MARCEL DUCHAMP É UM READY
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MARCEL DUCHAMP É UM READY-MADE?
Hoje é irrelevante considerar quais seriam as “verdadeiras” intenções, ou mesmo
o exacto papel de Duchamp. O efeito Duchamp é devastador, para o bem e para o
mal. O efeito Duchamp engoliu Duchamp, tal como o efeito Jesus, Buda e outros
que tais. Tornou-se sobretudo um mecanismo de legitimação, quando era uma
prática de pseudo-silêncio, de distanciação marota e auto-mistificação irónica
(digo-o como parte do efeito que perverte Duchamp). Mas também inverteu
muitas coisas e abriu filões dos quais nunca mais podemos descolar, em áreas
muito diversas. Sobretudo na literatura vindoura (?).
Não sou duchampiano, porque não me revejo na sua “estética fria”, nem na sua
vida sábia, voyeurista. Sou badalhoco e gosto de acção e quando sou improdutivo
o que ferve em mim quase que rebenta. Tenho que escoar e obedeço a essa
pulsão. Uma vida à Duchamp acabaria comigo depressa. Jogar xadrês, por
exemplo, dá-me cabo dos nervos, porque entro em estados de ansiedade febris.
Traduzo de seguida algumas curiosas reflexões de Jacques Roubaud sobre
Duchamp — comentadas.
“No século vinte houve um sonho: ser por si só toda a vanguarda.(...) A sua forma
mais elegante foi a de Duchamp.”
É o tal carácter solipsista (Ricardo Reis diria: masturbatório) da vanguarda.
Pessoa quis também ser a vanguarda toda exponenciada assim como as reacções
a essa vanguarda e açambarcar os seus arredores reactivos. Para alguém como
Roubaud a elegância é determinante (para um inglês um russo ou um grego não
é uma qualidade determinante) e talvez corresponda ao francês que Duchamp
nunca deixou de ser. Roubaud fala de que a arte de Duchamp é uma coisa “tílio-
mental”. Uma cházada sofisticada. Uma conversa entre refinados oulipianos.
“Duchamp não é um artista, também não é um não-artista, nem sequer um anti-
artista. Duchamp é um não-não-artista.”
A história da negatividade que se nega é longa. Temos uma espécie de negação
básica que contamina tudo, que são os paradoxos do tratado do não-ser de
Górgias (e é estranho que sejam até hoje tratados como negações e não como
paradoxos na esteira de Zenão, ou antes, como algo meta-paradoxal). E temos a
tripla negação-assumpção de Tchouang Tseu no seu segundo capítulo, que é
maravilhosa — “há o há, há o não-há, há o não-não há, e há o não-não-não há”.
Poderiamos dizer que na esteira de Duchamp se pode ser um não-não-não
artista, embora isso não leve a lado nenhum. O que Roubaud pretende dizer é
que Duchamp tem com a arte relações de distânciamento e empatia, double-
bindescas (ó neologismo anglicista!), mas cordiais e tranquilas. Não está nela,
nem a abandona. Depreciativamente dir-se-ia — não fode nem sai de cima. Não é
assim. Fode como quem finge que não fode? Não sabemos exactamente. Mas
como disse Duchamp “não há soluções porque não há problemas”, o que é uma
filosofia de vida. Ah! Mas há problemas, pelo menos no xadrês. “Todos os
jogadores de xadrês são artistas”, disse esse homem que escreveu um livro sobre
o problema dos finais de jogo com rei e pião.
“Os Readymades são incompreensíveis fora da obra de Rrose Sélavy”
Isto é, há um efeito de contágio da linguagem sobre os objectos. Trans-
sexualização pela palavra dos objectos, através do efeito Roussel/Brisset. E
inversamente, um suposto contágio das palavras pelos objectos. René Thom, o
matemático, diria que são pregnâncias. A linguagem impregna, emprenha. Isto é,
sexualiza e engravida. E os objectos impregnam? Sim, tudo impregna tudo.
Duchamp fala de aparência alegórica, ou de inframagro. Trata-se, não de
travestir mas de pseudo-travestir dizendo que não se pode dizer algo dizendo-o.
Roubaud cita uma história entre Duchamp e a dadaísta “americana” Mina Loy:
“Marcel tinha a facilidade de um prestidigitador; ele sabia deslizar a sua mão por
debaixo da roupa interior de uma mulher e acariciá-la com uma extrema
distinção. Pode-se dizer, começou ele, com a sua bela face aerodinamica
presionando a minha, minha senhora, que tem umas deliciosas cuequinhas de
setim (un joli caleçon de satin). Mas não se pode dizer, concluiu ele com um beijo
extravagante, minha senhora, que tem um pito de pega porca (un sale con de
catin)”.
“Wharhol leva-se demasiado a sério. Não é para ser tomado a sério. Duchamp,
pelo contrário, não se leva a sério; mas é para ser levado a sério”.
Aqui acho que há equívoco, e é típico uma certa elite francesa desqualificar a
cultura pop com argúcia, bela, é certo. A arte de se se levar a sério, ou de se
prestar para ser levado a sério é complexa. Diriamos que em Wharhol tudo é
assumido e em Duchamp tudo é dissimulação, mesmo quando algo é assumido.
Por outro lado Duchamp leva-se e não se leva a sério, de uma forma é sofisticada,
infantil e sexual (é isto o marotismo!).
“Todas as palavras são ready-mades. Queneau assinála-o em Chiendent. (...) Ele
continua a arte e a literatura por outros, novos meios”.
Todas as palavras são ready-mades e citações a partir do momento em que
alguém as já escreveu ou falou antes. Digamos que as palavras já vêm prenhes
dos sentidos e das experiências que se impregnaram nela, através da sua
assimilação e do seu uso. A diferença do ready-made é que injecta-suspende
sentidos que não são inteiramente claros, nem sabemos para que é que servem.
Têm um carácter poético, trovadoresco (diria Roubaud), no sentido em que
encontram algo, fruto de uma prática de jogos de linguagem (mas não no sentido
wittegensteiniano). Roubaud também acha que Duchamp coloca a literatura por
cima da arte. Não creio que assim seja. Nem julgo que para Marcel fosse
necessário colocá-la algo acima de outra coisa. Trata-se antes de desierarquisar
categorias e de se desfazer os lugares comuns. Para quê? Para passear (em mala)
os lugares incomuns que nos pertmitem ser voyeurs creativos.
É Duchamp o seu (ou nosso) melhor ready-made?