MARCEL DUCHAMP É UM READY

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MARCEL DUCHAMP É UM READY-MADE? Hoje é irrelevante considerar quais seriam as “verdadeiras” intenções, ou mesmo o exacto papel de Duchamp. O efeito Duchamp é devastador, para o bem e para o mal. O efeito Duchamp engoliu Duchamp, tal como o efeito Jesus, Buda e outros que tais. Tornou-se sobretudo um mecanismo de legitimação, quando era uma prática de pseudo-silêncio, de distanciação marota e auto- mistificação irónica (digo-o como parte do efeito que perverte Duchamp). Mas também inverteu muitas coisas e abriu filões dos quais nunca mais podemos descolar, em áreas muito diversas. Sobretudo na literatura vindoura (?). Não sou duchampiano, porque não me revejo na sua “estética fria”, nem na sua vida sábia, voyeurista. Sou badalhoco e gosto de acção e quando sou improdutivo o que ferve em mim quase que rebenta. Tenho que escoar e obedeço a essa pulsão. Uma vida à Duchamp acabaria comigo depressa. Jogar xadrês, por exemplo, dá-me cabo dos nervos, porque entro em estados de ansiedade febris. Traduzo de seguida algumas curiosas reflexões de Jacques Roubaud sobre Duchamp — comentadas.

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art theory of the language as ready-made

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MARCEL DUCHAMP É UM READY-MADE?

Hoje é irrelevante considerar quais seriam as “verdadeiras” intenções, ou mesmo

o exacto papel de Duchamp. O efeito Duchamp é devastador, para o bem e para o

mal. O efeito Duchamp engoliu Duchamp, tal como o efeito Jesus, Buda e outros

que tais. Tornou-se sobretudo um mecanismo de legitimação, quando era uma

prática de pseudo-silêncio, de distanciação marota e auto-mistificação irónica

(digo-o como parte do efeito que perverte Duchamp). Mas também inverteu

muitas coisas e abriu filões dos quais nunca mais podemos descolar, em áreas

muito diversas. Sobretudo na literatura vindoura (?).

Não sou duchampiano, porque não me revejo na sua “estética fria”, nem na sua

vida sábia, voyeurista. Sou badalhoco e gosto de acção e quando sou improdutivo

o que ferve em mim quase que rebenta. Tenho que escoar e obedeço a essa

pulsão. Uma vida à Duchamp acabaria comigo depressa. Jogar xadrês, por

exemplo, dá-me cabo dos nervos, porque entro em estados de ansiedade febris.

Traduzo de seguida algumas curiosas reflexões de Jacques Roubaud sobre

Duchamp — comentadas.

“No século vinte houve um sonho: ser por si só toda a vanguarda.(...) A sua forma

mais elegante foi a de Duchamp.”

É o tal carácter solipsista (Ricardo Reis diria: masturbatório) da vanguarda.

Pessoa quis também ser a vanguarda toda exponenciada assim como as reacções

a essa vanguarda e açambarcar os seus arredores reactivos. Para alguém como

Roubaud a elegância é determinante (para um inglês um russo ou um grego não

é uma qualidade determinante) e talvez corresponda ao francês que Duchamp

nunca deixou de ser. Roubaud fala de que a arte de Duchamp é uma coisa “tílio-

mental”. Uma cházada sofisticada. Uma conversa entre refinados oulipianos.

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“Duchamp não é um artista, também não é um não-artista, nem sequer um anti-

artista. Duchamp é um não-não-artista.”

A história da negatividade que se nega é longa. Temos uma espécie de negação

básica que contamina tudo, que são os paradoxos do tratado do não-ser de

Górgias (e é estranho que sejam até hoje tratados como negações e não como

paradoxos na esteira de Zenão, ou antes, como algo meta-paradoxal). E temos a

tripla negação-assumpção de Tchouang Tseu no seu segundo capítulo, que é

maravilhosa — “há o há, há o não-há, há o não-não há, e há o não-não-não há”.

Poderiamos dizer que na esteira de Duchamp se pode ser um não-não-não

artista, embora isso não leve a lado nenhum. O que Roubaud pretende dizer é

que Duchamp tem com a arte relações de distânciamento e empatia, double-

bindescas (ó neologismo anglicista!), mas cordiais e tranquilas. Não está nela,

nem a abandona. Depreciativamente dir-se-ia — não fode nem sai de cima. Não é

assim. Fode como quem finge que não fode? Não sabemos exactamente. Mas

como disse Duchamp “não há soluções porque não há problemas”, o que é uma

filosofia de vida. Ah! Mas há problemas, pelo menos no xadrês. “Todos os

jogadores de xadrês são artistas”, disse esse homem que escreveu um livro sobre

o problema dos finais de jogo com rei e pião.

“Os Readymades são incompreensíveis fora da obra de Rrose Sélavy”

Isto é, há um efeito de contágio da linguagem sobre os objectos. Trans-

sexualização pela palavra dos objectos, através do efeito Roussel/Brisset. E

inversamente, um suposto contágio das palavras pelos objectos. René Thom, o

matemático, diria que são pregnâncias. A linguagem impregna, emprenha. Isto é,

sexualiza e engravida. E os objectos impregnam? Sim, tudo impregna tudo.

Duchamp fala de aparência alegórica, ou de inframagro. Trata-se, não de

travestir mas de pseudo-travestir dizendo que não se pode dizer algo dizendo-o.

Roubaud cita uma história entre Duchamp e a dadaísta “americana” Mina Loy:

“Marcel tinha a facilidade de um prestidigitador; ele sabia deslizar a sua mão por

debaixo da roupa interior de uma mulher e acariciá-la com uma extrema

distinção. Pode-se dizer, começou ele, com a sua bela face aerodinamica

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presionando a minha, minha senhora, que tem umas deliciosas cuequinhas de

setim (un joli caleçon de satin). Mas não se pode dizer, concluiu ele com um beijo

extravagante, minha senhora, que tem um pito de pega porca (un sale con de

catin)”.

“Wharhol leva-se demasiado a sério. Não é para ser tomado a sério. Duchamp,

pelo contrário, não se leva a sério; mas é para ser levado a sério”.

Aqui acho que há equívoco, e é típico uma certa elite francesa desqualificar a

cultura pop com argúcia, bela, é certo. A arte de se se levar a sério, ou de se

prestar para ser levado a sério é complexa. Diriamos que em Wharhol tudo é

assumido e em Duchamp tudo é dissimulação, mesmo quando algo é assumido.

Por outro lado Duchamp leva-se e não se leva a sério, de uma forma é sofisticada,

infantil e sexual (é isto o marotismo!).

“Todas as palavras são ready-mades. Queneau assinála-o em Chiendent. (...) Ele

continua a arte e a literatura por outros, novos meios”.

Todas as palavras são ready-mades e citações a partir do momento em que

alguém as já escreveu ou falou antes. Digamos que as palavras já vêm prenhes

dos sentidos e das experiências que se impregnaram nela, através da sua

assimilação e do seu uso. A diferença do ready-made é que injecta-suspende

sentidos que não são inteiramente claros, nem sabemos para que é que servem.

Têm um carácter poético, trovadoresco (diria Roubaud), no sentido em que

encontram algo, fruto de uma prática de jogos de linguagem (mas não no sentido

wittegensteiniano). Roubaud também acha que Duchamp coloca a literatura por

cima da arte. Não creio que assim seja. Nem julgo que para Marcel fosse

necessário colocá-la algo acima de outra coisa. Trata-se antes de desierarquisar

categorias e de se desfazer os lugares comuns. Para quê? Para passear (em mala)

os lugares incomuns que nos pertmitem ser voyeurs creativos.

É Duchamp o seu (ou nosso) melhor ready-made?