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MARCELINA DA SILVA E SEU MUNDO:NOVOS DADOS PARA UMA HISTORIOGRAFIA DO CANDOMBL KETU *

Lisa Earl Castillo** Luis Nicolau Pars***

Abertura: o ponto de partidaDiz a tradio oral que o candombl Il Iy Nass Ok (tambm conhecido como a Casa Branca do Engenho Velho) esteve originalmente situado na antiga Ladeira do Berqu, prxima Igreja da Barroquinha, no centro da cidade de Salvador. A memria oral e os estudos afro-brasileiros tm reiterado de forma insistente a idia de que esse candombl da Barroquinha seria o primeiro e mais antigo terreiro do Brasil. Uma das narrativas mais conhecidas associadas fundao deste templo diz respeito a uma viagem frica, realizada pela principal ialorix e fundadora da casa, Iy Nass, junto com sua filha-de-santo e sucessora, Marcelina da Silva (Obatossi), ambas sacerdotisas de Xang.1*

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A pesquisa documental em que se fundamenta este artigo foi realizada por Lisa Earl Castillo, graas ao apoio de uma bolsa de Ps-doutorado da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). Os dois autores contriburam na anlise dessa documentao e na elaborao do texto. Agradecemos a Vivaldo da Costa Lima, Joo Jos Reis, Julio Braga, Renato da Silveira e aos membros da linha de pesquisa Escravido e Inveno da Liberdade do Programa de Ps-Graduao em Histria (UFBA), pelos seus comentrios a uma verso preliminar deste texto. Doutora pelo Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, atualmente vinculada ao Grupo Odu da Escola de Msica da mesma universidade. Professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia. A tradio oral no preservou o nome catlico da primeira, mas Vivaldo da Costa Lima demonstra que Iy Nass no um nome pessoal e sim um ttulo, o mais alto do culto de Xang na casa do alafin (rei) de Oy: Vivaldo da Costa Lima, Ainda sobre a nao de queto, in Clo Martins

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Segundo testemunhos orais coletados por Pierre Verger, elas voltaram para a frica acompanhadas pela filha biolgica de Marcelina, Maria Magdalena da Silva, passando sete anos na cidade de Ketu. Retornaram depois para a Bahia, trazendo vrias outras pessoas: dois filhos que Magdalena tivera na frica e o babala Bambox Obitik.2 Bambox se tornaria uma figura importante no candombl da Bahia, sendo at hoje saudado como Essa Obitik, no ritual do pad,3 junto com outros ancestrais ilustres. Verger no especifica as datas dessas viagens, mas sugere que a fundao do terreiro teria acontecido aps o regresso da frica.4 Verger escutou essa histria de me Senhora, Maria Bibiana do Esprito Santo, ialorix do terreiro Il Ax Op Afonj de 1941 at 1967.5 Ela era neta biolgica de Magdalena e bisneta de Marcelina, a quem tambm chamava de v. Senhora contou a Vivaldo da Costa Lima uma outra verso: que Marcelina, alm de filha-de-santo de Iy Nass, era sua prima carnal.6 Segundo ainda outra vertente da tradio oral, preservada no Engenho Velho e tambm coletada por Vivaldo da Costa Lima, Iy Nass voltou frica em companhia de Marcelina e l faleceu. Marcelina regressou ento com a herana (de bens e de cargos) e assumiu a liderana do Engenho Velho.7 Verses semelhantes, com variantes, foram reiteradas por vrios pesquisadores.8e Raul Lody (orgs.), Faraimar: o caador traz alegria (Rio de Janeiro, Pallas, 1999), pp. 6780. O oruk (nome religioso) de Marcelina, Obatossi, indica que ela tambm era de Xang. Segundo Flix AyohOmidire (comunicao pessoal, 10/11/2007), Obatossi corresponde ao iorub Obatosin que significa: o rei [i.e., Xang] merece nossa adorao. A palavra Bambox vem do iorub Bangbose, ajuda-me a segurar o ox, aplicada aos iniciados do orix Xang: Vivaldo da Costa Lima, O candombl da Bahia na dcada de trinta, in Waldir Freitas Oliveira e Vivaldo da Costa Lima (orgs.), Cartas de Edison Carneiro a Artur Ramos, So Paulo, Corrupio, 1987, p. 71. Esa o ttulo de um dos ministros no conselho do reino de Ketu, o dcimo na hierarquia: E. G. Parrinder, Les vissicitudes de lhistoire de Ketu, Cotonou, Editions du Flamboyant, 1997 [1956], p. 115. Pad o nome do ritual de abertura, nos terreiros nag-ketu da Bahia. Pierre Verger, Orixs, Salvador, Corrupio, 1981, pp. 28-29. Pierre Verger, Os libertos: sete caminhos na liberdade de escravos, Salvador, Corrupio, 1992, p. 89. Me Senhora, apud Lima, O candombl da Bahia na dcada de trinta, p. 71. A aluso a um parentesco biolgico entre Iy Nass e Marcelina poderia sugerir a pertena a uma mesma coletividade de origem, j seja uma linhagem ou famlia extensa, j sejam linhagens interdependentes. Lima, Ainda sobre a nao de queto, p. 77. Por exemplo, segundo Bastide, Iy Nass chegou Bahia, como pessoa livre, para fundar o candombl do seu nome, na dcada de 1830; Obatossi tambm chegou nessa condio, mas retornou a Ketu, onde passou sete anos, antes de voltar ao Brasil para assumir a chefia do terreiro, quando

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Certamente, as viagens lendrias dos especialistas religiosos frica envolvendo a aquisio de conhecimento esotrico e, portanto, a recuperao de tradies perdidas durante a experincia traumtica da escravido constituam importante capital simblico que aumentava o prestgio social do viajante, legitimava sua autoridade religiosa e garantia a eficcia dos seus servios espirituais. A romaria de volta s origens virou um elemento narrativo central no mito de fundao de vrios outros terreiros e, no caso do candombl mais antigo do Brasil, o Il Iy Nass, alm da idia de um contato direto com a pureza das fontes africanas, se enfatizava a condio de livres dos seus atores.9 Apesar de sua indiscutvel importncia mtica, havia at agora pouca evidncia documental para confirmar ou matizar, do ponto de vista historiogrfico, esse aspecto basilar da tradio oral. Um dos poucos documentos conhecidos, encontrado nos anos 1970 por Ins Cortes de Oliveira, o testamento de Marcelina da Silva. Esse documento, embora sem qualquer referncia famosa viagem, informa que ela faleceu em 27 de junho de 1885, que era natural da Costa dfrica, liberta, casada com Miguel Vieira da Silva e que, ainda solteira, teve uma filha crioula, de nome Maria Magdalena da Silva.10 Tomando como ponto de partida a tradio oral e os nomes que aparecem nesse testamento, iniciamos uma extensiva e intensiva pesIy Nass faleceu: Roger Bastide, Sociologa de la religin, Madri, Ediciones Jucar, 1986 [1960], p. 323; Renato da Silveira sugere uma interpretao mais matizada dessas narrativas, propondo at uma datao dos eventos: O Candombl da Barroquinha: processo de constituio do primeiro terreiro baiano de keto, Salvador, Maianga, 2006, caps. 8 e 9, pp. 373ss. Stefania Capone, La qute de lAfrique dans le candombl. Pouvoir et tradition au Brsil, Paris, Karthala, 1999, pp. 248-50. Capone (p. 250) tambm atribui um carter de mito de fundao suposta viagem frica de Marcos Teodoro Pimentel, fundador de um dos primeiros cultos de egum na Ilha de Itaparica. Tradies orais jejes tambm sustentam que Ludovina Pessoa, a primeira me-de-santo da nao jeje, viajava todo ano para a frica: Luis Nicolau Pars, A formao do Candombl, histria e ritual da nao jeje na Bahia, Campinas, Editora UNICAMP, 2006, cap. 5. O terreiro do Alaketu conta uma histria de volta frica, pela fundadora, Otamp Ojar, conhecida tambm como Maria do Rosrio: Vivaldo da Costa Lima, A famlia de santo nos candombls jeje-nags da Bahia, Salvador, Corrupio, 2003; Renato da Silveira, Sobre a fundao do terreiro Alaketo, Afro-sia, no 29-30 (2003), pp. 345-80. Arquivo Pblico do Estado da Bahia (doravante APEBa), Judicirio, Testamentos, 03/1276/1745/ 08, Testamento de Marcelina da Silva, 1886, fls. 4, 5. O testamento, lacrado em 5/04/1881, foi aberto em 30/06/1885. Ins Cortes de Oliveira cita o documento em Os libertos: seu mundo e os outros, Salvador, Corrupio, 1988. Posteriormente, foi publicado na ntegra por Verger em Os libertos, pp. 138-41. Oliveira parece ter conhecido tambm o inventrio, que ainda no foi publicado.

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quisa documental em vrios arquivos da Bahia.11 O resultado foi um nmero surpreendente de documentos abrangendo inventrios postmortem, escrituras de imveis, cartas de alforria, processos judiciais, ocorrncias policiais e registros de batismo, casamento e bito nos quais encontramos referncias a personagens j conhecidos e descobrimos a existncia de ainda outros. Umas informaes foram levando s outras e, aos poucos, foi emergindo um quadro extremamente rico e complexo. Por um lado, os novos dados confirmam, de forma contundente, alguns aspectos importantes da tradio oral, como a mencionada viagem frica. Por outro, as informaes revelam aspectos inteiramente inesperados, como, por exemplo, a posse de escravos e outros bens e as primeiras evidncias sobre a vida de Iy Nass, at agora um enigma. No seu conjunto, os novos dados permitem uma reconstituio historiogrfica mais fundamentada e precisa do universo social, econmico e religioso dos africanos libertos que hoje constituem cones da memria coletiva dos terreiros.

A primeira estadia de Marcelina na Bahia: a escravidoNo sabemos quando Marcelina chegou Bahia, mas a carta de alforria de sua filha, Maria Magdalena, datada de 14 de fevereiro de 1837, identifica a menina como crioulinha, de sete anos, o que nos permite deduzir que Marcelina j estava no Brasil no fim da dcada de 1820.12 As nicas outras notcias que temos dela, nesse perodo, vm de duas certides de batismo. A primeira da crioula Isabel, batizada aos trs meses de idade na Igreja de Santa Anna, em 2 de junho de 1832, filha de Marcelina, escravas de Joz Pedro Otran, forro solteiro, residente desta Freguesia.13 A segunda, de 28 de setembro de 1834, registra o batismo da recm-nascida Sophia Clementina da Conceio, de quem Marceli-

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Principalmente o APEBa e o Arquivo da Cria Metropolitana de Salvador (doravante ACMS). APEBa, Escrituras, Livro 257,fl. 164. ACMS, Freguesia de Santa Anna, Livro de Batismos, s.d., fl. 53 (microfilme no 128-4581, item 1, acervo dos Mrmons). Ainda no encontramos outras referncias sobre Isabel. O fato de Marcelina no mencion-la no seu testamento sugere que talvez fosse vtima da mortalidade infantil, bastante alta naqueles tempos.

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na foi madrinha.14 Esta ltima confirma a tradio oral que descreve Marcelina como nag, termo que designava os povos de lngua iorub provenientes da regio sul-ocidental da atual Nigria e da sul-oriental da Repblica do Benim os quais, naquela dcada, j constituam a nao demograficamente majoritria entre a populao africana da capitania. A me da menina, a escrava Joana, tambm era nag, ou seja, as comadres eram parentes de nao. O registro de batismo de Sophia tambm informa que Marcelina era escrava de Francisca da Silva e que morava na Ladeira do Carmo, na freguesia do Passo. Mais de cinqenta anos depois, quando Marcelina elaborou seu testamento, estando de p com sade e perfeito entendimento, ainda lembrava desta senhora e sua famlia; elas foram as nicas pessoas mencionadas que no faziam parte do entorno familiar da testadora. A velha liberta mandava celebrar vrias missas: uma pela alma do meu ex Senhor Jos Pedro Autran, uma pela de minha ex Senhora Francisca da Silva, e uma pela do filho desta de nome Domingos.15 Tal gesto, feito dcadas depois da dissoluo dos laos senhoriais, demonstra um persistente vnculo afetivo ou de reconhecimento. A vida deste casal fornece informao importante sobre o ambiente cotidiano que Marcelina vivenciou enquanto era cativa. Jos Pedro Autran e Francisca da Silva eram pretos forros, nags, como Marcelina.16 A propriedade de escravos por parte de libertos era bastante freqente na Bahia oitocentista e no deveria surpreender-nos muito. A instituio da escravido era parte constitutiva da estrutura social baiana. O cidado abastado investia seu capital em escravos, da mesma forma que o investia em propriedades imveis, e os libertos que tinham o poder aquisitivo necessrio tambm o faziam. O estudo de Maria Ins Cortes de Oliveira revela que, no perodo 1790-1850, daqueles libertos que deixaram testamento, ou seja, os que tinham alguma propriedade, aproximadamente 75% possuam pelo menos um escravo.17 Afinal, no14

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Documento anexo ao inventrio de Marcelina: APEBa, Judicirio, Inventrios, 04/1457/1926/07, Inventrio de Marcelina da Silva, fls. 55-56. O batismo ocorreu na igreja da Conceio da Praia. APEBa, Testamento de Marcelina da Silva, op. cit., fls. 4, 5. APEBa, Escrituras, Livro 257, fl. 87. Oliveira, O liberto, pp. 8, 41. Oliveira analisou 257 testamentos de africanos nesse perodo. A propriedade escrava dos africanos decresce na segunda metade do sculo.

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podemos esquecer que a instituio servil, apesar de abranger uma diversidade de regimes de trabalho forado, era tambm fundamental na organizao social dos reinos africanos explorados pelo trfico de escravos transatlntico, inclusive o territrio iorub. Porm, os africanos Jos Pedro Autran e Francisca da Silva no eram libertos comuns. Jos Pedro, provavelmente, comprou sua alforria em 23 de fevereiro de 1822, data da carta de liberdade do escravo Joz do Gentio da Costa da Mina, concedida por Pedro Autran da Matta e Albuquerque, pelo preo de 300 mil ris.18 Esse senhor era um abastado imigrante francs, que residia na Bahia desde o incio do sculo XIX e era proprietrio de vrios imveis e embarcaes, alm de outros escravos.19 Aps obter sua alforria, o liberto Jos Pedro parece ter mantido laos amigveis com seu ex-senhor que redigia documentos para ele e o acompanhava aos cartrios para assinar como testemunha. Quando, em 1832, Jos Pedro se casou com a forra Francisca da Silva, na igreja matriz da freguesia de Santa Anna, as testemunhas foram Pedro Autran da Matta e Albuquerque e sua mulher, Maria Joaquina. Nesse registro eclesistico, datado em 22 de setembro, os nubentes constam como residentes na freguesia, que possua uma grande populao de africanos libertos.20 Alguns meses antes de casar-se com Francisca, Jos Pedro tinha comprado, por um conto de ris, uma casa trrea na Calada do Bomfim.21 Lembremos tambm que o registro de batismo da menina Sophia,18 19

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APEBa, Escrituras, Livro 209, fls. 7v-8. APEBa, Escrituras, Livro 259, Partilha dos bens de Pedro Autran da Matta e Albuquerque, 31/08/1838, fl. 180v. Pedro Autran era morador da freguesia de So Pedro, e parece provvel que Jos Pedro, quando era escravo, morasse com ele. O filho mais velho de Pedro Autran da Matta e Albuquerque se tornaria o diretor da antiga Faculdade de Direito de Olinda, exercendo tambm a funo de Conselheiro do Governo Imperial. Essa famlia teve diversos descendentes distinguidos, entre eles o ator Paulo Autran. ACMS, freguesia de Santa Anna, Livro de Casamentos, vol. 2, 1819-1873, fl. 55. No registro de batismo do escravo africano Severiano, que ocorreu na igreja de Santa Anna, dois meses antes desse casamento, Jos Pedro aparece como padrinho e identificado tambm como morador em Santa Anna: ACMS, Freguesia de Santa Anna, Livro de Batismos, op. cit, fl. 58. APEBa, Escrituras, Livro 236, fl. 243. Documento datado em 29/02/1832. Na escritura de venda, lavrada em 17/05/1836, a casa localizada no lugar do Bomgosto da Mangueira da Calada do Noviciado do Bomfim: APEBa, Escrituras, Livro 257, fl. 87.

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de 1834, identificava Francisca como moradora na Ladeira do Carmo, o que sugere a aquisio de outro imvel e um crescente poder aquisitivo do casal. A unio de Jos Pedro e Francisca foi legalizada pela Igreja em 1832, mas h indicaes de que eles j estavam juntos havia vrios anos. Dois meses antes do casamento, Pedro Autran da Matta e Albuquerque redigiu, a pedido de Jos Pedro e Francisca, uma carta alforriando uma escrava, Felicidade nag, a qual possumos h muitos anos, por ter-la comprado no lote de Miguel de Almeida.22 Esta carta de liberdade a primeira de vrias, emitidas pelo casal (ou por Jos Pedro) durante o perodo 1832-1837. Achamos referncias a um total de 15 escravos, dos quais oito eram mulheres africanas adultas, todas nags como seus senhores, com exceo de uma, Agostinha, que era tapa (ver no apndice, tabela 1). O casal possua tambm seis escravos crioulos que, provavelmente, na sua maioria, eram filhos das escravas adultas, como no caso de Magdalena e Marcelina. Algumas das cartas de alforria foram pagas, o que era comum no sistema escravocrata brasileiro. Seis escravas adultas comparam sua liberdade por valores variando entre 350 e 500 mil ris, preos do mercado na poca. Entre estas, destaca Marcelina que comprou sua liberdade, em 8 de novembro de 1836, pela quantia mais alta.23 O casal tambm concedeu seis cartas de liberdade condicional, entre elas, a da filha de Marcelina, Maria Magdalena, que aqui transcrevemos parcialmente:Dizemos ns, Jos Pedro Autran e Francisca da Silva, que entre os mais bens de que somos possuidores, bem assim uma cria, de nome Maria Magdalena, crioula, com idade de 7 anos, a qual, pelo amor que lhe temos, com a condio de nos acompanhar para qualquer parte que formos, lhe concedemos sua liberdade, e desta poder gozar, como se de ventre livre nascesse [grifos nossos].24

A data desta carta 14 de fevereiro de 1837. No mesmo dia, Jos Pedro e Francisca alforriaram mais trs crianas: a crioula Maria do22 23

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APEBa, Escrituras, Livro 224, fl. 27. A data da carta 24/06/1832. APEBa, Escrituras, Livro 255, fl. 65v. A carta foi concedida por Jos Pedro Autran. Agradecemos a Joo Jos Reis por ter chamado nossa ateno sobre a existncia desse documento. APEBa, Escrituras, Livro 257, fl. 164.

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Nascimento, de 9 anos; o crioulinho Pedro e a cria Jos da Silva Autran. O crioulo Damio, de 18 anos, e Agostinha tapa tambm receberam suas cartas nesse dia.25 Alforrias condicionais eram muito comuns na poca, mas a clusula encontrada nas cartas emitidas por Jos Pedro e Francisca, a de acompanhar os ex-senhores aonde quer que fossem, era rara e sugere que o casal pretendia deslocar-se da Bahia, levando consigo seus escravos. De fato, no registro de passaportes habilitados pela Polcia no dia 10 de outubro de 1837, encontramos, entre os mais de vinte africanos e crioulos forros que pretendiam embarcar para a Costa da frica, os nomes de Francisca da Silva, de nao nag e Jos Pedro Autrao. No mesmo dia, constam tambm todos os ex-escravos do casal que receberam alforria condicional em fevereiro, usando em alguns casos os nomes dos ex-senhores como sobrenome: Damio Jos, crioulo forro e Agostinha Francisca, preta forra de nao tapa. Esta ltima foi identificada como viajando em companhia do seu patrono [i.e., ex-senhor] Jos Pedro Autran.26 Na mesma lista constam tambm os nomes de duas outras libertas com o sobrenome Francisca, indicando que elas tambm faziam parte do grupo encabeado por Francisca da Silva e seu marido. Eram elas Joaquina Francisca, preta forra de nao nag e Marcelina Francisca, preta forra de nao nag,27 esta ltima, evidentemente, a nossa Marcelina da Silva, me da crioulinha Maria Magdalena. As anotaes do agente policial que registrou a passagem desse grupo so exguas, deixando muito a desejar, mas consta no livro que Marcelina realizou a viagem para tratar de negcios. Caberia perguntar por que Francisca e Jos Pedro alforriaram os escravos que pretendiam levar consigo na sua viagem, pois, na mesma poca, houve casos de africa25

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APEBa, Escrituras: Livro 261, fl. 83 (Agostinha); Livro 261, fl. 83v (Damio); Livro 255, fls. 158v-159v (Maria do Nascimento e Jos da Silva Autran); Livro 258, fl. 22v (Pedro); Livro 257, fl. 164 (Magdalena). APEBa, Colonial, mao 5883, Registros de Passaportes, 1834-1837, fls. 200v-201v. Ibid. Recebendo passaporte no mesmo dia figuram os nomes de Joaquina Roza (preta), Maria Roza (preta), Izabel Maria da Conceio (preta), Thereza Maria da Conceio (preta, jeje), Caetana Maria da Conceio (preta), Salomea Maria (preta, tapa), Anna Benedicta (preta, bornu), Veridiana de Souza (preta), levando em sua companhia uma filha crioula de nome Viridiana de idade de 11 anos, Zeferino Alvarez (crioulo), e Luis (crioulo), todos forros. Os sobrenomes Maria da Conceio e Roza poderiam designar ex-escravas de outras africanas.

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nos que viajaram para a Costa da frica com seus escravos. No temos uma resposta definitiva, mas imaginamos que, por alguma razo, devia ser mais fcil viajar com agregados forros do que com escravos.28 Essa travessia para a Costa da frica, realizada no fim de 1837 por Marcelina da Silva e sua filha, Maria Magdalena, , a todas as luzes, a mesma viagem to zelosamente preservada na memria coletiva dos terreiros. Todavia, se desse retorno tambm participou Iy Nass, como afirma a tradio oral, parece quase impossvel no identific-la com Francisca da Silva, a lder do grupo. Isso implicaria que essa africana, de que Marcelina lembrara no seu testamento cinco dcadas depois, era, alm de sua senhora, tambm sua ialorix. Vamos deixar essa sugesto por enquanto no ar, para examinar o motivo da viagem de Francisca da Silva, seu marido e seus ex-escravos. A tradio oral sustenta que Marcelina e Iy Nass teriam retornado frica com o intuito de aperfeioar seu conhecimento religioso e trazer de volta outros sacerdotes. Sem descartar a possibilidade destas intenes, no podemos deixar de levar em conta a conjuntura poltica na Bahia, naquele tempo. Dois anos apenas tinham-se passado desde a revolta dos mals e, como demonstra Joo Jos Reis, o perodo aps o levante foi uma poca de vulnerabilidade, de perseguio e at de terror para a comunidade africana, sobretudo para os nags. A polcia invadia seus domiclios subitamente e os prendia de forma arbitrria. A mera posse de qualquer papel escrito em rabe era considerada evidncia de participao na rebelio. Nesse perodo, milhares de africanos libertos deixaram a Bahia para retornar ao continente-me, alguns deportados, outros fugindo das novas leis que restringiram seus direitos.29 Francisca e Jos Pedro eram libertos nags e moravam na parte da cidade que se tornara o olho do furaco durante esse tempo, e o motivo da sua viagem pode ser compreendido atravs do contexto geral da represso. Na realidade, eles tinham motivos bem especficos28

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Todavia, em 22/09/1837, poucas semanas antes de viajar, o casal libertou duas escravas nags, Francisca, por 400$000 ris em moeda papel, e Josefa, por 450$000, que no viajaram com eles: APEBa, Escrituras, Livro 257, fl. 205; Livro 259, fl. 36. Joo Jos Reis, Rebelio escrava no Brasil. A histria do levante dos mals em 1835 (edio revista e ampliada), So Paulo, Companhia das Letras, 2003 [1986].

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que os levaram a deixar o Brasil: suas vidas tinham sido transformadas pela rebelio e suas seqelas. Na correspondncia do juiz de paz da pequena freguesia onde eles residiam, a da rua do Passo, encontramos, no final de maro de 1835, a descrio da priso de um africano na qual Jos Pedro citado: Prendeu o preto Domingos Nag, que foi escravo de Joz Pedro Otran, tambm preto Nag, por estar pronunciado a priso e livramento pelo Jri, nos autos de Sumrio a que se procedeu no mesmo Juzo.30 Erros de ortografia parte, evidente que o Joz Pedro Otran mencionado aqui o nosso personagem. Contudo, o dia da priso de Domingos no foi a primeira experincia direta que Jos Pedro e Francisca tiveram com a caa s bruxas que sucedeu rebelio. No incio do ms anterior, em 5 de fevereiro, a polcia deu busca na morada deles por constar que na dita casa havia pretos nags cmplices na insurreio. Segundo transcries parciais dos autos do levante, feitas por Pierre Verger, nesse dia a polcia descobriu um pedao de couro cosido com polegada e meia, contendo um papel escrito com caracteres arbicos, e levaram preso o preto Thom, forro nag, que morava no primeiro andar da casa.31 Mas qual era a relao desses dois nags libertos com Jos Pedro e Francisca? Joo Jos Reis documenta que os dois rus, Domingos da Silva e Thom Jos Alves, condenados a oito anos de priso com trabalho, eram filhos de uma liberta nag chamada Francisca da Silva, que no pode ser outra seno a nossa personagem.32 Lembremos que, no seu testamento, Marcelina mandava realizar uma missa pela alma de um Domingos, filho de sua ex-senhora. Nas notas de Verger sobre o processo contra os dois irmos, consta que Thom era nag de Oy e que trabalhava como remador de saveiro, enquanto Domingos era tanoeiro.33 Reis argumenta que muito provavelmente esses filhos africanos vieram da frica junto com Francisca. O30 31

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APEBa, Colonial, mao 2949, Presidncia da Provncia, Partes da Polcia, 21/03/1835, fl. 4v. Fundao Pierre Verger (FPV), Documentos Avulsos, Notas sobre insurreies de escravos, p. 267. Na dcada de 1950, Verger transcreveu longos trechos dos processos da rebelio de 1835, entre eles os de Domingos da Silva e Thom Jos Alvarez, os quais, hoje, se encontram extraviados no APEBa. Reis, Rebelio, pp. 460, 466-67. FPV, Verger, Notas, op. cit., p. 270.

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fato de apenas Domingos usar o mesmo sobrenome que ela sugere que estes dois foram comprados juntos, enquanto Thom acabou sendo vendido a outro senhor.34 Sabemos que Thom obteve a liberdade judicial em janeiro de 1832. Aps a morte do seu senhor, o sargento-mor Antonio Jose lvares, foi encarcerado para pagar as dvidas do defunto, mas, com a ajuda de algum talvez de sua me e/ou de seu padrasto conseguiu pagar os 320$000 ris pelos quais foi avaliado.35 No encontramos a carta de alforria de Domingos, mas sua identificao pela polcia como exescravo de Jos Pedro intrigante, sugerindo uma srie de cruzamentos entre laos senhoriais e familiares. Por outro lado, pode ter sido facilmente uma confuso da polcia ou uma forma de Domingos se assegurar da proteo de Jos Pedro, sem compromet-lo. Mas voltemos histria das acusaes contra os dois irmos. Aps a descoberta do amuleto mal na casa de Jos Pedro onde Francisca tambm morava dois vizinhos deram depoimentos contra Thom, delatando tambm seu scio, o preto Domingos. Foram, certamente, essas acusaes que motivaram sua posterior priso. Um dos vizinhos, o alfaiate Martinho Ferreira de Souza, disse que Thom, junto com outro preto que tambm a mora, de nome Domingos, ambos nags, faziam grandes adjuntos de outros pretos dentro da mesma casa que continuamente a entravam e saam, e que praticavam h muito tempo. Segundo ele, nesses encontros, Thom usava uma camisa branca [...] com abertura de camisa de mulher debruada com pano vermelho [...] e que depois do 25 [de janeiro] no viram mais o adjunto. O alfaiate acrescentou que, aps o levante, ele tinha visto Thom e Domingos de furto a janela, afim de no serem vistos, e mesmo como espantados, e que no saam mais a rua.36 A segunda testemunha, Mnica Maria de So Jos, ecoou as acusaes do alfaiate. Ela tambm se queixou dos grandes encontros de africanos, nos quais havia pretos nags e pretas, danando e cantando baixo a sua lngua. A vizinha tambm falou da roupa usada por Thom:34 35

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Reis, Rebelio, p. 466. APEBa, Escrituras, Livro 242, fls. 206v-211. Neste documento, Thom descrito como ainda moo. FPV, Verger, Notas, op. cit., p. 267.

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uma camisa grande, com gola redonda, debruada de pano vermelho, e implicou o scio dele, comentando que o preto Domingos deitava nestas ocasies ao pescoo uma grande quantidade de miangas pendurados.37 Para esses vizinhos e a polcia, o uso por estes africanos da roupa branca semelhante usada pelos mals no dia da insurreio s podia significar cumplicidade com a revolta. Com certeza, o comportamento temeroso dos rus depois do levante, que chamou a ateno do alfaiate, pode ser interpretado como sugestivo de alguma participao. Entretanto, parece evidente que os adjuntos de africanos, com cnticos em nag e danas, assim como roupas brancas e colares de contas, constituam cerimnias religiosas do culto aos orixs. Esses encontros na casa da Ladeira do Carmo sugerem que ali funcionava um concorrido candombl, onde os filhos de Francisca da Silva tinham importante funo, e que Thom, pelas cores branca e vermelha das suas vestes rituais, muito provavelmente estava consagrado a Xang. Alis, como j observamos, Thom era nag Oy, o que significa que sua me tambm seria originria de l ou que, pelo menos, l teria vivido por um tempo. Sabemos, por outro lado, que Iy Nass era o ttulo ritual usado pela sacerdotisa encarregada do culto de Xang na casa do alafin (rei) de Oy.38 A aparente centralidade da devoo ao orix do trovo na casa dessa famlia e os vnculos familiares com Oy reforam ainda mais a hiptese de ser Francisca da Silva a lendria Iy Nass. As festas celebradas na Ladeira do Carmo aconteciam h muito tempo, o que sugere que naquele lugar existia um candombl nag dedicado a Xang, provavelmente liderado pela sacerdotisa que possua o cargo de Iy Nass. Reis documenta que, em 13 de maro de 1836, Francisca enviou uma petio Assemblia Legislativa Provincial da Bahia, na qual afirmava que a sentena dos seus filhos a oito anos de priso com trabalho tinha sido baseada em falsas delaes de seus inimigos. Ela tambm37

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Ibid., p. 268. Para uma verso resumida destes depoimentos, ver tambm Verger, Fluxo e Refluxo do trfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos, So Paulo, Corrupio, 1987, p. 349. Para mais informao sobre o vnculo de Iy Nass com o culto de Xang, ver Lima, Ainda sobre a nao de Ketu.

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solicitava, de forma enftica, que Domingos e Thom fossem absolvidos e liberados para poderem embarcar, junto com ela e a suas custas, para a Costa da frica, com a inteno de nunca mais regressar, admitindo quaisquer penas, s mais graves que lhe fossem cominadas, no caso de voltarem a este Imprio. Todavia, Francisca declarava que abandonaria o territrio brasileiro, no porque seja a isso coagida por alguma Ordem Superior, mas por no querer sujeitar-se a ver-se comprometida em qualquer ocasio por pessoas que lhe sejam desafetas. Como Reis observa, a carta de Francisca Assemblia expressa sua determinao, fora de carter e capacidade de mobilizao. Embora essa primeira petio fosse negada, um segundo recurso ao Ministrio de Justia do Imprio foi agraciado, em 26 de maio de 1836, com a comutao da pena inicial de priso pela de deportao.39 Foi nessa circunstncia que, em outubro de 1837, o grupo encabeado por Francisca da Silva e Jos Pedro Autran recebeu passaportes para a Costa da frica. Cabe notar que, no registro dos passaportes, no h meno a Domingos da Silva e Thom Jos Alves. Isso sugere que, se os filhos de Francisca efetivamente foram embarcados, provavelmente o fizeram diretamente da cadeia da Relao, onde foram encarcerados.40 Ainda como parte dos preparativos, Francisca e Jos Pedro venderam a sua casa na Calada do Bomfim pelo mesmo preo que por ela pagaram um conto de ris e, como vimos, concederam vrias alforrias.41 Outra questo interessante diz respeito ao porto de desembarque do grupo, ao terminar sua travessia transatlntica e seu destino final no continente africano. Teria sido, como me Senhora afirmou a Pierre39

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A petio de Francisca est transcrita na sua ntegra em Reis, Rebelio, p. 466. Ver tambm APEBa, Ofcios Imperiais, mao 890; Resposta do Ministrio da Justia, fls. 203-204. Cabe notar que, como Francisca no era alfabetizada, este documento tinha que ser escrito por outra pessoa, provavelmente algum amigo influente, quem sabe pelo mesmo ex-senhor de Jos Pedro, Pedro Autran da Matta e Albuquerque, que costumava redigir documentos para o casal. Durante a investigao aps a rebelio, o ex-senhor de Jos Pedro participou num dos jurados que avaliavam a evidncia contra os rus: Peas processuais do levante dos mals, Anais do Arquivo Pblico da Bahia, no 40 (1971), pp. 68-70, 135, 164. Ele seria, portanto, um aliado valioso, com conhecimento ntimo da burocracia judicial. FPV, Verger, Notas, op. cit., p. 270. APEBa, Escrituras, Livro 257, fl. 87.

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Verger, a cidade de Ketu? Sendo Francisca e seus filhos de Oy, essa idia estranha um pouco. Por outro lado, naquela altura, Oy se encontrava sob a dominao dos fulanis, com sua capital abandonada desde 1835.42 Parece pouco provvel que o grupo tentara abrigar-se numa regio to conturbada. Silveira sugere que o reinado de Ketu teria sido um dos poucos lugares de todo o territrio iorub que no estava assolado pelas guerras.43 Outra possibilidade que o grupo acabara ficando em Onim (Lagos), onde a maioria dos retornados desembarcavam.44 Porm, no temos ainda informaes a esse respeito. De qualquer forma, a documentao que encontramos corrobora, de forma contundente, a tradio oral em relao viagem frica de Iy Nass, Marcelina e Magdalena, fornecendo detalhes sobre a vida pessoal da primeira e sua relao com sua sucessora, tambm situando seu celebrado retorno na conjuntura poltica da revolta dos mals.

A liberta Marcelina: sua ascenso socioeconmicaComo foi dito, algumas verses da tradio oral contam que Iy Nass voltou frica em companhia de Marcelina e l faleceu. Marcelina regressou ento com a herana (de bens e de cargos) e assumiu a liderana do Engenho Velho.45 De fato, aps 1837, no achamos qualquer referncia nos arquivos da Bahia a Francisca da Silva ou a Jos Pedro Autran, o que refora a tese de que eles ficaram na frica. Todavia, em meados da dcada de 1840, comeam a aparecer documentos em nome de Marcelina da Silva, sugerindo que ela permaneceu vrios anos na Costa antes de retornar. Ignoramos quando ou de que forma conseguiu regressar Bahia, pois, aps a revolta dos mals, a entrada de africanos libertos estava proibida por lei, mesmo que houvesse freqentes exce-

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Para discusses dos acontecimentos polticos no territrio iorub naquele perodo, ver Reis, Rebelio, cap. 6. Silveira, O candombl da Barroquinha, cap. 15 Por exemplo, o casal Ajadi Luis Daupele e Felicidade Maria da Paixo, rus do levante dos mals, tiveram sua sentena comutada por deportao, em julho de 1837, e pretendiam embarcar para Amim, ou seja, Onim: Reis, Rebelio, pp. 464-66. Lima, Ainda sobre a nao de queto, p. 77.

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es.46 Embora tambm no saibamos se ela retornou junto com o babala Bambox, como sustenta a tradio oral, o que parece claro que deixou sua filha Magdalena na Costa e que esta s voltou ao Brasil anos depois, j adulta. Comentaremos estes temas mais adiante. Os primeiros documentos que encontramos sobre Marcelina, aps sua volta da frica, so registros de batismo de escravos, todos realizados na Freguesia da S, o que sugere que foi ali que Marcelina residiu quando regressou, prximo s suas antigas moradias. No ms de abril de 1844, ela batizou uma sua escrava africana, chamada Esperana, na igreja matriz da freguesia da S.47 Em julho do mesmo ano, batizou outra escrava, de nome Maria de Santa Anna, tambm africana, e seu filho, o crioulo Joo, nascido em janeiro do ano anterior.48 Em setembro de 1845, batizou outro crioulinho, de um ano de idade, tambm de nome Joo, mas filho de Esperana,49 ou seja, no prazo de um ano e meio, Marcelina batizou duas escravas adultas e seus dois filhos crioulos. Os escravos africanos, se no vinham batizados da prpria frica, como acontecia com muitos angolas, normalmente recebiam o sacramento no momento de serem comprados. Porm, como antes disso precisavam sofrer alguma catequese, era comum conceder-se ao senhor um ano de prazo para instruir os escravos na f catlica, antes de lev-los parquia local para o batismo. Essa lei no era cumprida risca no que se refere ao prazo, mas, de modo geral, tambm no era totalmente ignorada.50 Portanto, tudo

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As leis de 1831 e 1835 restringiam a entrada de africanos libertos no Brasil. Mesmo com a proibio do trfico transatlntico, em 1831, levas de africanos continuavam a desembarcar de forma clandestina em Salvador, sob a complacncia das autoridades locais, at o incio da dcada de 1850. Os desembarques ocorriam em lugares como as ilhas de Itaparica, dos Frades e na praia de Itapu. O nmero estimado de escravos importados na Bahia entre 1830 e 1850 de aproximadamente 76.000, cf. David Eltis, Stephen Behrendt; David Richardson & Manolo Florentino, The Trans-Atlantic Slave Trade: a Dataset on-line, (no prelo). ACMS, Freguesia da S, Livro de Batismos, 1829-1861, fl. 125v (microfilme no 125-1837, acervo dos Mrmons). Ibid., fl. 128v. Ibid., fl. 227. O crioulinho Joo, filho de Esperana, seria alforriado poucos anos depois, em 1847. O trmite dessa carta se prolongou por vrios anos, com finalizao em 5/08/1861, mas, no processo, Marcelina no alterou a condio de Joo ter que acompanh-la enquanto ela viva fosse: APEBa, Escrituras, Livro 359, fls. 54-54v. Henry Koster, Travels in Brazil 1809-1815, vol. 2, Londres, Longman, Hurst, Rees, Ormes and Brown, 1817, pp. 238-39; apud Nishida, Slavery and Identity. Etnicity, Gender, and Race in Salvador, Brazil, 1808-1888, Bloomington e Indianpolis, Indiana University Press, 2003, p. 30.

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indica que as africanas Esperana e Maria de Santa Anna entraram no Brasil no perodo do trfico ilegal. Podemos supor tambm que estivessem h pouco tempo na Bahia, talvez acompanhando sua senhora quando esta regressou da Costa. Se Marcelina trouxe bens da frica, um capital inicial para seus investimentos, no sabemos, mas o certo que passou a ter um poder aquisitivo considervel, o que sinalizado pela rapidez com que acumulou propriedades. Do mesmo modo que seus ex-senhores, Francisca da Silva e Jos Pedro Autran, os primeiros bens da liberta Marcelina, foram escravos. Ao longo da sua vida, ela se tornou proprietria de pelo menos outros 14 cativos, alm dos quatro j mencionados, somando um total de 18 (ver apndice, tabela 2).51 Na sua grande maioria, eram mulheres nags e seus filhos crioulos. A preferncia de Marcelina por escravos do seu prprio gnero corresponde, conforme sugerem os estudos sobre o tema, a uma tendncia comum entre mulheres libertas. O fato de suas escravas serem africanas, da sua mesma nao, certamente facilitava a comunicao e a sociabilidade do grupo.52 Levando em conta o cargo religioso de Marcelina, e lembrando tambm da sua prpria histria inicitica, na qual sua senhora Francisca era ao mesmo tempo sua iyalorix, provvel que, no caso de Marcelina, algumas de suas escravas, alm de prestarem servios domsticos ou de ganho, fossem suas filhas-de-santo.53 A maioria dos documentos encontrados sobre os escravos de Marcelina foram cartas de alforria: de um total de treze, oito foram51

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Se contarmos trs escravos de propriedade de Maria Magdalena, a famlia possuiu um total de 21 cativos, ao longo de 30 anos (1844 a 1878). Para Flora, escrava nag, alforriada em 1875, por 600$000 ris, ver: APEBa, Escrituras, Livro 446, fl. 39v. Henriqueta e seu filho Rufino crioulo aparecem como escravos de Magdalena da Silva, no registro de batismo do ltimo, em 30/10/1864: ACMS, Freguesia da S, Livro de Batismos, s.d., fl. 32 (microfilme no 125-1837, no acervo dos Mrmons). Oliveira, Os libertos, pp. 43-44; Maria Ins Cortes de Oliveira, Viver e morrer no meio dos seus. Naes e comunidades africanas na Bahia do sculo XIX, Revista USP, no 28 (199596), pp.175-193. Na Bahia do sculo XIX, nag era um termo guarda-chuva que podia incluir pessoas de regies diferentes que no necessariamente se consideravam do mesmo grupo tnico. A posse de escravos por sacerdotes e o envolvimento destes nos cultos aos orixs e aos voduns parece ter sido prtica comum no sculo XIX, tanto na frica como no Brasil; ver Luis Nicolau Pars, Memories of Slavery in Religious Ritual: A Comparison Between the Benin Vodun Cults and Bahian Candombl (no prelo); e Joo Jos Reis, Candombl and Slave Resistance in Nineteenth-Century Bahia (no prelo).

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pagas, trs, condicionais e duas, gratuitas.54 Sete cartas mais da metade so da dcada de 1870, quando a tendncia abolicionista j estava numa fase avanada, aps a lei do Ventre Livre, de 1871. Achamos apenas dois registros de compra, ambos de meados dos anos 1850: o de Delfina, de nao nag, datado de 22 de janeiro de 1856, e o do africano Serapio, datado exatamente de um ano depois.55 O silncio documental sobre a compra e venda dos outros escravos levanta questes sobre os procedimentos utilizados no perodo do trfico clandestino, quando no interessava, talvez, registr-las em escritura pblica. Alguns desses processos de alforria so reveladores das atitudes de Marcelina em relao liberdade dos seus escravos. O caso da j mencionada Delfina significativo. Marcelina a comprou em 1856, por 500$000 ris, o que correspondia aproximadamente ao preo mdio de uma escrava africana maior. Delfina serviu sua senhora durante quatorze anos, at finalmente comprar sua liberdade, em agosto de 1870, por 800$000 ris.56 O aumento no preo acompanhava a inflao, indicando que Marcelina seguia a lei do mercado e no se deixava abrandar na hora de negociar, apesar da avanada idade de Delfina.57 Outro caso ilustrativo o de Justa e suas filhas crioulas, Querina e Francisca. Justa era escrava de Marcelina desde pelo menos meados de 1858, quando Querina, a mais velha, nasceu.58 Em maio de 1865, Marcelina vendeu a alforria a Justa pelo valor bastante alto de 1:600$000 ris, preo por que estimei seus servios.59 Alguns meses depois, por

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As trs cartas condicionais foram as primeiras a serem concedidas, datadas de 1847 (Joo e Felicidade) e de1854 (Maria Porquria), o que significa que esses escravos tiveram que esperar sua liberdade durante dcadas, quase at a abolio, pois Marcelina teve uma vida longa, vindo a falecer s em 1885. APEBa, Escrituras, Livro 322, fl. 116v (Delfina) e Livro 329, fls. 71v-72 (Serapio). APEBa, Escrituras, Livro 406, fls. 48-48v. Andrade calcula o preo mdio de uma escrava africana maior, com oficio, sem doena, entre 400 e 600$000 ris, no perodo 1855-60, e em 833$000 ris (300$000 para uma velha) em 1870-71: Maria Jos de Souza Andrade, A mo de obra escrava em Salvador, 1811-1860, Salvador, Corrupio, 1988, tabela 10.1, p. 210. Ver tambm: Ktia Mattoso, Herbert S. Klein e Stanley L. Engerman, Notas sobre as tendncias e padres dos preos de alforrias na Bahia, 1819-1888, in Joo Jos Reis (org.), Escravido e inveno da liberdade. Estudos sobre o negro no Brasil (So Paulo, Editora Brasilense, 1988), pp. 60-72. ACMS, Freguesia da S, Livro de Batismos, 1829-1861, op. cit., fl. 420v. APEBa, Escrituras, Livro 381, fls. 104v-105.

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amor e humanidade e de a ter criado, Marcelina concedeu a alforria a Francisca, que tinha ento 6 anos de idade, porm a emancipao s entraria em vigor aps a morte de Marcelina.60 Em maio de 1872, enquanto Francisca ainda esperava sua liberdade, Justa pagou mais 900$000 ris para a alforria imediata de Querina.61 Trs anos depois, em 1875, Marcelina aceitou renunciar carta condicional de Francisca e lhe concedeu a liberdade imediata, mas s aps ter recebido pela mesma Francisca 500$000 ris.62 Os casos de Delfina e da famlia de Justa sugerem que Marcelina podia ser bastante ciosa de sua propriedade escrava, sem dobrar-se a sentimentalismos. Porm, em outros momentos, ela agia de forma mais generosa, como no caso de Lcia e Amncio, alforriados gratuitamente, pelos bons servios prestados, no mesmo dia, em 1878.63 Contudo, na hora de fazer seu testamento, Marcelina no mencionou nenhum dos seus ex-escravos. Alm dos membros da sua famlia imediata e de seus ex-senhores, as nicas pessoas includas foram seus afilhados.64 Com esse pano de fundo, parece oportuno abrir um parntese para considerar a memria preservada pela tradio oral da relao entre Marcelina e o babala Bambox Obitik. Uma verso sustenta que chegaram juntos da frica e, uma vez em Salvador, ela o teria libertado; outras verses contam que Bambox foi escravo de Marcelina.65 Talvez esta histria evoque de forma oblqua a lembrana do envolvimento de Marcelina com a escravido, mas parece pouco provvel que ela tivesse sido senhora de Bambox. O nome de branco do babala60 61

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APEBa, Escrituras, Livro 387, fls. 45v-46. A alforria foi registrada em 13/07/1886. APEBa, Escrituras, Livro 413, fl. 75v. Querina foi alforriada pelo casal Miguel Vieira e Marcelina da Silva, em 20/05/1872. APEBa, Escrituras, Livro 474, fls. 4-4v. APEBa, Escrituras, Livro 587, fl. 13. Alm da j mencionada Sophia Clementina, Marcelina tambm aparece como madrinha de: 1) Vicncia, africana adulta, escrava de Jos Martins Pereira Caldas, em 5/01/1846 (ACMS, Freguesia da S, Livro de Batismos 1829-1861, op. cit., fl. 229v); 2) Brs, crioulo, filho de Constana, escravo do Doutor Pedro Antnio Falco Brando, em 5/07/1863 (ACMS, Freguesia da S, Livro de Batismos, s.d., op. cit., fl. 18v); e 3) Narciso, crioulo, filho natural de Jos Vicente e Judith Viana, africanos libertos, em 20/08/ 1866 (ACMS, Freguesia da S, Livro de Batismos, s.d., op. cit., fl. 62v). Me Senhora, apud Lima, O candombl da Bahia na dcada de trinta, p. 71; Silveira, O candombl da Barroquinha, p. 403.

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era Rodolfo Martins de Andrade.66 Levando em conta o costume segundo o qual o liberto tomava o sobrenome e, s vezes, at o primeiro nome do ex-senhor, inferimos que o sobrenome do senhor de Bambox era Martins de Andrade. Com efeito, naquela poca existia um fazendeiro portugus chamado Manoel Martins de Andrade, morador na freguesia do Pilar e dono de vrios escravos, entre eles, no um, mas dois africanos chamados Rodolfo. Um destes comprou sua alforria em maio de 1857, por uma quantia bem alta, 1:750$000 ris, o que indicaria tratar-se de um homem jovem, com algum ofcio ou habilidade profissional. O outro, maior de 40 anos, foi comprado pelo portugus, em junho de 1860, numa complicada transao que envolvia outros trs escravos africanos. No conseguimos localizar a carta de alforria desse segundo Rodolfo, o que pode sugerir, talvez, que permanecesse escravo.67 A nossa hiptese que o Rodolfo alforriado em 1857 seria o candidato mais provvel para ser Bambox Obitik. De qualquer forma, Marcelina somente podia ter sido sua senhora se o fosse antes do portugus, o que parece pouco provvel. Mas isto no exclui outros aspectos da tradio oral, como a possibilidade de eles se terem conhecido na frica, ou de ela ter contribudo para o pagamento de sua alforria. Seja como for, sabemos que em abril de 1866 ele j estava liberto, pois o encontramos comprando uma casa na estrada do Pau Mido, para a sua filha, a menor Jlia, cujo nome preservado tambm pela tradio oral.68 Voltaremos relao entre Marcelina e Bambox mais adiante, mas, por enquanto, seguiremos com Marcelina e seu processo de as-

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Verger, Os libertos, p. 89; Dona Irene Sowzer Santos, entrevista de Lisa Earl Castillo, Salvador, 28/03/2007. Bambox tambm deixou descendentes em Lagos, os quais o lembram como Manoel Rodolfo Martins: Bangbosh Martins, http://www.cartasdafrica.com/familias/ bangboshe.htm, acessado 26/12/2007. APEBa, Escrituras, Livro 334, fl. 32v (alforria de 1857); Livro 352, fl. 23v-24 (compra de 1860). Manoel Martins de Andrade era portugus, com uma fazenda no Recncavo, na vila de Jaguaripe, alm de possuir vrios escravos e propriedades na capital: APEBa, Judiciria, Inventrios, 3/1292/1761/7, Inventrio de Manoel Martins de Andrade, 1871. Em 1857, ele morava na freguesia do Pilar: ACMS, Freguesia de Santana, Livro de Casamentos, 18191873, vol. 2, Casamento de Bendicto Virissimo dos Santos e Fortunata Maria dAssuno, fl. 162. APEBa, Escrituras, Livro 385, fls. 92v-93.

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censo econmica na Bahia. No seu registro de bito, Marcelina descrita como ganhadeira e foi, talvez, nos tempos em que ela mercadejava nas ruas que desenvolveu o seu aguado esprito comercial, para no dizer capitalista, investindo seu dinheiro sempre de forma lucrativa.69 O mesmo rigor demonstrado em relao a seus escravos revela-se na forma enrgica com que atuava na hora de proteger seus interesses nos negcios. Talvez fosse esse o segredo do seu sucesso e prosperidade. Por exemplo, em maio de 1850, Marcelina emprestou 350$000 ris a Joo Domingos dos Santos, dando-lhe um prazo de oito meses para pagar. Como hipoteca, o devedor ofereceu a escrava nag, Felicidade, mas em janeiro de 1851, apenas uma semana aps o vencimento do prazo, Marcelina recorreu Justia, reivindicando o embargo da escrava para pagar a dvida. Felicidade permaneceu presa no Aljube durante duas semanas, at a resoluo da pendncia do seu senhor.70 Marcelina parece ter seguido um padro comum entre os libertos daquela poca, os quais, inicialmente, compravam escravos de ganho e, com o lucro destes, investiam depois em imveis, que, por sua vez, geravam renda com os aluguis.71 Se, como vimos, nas dcadas de 1840 e 1850 Marcelina investiu principalmente em escravos, a partir do fim da dcada de 1850 ela passou a acumular propriedades imobilirias. Isso pode ser explicado tambm pela alta do preo dos escravos aps o fim do trfico atlntico. Nesse perodo de transio no gerenciamento econmico, Marcelina casou formalmente pela Igreja com o africano liberto Miguel Vieira, em 8 de fevereiro de 1866, embora parea que a relao j existia h tempo.72 O primeiro documento que achamos sobre Miguel est datado de 13 de outubro de 1850, quando aparece como padrinho de Maria, escrava africana de Francisco Igncio Pimentel. A madrinha, tambm africana, chamava-se Maria de Santa Anna, e talvez fosse a j

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ACMS, Freguesia da S, Livro de bitos, 1884-1894, fl. 15 (microfilme no 125-1842, acervo dos Mrmons). APEBa, Judiciria, Autos Cveis 2, 36/1282/8. Oliveira, Os libertos, p. 40. ACMS, Freguesia da S, Livro de Casamentos, 1838-1879, 8/02/1866. Agradecemos a Isabel Cristina Reis por ter chamado nossa ateno sobre a existncia desse documento.

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citada escrava de Marcelina, o que sugere que Miguel e Marcelina se relacionavam desde aquele tempo.73 Vrios imveis foram adquiridos antes do matrimnio formal, quase todos escrituradas em nome de Magdalena da Silva. Com essa estratgia, a famlia contornava a lei no 9, de 13 de maio de 1835, promulgada aps a revolta dos mals, que proibia a aquisio de propriedade por libertos africanos, proibio reafirmada pela Assemblia Legislativa Provincial em 1847.74 Embora essa lei no fosse aplicada de forma sistemtica, a compra de propriedade em nome dos filhos crioulos se tornou comum. No caso de Marcelina, propiciou a constituio estratgica de uma pequena empresa familiar que, ao longo dos anos, acumulou um patrimnio considervel. Anos mais tarde, em 1887, aps a morte de Marcelina, o padrasto e sua enteada entraram numa acirrada briga pela repartio dos poucos bens que restaram desse patrimnio. Numa declarao anexa ao inventario da falecida, Miguel Vieira relembrava o passado:A inventariante [Magdalena] tendo ido pequena para [a] Costa dfrica, e estando j casado o Suppe [Miguel], com os recursos de seu trabalho e de sua mulher [Marcelina], procuraram comprar propriedades, como efetivamente compraram um sobrado ao Taboo e uma casa trrea a rua da Laranjeira, onde o Suppe e sua mulher moravam e onde ela faleceu; e, depois da chegada da inventariante, uma contgua esta e uma rua do Bangala; porque a que foi avaliada [no inventrio], quando o Suppe casou, j a levou; e como se dizia que africanos no podiam, pela lei, comprar bens de raiz, o fizeram em nome da inventariante. Seus rendimentos eram promiscuamente cobrados por ambos e por ambos pagas as dcimas.75

Alm de mencionar explicitamente a viagem de Magdalena frica e seu retorno tardio Bahia, esse relato, apesar de algumas imprecises, sintetiza o histrico dessa atividade imobiliria. Miguel insistia que todas as posses, mesmo as escrituradas em nome de Mag-

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ACMS, Freguesia da S, Livro de Batismos, 1829-1861, op. cit., fl. 276v. Reis, Rebelio escrava, p. 499. Ver tambm Oliveira, Os libertos, p. 40. APEBa, Inventrio de Marcelina da Silva, op. cit., fls. 77-78.

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dalena, foram compradas pelo casal, porm, cabe lembrar que estamos diante de uma verso dos fatos que reflete os interesses do narrador. Segundo Miguel, a primeira propriedade comprada foi um sobrado na Ladeira do Taboo (no atual Centro Histrico), mas, na verdade, parece que se tratava de dois imveis adjacentes. H uma escritura no nome de Marcelina, de julho de 1857, da compra de um sobrado de dois andares, com loja, ptio e quintal, por 2:600$000 ris. A vendedora era a viva de Joo Domingos dos Santos, muito provavelmente a mesma pessoa acima citada, que Marcelina levou Justia por dvida, no incio da dcada. Segundo essa escritura, o sobrado adjacente j pertencia sua filha, Maria Magdalena da Silva, para quem compra a segunda outorgante [Marcelina] a presente propriedade.76 As duas propriedades j representavam um patrimnio considervel, sinalizando um padro de vida material atingido por poucos libertos, mas era apenas o princpio. Trs anos depois, em 28 de maio 1860, encontramos outra escritura de compra, tambm em nome de Magdalena, relativa a uma casa trrea, sita na rua das Laranjeiras no 98, na freguesia da S, adquirida por trs contos de ris. Esta nova propriedade, que nos anos a seguir seria a moradia de Marcelina, tinha porta e duas janelas, sala, dois quartos, sala de jantar, pequeno sto com dois quartos, e um armazm por baixo da sala de jantar onde se achava a cozinha.77 No seu relato, Miguel afirma que, depois da chegada de Magdalena da frica, ele e Marcelina compraram uma segunda casa contgua j existente na rua das Laranjeiras e, embora a correspondente escritura de compra no tenha sido encontrada, h referncia a esta segunda76

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APEBa, Escrituras, Livro 330, fls. 28v-29v. No conseguimos localizar o registro de compra da primeira casa, mas descries posteriores indicam tratar-se de dois sobrados contguos, ambos com o no 58, nos quais moravam, respectivamente, ngela Maria de Souza Pinheiro, filha de Magdalena, e Flix Jos do Esprito Santo, vivo de Claudiana Maria, outra filha de Magdalena: APEBa, Judiciria, Inventrios, 1/19/20/3, Inventrio de Flix Jos do Esprito Santo, 1906. APEBa, Escrituras, Livro 353, fls. 4v-5. No termo da abertura do testamento de Marcelina, em 30/06/1885, Miguel Vieira declarava que ela faleceu em sua casa de morada a rua das Larangeiras: APEBa, Testamento de Marcelina da Silva, op. cit., fls. 4, 5. Em 1901, a mesma casa consta, com nova numerao municipal, como no 38, e medindo de fronte 5.70 m: APEBa, Judicirio, Inventrios, 1/43/48/4, Inventrio de Maria Magdalena da Silva, 1901. As casas nos 38 e 36, na rua das Laranjeiras, ambas com porta e duas janelas e a primeira com a mesma largura, ainda existem na atualidade.

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Rua das Laranjeiras, no centro histrico de Salvador, onde moravam Marcelina e Magdalena da Silva. Foto: Luis Nicolau Pars

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casa, tambm com porta e duas janelas, no inventrio de Marcelina.78 Todavia, em setembro de 1869, Magdalena adquiria, por um conto de ris, uma outra casa trrea, no beco do Limoeiro no 7, junto praa da Piedade, na freguesia de So Pedro. Nessa escritura, Magdalena aparece pela primeira vez como residente na Bahia, vivendo de seus bens, solteira, moradora rua da Laranjeira.79 Nove anos depois, em 1878, essa casa no beco do Limoneiro foi desapropriada pelo governo da Provncia, que pretendia construir uma escola primria no lugar.80 O preo de indenizao, 3:500$000 ris, trouxe um lucro excelente, parte do qual (dois contos) seria logo aplicada na compra de outra casa, com porta e duas janelas envidraadas, localizada na rua da Bangala no 45, na freguesia de Santa Anna.81 No relato acima citado, Miguel aludia tambm a uma casa avaliada no processo do inventrio, declarando que quando o Suppe casou, j a levou, ou seja, que ele j a possua antes do seu casamento com Marcelina no incio de 1866. Encontramos uma escritura de compra no nome de Miguel, de uma casa na Cruz do Cosme, freguesia de Santo Antonio, por 600$000 ris. Porm, a data de 4 de fevereiro de 1868, ou seja, posterior ao casamento formal.82 Contudo, fora essa impreciso, tal escritura chama a ateno por dois motivos: primeiro, por ser a nica propriedade que no estava localizada no centro da cidade e, segundo, por ser a nica registrada no nome de Miguel Vieira. Como j

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Um ano depois do falecimento de Marcelina, em 25/08/1886, Magdalena foi intimada a prestar contas como testamenteira, mas como ela no deu satisfao, o juiz mandou fazer o seqestro da sua casa, na rua das Laranjeiras no 36, mencionando: a propriedade divide-se pelo norte com casa da seqestrada, isto , a no 38 [ex-no 98, onde morava a me]: APEBa, Judicirio, Testamentos, 04/1845/2316/11, Testamento de Marcelina da Silva, 1886, fls. 2-10 [nota: este documento est classificado como um segundo testamento de Marcelina]. APEBa, Escrituras, Livro 402, fls. 74v-75. Essa propriedade a nica que no consta no relato de Miguel, o que poderia indicar que foi comprada por Magdalena sem ajuda do casal. APEBa, Escrituras, Livro 565, fls. 36-36v. Ibid., fls. 43v-47. APEBa, Escrituras, Livro 395, fl. 18v. Esta casa, descrita em 1868 como ainda por acabar, tinha duas braas e meia (aproximadamente 5,5 m) de frente, com porta e duas janelas. Porm, a casa na Cruz do Cosme, avaliada no inventrio de Marcelina, em 1889, tinha uma porta e trs janelas, com 6,40 m de largura na frente: APEBa, Escrituras, Livro 821, fls. 23-23v. Surge aqui uma dvida: tratava-se da mesma casa que foi ampliada? Ou tratava-se de duas casas, uma que Miguel possua antes do casamento (a que foi avaliada em 1887) e outra que comprou em 1868 e que, logicamente, foi vendida em vida de Marcelina?

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foi dito, Miguel argumentava que ele, junto com sua esposa, foram os verdadeiros compradores de todos os imveis registrados no nome da enteada, embora haja indcios para supor que Marcelina era quem mais contribuiu. A questo de quem exatamente pagou pelos bens imobilirios no altera o quadro maior: at o final da dcada de 1860, a famlia j possua seis propriedades, cinco no centro da cidade (duas na rua das Laranjeiras, duas na ladeira do Taboo e uma no beco do Limoeiro), e uma na periferia urbana, na Cruz do Cosme. As rendas geradas pelos aluguis, na frase de Miguel, promiscuamente cobrados pelo casal, assim como, provavelmente, os lucros do ganho dos escravos, sem esquecer os possveis dividendos provenientes dos servios espirituais, forneciam a base da economia desse bem-sucedido casal de libertos, trazendo-lhes uma prosperidade que os colocava numa privilegiada camada social. Marcelina e sua famlia pertenciam, assim, a uma espcie de elite entre a populao africana da cidade de Salvador, com uma segurana econmica e um padro de vida material fora do comum. Porm, importante destacar que eles estavam inseridos numa rede social mais ampla, tema da prxima seo.

Redes sociais transatlnticasQuando Marcelina da Silva e Miguel Vieira se casaram, em 1866, declararam que reconheciam como sua filha, e como se tivesse nascido de legtimo matrimnio a Maria Magdalena da Silva. Poder-se-ia inferir que Miguel fosse o pai de Magdalena, mas uma anotao na margem do registro esclarece que, a requerimento de Magdalena da Silva, fica a nenhum efeito a declarao de ser ela filha de Miguel Vieira, por ter provado o contrario.83 Era comum, naquela poca, aproveitar-se do casamento formal para retroativamente legitimar filhos naturais. Por outro lado, a recusa de Magdalena a esta legitimao curiosa, suge83

ACMS, Freguesia da S, Livro de Casamentos, 1838-1879, 8/02/1866. Este documento identifica Miguel como crioulo, o que seguramente um equvoco, pois, em outros documentos, inclusive depoimentos dele mesmo e de pessoas que faziam parte da sua rede social, ele sempre identificado como africano.

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rindo que fosse realizada sem o seu consentimento e que correspondia mais aos interesses de Miguel do que aos dela, sendo relacionada, talvez, s propriedades registradas no nome dela. Como vimos, quando Magdalena viajou para a Costa com sua me, em 1837, tinha sete anos de idade, o que coloca seu nascimento em 1830.84 No h, por enquanto, qualquer indcio sobre sua paternidade ou sobre sua vida na frica: se ela ficou na cidade de Ketu, como sustenta a tradio oral, ou se foi acolhida em alguma famlia de retornados em Lagos, fosse a de Francisca da Silva ou outra. Na j citada declarao de Miguel Vieira, feita por ocasio do inventrio de sua mulher, ele afirmava:[...] tendo ido pequena para [a] Costa da frica [...] chega a inventariante [Magdalena] da Costa anos depois, carregada de filhos e coabitam com o Suppe e a inventariada [Marcelina]. Se as propriedades eram da inventariante por que, por to longos anos, delas no tomou conta, no recebeu seus alugueres, e foram sempre pelo Suppe e sua mulher cobrados? [grifo nosso].85

No tom desse depoimento detectamos indcios de dinmicas familiares nem sempre harmoniosas depois da chegada da enteada, carregada de filhos. Em relao aos filhos de Magdalena, me Senhora dizia que, quando sua av voltou da frica, trouxe duas crianas e estava grvida de uma terceira que viria a ser a me de Senhora.86 No inventrio de Magdalena, constam os nomes de trs filhas: Maria Theodoria dos Reis Bispo, ngela Maria de Souza Pinheiro e Claudiana Maria do Esprito Santo, supostamente a caula.87 A certido de bito de Claudiana informa que ela faleceu em 1900, com 30 anos de idade, o que indica que nascera em 1870.88 Conforme essas informaes, Mag-

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APEBa, Judiciria, Escrituras, Livro 257, Carta de alforria de Magdalena, fl. 164. No entanto, o registro de casamento de Marcelina e Miguel, em 8/02/1866, descreve Magdalena como menor de vinte anos, o que obviamente um erro (intencional?): ACMS, Livro de Casamentos 1838-1879, op. cit. APEBa, Inventrio de Marcelina da Silva, op. cit., fls. 77-78. Verger, Os libertos, p. 89. APEBa, Inventrio de Maria Magdalena da Silva, op. cit. O inventrio foi iniciado em 1901, nove anos aps sua morte. Segundo este documento, Claudiana era parda e faleceu de phtysica: ACMS, Freguesia da S, Livro de bitos, 1894-1901, fl. 38v.

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dalena teria regressado por volta de 1869. Porm, outros documentos questionam essa verso dos fatos e ainda no conseguimos datar de forma conclusiva o retorno de Magdalena.89 Os estudos sobre os retornados brasileiros para o continente negro tm mostrado o crescimento no seu nmero aps a revolta dos mals, em 1835. Como vimos, a viagem de Francisca, Marcelina e Magdalena, em 1837, pertence a essa primeira leva de viajantes. No entanto, esse fluxo perdurou durante toda a segunda metade do sculo XIX, incluindo, como j apontaram vrios autores, tambm o movimento inverso de refluxo da frica para a Bahia.90 O retorno de Marcelina, nos anos 1840, e o de Magdalena, anos depois, so bons exemplos.91 Todavia, interessa-

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No registro de batismo de Maria Theodora, cabra [...] filha natural de Maria Magdalena da Silva, datado de 3/03/1867, consta que ela nasceu em 7/01/1867, mas no especifica o lugar. Segundo o seu inventrio, Maria Theodora tinha 43 anos quando morreu, em 1906, o que colocaria o seu nascimento em 1863. Todavia, ela foi nomeada inventariante de sua me, o que sugere que fosse a primognita. Estes dados, em conjunto com a tradio oral e o depoimento de Miguel Vieira, colocariam o retorno de Magdalena entre 1863-67. Segundo me Senhora, Claudiana era a caula de Magdalena, porm achamos um registro de batismo de Claudina [sic], parda [...] filha natural de Maria Magdalena de Silva, datado em 12/06/ 1859, que, se efetivamente a mesma Claudiana, me de me Senhora, contradiz no apenas a tradio oral, mas tambm a certido de bito da prpria Claudiana, datada de 30/04/1900, a qual lhe atribui a idade de apenas 30 anos. Este registro de nascimento tambm implicaria em que Magdalena j estava na Bahia em 1859. Outros documentos tambm corroboram a possibilidade de que Magdalena voltasse antes do nascimento de Maria Theodora, em 1867: os registros de batismo de Rufino, crioulo, nascido em 10/08/1864, filho de Henriqueta, escravos de Maria Magdalena da Silva; e de Maria Victoria, crioula, nascida em 10/1864, filha natural de Magdalena da Silva, crioula livre, datado de 21/03/1865: ACMS, Freguesia da S, Livro de Batismos, s.d., op. cit., fl. 65 (Maria Theodora); f. 32 (Rufino); e f. 38 (Maria Victoria). Para Claudina: ACMS, Freguesia da S, Livro de Batismos 1829-1861, op. cit., fl. 435; e Freguesia da S, Livro de bitos, 1894-1901, fl. 38v. Para estudos sobre os retornados, ver Lorenzo D. Turner, Some Contacts of Brazilian ExSlaves with Nigeria, West Africa, Journal of Negro History, vol. 27, no 1 (1942), pp. 55-67; Verger, Fluxo e Refluxo; Jerry Michael Turner, Les Brsiliens: The Impact of Former Brazilian Slaves upon Dahomey, (Tese de Doutorado, Boston, 1975); Manuela Carneiro Cunha, Negros estrangeiros: os escravos libertos e sua volta frica, So Paulo, Brasiliense, 1985; Milton Guran, Agudas. Os brasileiros do Benim, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999. Para o envolvimento de religiosos do candombl: Turner, Some Contacts; J. Lorand Matory, Black Atlantic Religion: Tradition, Transnationalism and Matriarchy in Brazilian Candombl, Princeton University Press, 2005; Peter Cohen, Orisha Journeys: the Role of Travel in the Birth of Yorb-Atlantic Religions, Archives des Sciences Sociales des Religions, no 117 (2002); Luis Nicolau Pars, The birth of the Yoruba Hegemony in Post-Abolition Candombl, Journal de la Societ des Americanistes de Paris, vol. 91, no 1 (2005), pp. 139-59. Um outro exemplo seria o caso de me Sussu, Ursulina Maria Figueiredo, que, na ltima dcada do sculo XIX, assumiu a liderana do terreiro do Engenho Velho, ficando at sua morte, na

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nos destacar que, na segunda metade do sculo XIX, a elite de africanos libertos em Salvador, e muito especialmente os inseridos nas redes sociais do Candombl, alimentaram esse vaivm transatlntico, propiciando um intercmbio continuado de notcias, produtos, idias e pessoas. Enquanto a elite branca mandava seus filhos para estudar em Paris, a emergente elite de libertos olhava para a frica. Em 1904, Joo do Rio comentava, a respeito desse fenmeno, que alguns [africanos] ricos mandam a descendncia brasileira frica para estudar a religio.92 Podemos considerar como paradigmtico o conhecido caso de Martiniano Eliseu do Bomfim, citado por estudiosos do Candombl desde o incio do sculo XX. Em 1875, ainda adolescente, Martiniano viajou para Lagos, acompanhado do seu pai, Eliseu de Bomfim. O velho Eliseu era da etnia egb, comerciante de produtos africanos e, por esse motivo, viajava com freqncia para Lagos. Martiniano ficou l por longos anos, at 1886, aprendendo a ler e escrever ingls e iorub numa escola de missionrios presbiterianos ingleses. Nesse perodo, tambm freqentava comunidades religiosas tradicionais, iniciando-se no sistema de adivinhao de If.93 Em 26 de novembro de 1872, a nossa j conhecida Justa, exescrava de Marcelina, solicitava um passaporte para sua filha Querina, que, como vimos, fora alforriada em maio daquele mesmo ano. Na requisio do documento de viagem, Justa declarava que sua filha, de doze anos, iria para a Costa da frica em companhia de Eduardo Amrico

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dcada de 1920. No seu testamento, escrito em 1918, Sussu afirmou ter 56 anos e residir em Salvador desde criana, sendo natural de Lagos, na frica, o que colocaria seu nascimento por volta de 1852, e sua vinda Bahia, anterior aos anos 1870: APEBa, Judicirio, Livro 1771, Livro A 230, Testamento em notas de Ursulina Maria Figueiredo, 07/12/1918, fls. 6-6v. Joo do Rio, As religies no Rio, Rio de Janeiro, Jos Olympio Editora, 2006 [1904], p. 20. Martiniano nasceu em 16 de outubro de 1859, filho de Eliseu com a africana Felicidade Paranhos, lembrada pelo povo-de-santo como Manjebass. Para depoimentos de Martiniano, relatando sua histria de vida, ver: Donald Pierson, Brancos e prtos na Bahia: estudo de contacto racial, So Paulo, Ed. Nacional, 1971 [1942], pp. 278-79; Turner, Some Contacts, pp. 62-63. Ver tambm Julio Braga, Na gamela do feitio: represso e resistncia nos candombls da Bahia, Salvador, Edufba, 1995, cap. 2. Nos anos 1890, Martiniano se tornou um dos informantes de Nina Rodrigues e, nesta relao, seus estudos na frica foram valiosos, pois Nina tambm recorria a ele para a traduo de textos escritos em iorub. Para uma anlise da importncia de Martiniano na etnografia do Candombl, ver Lisa Earl Castillo, Entre a oralidade e a escrita: a etnografia nos candombls da Bahia, Salvador, EDUFBA (no prelo).

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de Souza, africano liberto.94 No mesmo dia, encontramos pedidos idnticos, feitos por quatro outras libertas, que tambm pretendiam enviar seus filhos menores para a frica junto com Eduardo Amrico: Sophia, de 15 anos, filha de Esperana Rita Pereira; Francisca, de 7 anos, filha de Rosa da Costa; Carlos, de 8 anos, filho de Germana Maria da Conceio; e outro menino tambm chamado Carlos, mas dois anos mais velho, filho de Rosa Maria da Conceio.95 A viagem de Eduardo com estas cinco crianas no foi a nica desse tipo. Oito meses depois, em 10 de junho de 1873, o babala Bambox Obitik, identificado como Rodolfo Manoel Martins, preto liberto, de nao Mina, com idade de 50 anos, tambm viajava para a Costa da frica acompanhando outro grupo de adolescentes, que inclua trs filhos seus, Jlia, de 17 anos, Lucrcia, de 13 anos, e Thephilo, de 7 anos, todos crioulos, e tambm dois outros crioulos vindos do Recife, Cosme, de 13 anos, e Rosalina, de 18.96 provvel que essas duas viagens estivessem relacionadas, pois sabemos que, poucos anos depois, Eduardo Amrico de Souza se casou com Jlia, a filha mais velha de Bambox. O casal fixou sua residncia em Lagos, no bairro brasileiro.9794

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APEBa, Colonial, Polcia, mao 6354, Passaportes 1847-1872. Para a idade de Querina: ACMS, Freguesia da S, Livro de Batismos, 1829-1861, op. cit., fl. 420v. Justa no iria com a filha, seguramente porque a sua caula, Francisca, estava ainda servindo a Marcelina, sob uma alforria condicional. Contudo, em 08/04/1876, encontramos a africana liberta Justa, de 49 anos viajando para a frica, levando em sua companhia sua filha Francisca, crioula liberta: APEBa, Colonial, Polcia, mao 5905, Registros de Passaportes, 1875-1877, fl. 98, no 375. Em 11/11/1876, desembarcaram de novo na Bahia do patacho Alfredo, procedente de Lagos, j utilizando o sobrenome de sua ex-senhora, Justa Marcellina da Silva e Francisca da Silva: APEBa, Republicano, Livros de entrada de passageiros no porto de Salvador, vol. 1, 1873-1879, fl. 117. Elas solicitaram os passaportes entre os dias 25 e 26 de novembro: APEBa, Colonial, Polcia, mao 6354, Registros de passaportes, 1847-1872. J em abril de 1868, consta um registro de concesso de passaporte em nome de Eduardo. Neste documento, ele descrito como preto liberto, de nao mina, 35 anos: FPV, Documentos Avulsos, Passaportes 1857-1889, no 115 de 1868 (numerao do original). APEBa, Colonial, Polcia, mao 5903, Passaportes 1873-1874, fl. 34, reg. nos 220- 221. Os filhos de Eduardo e Jlia, Julio e Felisberto, nasceram em Lagos, mas, no final do sculo XIX, Jlia voltou a Salvador junto com Felisberto (que depois se tornaria famoso babala). Moravam no bairro Matatu de Brotas: Dona Irene Sowzer Santos, comunicao pessoal, 10/ 04/2007. Filha de Felisberto, Dona Irene reside no Matatu com sua famlia at hoje. Ver tambm: Pierson, Brancos e pretos, p. 277; Matory, Black Atlantic Religion; Castillo, Entre a oralidade e a escrita.

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A permanncia desses meninos brasileiros no litoral africano implicava a existncia de redes sociais, muito provavelmente de parentesco, atravs do Atlntico. Na dcada de 1870, nmeros considerveis de crianas africanas eram importadas em Lagos de regies vizinhas, algumas delas como escravas, mas nem todas. No era incomum os membros mais novos de famlias que moravam nas aldeias serem enviados a Lagos para trabalhar nas casas de parentes ou outros. Alguns iam para freqentar a escola ou aprender algum ofcio, mas uma maioria parece que o fazia para trabalhar. No parece improvvel que famlias brasileiras, como os Silva, os Bomfim, os Pereira, os Costa ou outras, em Lagos ou em outras cidades do litoral do Golfo do Benim, teriam interesse em receber jovens do Brasil para morarem e serem criados nas suas concesses familiares.98 Como comentamos acima, a viagem feita por Martiniano do Bomfim a Lagos, em 1875, tambm se insere no quadro desta rede transatlntica, criada por libertos nags que exerceram posies de importncia nos candombls da Bahia. Encontramos outro caso interessante na famlia de Martiniano, envolvendo um irmo mais novo por parte do pai. Este menino, chamado Agostinho, era filho do velho Eliseu com a crioula Lourena Maria da Conceio. O menino foi batizado aos trs meses de idade, em 8 de agosto de 1875, na Igreja de Santa Anna. Marcelina da Silva e Miguel Vieira constam como padrinhos, um fato que esclarece os vnculos religiosos de Martiniano com o Engenho Velho.99 No final de 1877, a me de Agostinho abriu um processo contra Eliseu e Miguel, alegando que pretendiam levar o menino para a frica sem seu consentimento. Num depoimento datado de 12 de dezembro, ela se ops veementemente a essa idia, declarando que o africano Eliseu era inteiramente prejudicial sociedade por seu mau comportamento e meio de vida reprovado entre povo civilizado e de moralidade. Como98

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Em 1877, o governo de Lagos promulgou uma lei, a Alien Childrens Registration Ordinance, exigindo o registro de todas as crianas que chegavam de fora. Agradecemos a Kristin Mann pelos seus comentrios sobre este tema. Para mais, ver Kristin Mann, Slavery and the Birth of an African City: Lagos, c. 1760-1900, Bloomington, Indiana University Press, 2007, esp. cap. 5, Britain and Domestic Slavery. Ver tambm Lisa A. Lindsay, To Return to the Bosom of their Fatherland: Brazilian Immigrants in Nineteenth-Century Lagos, Slavery and Abolition, vol. 15, no 1 (1994), pp. 22-55. APEBa, Judiciria, Autos Cveis 2, 52/1846/22, Requerimento da crioula Lourena Maria da Conceio, 18/12/1877, fl. 17.

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exemplo do que iria acontecer com seu filho, Lourena citou o caso de Martiniano: j levou para a Costa da frica, h cerca de 2 anos, o crioulinho Martiniano, filho da africana Felicidade, com licena do Juzo de rfos [...] obrigando-se a trazer quando voltasse o dito menor, o que no fez, cometendo um crime.100 Questionado pelas autoridades sobre o assunto, Eliseu declarou que iria viajar a Lagos apenas para visitar a sua me, como j fazia de costume, que no pretendia levar o menino, e que, pelo contrrio, iria deix-lo na companhia do seu compadre Miguel Vieira.101 Embora o subdelegado de Santana observasse que o africano [Eliseu] vive, como os outros, nesta Freguesia submisso e no me consta que tenha mau comportamento como diz a apaixonada petio de denuncia, a Justia exigiu que Agostinho fosse devolvido me, o que foi feito no dia 23 de janeiro de 1878, pela me de Martiniano, a africana Felicidade. Eliseu, aparentemente, j tinha viajado. Ele ficou vrios meses na frica, voltando a Salvador no ano seguinte, em 26 de setembro de 1878, no patacho Garibaldi, procedente de Lagos.102 Para fechar a nossa discusso da densa teia de inter-relaes desses viajantes transatlnticos, interessante constatar que Eliseu chegou de Lagos junto com outro personagem conhecido: Bambox Obitik.103 Cabe acrescentar, da mesma forma, que tambm o compadre de Eliseu, Miguel Vieira, realizou pelo menos uma viagem frica enquanto liberto, pois consta o registro do seu passaporte para a Costa, em 5 de janeiro de 1859.104 Atravs das histrias interligadas dessas travessias martimas, surge o retrato de um grupo social formado por africanos libertos, intensamente envolvidos no candombl oitocentista. Eles estavam unidos por diversos laos afetivos, familiares, religiosos e, provavelmente, comerciais, e enviavam seus filhos e agregados mais novos para serem educados100

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Ibid., fl. 4. No mesmo processo, fl. 17, consta o traslado da certido de batismo de Agostinho, nascido em 6/05/1875 e batizado em 8 de agosto do mesmo ano, na Freguesia de Santa Anna. Como tem sido pontuado ao longo do texto, Miguel e Marcelina mantiveram uma extensa rede de relaes de compadrio. Para uma lista de outros afilhados de Marcelina, ver nota 63. APEBa, Requerimento da crioula Lourena, op. cit., fl. 9. APEBa, Livros de entrada de passageiros no porto de Salvador, vol. 1, 1873-1879, fl. 185. Ibid. FPV, Passaportes 1857-1889, op. cit., no 55.

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na Costa Oeste, junto aos parentes iorubs. Essa dinmica de fluxo e refluxo continuou a ligar o universo do candombl na Bahia com o continente bem aps o fim do trfico transatlntico de escravos. Como notaram outros autores, essa movimentao intercontinental de produtos, idias e pessoas deve ter tido algum efeito nas prticas religiosas baianas, sobretudo nas casas lideradas por esses sacerdotes transatlnticos.105

Vida religiosa e exquias de MarcelinaA nova documentao aqui apresentada, apesar da riqueza em informaes histricas, no oferece muitos detalhes sobre as atividades religiosas de Iy Nass ou Marcelina da Silva, Obatossi. No entanto, ela permite tecer algumas consideraes. J sugerimos que um candombl dedicado a Xang, provavelmente liderado por Francisca da Silva, ou Iy Nass, funcionava na primeira metade da dcada de 1830, na rua do Passo, interrompendo suas atividades aps a revolta dos mals. Marcelina da Silva, sucessora de Iy Nass frente da congregao religiosa, estava de volta a Salvador na dcada de 1840, mas naquela poca dela no encontramos qualquer propriedade de casas ou terras e, portanto, preferimos no especular sobre o funcionamento do candombl na Barroquinha, onde, segundo a tradio oral, os primeiros axs do terreiro foram plantados. J para a segunda metade do sculo XIX, quando supostamente o candombl se trasladou ao Engenho Velho da Federao, no encontramos na documentao relativa sua ialorix, Marcelina da Silva, e/ou sua famlia, qualquer indcio concreto que sugira a existncia do terreiro naquela localizao. Contudo, cabe notar que na rua das Laranjeiras (no atual Centro Histrico), onde Marcelina e Miguel moravam, havia, nas dcadas de 1860 e 1870, vrios candombls e l moravam diversos especialistas religiosos africanos.106 Todavia, o casal possua a casa na Cruz do Cosme,105

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Ver, por exemplo: Turner, Some Contacts, pp. 64, 66; Lima, O candombl da Bahia na dcada de trinta, p. 52; Matory, Black Atlantic Religion, esp. caps. 1 e 6. Em 1866, por exemplo, na rua das Laranjeiras, funcionava o candombl de um papai que realizava milongas e feitios: O Alabama, 24/11/1866, p. 3. No mesmo ano, denunciava-se um candombl que h em casa da africana Julia, com toque de tabaque, onde iam crioulas, mulatas, etc. e muito homem que passa por serio: O Alabama, 7/08/1866, p. 1. Em 1867, durante nove

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um lugar afastado do centro urbano (hoje em dia os bairros de Caixa dgua e Pau Mido), que tambm era conhecido pela alta concentrao de candombls.107 Perto de l, na estrada do Pau Mido, Bambox tinha sua casa tambm. De fato, a tradio oral da Casa Branca sugere que, quando o candombl abandonou a Barroquinha, mudou de lugar algumas vezes, antes de ser instalado no Engenho Velho.108 A nica evidncia conclusiva que, quando a sucessora de Marcelina, Maria Jlia de Figueiredo, faleceu, em 1890, o terreiro j se encontrava no Engenho Velho, em terreno arrendado a Jos Carneiro de Campos, e possua uma considervel infra-estrutura fsica, o que sugeriria que estava ali funcionando havia j alguns anos.109 Infelizmente, no conseguimos localizar ainda a escritura de arrendamento, que poderia esclarecer quando a propriedade comeou a ser utilizada pela comunidade religiosa. Apesar de todas essas incgnitas, a documentao agora disponvel deixa escapar algumas informaes preciosas sobre aspectos da religiosidade africana praticada na Bahia daquela poca. Como j foi dito, Marcelina faleceu na sua casa da rua das Laranjeiras, na noite do dia 27 de junho de 1885, alis, na antevspera de So Pedro, quando, talvez, no seu terreiro, estivessem preparando a festa de Xang Air, quem sabe se o prprio santo da defunta. Seja como for, sua filha Magdalena foi nomeada inventariante dos poucos bens que restaram ao casal, processo que motivou a j mencionada exaltada disputa entre ela enoites seguidas, celebrou-se um ritual funerrio pela alma de um dignitrio do terreiro Bogum: O Alabama, 2/05/1867, pp. 2-3. Em 1869, reporta-se que no sobrado n. [?] a rua da Laranjeira, ocupado por africanos, h todas as noites, matinada e algazarra, prpria de semelhante gente: O Alabama, 21/05/1869, p. 1. Em 1869, por exemplo, h notcias de um grande candombl celebrado numa roa, em uma extensa palhoa, dirigido por mame Ludovina, com a participao de gente da Bahia, multido de Cachoeira, tropilha de SantAmaro, e uma chusma da Feira: O Alabama, 19/05/ 1869, p. 3. Silveira, O candombl da Barroquinha, p. 529. Uma casa grande de taipa coberta de telha com duas salas, seis quartos, varanda ao lado, cozinha e mais um cmodo que serve de dispensa, tendo esta casa cento e cinqenta palmos de frente, cercado de terreno [...] com arvoredos frutferos, bom brejo, com plantao de canas, tendo logo na entrada do terreno uma pequena casa de taipa coberta de palha, da qual rendeira Venancia Maria dos Anjos e que paga cinco mil ris anuais, alm desta [...] ainda existe ao lado da casa grande uma pequena casa de palha que est a servio da casa grande: APEBa, Inventrios, 3/1011/1480/20, Arrecadao de Maria Jlia de Figueiredo, 1892, fls. 3-3v.

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o vivo Miguel.110 No meio do atrito, enteada e padrasto trocaram acusaes relativas a despesas do funeral de Marcelina. Numa declarao datada de 1 de agosto de 1887, Magdalena arremetia contra Miguel por ter vendido, sem consult-la, objetos de ouro pertencentes ao casal oratrios, colares, pulseiras e outras jias de Marcelina empregando o dinheiro no ritual funerrio conforme o uso de sua terra.111 Segundo ela, Miguel gastou 600$000!!!! [...] com carurus, inhames, doces e talvez aguardente por muitos dias em festas que so proibidas pelas posturas municipais, regulamentos policiais, por constiturem verdadeiras bacanais [sublinhado no original]. A meno ao funeral, conforme o uso de sua terra, uma clara aluso ao ritual do axex. O consumo e/ou as oferendas de carurus, inhames, doces e talvez aguardente, e a durao de muitos dias em festas, no deixam lugar a dvida e indicam a suntuosidade da obrigao dedicada ilustre ialorix.112 Miguel se defendeu atravs de uma declarao, redigida por um amigo ou algum que cobrava pouco, pois, no incio do documento, se declarava impossibilitado de constituir advogado por seu estado de pobreza. Num eloqente depoimento de trs folhas, acusava Magdalena de tambm ter incorrido em gastos desnecessrios: 394$530 ris no funeral e 121$740 ris em roupas de luto. Segundo Miguel, Marcelina era uma preta velha, africana, vivendo pobremente em sua casa, e Magdalena no tinha direito a fazer tais despesas, que s compete aos ricos. Miguel sustentava que sua enteada, que hoje rica, deveria ter feito esses gastos a sua custa e no do casal. 113 Todavia, Miguel defendia ardentemente as despesas do axex, argumentando que Magdalena tambm participou dos rituais, os quais, longe de serem festas bacanais, atraam pessoas de status na sociedade baiana:110

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As propriedades do casal, no momento do falecimento de Marcelina, consistiam em: uma casa trrea no largo da Cruz do Cosme, avaliada inicialmente em um conto de ris (depois, em 800$000rs), objetos de ouro por 600$000 ris, e mveis avaliados por 98$000 ris, somando um total de 1:698$000 ris. APEBa, Inventrio de Marcelina da Silva, op. cit., fls. 68-69. As comidas utilizadas no ritual funerrio teriam relao com o orix da defunta, enquanto a aguardente poderia estar relacionada com oferendas a Exu. APEBa, Inventrio de Marcelina da Silva, op. cit., fls. 77-78. O autor do texto foi Joo Alves de Mello, pois Miguel no era alfabetizado.

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Embora o patrono [i.e., procurador] da inventariante venha dizendo que essas exquias no costume da Costa, sejam bacanais proibidas por posturas Municipais e regulamentos policiais: o certo que elas se fizeram e constantemente se fazem com licena das Autoridades locais e freqentadas, no s por africanos, mas tambm por pessoas decentes, e em grande nmero, e quase diariamente, e a inventariante no ser capaz de, sob juramento, negar isso em Juzo, ela que no 30 dia e no aniversario do falecimento da testadora, sua me, repetiu essas bacanais [grifos nossos].114

Isso quer dizer que, se Miguel realizou a obrigao de corpo presente, Magdalena tomou conta da obrigao de um ms e de um ano, indicando que era partcipe das mesmas prticas e crenas. Embora o advogado de Magdalena acusasse a religiosidade africana de ser uma atividade de marginais, o vivo retrucou de forma incisiva: apesar de as bacanais estarem proibidas, elas constantemente se fazem com licena das autoridades locais [sendo] freqentadas, no s por africanos, mas tambm por pessoas decentes, e em grande nmero. O contraste narrativo entre africanos e pessoas decentes revelador da discriminao social sofrida pelos africanos, talvez uma construo do escrivo que, pela sua eloqncia retrica, poderia ter sido uma daquelas pessoas decentes.115 A defesa corajosa que Miguel faz da religiosidade da sua terra nos permite entrever como os costumes africanos na Bahia oitocentista perpassavam a comunidade africana e afro-brasileira e se expandiam, infiltrando vrias camadas sociais. No caso do axex de Marcelina, no podia ser de outro modo, pois se tratava das exquias de uma grande sacerdotisa, liderana e autoridade mxima da sua congregao religiosa.

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APEBa, Inventrio de Marcelina da Silva, op. cit., fls. 77-78. Cabe notar que, no crculo social de Marcelina e Miguel, figuravam pessoas da elite, como o tenente- coronel Jos Balthazar da Silveira e sua mulher, Judith Constana da Cunha Menezes, filha do Baro do Rio Vermelho. Em 12/06/1859, ambos foram padrinhos de Claudina, filha de Magdalena e neta de Marcelina: ACMS, Freguesia de S, Livro de Batismos, 1829-1861, op. cit., fl. 435. Em 13/06/1856, Marcelina tambm foi madrinha de Tulia, crioula, filha de Raquel nag, escrava de dona Judith: ACMS, Freguesia de Santana, Livro de Batismos, 18461865, fl. 244v (microfilme, no 128-4581, item 2, acervo dos Mrmons);

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Eplogo: da prosperidade decadnciaAps a morte de Marcelina, Maria Magdalena enfrentou certas dificuldades para prestar contas, em 1886, e houve sucessivas e infrutferas tentativas, no ano 1887, para vender a casa na Cruz do Cosme, que finalmente lhe foi adjudicada na legtima.116 Nesse ano, Maria Magdalena vendeu a casa na rua do Bangala por 1:200$000 ris, isto , por um preo bem menor do que tinha pago dez anos antes (dois contos).117 Em maro de 1889, conseguiu finalmente vender a casa na Cruz do Cosme, quela altura seguramente em runas, por 200$000 ris (quando, no inventrio de 1887, fora avaliada em um conto).118 Todavia, em 15 de junho de 1891, Maria Magdalena, tendo como procurador Felix Jos do Esprito Santo, marido de sua filha Claudiana Maria, hipotecou a casa onde morava, na rua das Laranjeiras no 98, por 1:100$000 ris, ao Banco Auxiliar das Classes. O emprstimo era para custear as despesas com as dezimas de suas casas e reparos nas mesmas, isto , para pagar Fazenda e para o concerto e a manuteno do patrimnio.119 Ao que parece, as coisas estavam ficando difceis. Magdalena tinha gozado de uma vida farta, em grande parte a expensas do esforo de sua me, e talvez do seu pai adotivo. Segundo Miguel, foi apenas aps a morte de Marcelina que Magdalena descobriu que as propriedades do casal estavam no seu nome:Morta [Marcelina], sabe a Inventariante que as propriedades estavam compradas em seu nome exalta de alegria e o pago que d ao Supp., seu Pai Adotivo, foi expuls-lo de casa desapiedadamente, consentindo apenas levar os miserveis trastes avaliados a fl. e processando-lhe a mais crua guerra, aconselhado por seu genro [...] Quem estiver nas condies do Supp., espoliado

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Aps resolver o problema do seqestro da sua casa no 36, na rua das Laranjeiras, ordenado pelo juiz para for-la a prestar contas, Magdalena foi nomeada inventariante dos bens da sua me, em substituio do meeiro Miguel Vieira, em 25 de novembro de 1886: APEBa, Inventrio de Marcelina da Silva, op. cit., fls. 68-69, 77-78. APEBa, Escrituras, Livro 800-Livro A 35, fls. 5-5v. APEBa, Escrituras, Livro 821, fls. 23-23v. Assina, por Maria Magdalena, Felix Jos do Esprito Santo. APEBa, Inventrio de Maria Magdalena da Silva, op. cit., fl. 14.