da perseguição

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política etc. O Boi Faceiro arrasta a maior parte do povo de São Caetano. A gente até

tem uma frase: “O Boi do povão...” Porque você viu a massa que o Boi arrasta? Isso é

uma forma de reconhecimento. Com certeza existe uma resposta da comunidade, o

reconhecimento desta luta que nós temos. Só o fato do povo mesmo ir atrás do boi já é

gratificante.

CUTACA: Simplesmente eu até já saí em revista. Porque meu nome tá aparecendo

longe. Pra mim fico muito alegre com isso, de saber que eu tenho uma brincadeira aqui,

como o Garrote. Pra mim fico muito satisfeito. Quando eu chego ali na cidade todo

mundo pergunta: “Quando o Boi vem pra cá? Quando o Boi vai sair?” Todo mundo

conhece, a cidade é pequena. Tanto cidade quanto no interior também conhecem.

FAMA:

ZENÓBIO: Eu sou conhecido muito no meu município Cametá. Eu devo isso a eles,

esse grande reconhecimento do meu nome. Aqui em Belém as pessoas sabem quem eu

sou, às vezes pede autógrafo. Mas eu não gosto. Assim, não tô preparado pra aparecer,

pra tirar proveito do mídia. Mas as pessoas do bairro sabem. Eu tenho muito

entrosamento com as pessoas idosas, tento conservar a amizade com as pessoas idosas

da minha família. Eu gosto de estar entrosado com a juventude, gosto de me entrosar

com eles...

VITAL BATISTA: Valorizar com mídia nunca apareceu. A gente trabalha em defesa

da natureza, critica a sociedade, principalmente vindo lá dos grandes, e com esse

negócio eu agradeço ao apoio do povão que nos consagrou como o grupo mais famoso

de Joaba. Já gravamos dois CDs. Me considero um cantador porque cantor são os

grandes de grandes palcos. Cantador são estes aqui, caboclinho da beira da praia, da

roça, fazendo suas piadas. Eu não me considero. Quem me considera é o povão como

um cantador. Em 1990, todo mundo falava do tempo da Última Hora...

TEM ALGUMA RECOMPENSA?

VITAL BATISTA: Só cansaço. É só por causa que a gente gosta.

ZENÓBIO: Recompensa sim, no futuro, porque se a gente não enfrentar as

dificuldades de estar colocando, vai existir um vazio daqui com o tempo. Entra essa

juventude, morre Zenóbio, já morreu Mestre Penaforte.

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CUTACA: A gente tem uma ajudazinha pra fazer a festa todo ano. A gente não tem

condição de colocar, porque sai muito caro pra gente. Esse ano, com toda minha

doença, eu não tive ajuda. Aqui nós não temos ajuda da prefeitura pra essas coisas. Nós

não temos ajuda, a gente põe porque a gente gosta. Vai fazendo devagar, vai pegando

dinheirinho e ele sai. O prefeito tem três Bois; um que sai e dois que fica em exposição.

O Mascote, o Búfalo e um outro. Ele ajeita o dele e esquece a gente. O Tinga ele ajuda;

dá 500 reais pra cada saída do Tinga. Nós somos esquecidos. Os amigos vêm dá uns

pregos, outros vêm dá uma ajuda, outros intera pra comprar o couro. Eles cooperam

com a gente assim por exemplo nas casas. A gente sai pra carteá, aí um dá três, outros

dá dois, ajuda pra pagar a orquestra. Eles dão ajuda pra brincar nas casas.

EUDES: Não, a gente faz por amor porque ganhar a gente não ganha nada porque o

Boi sai na rua. O que acontece é o seguinte: arrecada 100 reais, 70 reais e a gente vai

juntando com o cachê de Belém porque a gente quer ver sair bacana, tudo padronizado,

a camisa, a calça dos músicos. A gente faz bacana porque a gente gosta. Este ano a

gente colocou a Quadrilha com as mesmas dificuldades do Boi, fazendo quermesse,

bingo, pra poder fazer a Quadrilha. Tem muita gente nestes últimos anos que tava com

a gente que veio a constituir família dentro do grupo e saiu. Hoje já são outras pessoas

novas no grupo, uma nova geração que tá com a gente aqui e a gente não conseguiu se

estruturar.

SATISFEITO COM A VIDA?

VITAL BATISTA: Eu tô que nem o Zeca Pagodinho diz: “por tudo que Deus me deu,

bem ou mal já é uma alegria de estar aqui vivendo, deixo a vida me levar...”

ZENÓBIO: Ah sim, supersatisfeito. Eu queria ser, se morresse e tivesse a

reencarnação, eu queria ser o mesmo.

CUTACA: Eu tô satisfeito porque tem que ser como Deus quer, como Deus quer a

gente tem que ficar satisfeito. Não adianta não ficar satisfeito porque a gente esteje

com saúde tem que tá satisfeito. Não tá satisfeito, mas tem que ir indo como Deus qué.

Eu caí nessa enfermidade, porque eu quase morro, eu tive infecção pulmonar. Eu fiquei

triste, agora eu tô satisfeito pra que eu estava, eu tava me acabando. Aí, hoje em dia eu

já saio pela cidade.

EUDES: Não, a gente tá passando por esse momento difícil devido as perseguições

políticas...

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QUAIS SÃO AS SUAS AMBIÇÕES?

VITAL: Com o bloco a gente gostaria de chegar numa mídia como o Caprichoso e

Garantido de Parintins. Que o Turismo desse valor pra gente e nosso “fofó da ilha”1

quem sabe não era um dos preferidos.

ZENÓBIO: Ambição é aquela que a gente escolheu mesmo, sei lá, desde infância que

eu venho trabalhando com meu pai nestas coisas de decoração de igreja. Ele trabalhava

com estas coisas de confeccionar cenário, ele era músico e ele que me deu aquela mão

pra esse caminho. Acho que foi por aqui. Porque eu não tenho ambições nenhuma: só

de fazer aquilo o que eu gosto.

CUTACA: Pro futuro a gente deseja que seja a melhora. A senhora chega no nosso

lugarzinho e diz: aquele Boi do seu Raimundo tinha 100 palhaços, tem brincante que se

cansa. A gente já tem aquele amor que as coisa tão se organizando e quando não tá

organizada a gente fica triste de ver certas brincadeiras organizadas e a da gente não. A

gente tem vontade, mas não tem o principal... Meu sonho é que as coisas melhore daqui

pra frente. Nunca pensei isso na minha vida, de ter um dia este apoio do pessoal da

cidade. Eles gostaram muito da gente brincando lá.

EUDES: Depois que meu pai faleceu a gente resolveu formar a Associação Mestre

Bené. A gente quer arranjar um fundo pra manter isso daí. A gente vem insistindo

nessa idéia de associação porque a gente pensa assim: não só fazer associação que

venha ter o Boi Faceiro, que venha ter o Grupo de Tradição Popular Salvatá, que venha

colocar uma Quadrilha, mas também, com objetivo de mostrar uma alternativa pros

jovens, uma forma de se divertir, uma forma de preservar a nossa cultura, fazendo esse

tipo de coisa aí. E também através dessa associação, trazer, por exemplo, um curso de

informática, fazer esse tipo de ação e ser reconhecido por isso.

1 Fofó da Ilha: O mesmo que “mascarados da ilha”.

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TEM ALGUM APELO A FAZER:

ZENÓBIO: Então eu achava que deveriam assim, olhar com mais carinho pra nossa

cultura, pro nosso povo do interior que tem aquela cultura, e aquele folclore tão bonito,

tão divertido aquilo, que emociona a gente. Ele que causa emoção, tá lá no interior

enterrando-se cada vez mais por falta de apoio.

VITAL: A gente tem uma dificuldade no interior é músico de assopro como o

Zenóbio. Se a gente tivesse um instrumento de assopro, ia ser mais fácil, a gente podia

sair para outras praias, porque pra pagar a gente não tem condição.

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OS “PERNAS”

Desde os quatro ou cinco anos de idade as crianças de São Caetano brincam de “perna”.

Primeiro brincam de boi-bumbá com a fofóia de coco, depois quando ficam maiores

brincam com a fofóia de Abacaba, que é mais pesada. Em seguida, com o boi feito de

paneiro, para só então, aos 15,16 anos poder brincar no boi de vara.Os bois de São Caetano

têm dois “pernas”. A vestimenta de um “perna” é camisa, calça e o meião com a mesma

cor do boi. Cada dupla de “pernas” dança duas marchas e dois sambas, quando o boi para

em uma casa para se apresentar. Quando o cordão do boi sai para se apresentar em outra

casa já é outra dupla que carrega o boi nas costas. As crianças ficam encantadas com a

performance dos “pernas”. Eles conhecem os brincantes e formam uma platéia

especializada. Nas apresentações os pierrôs e os buchudos forçam o boi pra baixo com o

braço. O boi para garantir seu espaço resiste investindo contra a platéia. Neste embate

quem toca o boi é o vaqueiro, um homem vestido de chapéu e camisa xadrez que coloca

uma cavalinho de pelúcia na cintura e dança simulando que vai laçar o boi.

A seguir apresento entrevistas feitas em 2004 com três pernas do boi Garrote: Messias

Oliveira de Jesus ,39, perna desde a fundação do boi ;Wander José de Jesus Dias, 21 anos e

Joelson Chagas dos Santos,16, filho de Cutaca .

“Tenho fé em Deus

que quando eu

crescer vou pular em

baixo de um boi!”

Giovane dos Santos,13,

filho de Cutaca.

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Messias Oliveira de Jesus, 39 anos, Piroca“Perna”1 desde a fundação do boi Garrote

COM QUE VOCE TRABALHA?

MESSIAS: Eu trabalho com pescaria.Pesco com o Japonês . Quando o Japonês vem levo

ele pra pescar , pego isca. Só de linha de mão, daí pronto. Vai de manhã e só seis hora da

tarde ta chegando.Trabalho é de semana em semana .

O QUE SIGNIFICA A BRINCADEIRA DO BOI PARA VOCÊ?

MESSIAS: Eu gosto muito de pula de baixo do boi. Tenho parceiro fixo que é o Curunca.

A gente ta com aquilo na cabeça, de pula. A gente tem que pula com os passos certos. Se

pula um na frente e outro atrás a gente não agüenta debaixo do boi. Aí dói a coluna pronto,

só agüenta uma música.

HÁ VÁRIOS TIPOS DE DANÇA?

MESSIAS: É prum lado, pro outro.Um cara fica parado o outro roda com o boi de um

lado pra outro.... certo....Agora se um pula pra frente e outro pula pro lado, aí não tem

condições de dançar. Aí todo tempo a gente cansa. Nem bem termina a música tem que

parar com o boi senão a gente não agüenta .

TEM DIFERENÇA A DANÇA DE UM “PERNA” E DE OUTRO?

MESSIAS: Tem a diferença porque um pula de um jeito o outro pula de outro. A gente

pula de um jeito, já tem outros pernas...O Caca e de Leon já pula de outro jeito. A

diferença é nos passos, que a gente pula bem no ritmo da musica até terminar. Eles não,

pulam na pancada pra que ó .......O de Leon e Caca vão pra cima mesmo, pra cima dos

brincantes. Assim não presta. É só de pular e fazer a roda e balanciar o boi, pronto.

1 Tripas ou Pernas: aqueles que ficam em baixo do Boi. Desde crianças os meninos treinam ospassos do Boi em uma dança ritmada, com passos sincrônicos. Diferente de outros lugares, o Boide São Caetano tem duas tripas ou pernas.Fofoia: tala do palmeira utilizada como dorso de boi-bumbá pelas crianças como treinamento paraser perna.Carqueado: é o gingado do boi.

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ENTRE AS CRIANÇAS, O ASTRO DA FESTA DO BOI SÃO OS “PERNAS”?

MESSIAS: As crianças ficam tudo olhando Eu acho bonito quem qué dança debaixo do

boi.Pra mim é mais bonito dançar de baixo do boi que num Pirrô .

TODOS SABEM QUEM SÃO OS “PERNAS” ? RECONHECEM QUEM É QUEM?

MESSIAS: Todo mundo sabe . Sabe tudinho. Todo mundo sabe o nome da pessoa . “Tal

fulano aqui tá debaixo olha.De Leon ta aqui” .Já sabe, porque não é.... todo mundo do

povo brinca de baixo de um boi. Mete o boi na cabeça, não sabe pular. Pula um prum

lado, outro pra outro, ai fica feio .O boi Pereru...O rapaz disse que a musica é bonita mas

não sabe brincar em baixo do boi, isso que é importante.

É MUITO ESFORÇO?

MESSIAS: Sai suado, sai suadão. Porque um boi desse pesa. Se a gente pular devagar a

gente vai cansar rápido, tem que pular no jeito da música.Terminou pronto. Daí pulando

só, devagarzinho, os mascarados ficam amassando o boi, a pessoa não agüenta .Tem que

pula mesmo com meia força, balançando o boi . Aí a pessoa agüenta

AQUI EM CACHOEIRA TEM MUITO “PERNA” BOM ?

MESSIAS: Tem muito moleque agora que são bom mesmo de perna. Nois tem um boi lá

pequeno que a gente coloca ...O vermelhinho só pra criança mesmo .A gente ta

experimentando os moleque prá por debaixo do boi. Tem gente que se sai oi...Tem esse

daqui , o outro de novo aqui, mais dois meninos: o Jean e outro menino. O resto não dão,

muito zarolho.

COMO SÃO OS COMANDOS EM BAIXO DO BOI?

MESSIAS: Eu fico na frente . Quando der a gente avisa pro parceiro. A gente diz : “olha

agora a gente vai pular, eu fico parado, você fica rodando oi-i!!!”.Ele dá duas rodadas uma

prum lado, outro pra outro, daí: “ Para de rodada ,agora um passo pra cá, um pra lá.” A

gente combina porque se a gente da um passo e dois na frente e outro doutro jeito aqui

atrás a gente já perde e já fica dançando tudo fora de jeito.O Garrote tem oito pernas

titulares de 20 anos o Ney tem 17 anos.

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A DANÇA DO BOI MUDOU MUITO?O QUE MUDOU NA FESTA?

MESSIAS: Saio desde que o boi foi fundado, aqui do Cutaca...Não mudou nada . Continua

os mesmos passos. Agora deu mais brincantes, deu mais Pierrô, uma faixa de quase

cinqüenta brincantes. As fantasias mudaram porque agora é muito Pirrô que fizeram do

São Paulo antigamente não era. Era só mesmo de uma cor agora não, fizeram do São

Paulo, Palmeiras, Grêmio, do Remo, do Paisandú, tudo isso tem Pirrô. A maioria que tem é

do São Paulo. São oito Pirro. Os outro, cinco do Palmeiras, oito do São Paulo, quatro do

Remo e um do Paisandu.Tem um que qué fazer do Real Madri, mas fica difícil achar o

cetim da cor. As máscaras agora é da cor do Pirrô. Um do São Paulo a máscara era da cor

do São Paulo vermelho branco e preto. Do palmeiras também só mudava a cor. Fica mais

bonito.

Joelson Chagas dos Santos,16 anos,Joeca

Filho do Raimundo Santa Rosa (Cutaca)

COMO VOCÊ COMEÇOU A BRINCAR?

JOELSON: Eu comecei a brincar embaixo dele eu tinha uns dez anos assim. Ai o pessoal

começaram a brinca comigo, ai eu fui me acostumando com isso. Acostumando,

acostumando, agora eu brinco debaixo do boi com isso. Agora tem uns que são muito ruim

de pular debaixo do boi. Meu parceiro é um baixinho que mora prali ,o nome dele é Max.

De vez em quando eu brincava por ai com meus primos, meus irmãos. Ficava na

sacanagem deles. Eu pegava e brincava com eles de boi, convidava os moleques, aí

colocava o boi do rapaz ali, emprestava. Eu gostava de ver eles brincarem sempre. Tem

vez que eu batia(tambor) pra eles, ganhava um dinheirinho, ai eu batia com eles , ai eu fui

me acostumando nessa arrumação.

QUAL A IMPORTÂNCIA DA FESTA DO BOI PARA VOCÊ?

JOELSON: É uma brincadeira super legal que o pessoal acha. Se por exemplo o boi não

sair um ano aqui acho que fica desanimado Cachoeira. Aí pra fazer isso pra galera se

divertir mesmo no mês de junho, é só isso que tem por aqui.

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É MUITO CANSATIVO SER “PERNA”?

JOELSON: De vez em quando ,quando a gente cansa assim a gente manda ele comprar um

refri pra gente ele compra. A gente merenda bacana e vai brincar de baixo do boi

EXISTE ALGUM RECONHECIMENTO DA COMUNIDADE?

JOELSON: Existe muito. A partir do momento que tem que deu vontade de brincar de

baixo do boi, às vezes ate me pedem pra ir junto comigo brincar debaixo do boi. Meus

irmãos, esse daqui, esse outro aí, de vez em quando eu brinco debaixo do boi , quando o

boi se aproxima dali da Cachoeirinha, ali eu brinco com eles. Porque fica mais leve . De lá

pra lá não, por que os brincantes já começam a forçar o boi não tem condições de eles

brinca. Os brincante já forçam o boi pra ele ficar mais animado, fica mais animado. Ai a

gente faz aquele negócio que eles gritam mesmo, fica mais coisa. Eles apertam a cabeça do

boi, a gente vai embora lá pra baixo, a gente vai e dá nosso jeito pra gente poder sair da

mãos deles, senão, eles vão ficar amassando, amassando devagar, não vai ter condição da

gente sair da mão deles .

Eu dou um jeito que logo, quando entro debaixo do boi quero fazer logo qual que é do boi

pra ficarem esperto logo.Enquanto eu balanço o boi por ali, o rapaz ...Aí, eu faço o

carqueado2 aqui na frente ele pula atrás,esse negocio de boi bravo. Quando é na saída eu

corro pro meio do pessoal pra da mais espaço pro boi, pra gente brinca direito, porque o

pessoal muito em cima, não tem condição de ficar é muito forçado.Tem um bando de

brincante que também qué brinca, ai o jeito é dar em cima do pessoal pra abrir mais .

QUAIS SÃO SUAS AMBIÇÕES?

JOELSON: Eu gosto de brincar todo ano no boi e é uma tradição pro pessoal. Aí o pessoal

fala... Um dia desses, meu pai fez um boizinho pras crianças. Aí, eu começava a pular de

baixo. Aí, eu não gostava de ver... não gostava de ver as crianças debaixo de um boi

pesado desse aí. Aí não tinha condição pras crianças brincarem. Aí um dia desse, meu

irmão fez um de paneiro pra agente brincarem por aí. Aí o papai já inventou ...Este ano

2 Carqueado é uma dança mais mansa do boi, balanceada. O boi faz o carqueado quando não tem musicapreparando um bote para partir pra cima do vaqueiro.

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não saiu, mas o outro ano vai sair. Esse ano não saiu.Os meninos escangalhou tudo, aí o

papai adoeceu e não deu pra fazer outro..

Wander José de Jesus Dias, 21

SOBRINHO DO PIROCA

COMO É A SUA VIDA AQUI?

WANDER: Eu moro aí, estudo e faço quarta etapa.Levo turista pra pescar.

QUANTOS IRMÃOS VOCÊ TEM? NO QUE SEUS PAIS TRABALHAM?

WANDER: São quatro homens duas mulheres,o pai é pescador,todos estudam a mãe

trabalha em casa.

COMO COMEÇOU?

WANDER: Vinha, tinha vez que não aparecia ninguém, aí a gente vinha se interessava

em arrumar a calça , e ai a gente brinca. E começou a ficar certo o pessoal que brinca em

baixo do boi.

COMO VOCÊ COMEÇOU A BRINCAR EM BAIXO DO BOI? QUEM COMANDA A

BRINCADEIRA?

WANDER: Eu brincava de mascarado e ficava olhando, ai eu pensei e disse: “Acho que é

legal pula de baixo” ai eu peguei fiquei olhando e prestava atenção toda vez e comecei a

brincar normal...Brincava primeiro atrás e depois fui pra frente. Quem comanda é quem

vai na frente faz o babado leva quem vai atrás. Tem que ta prestando atenção no que o da

frente vai fazer. Isso que é importante, o que vai na frente vai faze.

AS CRIANÇAS FICAM ADMIRANDO QUANDO VOCÊ DANÇA?

WANDER: As crianças ficam admirando porque a galera faz o babado, vai em cima volta,

ai faz o agá do boi lá. O meu parceiro é o Raimundinho .Tem diferença de um pern,a pro

outro Um faz mais o caqueado, outro vai mais lento só pra balançar o bicho.Tem vários

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critérios. A gente fica de olho, ai um vai faz mais um caqueado, outro vai mais pra bater os

brincantes vai em cima com...Caramba logo agente vê esse ponto...

COMO VOCÊS COMBINAM OS PASSOS?

WANDER: Tem de manter assim... Tem que conversa de baixo do boi quando vai pra

corre assim, porque se o da frente corre e o de baixo fica vão cai os dois. Então, a gente

tem que de vez em quando falar: “Vamos correr! Vamos fazer bravo!” E aí começa a pular

os dois debaixo.

CADA DUPLA DE “PERNA” INVENTA SEUS PASSOS ?

WANDER: Vai de cada perna.Tem perna que faz inventa outros passos rápido, assim pra

animar a galera dos mascarados, as pessoas, os brincantes .Eles começam a grita e eles...

ai que eles fazem mais graça ainda Vai em cima dos pessoal que tão olhando, ai volta .

OS “PERNAS” DO GARROTE CONVIVEM COM OS “PERNAS” DO BOI FACEIRO,

DO TINGA? EXISTE RIVALIDADES ENTRE O PESSOAL DO CENTRO E DO

BAIRRO?

WANDER: Eles...Não tem esta...Eles moram pra lá na cidade, no centro mesmo e o

pessoal do Garrote mora no bairro da cidade. Aí não tem esta comunicação.Daqui mesmo

nós não se comunica, mas muitas vezes o mesmo que brinca num Tinga ou no Faceiro

brinca na Zebra. A mesma coisa . Eles vão mesmo pra brincar, por esporte mesmo, assim

pra se divertir. Eles brincam num ai, notra vez sai outra . Aí vai lá e pede a calça pro

dono.

BRINCAR EMBAIXO DO BOI É UM ESPORTE POR AQUI?

WANDER: Acho que é um esporte: tem que ter força nos braços e agüentar na costa. Por

que muitas das vezes os mascarado ficam empurrando, bota a mão em cima, monta em

cima do boi, os pessoal, os brincante de baixo tem que agüentar senão vai cair.

O pessoal vai mesmo assim normal , não aquece nada .Qué vê, uns quando eles acabam de

brincar debaixo, eles ficam pulando dançando pra....Uns ficam pulando pra esquenta o

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corpo pra poder entrar em baixo. Aí eles ficam pulando também junto, começam a gritar

pra dar ânimo, força, pros que tão dançando de baixo.

EXISTE TITULARES E RESERVAS?

WANDER: Tem os pernas fixo agora tem perna que não sai, não dá pra ir, eles convidam

outro um perna. O chefe o dono do boi aí ele chama, manda chama .

TEM MUITA GENTE QUERENDO SER “PERNA”?

WANDER: Tem muitas gente que gosta, que quer dançar em baixo do bicho, mas tem

vezes que não da perna pra todos pessoal.O povo esses anos que não tem ajuda , eles.

mesmo que colocam a brincadeira pra sair , com esforço deles mesmo.

VOCÊ JÁ GANHOU PARA SER “PERNA”?

WANDER: Quando da bom o perna ganha pra pula . Mas quando da pouco o necessário é

pros músicos .Eu brinco mais pra se divertir pela brincadeira .

NA SUA OPINIÃO QUEM É O MELHOR “PERNA” DE CACHOEIRA?

WANDER: O Piroca meu tio, ele dança um tempão ele já é mais velho na brincadeira, ai

já sabe mais um pouco

QUAL A IMPORTÂNCIA DA FESTA DO BOI PARA VOCÊ?

WANDER: Todo ano não pode faltar, é uma alegria, uma diversão.Todo ano dá o ânimo

de brincar, é importante .Desde moleque já brincava , palhaço depois ia de Pierrô agora já

faço parte das pernas do boi.

QUAIS SÃO SEUS SONHOS?

WANDER: Meu sonho é trabalha pra ter alguma coisa, no futuro, estuda, termina os

estudos. Por que sem termina os estudos não dá pra chegar em nenhum lugar. Eu sonho em

levar alegria pra outros lugar, assim através de nossa cultura, pra outros pessoais que não

tenha assim essa diversão da gente .

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DESENVOLVE OUTRAS ATIVIDADES ARTÍSTICAS?

WANDER: Em setembro sou um dos instrutores da banda marcial do colégio e

quadrilha... no mês de junho a gente monta quadrilha. Mas este ano não teve apoio de

ninguém.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Considerações Finais

Muitas coisas já mudaram em São Caetano de Odivelas desde que comecei esta

cartografia em 2000. A estrada de acesso que era de terra e esburacada e impedia um maior

fluxo de turistas já foi asfaltada. Alguns bois não se apresentam mais: O dinossauro foi

queimado quando seu dono foi embora da cidade; o dono da Zebra também não esta pondo

mais a brincadeira, agora bate tambor para os bois Garrote, Tinga e Faceiro. Mas o

SEBRAE organizou no final de 2004 um novo festival cultural e certamente nasceram

novos personagens do boi de máscaras. Soube que Do Reis estava quase cego de um olho e

com o outro estava enxergando pouco porque estava com catarata em estado avançado.

Mas apesar das dificuldades continuava construindo bois. Muitas pessoas se mudaram de

São Caetano. Minha anfitriã Cristina se separou e foi para São Paulo. E seu cunhado

Edílson vendeu o trapiche onde pintei o quadro rio Mojuim.

Como a vida, a festa segue mudando dia a dia. O que nós representamos nesta

cartografia foi apenas um momento fugaz daqueles ribeirinhos. O que ficou registrado para

sempre nestas pinturas e textos são nossas crenças, valores e preconceitos. Assim como

muitos outros viajantes vem fazendo nestes últimos 500 anos.

****

As retratações da Amazônia, do século XVI ao XVIII, contribuíram para se

construir uma imagem do Norte do Brasil, condicionada ao universo cultural dos artistas

viajantes e seus interesses. Estas representações se valeram de técnicas pictográficas e dos

imaginários coletivos dos europeus, para criar um modelo acessível para as matrizes da

cultura ocidental que os patrocinavam. “Trata-se da representação de uma região

Amazônica e de um continente América por outro Europa efetuado para satisfazer as

necessidades do segundo sobre o primeiro...1”

Durante este processo, muitos mapas concediam vantagens estratégicas sobre a

região em prol das nações que eram patrocinadoras imediatas das representações. A

1 TELLES DA ROCHA, Luiz Francisco Rodrigues Bitton. Práticas Imagéticas nas Retratações da Amazônia: SéculosXVI, XVII e XVIII..São Paulo, Dissertação de Mestrado.1999

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infantilização dos indígenas e a inadaptabilidade para explorar as riquezas das terras

descobertas são outros aspectos falseados por esses mapas e cartas náuticas.

O que se reconhece, nesses vários exemplos de prática imagética, é a

satisfação de expectativas, que chegavam ao ponto de deformar as

geografias ou a sua imagem, mas, apesar de tal postura, acabavam se

afirmando como verdades, estereótipos que, embora fossem encarados como

realidades distantes do mundo europeu, eram certezas interiorizadas e

extremamente arraigadas naquela cultura”2.

O nativismo de Gonçalves Dias, a antropofagia dos modernistas, procurou dar

novas respostas a estes modelos imagéticos criados pelos europeus. Os artistas brasileiros

buscavam construir uma representação do país a partir do imaginário de seu próprio povo.

Na verdade, as viagens nunca transladam o viajante a um meio

completamente estranho, nunca o atiram em plena e adversa exterioridade.

Alteram e diferenciam o seu próprio mundo, tornando-o estranho a si

próprio. O estranhamento da viagem não é, assim, relativo ao “outro”, mas

sempre ao próprio viajante, que se dá conta da própria relação de alteridade.

Como diz Rousseau, ao conhecer o outro só chegamos a nós mesmos, neste

movimento que não se fecha em si, mas só faz alargar3.

Apesar de várias versões fotográficas, editoriais e televisivas estarem divulgando

constantemente informações sobre a Amazônia nos meios de comunicação de massa, as

referências e os estereótipos sobre o norte do Brasil que tratavam da Amazônia como

inferno verde, ainda estão muito presentes no imaginário nacional.

Do conforto de nossas poltronas entramos, em segundos, em aldeias indígenas

isoladas e observamos o comportamento de homens ou de animais em extinção com o

mesmo distanciamento. Conhecemos a flora e a fauna, mas as diferentes paisagens

culturais da Amazônia continuam desconhecidas para maior parte da população. Os

personagens amazônicos, quando abordados de forma rápida pela televisão, acabam

realçando aspectos pitorescos dessa cultura tradicional.

2TELLES DA ROCHA, Luiz Francisco Rodrigues Bitton. Op. Cit., P. 122.

3JANCSÓ, István e KANTOR, Iris (orgs.) Festa cultura e sociabilidade na América Portuguesa. Vol. II. São Paulo.EDUSP/HUCITEC, P. 616.

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Para a artista-viajante compreender a complexidade desta cultura em apenas uma

viagem foi missão quase impossível. Assim, cada viagem escrita ou pintada nesta

dissertação é, na verdade, um folheado de várias expedições que aconteceram entre 2000 e

2004.

A cultura do ribeirinho, assim como “a cultura de cada país ou de cada povo tem

sua maneira própria de realizar de forma original a experiência universal da vida, não só no

conjunto das diferentes atitudes do indivíduo ou do grupo, como no âmbito das situações

humanas que o envolvem4.” Esta cartografia, portanto, é um diálogo entre culturas

diferentes, que integram dois lados da mesma civilização ocidental, mas que vivem em

duas temporalidades distintas: por um lado, encontramos a artista-viajante auto-exilada,

trocando a multidão da metrópole anônima e impessoal pela imensidão amazônica. Por

outro, encontramos o ribeirinho que vive mais próximo do universo oral. Ele vive

“diretamente ligado aos ciclos naturais, interioriza, sem conceituar, sua experiência da

história, ele concebe o tempo segundo esquemas circulares, e o espaço (a despeito de seu

enraizamento), como a dimensão de um nomadismo, as normas coletivas regem

imperiosamente os seus comportamentos5.”

Os artistas ribeirinhos são sujeitos que constróem sua cultura, enquanto assistem

através de antenas parabólicas a uma realidade na TV da qual eles são excluídos. São

pessoas que se situam “nos interstícios da estrutura social6”, mas traduzem, por meio de

suas manifestação artística, suas heranças ancestrais e suas esperanças, utilizando todo

arsenal cênico contemporâneo.

Para nós que vivemos

... num mundo dominado por vastas abstrações políticas, enfeitadas com

reluzentes símbolos e slogans propagandísticos e com medidas estatísticas: nação,

partido, corporação, área urbana, grande aliança, mercado comum, sistema sócio-

econômico etc, falta à nossa cultura a consciência viva de homens e mulheres como

são na realidade cotidiana7.

4 LOUREIRO, João de Jesus Paes. Op. Cit., 2001, .P. 109.

5 Idem ibidem, P. 36.

6 TURNER, Victor W. O processo ritual. Tradução de Nancy Campi de Castro, Petrópolis, Ed. Vozes, 1974, P.152.

7 ROSZAK, Theodore. A contracultura. Tradução de Donaldson M. Garschagem, Rio de Janeiro, Ed.Vozes, 1972, P. 65.

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Assim, ao coletar pictóricamente elementos desta identidade ribeirinha,

cartografando repertórios, práticas e festas que se manifestam o ano todo pelos vários rios

paraenses, estamos também produzindo identificações locais e novas ligações globais.O

fruto deste percurso, como todas as produções culturais que tentaram ler o Brasil, apontam

para “os modos como as culturas se olham e olham às outras, como imaginam

semelhanças, diferenças, como conformam o mesmo e o outro8.”

Por isso o caboclo é pop star, a Amazônia é palco, anfiteatro, a casa de farinha e as

armadilhas de pesca viram instalação cenográfica nas fotos e os santos viram objetos de

coleção. A religiosidade, o rito tudo vira composição artística. E a vida do artista vira uma

aventura.

Helicóptero, desenho dos ribeirinhos do Estreito de Breves.

8 BELUZZO, Ana Maria de Moraes. “Imaginário do Novo Mundo”, em O Brasil dos Viajantes. Ed. MetalLivros/Objetiva/Fundação Odebrech, 3a Edição, Vol. 1, P.13.

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BIBLIOGRAFIA

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ANEXOS

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Esboço do quadro Barco de Promesseiro de 2002

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Glossário

Açaí: palmeira muito comum na Amazônia. De sua fruta se extrai um suco.

Anajá: espécie de palmeira típica da Amazônia, a mesma que inajá.

Aninga: palavra de origem tupi, planta que brota vigorosamente dos pântanos,

lagoas, águas represadas; Nome científico: Caladium Arborescens. Possui

troncos cônicos, coroado por um buquê de largas folhas alinhadas verticalmente.

As flores e os frutos servem para isca na pescaria. A raiz em pó é empregada

como diurético. As folhas são usadas no tratamento de úlceras e as fibras do seu

caule são têxteis (cordas, cabos, papel). SALLES, Vicente. Vocabulário Crioulo.

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Assaçu e Castanheira: árvores grossas de onde se retiram tábuas largas e

resistentes que são ideais para a construção náutica.

Bambaê do rosário: dança ritual nas comunidades remanescentes de quilombos

Mola, Itapocu e Juaba, no município de Cametá. Consiste, entre outros ritos, na

coroação do rei e rainha do Congo.

Bangüê: pequeno conjunto musical e, por extensão, de dança, que executa uma

espécie de samba. Nas apresentações a música é sempre executada de

“enversada”, ou seja, composições musicais com versos de improviso. Às vezes

se apresentam com dançarinos em bailes e festas.

Boi bravo: o enredo dele é diferente do Boi tradicional. Eles não contam toda a

história do pai Francisco e mãe Catarina. É um Boi que tem máscaras e é

apresentado com danças. Apenas algumas pessoas usam máscaras. A

brincadeira é assim: alguém é muito feio e então faz uma máscara muito feia, ou

então faz uma máscara de um conto, de uma lenda de algum bicho e de algum

animal. Eles mesmos vão criando a máscara deles. E as roupas são enfeitadas,

bem coloridas, repletas de fitas. O Boi bravo não tem nem ama; quem manda é o

Boi mesmo. É ele, o Boi, que é o centro de tudo. Este Boi sai em Carapajós.

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Batalhador: expressão colhida em Abaetetuba que se refere ao motorista de

“táxi-bicicleta”, que fica nas ruas de Abaetetuba esperando freguesia para levar

na carona da bicicleta.

Bicharada: é um cordão de bichos fundado por Mestre Zenóbio há cerca de 30

anos, que costuma desfilar no carnaval e nas festas da padroeira, nas ruas da vila

Joaba e em Cametá, animando e proporcionando distração à própria comunidade.

Apresentam-se com cerca de 64 personagens que imitam animais reais da

floresta. Usando fantasias de pelúcia estes animais, ameaçados de extinção,

representam uma comédia em que contam as dificuldades de sobreviver nos

tempos da devastação. Acompanham o cordão uma banda composta por sax,

reco-reco, banjo, tambor e cavaquinho .

Boi campineiro: Boi de enredo com mais de 100 anos de idade que foi criado

pelas comunidades quilombolas de Joaba.

Boi-de-máscaras: categoria de Boi-Bumbá encontrado no nordeste do Pará, em

São Caetano de Odivelas, onde o boi tem dois “pernas”, ou “tripas” e não usa saia

nem enfeites no corpo como os Bois maranhenses. É acompanhado por um grupo

de foliões que usam máscaras e trajes de Pierrô.

Brincante: nome que se dá às pessoas que, dançando e brincando,

acompanham a folia do Boi-de-máscaras. da Bicharada,do Grupo de Negros,etc.

Brincar: Da Matta explica a etimologia da palavra que se origina de “brinco”, do

latim vinculu, com sentido de elo, relação. (Da Matta, Roberto. Op. Cit.,1981, p.

98) Portanto, brincar tem, entre outras coisas, a acepção de relacionar-se.

Bumbarqueiras: festas populares.

Brinquedos de miriti: Segundo Paes Loureiro, brinquedos de miriti são uma forma

de artesanato artístico fabricado com material da polpa ou bucha do miriti,

palmeira abundante nas áreas de várzea da Amazônia.

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Cabeçudo: personagem da festa do Boi de máscaras de São Caetano de

Odivelas utilizado por meninos pré adolescentes. Consiste em uma enorme

cabeça feita com papel-marche pintado de pink sobre uma cesta de talas, que é

vestida até a cintura do brincante. Completa o traje um paletó abotoado na altura

da cintura, de onde pendem braços feitos com enchimento e mãos de papelão.

Eles dançam em duplas, desajeitados, e ficam brigando entre si e com o Boi.

Capacete: adorno de cabeça em estilo mourisco ornado com fitilhos coloridos

sobre estrutura de tala da palmeira anajá .

Carimbó: dança e música tipicamente nortista, originário da fusão das danças dos

índios tupinambás com os ritmos agitados dos negros africanos. Desenvolvido

provavelmente a partir do batuque e roda de samba maranhense e acrescido de

outros instrumentos, este ritmo adveio e permanece mais vivo em três municípios

paraenses: Soure (Carimbó Pastoril), Santarém (Carimbó Rural) e na Zona do

Salgado. Os responsáveis pelo ritmo do Carimbó são dois tambores conhecidos

como curimbó, feito de couro de veado em um tronco de cerca de um metro de

comprimento e 30 cm de largura, sobre os quais o músico se senta para tocar. As

danças possuem uma coreografia definida como de grande sensualidade tanto

pelos movimentos quanto pelo traje da dançarina, que usa ampla saia rodada

com estampa florida, e em geral, uma espécie de top de renda.

Casco: canoa pequena, feita de uma só peça de tronco de árvore cavado, sem

banco, para transportar duas ou três pessoas, sendo que o tripulante ou canoeiro

senta na proa para conduzi-la. OLIVEIRA, Odaísa. Op. Cit., p. 28.

Cartiá: Ato de sair oferecendo a visita do Boi para as casas da região com

objetivo de dividir os custos dos músicos. Quem pede o Boi colabora com três ou

cinco reais, oferece bebida e comida para os músicos. Palavra derivada do

costume antigo de fazer cartas para oferecer o Boi, hoje substituídas pelo convite

verbal.

Catitu: máquina de ralar a mandioca construída com roda de uma bicicleta.

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Círio: de origem latina, cereus, o vocábulo círio designa uma tocha grande como a

vela pascal.Tanto em Portugal como no Brasil serve para designar romarias ou

mesmo procissões de maior porte em celebração do santo padroeiro do lugar.

LOUREIRO, João de Jesus Paes. Op. Cit., 2001, P. 374.

Buchudo: variantes criativas de personagem mascarado e barrigudo criado para

divertir o público.

Cordão de mascarado: é uma ópera popular de cunho carnavalesco que traz

várias figuras do carnaval. Além disso, conta fatos da vida cotidiana por meio de

versos. Utiliza instrumentos de sopro e percussão.

Curral: armadilha montada na margem do rio para pegar peixe.

Dança do negro: Espécie de dança que foi criada em 1988, em Joaba, pelo

centenário da libertação dos escravos. Contam que Mestre Zenóbio e seus

amigos estavam pescando no meio do rio, jogando tarrafa e aí tiveram a idéia de

homenagear o centenário da libertação dos escravos. A idéia era de falar dos

negros, do sofrimento deles, mas falar de uma maneira alegre. Criaram as

músicas e, pintando-se inteiramente de preto com carvão e óleo. Assim, fazem

suas apresentações até hoje.

Fazer mocomba: sair para pescar, para pegar mapará.

Fazer o convidado: organizar coletivamente a plantação de um roçado de

mandioca. Na ocasião o dono da roça dá a comida e, quando termina a

plantação, organiza o samba de cacete, o bangüê ou outra manifestação cultural

do lugar para poder animar a comunidade.

Festa do Solto: Festa organizada no início de Abril, em homenagem a São

Benedito, que acontece ao som de tambores em marcação cadenciada. É

realizada em Senador José Porfírio, rio Xingu, mas também é conhecida como

Festa do Gambá no município vizinho de Porto de Moz. O nome gambá surgiu na

época da escravidão, na boca do branco que, pejorativamente, referia-se ao fato

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dos negros dançarem suados após o trabalho. Originalmente quem participava

desta dança eram os negros escravizados e acorrentados que pouco podiam

mover os pés. Ainda hoje os dançarinos mantêm esse tipo de passo. No dia da

festa acontece uma procissão fluvial e terrestre e é feito o ritual de "levantação"

de mastro. No encerramento dos festejos religiosos, mais precisamente na última

noite da cerimônia, acontece a dança do Solto e se oferece a farofa no casco da

tartaruga, representando a fartura desejada.

Fofoia: tala do coqueiro utilizada como dorso de Boi pelas crianças como

treinamento para ser tripa.

Furos: canal sem correnteza própria que corta uma ilha fluvial.

Gapuiar: é um tipo de pesca artesanal que se faz dentro do igarapé.

Igapó: trecho de floresta inundada com vegetação que lhe é peculiar, às vezes tão

densa que chega a impedir a entrada de raios solares no seu interior.

Igarapé: riacho pequeno que atravessa túneis de vegetação, com águas bem frias

e de cor escura devido a sedimentos em seu leito. Costuma ser utilizado pela

comunidade como local para banhos ou caminhos de canoas e pequenas

embarcações.

Igarités: canoas cavadas em um único tronco de árvores, agilíssimas e curvas,

como se formassem, com aquele que ela navega, a híbrida figura mítica de

homem peixe. LOUREIRO, João de Jesus Paes. Op. Cit., pp. 179-180.

Inaja: nome científico: Maximiliana regia. Palmeira robusta que se desenvolve nas

terras secas, firmes e arenosas. Possui fruto comestível e sabor levemente ácido.

Jenipaparana: árvore da família das Lecitidáceas, família de plantas

dicotiledôneas.

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Jirau: espécie de pia de madeira bastante rústica geralmente colocada na janela,

na parte externa da casa, para que o assoalho não fique molhado durante a

lavagem da louça. OLIVEIRA, Odaísa. Op. Cit., p. 28.

Joaba: vila quilombola que integra o município de Cametá às margens do rio

Tocantins.

Lancear: sair pra pegar camarão com matapi.

Lundu: dança de origem africana, carregada de sensualismo, em que casal de

bailarinos desenvolve uma coreografia que sugere um convite à cópula. Tanto o

acompanhamento instrumental quanto os trajes dos dançarinos muito se

assemelham a dos dançarinos de Carimbó.

Marrierrê: festa que tem Nossa Sra. do Rosário como padroeira. É igual ao

Bambaê do Rosário, mas tem outro nome porque nasceu em outra comunidade.

Veio do Congo e refere-se à Congada africana.

Maromba: espécie de mesa construída no inverno, quando a água invade os

terreiros, para o gado dormir em cima.

Matapis: armadilha utilizada na pesca do camarão. Utensílio de forma tubular

alongada confeccionado com talas de miriti, com extremidades afuniladas por

onde o camarão entra e fica preso.

Mercado Ver-o-Peso: mercado que reúne, em centenas de barraquinhas,

mandingas, remédios, garrafadas, encantarias e todos os aromas, cores e

sabores paraenses. Situado às margens do Igarapé do Piri, na Baia do Guajará,

acolhe diariamente centenas de pescadores que na madrugada vêm

comercializar seus pescados. No período colonial era esse o local de verificação

de peso das mercadorias para as transações comerciais. Na verdade trata-se de

um complexo que abrange o Mercado de Ferro, o Mercado Municipal e a feira-

livre, sendo, portanto um dos centros responsáveis pela distribuição de alimentos

de Belém.

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Miriti: palmeira típica das ilhas. A fruta é utilizada para fazer vinho, para beber

quando não há açaí e para fazer uma espécie de cocada. Com a tala os

ribeirinhos constróem brinquedos, paneiros etc.

Montaria: pequena embarcação com bancos, típica da Amazônia, que mede em

geral 2,50m de comprimento por 0,50cm de largura.

Padroeiro: santo que é íntimo da comunidade, conhece seus problemas diários,

ajuda nos momentos de aflição e, de certa forma, está mais próximo dos

ribeirinhos do que Deus.

Paneiro: espécie de cesto feito de talas de palmeira com ou sem asas, muito

utilizado na Amazônia para o transporte de frutas, legumes, aves etc. Há paneiros

de vários tamanhos sendo que os menores são usados como vasos para o plantio

de mudas de pequeno e médio porte. Paneiros em tamanho especial são também

usados como base para se moldar Cabeçudos e Bois.

Pierrô: uma das mais significativas fantasias utilizadas pelos brincantes do Boi de

máscaras. É composta por: um macacão de palhaço bem amplo feito com tiras

verticais de cetim bem coloridas, um pano de costas chamado romeira,

estampado em chita popular e uma toalha também estampada sob um capacete

em estilo mourisco, adornado com mais de cinco metros de fitilhos. Sobre o rosto

o brincante usa uma máscara nariguda de papel marche branco.

Promesseiro: devoto que nas procissões paga suas promessas.

Pó–Pó-Pó: barco movido a óleo, muito lento e popular naquelas paisagens

quentes.

Punho da rede: as extremidades não tecidas de uma rede que se prende a um

esse (S) ou a uma corda.

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Puqueca: isca colocada em uma sacola plástica cortada ao meio em forma de

quadrado. No interior desta sacola fica uma mistura de farelo e babaçu usada no

matapi para atrair o camarão.

Peconia: anel de corda, “Envira” ou folhas de palmeira. O caboclo usa a peconia

para aderir os pés ao tronco do açaizeiro e escalá-lo para colher o açaí.

Quilombo: Povoações de ex-escravos negros foragidos; coletivo de mucambo,

que é a habitação propriamente dita.

Regatão: barco utilizado pelos mercadores ambulantes dos rios da Amazônia

para a comercialização de produtos diversos.

Remando a aporfia: significa remando ligeiro.

Roçado: lavoura, lugar onde se derrubou a mata primitiva com a finalidade de

cultivar a terra. A mata, depois de seca pelo sol, é queimada, para depois ser feita

a semeadura. A cinza da vegetação queimada é usada como adubo, depois de

misturada a terra com a enxada.

Samba de cacete: variação coreográfica do Mineiro-Pau, Dança dos Paliteiros,

comum em Portugal, onde os dançarinos simulam luta de cacete. Acontece em

Cametá, no baixo Tocantins, principalmente nas comunidades remanescentes de

quilombos. SALLES,Vicente. Op. Cit., p. 231. O Samba de cacete só passou a ser

tocado na cidade de Cametá na década de 1950. Até então era a dança dos

negros.

Síria: dança proveniente de Cametá, considerada como uma expressão

impetuosa de amor, de sedução e de gratidão diante de um milagre. Segundo

Adelarmo Mattos, os escravos, após um dia de trabalho exaustivo, saíam para

colher frutos, caçar ou pescar. Então eles foram a uma praia e encontraram

milhares de siris sobre a areia. E assim aconteceu durante muito tempo: os

escravos conseguiram grandes quantidades daquele crustáceo para lhes matar a

fome e, em agradecimento, criaram esta dança.

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Tacacazeiras: mulheres que trabalham em bancas de tacacá vendendo na rua

esta espécie de sopa muito popular no Pará, que contém: uma porção de tucupi,

uma porção de goma encorpada quentíssima, camarões secos, folhas de jambu

entre outras iguarias. É servida em uma cuia por onde se ingere pequenos goles.

Trapiche: espécie de atracadouro com um armazém a beira-mar construído sobre

um cais, onde os barcos encostam para embarque e desembarque de pessoas e

cargas .

Tripas ou Pernas: aqueles que ficam em baixo do Boi. Desde crianças os meninos

treinam os passos do Boi em uma dança ritmada, com passos sincrônicos.

Diferente de outros lugares, o Boi de São Caetano tem duas tripas ou pernas.

Voadeira: lancha veloz com motor dois tempos...

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Relação de entrevistados

1.São Caetano de Odivelas

RAIMUNDO SANTA ROSA, Seu Cutaca, 48 anos, dono do Boi Garrote, morador

do bairro Cachoeira, em São Caetano de Odivelas.

JOSÉ CHAGAS ZEFERINO, 74 anos, conhecido como Zé do Lodi é pescador

aposentado, proprietário do Boi Tinga. Seu boi tem 64 anos de tradição .

ANTONIA SANTANA DAS CHAGAS, esposa de Seu Cutaca.

ANTÓNIO DOS REIS, Do Reis, tem 71 anos de idade, e é construtor de boi-

bumbá.É tido como o maior artesão da cidade.

ANTONIO JOSÉ MONTEIRO, 21, apelido Cação, bicicleteiro. e aderecista é o

responsável pela confecção das máscaras e capacetes.

CÉLIO JOSÉ MARQUES ZEFERINO, 39 anos, é estudante, filho de Seu Zé do

Lodi e morador do centro de São Caetano de Odivelas.

EUDES AQUINO, Gigote, é dono do Boi Faceiro e recentemente foi candidato a

vereador.

ISMAEL FERREIRA DOS SANTOS, Seu Preá, 70 anos de idade,artesão, escultor

e confeccionava cavalinhos.(falecido)

JOELSON CHAGA DOS SANTOS,16 anos, filho de Raimundo Santa Rosa, o

Cutaca.

LINDALVA SANTA ROSA, 50 anos, esposa de Raimundo Batista, músico e

taberneiro. O casal é dono do Dinossauro e alugam fantasias de Pierrô.

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LUIZ FERREIRA DE MELO, Cobozinho, 40 anos, pescador, tirador de

caranguejo, artesão do Cabeçudo, proprietário da Zebra, Boi com oito anos de

tradição.

MESSIAS OLIVEIRA DE JESUS, 39 anos, chamado de Dega, é pescador por

profissão e perna desde a fundação do Boi Garrote.

WANDER JOSÉ DE JESUS DIAS, 21 anos, perna do Boi Garrote.

2.Joaba/Cametá

ADILSON VALENTE, pesquisador de cultura popular de Cametá.

ALQUIMIDES VITAL BATISTA , 58 anos, conhecido como VB é dono do Banguê

Engole Cobra e do cordão de mascarados Úima Hora.

BENEDITA CARDOSO GOMES,75 , parteira de Joaba.Em seu roçado de

mandioca promove o convidado na época do plantio.

CLAUDIONEI BARROSO RODRIGUES, 57 anos, morador de Joaba , carpinteiro.

DAIANE ROSÁRIO: Borboleta que há um ano dança na Bicharada.

DEISE, 21 anos, estudante

CRISTINA DOS SANTOS PINTO,18 anos, estudante de Cametá.

DULCINEIA GALCIA MACHADO, 73 anos, ornamentadora da festa de São José.

EDI ARNAOUT TENÓRIO morador de Joaba. Visitante da exposição.

ERIBERTO ARAGÃO, 33 anos, morador de Cametá.

ERENILTON DE OLIVEIRA ARNAUSE,17anos, é dançante.

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EULÁLIO TENÓRIO DOS SANTOS, ou Vital 2. Tem 44 anos e é integrante do

cordão de mascarados Última Hora.

JANIO ARNAUT, 29 anos, professor de arte , trabalha com pintura e escultura. É

filho do mestre Zenóbio.

JOÃO PROCÓPIO DE ARAGÃO TAVARES, 68 anos, lavrador, Coordenador do

Bambaê do Rosário.

JOÃO TAVARES, 20 anos, locutor da rádio Joaba FM.

JORGE DA COSTA , 23 anos, ambulante vendedor de roupa.

JOSÉ MARIA CARVALHO, 50 anos, lavrador. Foi ele quem teve a idéia de

montar esse grupo da Bicharada com o mestre Zenóbio.

LAISE RIBEIRO DA COSTA, 17 anos, dançarina da Bicharada.

LARISSA RIBEIRO DA COSTA, Borboleta da Bicharada.

LÍVIA TAVARES DE CARVALHO, dançarina.

LUIS DOS SANTOS POMPEU, morador de Cametá. Visitante da exposição.

MANOEL TAVARES ALHO, 74 anos, é trabalhador rural e tocador de sino.

MÁRCIA MARIA DOS SANTOS CORREIA, visitante da exposição.

MILTON TAVARES RODRIGUES, 21 anos, brincante da Bicharada que sai na

Girafa desde julho passado.

PEDRO ALO GARCIA, morador de Joaba ligado a Bicharada.

RAIMUNDA ALHO, dona de casa, sobrinha de seu Manoel Tavares Alho.

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DEJARDE DA VEIGA ARNAUT, serralheiro, atual presidente do Centro

Comunitário São José.

RODIMAM TAVARES FILHO, dono do Boi Campineiro.

SIMONE CARVALHO,14 anos, é substituta da Borboleta.

SIMONE DOS SANTOS PINTO: estudante moradora de Cametá.

ZENÓBIO GONÇALVES FERREIRA, músico, artista plástico, dono da Bicharada.

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Índice de Iconografias

OBRAS DE VIVIANE MENNA BARRETO:

A Bicharada, obra em aquarela sobre seda de 2003, 21

Barcos no Trapiche, obra de 2001, 17

Catitu, obra em aquarela sobre seda de 2004, 69

Dançarina de quadrilha, obra de 2003, 97

Elso, Etilena, Raiane e Glemron, obra de 2001, 13

Esqueleto de barco, obra em aquarela sobre seda, 2003, 101

Furos, obra em aquarela sobre seda de 2001, 93

Mangue, obra em aquarela sobre seda de 2002, 94

Mapa, obra em aquarela sobre seda de 2001, 3

Mascarados do boi, obra em aquarela sobre seda de 2001, 44

Meninas de Sirituba sobre parede de matapi, obra de 2003, 99

Menino ribeirinho sobre cestaria dos Wai-wai, obra em aquarela sobre seda de

2001,10

Mestre Lucindo, obra em aquarela sobre seda de 2004, 111

Mestre Zenóbio e a Bicharada, obra de 2004, 80

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O homem e o peixe, obra em aquarela sobre seda de 2002, 38

O menino e o cabeçudo, obra em aquarela sobre seda de 2002,46

Pin-up cabocla, obra em aquarela sobre seda de 2004, 23

Rio Mojuin, obra em aquarela sobre seda de 2002, 36

Surf de Canoa, obra em aquarela sobre seda de 2001,89

FOTOS:

A bordo do Catamarã, o primeiro contato com os ribeirinhos, 90

Aquário retirado da revista Ver-o-Pará, 16

Benedita Cardoso Gomes, 2004, foto de Vivianne Menna Barreto,89

Boi Campineiro, 2004, foto de Vivianne Menna Barreto,81

Brincadeira de Círio na ilha de Sirituba, 2003,foto de Vivianne Menna Barreto,109

Brincante do boi de São Caetano de Odivelas, 2004, foto de Vivianne Menna

Barreto, 24

Capa da revista Carta Capital, 27

Capa da revista Guest, 26

Capa da revista Ver-o-Para, 15

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Carro de boi ,Vila de Joaba, 2004, foto de Vivianne Menna Barreto, 66

Casal de mascarados, 2004, foto de Vivianne Menna Barreto,78

Castro de Leão, pintor de Cametá, 2003, foto de Vivianne Menna Barreto,103

Crianças brincam de boi com talo de palmeira, 2001.Foto de Vivianne Menna

Barreto 16

Cutaca, foto de Vivianne Menna Barreto de 2004,116

Dona Benedita, foto de Viviane Menna Barreto de 2004, 68

Dos Reis e Cobozinho, foto de Viviane Menna Barreto de 2001, 48

Eudes Aquino, 2002,foto de Chantal Benjamin, 117

Exposição integrada a oficina em São Caetano de Odivelas ,2002, foto de Chantal

Benjamin,107

Exposição sobre o rio Tocantins montada a bordo do Catamarã Pará, 2003, foto

de Vivianne Menna Barreto,105

Mestre Zenóbio, 2004,foto de Vivianne Menna Barreto,117

Menina-Borboleta,2003, foto de Viviane Menna Barreto,81

Pernas de boi, 2004, foto de Vivianne Menna Barreto,129

Paisagem da vila de Joaba vista do rio Tocantins, 2004, foto de Vivianne Menna

Barreto,64

Safári artístico, 2002, foto de Chantal Benjamin, 107

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Suporte bastidor usado para expor as obras,110

Vital Batista, 2004,foto de Vivianne Menna Barreto,117

Vital Batista e brincante do Bloco Carnavalesco Última Hora, 2004,foto de

Vivianne Menna Barreto,75

DESENHOS COLETADOS:

Desenho coletado entre brincantes do Boi Garrote em 2001,54

Desenho do boi Garrote feito por Joelson em 2001, 72

Desenho do boi Garrote feito por Raimundo em 2001,14

Desenho retirado dos cadernos de campo de 2000,115

Desenhos de barcos feito pelos ribeirinhos do Estreito de Breves em 2000,91

Helicóptero feito pelos ribeirinhos do Estreito de Breves em 2000,141

Mattasin, Comédia Del Arte desenho de 1642, 42

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ESBOÇOS DE OBRAS:

Esboço da obra Círio de Oriximiná de 2001, 91

Esboço da obra Elso Etilena Raiane e Glemron de 2001,92

Esboço da obra Furos feito com desenhos dos ribeirinhos, 2000, 93

Esboço do quadro Barco de Promesseiro de 2002, 150

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Contato com a autora pelo e-mail:[email protected]