Marcelo Lopes de Souza - Do Direito a Cidade Ao Direito Ao Planeta

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PASSA PALAVRA http://www.passapalavra.info/2014/07/97823 24 de julho de 2014. Categoria: Ideias & Debates Do “direito à cidade” ao direito ao planeta: territórios dissidentes pelo mundo afora e seu significado na atual conjuntura O slogan de direito à cidade foi apropriado pelos agentes os mais diversos, não raro com propósitos de legitimação de intervenções e políticas estatais. No momento, o melhor que se pode dizer é que se trata de uma bandeira disputada. Vale a pena, realmente, disputá-la? Por Marcelo Lopes de Souza Com Lefebvre (graças a ele e apesar dele) e para mais além de Lefebvre Henri Lefebvre foi, durante quase a metade de sua vida adulta, filiado a um partido (cripto-) stalinista, o Partido Comunista Francês (PCF), do qual só se afastou por ter sido suspenso, após três décadas de pertencimento à referida agremiação. [1] O Lefebvre que hoje todos admiram e ao qual sempre aludem, porém, é outro. É aquele que emerge somente nos anos 1960, com obras influentes e inspiradoras como O direito à cidade, A vida quotidiana no mundo moderno, A revolução urbana, O pensamento marxista e a cidade, Espaço e política e A produção do espaço. [2] Até mesmo esse festejado Lefebvre tardio, contudo, não esteve isento de contradições e ambiguidades. É ele, afinal de contas, o filósofo que, depois de ter, como bom herdeiro da tradição marxista, desdenhado Proudhon (e os anarquistas em geral, os primeiros e grandes praticantes e divulgadores do princípio por trás da palavra autogestão, desde o século XIX), pôs-se a falar em “autogestão generalizada”, ao mesmo tempo em que poupava de maiores críticas a autoproclamada “autogestão” na Iugoslávia do marechal Josip Broz Tito, que por três decênios e meio comandou uma versão light de “socialismo burocrático”; é ele, também, o pensador que, depois de criticar a classe operária pelo anacronismo de suas organizações e de seu discurso, teve dificuldades para valorizar a práxis e a criação popular sem grandes ressalvas, por conta de um resquício leninista/vanguardista que o fez crer que somente os intelectuais críticos possuiriam uma visão de totalidade e da “obra” (em oposição ao mero produto), visão essa que escaparia à massa. [3] De todo modo, é inegável que, a despeito de suas hesitações e seus pontos frágeis, ele captou vários aspectos importantes das tendências econômicas, das características políticas e culturais e do sentido das lutas do mundo atual, que já estava perfeitamente esboçado entre os anos 60 e 70 do século passado. Curiosamente, nos anos 1980 e ainda nos 1990, Henri Lefebvre e sua obra não eram muito mais que objeto de reflexão (e, às vezes, de adoração) acadêmica. Na França, aliás, nem isso: na Geografia francesa (já um tanto decadente três décadas atrás, em que pesem a credibilidade e o prestígio de alguns geógrafos, como Yves Lacoste), pouco se discutia Lefebvre – ou seja, ironicamente, na mesma época em que, avidamente lido e recitado de cor em alguns círculos universitários no Brasil, era ele também traduzido para o inglês, com isso ganhando seus escritos uma difusão muito mais ampla do que havia sido o caso até aquele momento. E, então, no início do século XXI, a explosão de interesse (e a onda de

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PASSA  PALAVRA  http://www.passapalavra.info/2014/07/97823   24 de julho de 2014. Categoria: Ideias & Debates    Do “direito à cidade” ao direito ao planeta: territórios dissidentes pelo mundo afora e seu significado na atual conjuntura  O slogan de direito à cidade foi apropriado pelos agentes os mais diversos, não raro com propósitos de legitimação de intervenções e políticas estatais. No momento, o melhor que se pode dizer é que se trata de uma bandeira disputada. Vale a pena, realmente, disputá-la? Por Marcelo Lopes de Souza Com Lefebvre (graças a ele e apesar dele) e para mais além de Lefebvre Henri Lefebvre foi, durante quase a metade de sua vida adulta, filiado a um partido (cripto-) stalinista, o Partido Comunista Francês (PCF), do qual só se afastou por ter sido suspenso, após três décadas de pertencimento à referida agremiação. [1] O Lefebvre que hoje todos admiram e ao qual sempre aludem, porém, é outro. É aquele que emerge somente nos anos 1960, com obras influentes e inspiradoras como O direito à cidade, A vida quotidiana no mundo moderno, A revolução urbana, O pensamento marxista e a cidade, Espaço e política e A produção do espaço. [2] Até mesmo esse festejado Lefebvre tardio, contudo, não esteve isento de contradições e ambiguidades. É ele, afinal de contas, o filósofo que, depois de ter, como bom herdeiro da tradição marxista, desdenhado Proudhon (e os anarquistas em geral, os primeiros e grandes praticantes e divulgadores do princípio por trás da palavra autogestão, desde o século XIX), pôs-se a falar em “autogestão generalizada”, ao mesmo tempo em que poupava de maiores críticas a autoproclamada “autogestão” na Iugoslávia do marechal Josip Broz Tito, que por três decênios e meio comandou uma versão light de “socialismo burocrático”; é ele, também, o pensador que, depois de criticar a classe operária pelo anacronismo de suas organizações e de seu discurso, teve dificuldades para valorizar a práxis e a criação popular sem grandes ressalvas, por conta de um resquício leninista/vanguardista que o fez crer que somente os intelectuais críticos possuiriam uma visão de totalidade e da “obra” (em oposição ao mero produto), visão essa que escaparia à massa. [3] De todo modo, é inegável que, a despeito de suas hesitações e seus pontos frágeis, ele captou vários aspectos importantes das tendências econômicas, das características políticas e culturais e do sentido das lutas do mundo atual, que já estava perfeitamente esboçado entre os anos 60 e 70 do século passado. Curiosamente, nos anos 1980 e ainda nos 1990, Henri Lefebvre e sua obra não eram muito mais que objeto de reflexão (e, às vezes, de adoração) acadêmica. Na França, aliás, nem isso: na Geografia francesa (já um tanto decadente três décadas atrás, em que pesem a credibilidade e o prestígio de alguns geógrafos, como Yves Lacoste), pouco se discutia Lefebvre – ou seja, ironicamente, na mesma época em que, avidamente lido e recitado de cor em alguns círculos universitários no Brasil, era ele também traduzido para o inglês, com isso ganhando seus escritos uma difusão muito mais ampla do que havia sido o caso até aquele momento. E, então, no início do século XXI, a explosão de interesse (e a onda de

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cooptação e banalização que a tem acompanhado): protestos e movimentos diversos – contra a gentrificação [4], por mais e melhores espaços públicos, contra negócios e negociatas imobiliários, contra megaeventos esportivos e suas consequências em matéria de segregação residencial e desperdício de recursos públicos -, na Europa e nos Estados Unidos, e logo em seguida em vários outros continentes e muitos outros países, passaram a ter na bandeira do “direito à cidade” um slogan que parecia cair como uma luva. Como não poderia deixar de ser, isso retroalimentou a curiosidade acadêmica. Mas não só. Como também não poderia deixar de ser, atiçou a vontade de governos e ONGs (cada vez mais seus apêndices charmosos dentro da “sociedade civil”) de usar a mesma expressão para adornar o discurso de programas oficiais e projetos ditos “de inclusão social”. De exigência radical (o direito à cidade como o direito à fruição plena da riqueza e da cultura socialmente geradas e concentradas nas cidades, o que pressupõe, segundo Lefebvre, uma outra sociedade), aquele slogan foi sendo apropriado pelos agentes os mais diversos, não raro com propósitos de legitimação de intervenções e políticas estatais. [5] No momento, o melhor que se pode dizer é que se trata de uma bandeira disputada. Vale a pena, realmente, disputá-la? Apesar dos problemas (lacunas, obscuridades de sentido etc.) da obra de Lefebvre, sim, vale a pena continuar disputando essa ideia, que é largamente válida e ousada. Entretanto, a sua própria ousadia também tem limites intrínsecos, dentro dos marcos teóricos e político-filosóficos da obra lefebvriana (por mais que, lacunares às vezes e vagos outras tantas vezes, sejam eles admirável e irritantemente plásticos e ambivalentes, o que explica, ao lado da ignorância de certos pormenores, as tentativas de apropriação por parte tanto de marxistas heterodoxos quanto de alguns libertários). A questão é que, se examinarmos com cuidado a obra em questão, veremos, se estivermos abertos a essa possibilidade de interpretação, que o grande filósofo francês tematizou menos profunda ou contundentemente do que seria desejável todo um conjunto de assuntos, como a problematicidade da tecnologia (e da própria espacialidade) capitalista, as formas organizacionais específicas da “autogestão generalizada” e o problema do “Estado socialista” (e da serventia da forma-partido) – que são formidáveis desafios e gargalos para qualquer marxista, e de cuja embaraçosa discussão Lefebvre foi relativamente salvo, talvez, tanto por sua sensibilidade quanto por suas omissões e vaguidão… Não se trata, porém, apenas do “direito à cidade” (nem mesmo nos marcos da compreensão lefebvriana sobre o alcance do “urbano”, mais ampla que a usual). Esse é o ponto crucial. O que está em jogo é a necessidade de um questionamento e de um enfrentamento prático, sem meias palavras e sem tergiversações (isto é, sem leninismo/ vanguardismo residual, sem ambiguidades), do “modelo (anti)civilizatório” capitalista em escala planetária, o que, na minha convicção, implica fazer face ao desafio de pensar e superar: 1) o Estado e o estatismo (propriamente capitalista ou “socialista”), e também a forma-partido e todos os modos hierárquicos, burocráticos e verticais de organização coletiva; 2) a matriz tecnológica e a espacialidade capitalistas;

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3) a ideologia capitalista (de algum modo partilhada, ainda que de maneira distinta e recontextualizada, pelo marxismo típico e seu economicismo/produtivismo) do “desenvolvimento econômico”, com seus pressupostos economicistas, eurocêntricos, teleológicos e racionalistas. O que está em jogo, enfim, é o direito ao planeta, em que se exige repensar toda uma série de questões no que tange à organização espacial (apontando-se para a desconcentração econômico-espacial e para a descentralização territorial radicais, mas sem resvalar para autarquias, localismos e insularizações), à divisão social do trabalho, à exploração e à alienação (em que devem ser destacadas as tendências de agravamento e regressão, como a precarização e a “hiperprecarização” no mundo do trabalho), o etnocentrismo (em que cabem ser denunciadas com veemência as suas renovadas facetas em matéria de xenofobia, nacionalismos e racismos), os vários tipos de opressão (de classe, de gênero etc.) e a heteronomia em geral – tendo por base e parâmetro, em última instância, a autonomia, em sentido forte. [6] Para isso tudo, Lefebvre pode ajudar, mas é claramente insuficiente. A tradição libertária, dos anarquistas clássicos (como Élisée Reclus, Piotr Kropotkin…) a um neoanarquista como Murray Bookchin e a um autonomista libertário como Cornelius Castoriadis, ajuda, creio eu, muito mais. E, não com menos ênfase, a inspiração há de vir, sem dúvida, também e especialmente da práxis (às vezes confusa ou aparentemente confusa, às vezes inovadora e coerente; às vezes poderosa, às vezes de fôlego curto) de tantos movimentos e formas de resistência anticapitalista e emancipatória, sobretudo dos últimos dois decênios. O esgotamento da conjuntura “participacionista” e o início de uma nova conjuntura A década de 1990 testemunhou um entusiasmo – não raro uma verdadeira euforia – a respeito das possibilidades de uma modalidade de luta institucional [7] que apareceu pela primeira vez no mundo, de maneira significativa, na década de 1960: a participação popular direta (individual ou mediante organizações associativas) no desenho e na elaboração de projetos urbanísticos e políticas públicas de “desenvolvimento urbano” e congêneres. Até os anos 1960, a luta institucional se referia, basicamente, à criação de partidos e à filiação a eles, vistos como instrumentos de luta para conquistar, gradualmente (via parlamentar como estratégia, “entrismo”, “guerra de posição” [8]) ou, dependendo das circunstâncias e do partido, por meio de uma ruptura (tomada violenta do aparelho de Estado, com o uso do parlamento, eventualmente, como expediente tático), o poder estatal. Era a perspectiva leninista (revolucionária) ou social-democrata (explicitamente reformista), posteriormente também eurocomunista (essencialmente reformista, apesar de certas aparências no início). [9] Já a década de 1960 vira, porém, também o capitalismo tardio e suas instituições, em meio aos “Trinta Gloriosos” (como ficaram conhecidas as três décadas de comparativa prosperidade bastante generalizada do pós-Segunda Guerra Mundial na Europa e nos EUA, na esteira de um forte crescimento econômico e da consolidação do welfare state e de ganhos salariais para os trabalhadores), serem desafiados por revoltas de grupos descontentes com a alienação cultural e a integração forçada ao modelo do consumismo de

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massas (notadamente os estudantes universitários) e, em certos casos, com fatores específicos como guerras (Guerra do Vietnã) e racismo (movimento pelos direitos civis dos negros nos EUA). A isto o sistema respondeu com esforços redobrados de integração e cooptação: projetos habitacionais, legislação antissegregacionista nos EUA, expansão do ensino superior e, entre outras coisas mais, também com… acenos no sentido de facilitar a participação direta dos cidadãos na concepção e na gestão de projetos e iniciativas. Foi na década de 1990, porém, que a “participação popular” encontrou condições mais propícias para se sofisticar e generalizar pelo mundo afora. Nos anos 1960 e 1970, a maior parte da América Latina se debatia com regimes militares e as restrições por eles impostas ao exercício até de mínimas liberdades; vinte anos depois, no entanto, o cenário havia mudado. Na Europa e nos EUA, a retração da presença estatal de cunho keynesiano e o enfraquecimento paulatino do Estado de bem-estar, com a ascensão da agenda neoliberal, [10] substituía o desejo (e a possibilidade) de integração por uma exclusão seletiva (precarização do trabalho, diminuição ou deterioração de serviços públicos), fazendo a cooptação tornar-se ainda mais importante em nome da “governabilidade” (preocupação crescente), mas que teria, agora, de ser viabilizada com um recurso redobrado à promessa de “participação” e maior “democratização” (cogestão da crise…); na América Latina, a implosão da “matriz centrada no Estado” (state-centred matrix) [11] e a “redemocratização” em um contexto de fortes desigualdades (e introdução da agenda neoliberal) pedia ou exigia que se recorresse à promessa de “participação” como forma de diluir responsabilidades e oferecer a perspectiva de maiores transparência, responsabilidade e eficiência na realização dos gastos públicos. Um dos mais bem-sucedidos exemplos de experiência de “participação popular” (especialmente em matéria de marketing, apesar de uma consistência e de um arrojo também pouco usuais e por isso sedutores, ao menos no início) foi, justamente, latino-americano, mais especificamente brasileiro: o orçamento participativo de Porto Alegre, introduzido, em 1989, sob administração local do Partido dos Trabalhadores, mas que correspondia fundamentalmente a uma exigência que já tinha sido levantada no município anos antes por movimentos urbanos e suas organizações, notadamente a UAMPA (União das Associações de Moradores de Porto Alegre). Nos anos subsequentes à sua implementação, o orçamento participativo tornou-se uma coqueluche não apenas nacional (e cada vez mais transbordando os limites do PT, já que todos os partidos, até os conservadores, perceberam os dividendos político-eleitorais advindos da promessa dessa institucionalidade), mas verdadeiramente internacional, tornando-se uma “best practice” admirada e imitada em numerosos países, inclusive na Europa. De um modo geral, porém, as tentativas de emular o aparente sucesso de Porto Alegre não passaram de arremedos grosseiros e pouco ou nada consistentes. [12] Quando, no começo da década passada, o orçamento participativo de Porto Alegre já dava claros sinais de “fadiga”, era o próprio modelo “participacionista”, mais amplamente, que já começava a caminhar para a exaustão ou saturação, e isso em escala internacional. É claro que, nas últimas décadas, houve no mundo uma pletora de situações político-institucionais particulares, com variações significativas entre países e até entre cidades (diferentes “regimes urbanos” [13]), e nem todas elas se prestaram a ser palcos privilegiados de experimentações desse tipo. Isso sem contar a diversidade de quadros culturais e situações econômico-sociais, impedindo qualquer generalização fácil. Entretanto, se a difusão

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consistente de soluções (em última análise, pseudossoluções) e promessas (em grande medida ilusórias) foi difícil, infinitamente mais fácil foi a disseminação de problemas e desafios postos para os interesses populares pelas formas típicas de manifestação das estratégias de acumulação no âmbito do “neoliberalismo urbano” [14], expressão local-urbana da agenda neoliberal: gentrificação, deslocamentos forçados de população (geralmente pobre e imigrante) e agravamento de situações de segregação, grandes empreendimentos, “privatização branca” do espaço público, investimento em megaeventos esportivos e respectivas obras de engenharia e infraestrutura preparatórias – em suma, produção de espaço em larga escala pelo grande capital, à revelia da maioria da população e não raro contra os seus interesses objetivos. Quando a paciência começou a se esgotar e o charme e o poder de convencimento do modelo “participacionista” começaram a se dissipar como névoa diante de raios de sol mais e mais fortes, o peso da luta institucional passou a empalidecer rapidamente, em favor da ação direta. A população, indignada com problemas locais, regionais, nacionais e globais, começou a ganhar as ruas e praças, mas também espaços outros, fora das grandes cidades e metrópoles, como mostra o “território zapatista” em Chiapas, que surgiu para o mundo, de forma espetacular, em 1994, há exatos vinte anos. Novas ou renovadas práticas de auto-organização política foram se espraiando, com derrotas e vitórias se alternando: Seattle, Praga, Gênova (São Paulo…) e outros palcos de famosos “dias de ação global”; na Argentina, piqueteros, asambleas barriales,empresas recuperadas; no Brasil, os sem-teto (os sem-terra foram politicamente fortes até meados da década passada, vale dizer, até terem a força de sua principal organização minada por sua proximidade com o governo do PT e pela dificuldade para resistir tanto à competição com os subsídios sociais estatais quanto ao modelo ideológico da agricultura capitalista); no Magreb, a “Primavera Árabe”; na Espanha, o 15-M e osindignados; na Grécia, a exemplo da Espanha, as revoltas contra os ajustes estruturais na Zona do Euro; nos EUA, o Ocuppy Wall Street, cujo modelo tentou-se fazer replicar em muitas cidades do mundo; na Turquia, a revolta em torno do Gezi Park… E assim sucessivamente, até chegarmos às contraditórias e complexas Jornadas de Junho, em várias cidades brasileiras, em 2013. Entre todas essas situações, várias diferenças, mas também algumas convergências importantes, nada acidentais, que nos sugerem um padrão, o qual responde a problemas e condições que, em grande medida, são comuns: a predominante presença dos jovens, grandes perdedores com o capitalismo atual (é neles que se concentra o desemprego, é sobre eles que recai a principal sanha preventivo-repressiva do “Estado penitência” [15]); a frequente (mas não universal ou absoluta) sobrerrepresentação de estudantes e de um perfil de classe média; o uso de ferramentas como redes socais e a Internet em geral para facilitar ou viabilizar convocações e mobilizações, mas sem substituir a interação face a face nos espaços públicos revalorizados e dotados de nova e inusitada vitalidade; a presença de elementos discursivos e práticos da tradição libertária (horizontalidade, autogestão, descentralização, autonomia), embora muitas vezes mesclados com elementos discursivos e práticos da tradição marxista (em alguns casos, bem contraditoriamente, até mesmo leninista) ou mesmo com demandas de natureza reformista, o que demonstra o caráter “híbrido” ou “sincrético” típico dos movimentos e formas de protesto contemporâneos. [16] Seja lá como for, novos espaços, em sentido literal ou metafórico, vêm sendo construídos e conquistados. Um balanço, mesmo que apenas provisório, não é tarefa trivial. Mas alguns

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traços positivos (potencialidades e vitórias, mesmo que parciais) podem ser identificados e relatados, ao lado, igualmente, de alguns gargalos e perigos. Territórios dissidentes e práticas espaciais insurgentes: experimentando um novo mundo no interior do velho Práticas espaciais nada mais são que práticas sociais (ações sociais, isto é, protagonizadas por sujeitos coletivos e inscritas em uma teia de significados e valores, sejam essas ações premeditadas ou não) cuja dimensão espacial é particularmente forte ou evidente. O espaço, longe de ser um mero palco ou receptáculo (espaço absoluto) ou um simples quadro de referência onde localizamos os eventos (espaço relativo), é uma realidade que condiciona os agentes: condiciona materialmente, por meio do substrato espacial material (materialidade da superfície terrestre, seja enquanto “primeira natureza”, seja enquanto “segunda natureza”); mas condiciona, também, por meio de fronteiras, limites, áreas de influência e territórios (projeção espacial das relações de poder) e através dos efeitos exercidos pelos símbolos e signos inscritos no espaço, ou por aquilo que a paisagem sugere, sobre os processos de socialização e criação e reprodução das significações presentes no imaginário. Práticas espaciais que expressem e viabilizem descontentamento, resistência, protesto e desejos de emancipação em face de algum tipo de opressão têm existido sempre: espaços são territorializados (conquistados, apropriados, postos sob o controle de um grupo específico), materialmente refuncionalizados ou reestruturados, dotados de novos significados para se ajustarem a novas identidades e novos propósitos e projetos; paisagens e suas representações são manipuladas; interações espaciais são desfeitas e refeitas; localizações se valorizam e desvalorizam, são abandonadas, são revalorizadas. Assim como os territórios dissidentes que, por um período maior ou menor de tempo, representam a ousadia da criação e da sociedade instituinte diante da sociedade instituída, as práticas espaciais insurgentes que geram e gerem esses territórios não são fenômenos recentes na história da humanidade. Todavia, há evidências de que a sua relevância, no contexto do repertório geral de estratégias e táticas dos movimentos e protestos sociais, aumentou e se tornou mais visível desde meados do século passado, acelerando-se essa tendência nos últimos, digamos, vinte anos. [17] Desde o fim da época áurea do movimento operário, que coincide mais ou menos com a derrota durante e logo após a Revolução Russa (vitória apenas para a ideologia do “socialismo burocrático”, animado pela nova classe dos gestores) e com o esmagamento da revolução e dos conselhos operários na Alemanha que se seguiu imediatamente ao fim da Primeira Guerra Mundial, processo esse que teve como último e particularmente triste episódio a destruição da Revolução Espanhola (animada pelos anarquistas e sabotada pelos stalinistas ao longo da guerra civil) e a vitória fascista, alguns fenômenos interessantes e ambivalentes passaram a ter lugar. Se o movimento operário e a mentalidade estritamente classista (maximamente representada pelos marxistas, mas também em larga medida compartilhada pelos velhos anarquistas) patrocinaram uma absorção de todas as agendas de luta e resistência contra formas de opressão pelo movimento operário, tácita ou explicitamente levando-se a crer que os mais diversos problemas (machismo, racismo etc.) seriam superáveis mais ou menos automaticamente na

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esteira da superação da exploração de classe (vista como o problema central, e ao qual todos os demais estavam atrelados e subordinados), o definhamento da luta anticapitalista na esfera da produção e a burocratização e a esclerose de partidos e sindicatos operários abriram as portas para a multiplicação de agendas e movimentos sociais relativamente independentes em face das lutas dos trabalhadores enquanto tal. Lutas como o feminismo e a luta antirracista, que já vinham de longa data e tinham antecendentes, respectivamente, no movimento das suffragettes e no movimento abolicionista, aprofundaram-se e tornaram-se mais complexas a partir dos anos 1940. Passou a tomar corpo, também, uma verdadeira “reificação do urbano”: descolado da esfera da produção e convertido em arena de luta em si e por si, a mobilização popular em torno de infraestrutura, habitação e equipamentos de consumo coletivo (as “condições de reprodução da força de trabalho”), o “urbano” passou a suscitar a proliferação de organizações específicas, tais como as associações de moradores, que tinham tido nas comissões pró-melhoramentos de décadas anteriores um pálido ancestral. Em analogia com o “fetichismo da mercadoria” brilhantemente desvendado por Marx, poder-se-ia falar, a propósito do que veio ocorrendo desde os anos 1960 e 1970, em uma “fetichização dos problemas urbanos”. [18] Na esteira isso, em questão de alguns decênios, uma agenda de luta pretendidamente totalizante, puxada por um movimento social que aparentemente tudo absorvia e de tudo poderia dar conta em matéria de emancipação humana, foi sucedida por uma multiplicidade de agendas e movimentos, cada uma delas e cada um deles responsável por uma fatia da realidade e seus problemas e conflitos específicos: opressão de gênero ou racial, carência de infraestrutura e déficit habitacional, problemas ambientais, homofobia, e assim sucessivamente. Com isso, duas leituras seriam possíveis, com base em duas tendências objetivas concomitantes. Positivamente, conflitos, opressões e agendas de luta que antes eram abafados e secundarizados (ou até negados, às vezes), puderam ter suas especificidades tematizadas e tornar-se objeto de reflexão aprofundadas; negativamente, as articulações concretas entre os diferentes tipos de opressão foram via de regra cada vez mais negligenciadas em favor de uma “especialização” que gerava compartimentos estanques ou quase estanques, daí decorrendo várias contradições sob o ângulo emancipatório, com um tipo de sensibilidade hipertrofiando-se em detrimento de outros tipos: o militante ambientalista socialmente pouco sensível e não raro até um tanto misantropo, a ativista feminista de classe média pouco ou nada atenta às particularidades da vida das trabalhadoras pobres e negras (como a sua própria empregada doméstica), militantes sindicais de esquerda machistas e homofóbicos, e por aí vai. Determinadas fraquezas, hoje evidentes como nunca, não são, todavia, completamente novas: notemos o caráter pequeno-burguês da reivindicação eleitoralista das suffragettes, pelo que foram acerbamente criticadas pela feminista anarquista Emma Goldman; e notemos, igualmente, o conteúdo nada anticapitalista e nada antiestatal da maior parte da mobilização abolicionista, antirracista e antissegregacionista. Limitações e incompletudes desse tipo, se não poderiam jamais ser vistas como virtudes, tampouco impediram alguns debates de mérito e até mesmo certos avanços civilizatórios, ao passo que a cristalização de compartimentos e alienações recíprocas, à qual assistimos e com a qual sofremos

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contemporaneamente, se assemelha a uma caricatura, pois constitui um pântano em que atualmente chafurdamos quase com uma espécie de orgulho corporativista, minimalista e “pós-moderno”. Interessantemente, muitas vezes houve e há, também, um deslocamento da contestação radical da fábrica para o bairro e outros espaços, quer gostemos disso ou não. Como disse Murray Bookchin em 1980: “nos Estados Unidos, as fábricas estão virtualmente mudas, enquanto que as cidades, particularmente os guetos e os subúrbios, não estão”. [19] Todavia, é claro que, muito frequentemente, o ativismo de bairro, localista, puramente reivindicativo e bastante autolimitado no que concerne à sua agenda, era uma luta de bairro (ativismo paroquial) que, por não se alçar ao patamar de uma luta a partir do bairro (um verdadeiro movimento emancipatório), [20] tinha fôlego curto e era presa fácil de clientelismo e fisiologismo. A “densidade espacial” dessas lutas derivadas da “reificação do urbano” era e é grande, pois, diferentemente do velho movimento operário, em que a identidade e a agenda de lutas eram essencialmente setoriais (por mais que a heterogeneidade espacial e a necessidade de atuação em várias escalas, evidentemente, tivesse múltiplas implicações e oferecesse várias possibilidades de instrumentalização estratégica e tática), no casos de boa parte dos “novos movimentos sociais” o acesso a recursos espaciais, a resistência contra a segregação residencial (expressão espacial do racismo, da pobreza e da desigualdade) e mesmo a formação de identidades e dinâmicas organizativas obviamente girava, direta e fortemente, em torno de questões espaciais, mais que (ou não apenas) setoriais. Nas décadas de 1980 e 1990 parecia claro que os “novos movimentos sociais” dos dois decênios anteriores correspondiam a um modelo esgotado. Em parte, porque obtiveram êxitos limitados, porém visíveis, evidenciando-se também o seu fôlego curto e dando ensejo a que se formalizasse uma interpretação de que havia algo como “ciclos de vida” bem definidos, em que um movimento se gestava, crescia, passava a incomodar e pressionar o Estado (ou, mais raramente, o capital, diretamente) e, a partir daí, ou se saía vitorioso, ao ver suas demandas específicas e pontuais satisfeitas, ou era derrotado – em ambos os casos dissipando-se em seguida, com menos ou mais dignidade. Em parte, no entanto, porque reivindicações específicas e pontuais mal chegavam a arranhar o cerne dos problemas de base. A lógica desses ativismos (que em muitos casos nem sequer mereceriam o qualificativo de movimentos, o que costuma pressupor a capacidade de afrontar a ordem sócio-espacial instituída, e não apenas buscar vantagens e uma melhor acomodação em seu interior) se assemelhava e assemelha, em muito, à lógica de simples grupos de pressão ou de interesse, e o corporativismo – “corporativismo territorial”, no caso dos ativismos de bairro – era uma marca que não raro estava presente, dificultando a ampliação da consciência de direitos, o aprofundamento da conscientização crítica e a formação de alianças supralocais e sobretudo intertemáticas. Os ativismos de bairro (bairros formais e favelas) eram e são amiúde objeto de instrumentalização por parte de políticos profissionais e do Estado, e seu autoproclamado apartidarismo (ou mesmo “apoliticismo”), longe de dar margem ao florescimento a uma consciência radical de crítica construtiva do Estado (e do capital) e dos partidos, comumente

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foi uma fachada para um certo tipo de “politofobia” muito vulnerável perante interesses e agendas conservadores. [21] Não obstante, algumas coisas relativamente novas começaram a despontar no horizonte, ainda nas décadas de 1980 e 1990, e principalmente nesta última. Três características especialmente marcantes ressaltam dos “novíssimos movimentos sociais” e formas de protesto (ou “segunda geração” dos “novos movimentos sociais”, considerando as muitas afinidades com os movimentos que despontaram nas décadas de 1960 e 1970): 1) a intensidade das maneiras como a espacialidade é salientada; 2) ao mesmo tempo, destaca-se o amplo uso de novas tecnologias de comunicação (Internet de um modo geral, redes sociais e twitter) para formar redes de ativistas e solidariedade e convocar para manifestações presenciais em espaços públicos; 3) por fim, a presença de uma forte dimensão libertária (comparável àquela de fins dos anos 1960, mas com mais capilaridade social), a qual, sem embargo, em geral não se apresenta em “estado puro”, mas sim mesclada com elementos de outras tradições teórico-discursivas e prático-políticas, notadamente a marxista. Sobre o ponto 1, deve ser sublinhado que, além de ser muitas vezes adensada ou reavivada a relevância do espaço como referência identitária e organizativa (especialmente em escala “nanoterritorial” ou microlocal, mas às vezes até mesmo regional, como o demonstra o “território zapatista” em Chiapas), a importância dos processos de territorialização e refuncionalização e reestruturação espaciais, com a formação de territórios dissidentes menos ou mais duradouros, menos ou mais efêmeros (squats, okupas e ocupações, social centres críticos, Temporary Autonomous Zones, bloqueios de ruas e suas variantes locais e nacionais [cortes de ruta e piquetes, “empates” etc.], “acampadas”, e assim sucessivamente) adquire foros de estratégia privilegiada de pressão sobre o Estado e a própria opinião pública. Ademais, é no quotidiano dos territórios dissidentes que se operam processos de socialização (uma nova paideia) em espaços públicos ou não, em meio a barricadas e enfrentamentos, festas, ocupações… Também nascem ou renascem formas de ativismo supralocal e até mesmo inter ou transnacional, com a formação de redes de cooperação que costuram muitos países e até vários continentes. Além disso tudo, atividades econômicas, tanto de produção quanto consumo (“empresas recuperadas” e autogeridas pelos trabalhadores após falência, hortas e restaurantes comunitários, “clubes de troca” e moedas sociais, tudo isso nos marcos de microcircuitos econômicos alternativos) crescem e florescem, por necessidade extrema em certos casos, é certo, mas algumas vezes com base em projetos e em uma disposição fortemente críticos, e não como simples “remendo” complementar ao sistema em crise, como sói acontecer com as formas típicas e bem-comportadas de “economia solidária”. Em resumo, pode-se dizer que o evidente aumento de “densidade espacial” das lutas sociais nas últimas décadas se deve aos seguintes fatores imediatos principais: a) uma crescente importância dos “pequenos espaços” (da escala dos bairros àquela das ocupações de sem-teto e outros “nanoterritórios”) como lugares de socialização e

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experimentação alternativas, no contexto de uma globalização econômica e de uma pasteurização cultural que, simultaneamente, reforçam a necessidade de novos enraizamentos afetivos, novos vínculos telúricos e novos “sentimentos de lugar” (o que até pode desembocar em localismo paroquial e xenofóbico, mas não necessariamente), e colaboram para aumentar a relevância de “barricadas” e “trincheiras” simbólicas e práticas em escala microlocal (por exemplo, lutas contra remoções forçadas e gentrificação); b) uma cada vez maior importância dos espaços identitários: em vez de predominante ou exclusivamente “setorial (“trabalhador”), a identidade dos protagonistas é, amiúde, diretamente espacial (“sem-teto”, “trabalhador sem teto”, “trabalhador sem terra”, squatter, favelado…) ou, pelo menos, intimamente vinculada a esforços de instrumentalização tática e reorganização estratégica do espaço (zapatista, piquetero, indígena…); c) uma preponderância e uma nítida visibilidade, crescentes ao longo do último meio século, de agendas de luta em que a espacialidade está no centro das atenções: habitação, infraestrutura, transporte e mobilidade urbana etc. (se, no século XIX e na primeira metade do século passado, mobilizações contra a carestia dos aluguéis, por exemplo, costumavam estar associadas e não raro subordinadas à luta dos trabalhadores enquanto tal, ao longo da segunda metade do século XX o protesto e a organização em torno de um sem-número de coisas foi adquirindo uma espécie de vida própria). Esse caráter “totalizante” atribuído, na prática, a certos espaços microlocais como bairros e vizinhanças, antes relegados a um plano muito secundário como meros palcos da “reprodução da força de trabalho”, e essa dimensão que passou a ganhar a mobilização ao redor dos equipamentos de consumo coletivo – enfim, tudo isso pode, como sempre desconfiaram os marxistas (e até um marxista como o jovem Manuel Castells de La question urbaine, publicado em 1972 [22]), servir para desviar as atenções da luta por uma revolução na esfera propriamente da produção. No entanto, como piqueteros, zapatistas e outros vêm mostrando, isso não tem de ser sempre assim. Se a cidade (e o espaço social em geral) e a sua transformação não podem passar ao largo da produção, daí não se deve deduzir que “a cidade começa na fábrica”, e muito menos que o conjunto das resistências que não se vinculem diretamente à produção seja de somenos importância ou simples “diversionismos”. Os espaços sociais concretos, como referências de mobilização, organização e (re)construção de agendas, só serão um estorvo se assim permitirmos, em vez do trunfo que poderiam ser, rumo a articulações (multiescalares!) das esferas da vida e das frentes e agendas de luta. Não parece haver aí nenhuma inevitabilidade, quer para um lado, quer para o outro. O termo nativo argentino trabajo territorial capta boa parte do espírito por trás dessa revalorização da espacialidade nas lutas sociais contemporâneas:

Na verdade, o “trabalho territorial” contém em si a sua própria definição política. Fazer trabalho territorial não significa apenas, nesse caso, fortalecer o trabalho coletivo no espaço local, mas acima de tudo atribuir a essas atividades comunitárias uma capacidade de mudança social. Primeiro, o trabalho no território é proposto como uma produção de novos valores de solidariedade que reconstituem as relações interpessoais e as dimensões existenciais do povo quebradas pelo desemprego, pela pobreza e pelas formas de autoritarismo que, de várias formas, permeiam a

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sociedade. Em segundo lugar, essa construção comunitária tem como objetivo a produção de uma nova sociedade, que não antagoniza diretamente com os lugares de poder instituídos para poder se impor, mas sim se projeta e autoafirma como “soberania não estatal”.[23]

O mesmo tipo de reconhecimento é deixado transparecer neste depoimento de um dirigente da central sindical argentina CTA (Central de Trabajadores de la Argentina):

Em realidade, o bairro sempre foi um espaço das organizações partidárias, e não das organizações de trabalhadores. E, digamos assim, isso abriu uma discussão importante; e, em segundo lugar, o território era o que tinha permitido que a Central tivesse e mantivesse uma presença no conflito social que não teria tido, se tivesse se restringido ao âmbito estritamente laboral. [24]

Não é à toa que Raúl Zibechi, estudioso dos movimentos argentinos da década passada e profundo conhecedor das lutas latino-americanas em geral, sentenciou que “as novas territorialidades são a característica diferencial mais importante dos movimentos sociais latino-americanos, e é o que lhes dá a possibilidade de reverter a derrota estratégica.” [25] Não obstante, a valorização da espacialidade, que de certo modo pode colaborar para uma articulação transversal das lutas (isto é, que não seja uma “unificação” artificial e com alguma hierarquia implícita), ainda não possibilitou claramente um avanço substancioso nessa direção, apesar de alguns ensaios inspiradores em matéria política prefigurativa; aliás, também o “movimento por uma outra globalização”, que parece ter almejado catalisar uma integração das lutas, em larga medida malogrou quanto a isso, apesar de também ter deixado lições importantes. Quanto ao uso das modernas tecnologias de comunicação e informação, muito tem sido escrito sobre elas, às vezes exagerando-se a sua importância. Os zapatistas tornaram-se conhecidos por seu uso inteligente da Internet desde meados dos anos 1990, e foi isso que alavancou a possibilidade de encetarem uma “política de escalas” [26] que lhes garantiu notoriedade e lhes granjeou simpatias e até uma certa proteção maior, graças à exposição de suas demandas e denúncias perante uma opinião pública internacional. Mais de quinze anos depois, foi a vez de a “Primavera Árabe” (e, antes disso, já no Irã) demonstrar a utilidade de um uso maciço das redes sociais para convocar manifestações e protestos em espaços públicos, simbolizados pela Praça Tahrir, no Cairo – o que, de quebra, mostrou que entre as novas tecnologias de comunicação e os protestos presenciais havia e há antes uma relação de mútua complementaridade que de substituição ou exclusão de uma pela outra coisa. Por último, a dimensão libertária constitui uma expressão de nítido renascimento do ethos e das práticas de inspiração e ânimo libertários, de modo ainda mais complexo e disseminado do que na época das revoltas estudantis de quase meio século atrás. Entretanto, as condições em que isso se dá, de maneira ainda mais clara do que já era possível perceber em 1968, não corresponde a uma simples volta ao passado e às referências de outrora, ao contrário do que gostariam de pensar alguns nostálgicos do anarquismo clássico. Por desdenharem ou simplesmente desconhecerem (ao menos em detalhe) os enfrentamentos e as animosidades entre libertários e marxistas, que tanto marcaram e envenenaram gerações passadas, os jovens ativistas de hoje acabam recorrendo a um

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repertório de termos/conceitos, princípios, táticas e estratégias que, embora costume pender muito mais para a tradição libertária que para a “comunista autoritária” (para lembrar a expressão de Bakunin), nem por isso deixa de ser mesclado, heterogêneo e “sincrético” (de fato, “sincretismo” é mais adequado, como descrição do fenômeno, que “síntese”, ao menos na maioria dos casos). Talvez haja ganhos nesse “hibridismo” e nessa reciclagem legados, assim como nesse enfraquecimento (que não pode ser confundido com desaparecimento) de velhos dogmatismos e sectarismos; a despeito disso, é lícito temer que se esteja a incorrer, aqui e ali, em contradições latentes ou manifestas, ou a escamotear-se certos antagonismos de fundo que, mais cedo ou mais tarde, terão de vir á tona. Seja lá como for, e goste-se disso ou não, o fato é que estamos diante de uma paisagem sociopolítica e cultural nada homogênea e nada simples de descrever e menos ainda de explicar. Dessa forma, uma “virada libertária” ou “giro libertário” é algo plausível, e que na verdade parece já estar em curso há muitos anos; [27] por outro lado, trata-se de uma “virada” ou de um “giro” complexo, marcado por um “hibridismo” essencial, e de modo algum se trata de uma “virada anarquista” ampla e puro-sangue, como alguns parecem crer e querer fazer crer. Para arrematar (e provocar): back to the blackboard Back do the blackboard, ou “de volta ao quadro-negro”, é a maneira como os estadunidenses com frequência falam quando querem referir-se à necessidade de aprender melhor alguma coisa. Nossa quadra da história é confusa, estonteante: não à toa, “complexidade” é uma das palavras que mais têm frequentado o discurso das ciências da sociedade. Nesses marcos, referenciais políticos bem estabelecidos, como “esquerda e direita”, são, de várias partes e com intenções as mais diversas, colocados em xeque. Por um lado, questionam-se ideias petrificadas (às vezes para aprofundar e reabrir o debate crítico, outras tantas vezes para sugerir, indigentemente, que chegamos ao “fim das ideologias” ou ao “fim da história”); por outro lado, o mais comum é que velhas ideias sejam substituídas por ideia nenhuma (ou pelo menos não à altura das antigas), sendo muito mais fácil indicar aquilo que algo supostamente não é mais (“pós-modernismo” e “pós-anarquismo” [post-anarchism] são exemplos cabais dessa sorte de anemia intelectual) que aquilo em que algo efetivamente se transformou. Tenta-se, quase desesperadamente, caracterizar o que tipifica a “condição humana”, hoje. Assim, para exemplificar, Jürgen Habermas chamou o nosso tempo de uma época marcada por uma “nova intransparência”, [28] e o sociólogo alemão Ulrich Beck propôs chamá-la de “segunda modernidade”, a qual teria principiado na segunda metade do século passado e consistiria no quadro formado pelas características de “fragmentação” e heterogeneização do capitalismo tardio e da cultura de massas contemporânea: precarização, individualismo agonístico e exacerbado, crise do welfare state, “sociedade do risco” etc.. As descrições são, às vezes, sensíveis, e inegável é o seu quinhão de verdade; mas são incompletas, e as explicações mais ainda. Atualmente, criam-se muito mais palavras novas que novas ideias – e estas, amiúde, nem sequer são boas.

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Uma das caracterizações mais poderosas é aquela que devemos a Cornelius Castoriadis, que denominou os tempos atuais (na verdade, já desde meados do século XX) de uma “época do conformismo generalizado” (époque du conformisme généralisé).[29] O balanço feito por ele diz respeito a tendências muito profundas da vida política e cultural contemporânea, e que outros autores também tentaram aprender, recorrendo a fórmulas interessantes como “o declínio do homem público” (Richard Sennett). Seguramente o diagnóstico de Castoriadis permanece atual. Seguramente, também, sem embargo, provavelmente ele teria retocado ou complementado sua apreciação, se não tivesse morrido em 1997 e, com isso, deixado de testemunhar o grosso das transformações recentes na direção de uma nova cultura política de resistência. Ele, que já tinha percebido, no final dos anos 1960, que as revoltas estudantis constituíam uma “brecha” em meio ao “conformismo generalizado”, decerto não teria deixado escapar que, apesar das contradições e dos riscos (protofascismos e renascimento dos nacionalismos, culturalismo, neocomunitarismo conservador etc.), nossa época, se abriga um conformismo generalizado, de maneira nenhuma e cada vez menos assiste a um conformismo absoluto. De certo modo, levar a sério a décima primeira tese sobre Feuerbach, de Marx (“Os filósofos têm, até hoje, apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes, quando o que conta é transformá-lo” [30]), é hoje algo tão ou mais necessário do que ontem, pois a fixação um tanto escapista da intelectualidade “progressista” nos discursos e a negligência para com aspectos fundamentais da realidade objetiva (economia capitalista global, geopolítica, contradições e paradoxos da resistência anticapitalista etc.) em boa medida corrói o ânimo e desarma. É preciso reaprender a interpretar o mundo à nossa volta, mas isso só será possível com e pela práxis. Não obstante, isso tampouco é um álibi para qualquer voluntarismo antiteórico e antirreflexivo. A ação política emancipatória (práxis) é tão necessária à reflexão crítica profunda quanto esta é para a ação política. Talvez por seu cunho altamente polêmico e emblemático, eu gostaria de me deter um pouco em dois assuntos, antes de concluir. Nossa sociedade, no mundo inteiro, possui traços de patriarcado e machismo – vá lá: em alguns países e regiões bem mais, em outros bem menos. E, no mundo inteiro, o racismo se acha disseminado – idem. Entretanto, o fator de subalternização e heteronomia mais persistente, em meio a um mundo que se vem ocidentalizando a passos largos desde meados do século passado e mesmo já desde muito antes, e em sociedades cujo imaginário gira em torno do econômico (lucro, crescimento, produtivismo) como dimensão dominante (eu não disse, preste-se atenção, que a produção, pura e simplesmente, “determina” todo o resto), consiste na exploração e na estratificação econômicas, o que nos remete, em bom português, à luta de classes. O que não quer dizer, todavia, que as lutas estritamente econômicas sejam, todo o tempo e em todos os lugares, “mais importantes”, e muito menos as únicas importantes. Como valorizar, sem subordinações apriorísticas e hierarquizações genéricas, baseadas em vieses diversos, a consideração das várias formas de opressão e de suas interligações e reforços

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recíprocos, bem como as várias formas de resistência e suas relações de complementaridade? Em outras palavras, como evitar resvalar para um classismo estreito e economicista, mas também como evitar escorregar para a armadilha do culturalismo “pós-moderno”, que desvincula o poder, a cultura e o simbolismo (e, assim, o machismo, o racismo…) da exploração de classe e alimenta uma rebeldia que “se esquece” da economia quando de seus esforços para “mudar o mundo”? O segundo ponto não é menos controvertido. É fácil demonstrar, com a documentação hoje disponível e facilmente acessível, que fios filosóficos e políticos unem, direta ou indiretamente, o pensamento reacionário e eugenístico dos séculos XIX e XX (incluído, aí, o nazismo) às preocupações ecológicas das últimas décadas, expressas em termos de “biocentrismo”, “preservacionismo”, culto do mito da “natureza intocada”, “ecologia profunda” (deep ecology) etc., em que a solidariedade com os (outros) animais ou, genericamente, com o “planeta” (que, para os entusiastas da “hipótese Gaia”, seria quase uma entidade viva), prepondera sobre a solidariedade dos seres humanos entre si. Porém, em que medida seria justo ou razoável tomar isso como pretexto para menosprezar, de partida, preocupações com a degradação e a proteção ambientais em geral? Será sensato permitir que a ingenuidade “alternativa” de uns (que não percebem determinados custos sociais embutidos nos modelos “ecológicos” que preconizam, ou as limitações intrínsecas das estratégias que adotam) e o conservadorismo neomalthusiano e até “ecofascista” (como diria Bookchin) de outros tantos (para os quais custos sociais pouco ou nada importam) nos induzam, por conta de um ceticismo exagerado da nossa parte, a subestimar a urgência da tarefa que reside em conceber e combater por uma matriz tecnológica e uma espacialidade muito diferentes das herdadas do capitalismo e por ele modeladas? Precisa, realmente, toda objeção ou ressalva relativamente ao moderno capitalismo e suas tecnologias e espacialidades típicas ser (ou ser interpretada como) agrarismo passadista, ruralofilia romântica ou “anarcoprimitivismo”? (Ora, não seriam a social ecology de Murray Bookchin [31] e as reflexões de Cornelius Castoriadis sobre ecologia e tecnologia [32] poderosas ilustrações de que, sim, é perfeitamente possível levantar tais objeções e ressalvas sem aceitar “danos colaterais” socialmente regressivos e conservadores?) Até que ponto, finalmente, o abuso desautoriza o uso? De um ponto de vista que valorize o “direito à cidade”, essas questões já não são desimportantes; de um ângulo que realce o direito ao planeta, então, nem se fala. A respeito desses temas dos dois parágrafos anteriores, onde ainda parecem predominar só os fossos, que sejam construídas pontes, e pontes sólidas. É esse um esforço que terá de ser coletivo, e não individual, e em última instância prático-político, e não apenas intelectual – ou não será. E ele parece não ser nada fácil, pelo que temos visto. Mas tampouco é a quadratura do círculo. Faz-se urgentemente necessária uma nova síntese - teórica e prática, “práxica”. Ação direta e luta institucional; tática e estratégia; curto e longo prazos; agentes e estruturas/sistemas; (inter)subjetividade e objetividade; economia, política e cultura; utopia e pragmatismo; espaço e tempo; revolta e revolução; “saber local” e saber acadêmico; aprofundamento de

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lutas e agendas específicas e articulações transversais; combinações escalares (não só analiticamente, mas também e sobretudo politicamente: política de escalas). Uma síntese que represente uma convincente superação da “tese” da modernidade e seus desdobramentos (racionalismo, economicismo, teleologismo do mito do “progresso” e da ideologia capitalista do “desenvolvimento econômico”, produtivismo e “dominação da natureza”, cientificismo, objetivismo, ortodoxias marxista e anarquista clássica) e que, ao mesmo tempo, saiba evitar as caricaturas e os excessos da “antítese” chamada de “pós-modernismo” (culturalismo, discursivismo relativista e antiobjetivista, crítica extremada da razão e laivos irracionalistas, estetização do conflito social e conivência com a espetacularização da política e a indústria cultural). Sincretismos não são suficientes, e podem mesmo revelar-se deletérios, em algum momento. E o mesmo se pode dizer de revoltismos, descentramentos e lutas específicas que, no afã de não resvalarem para concepções antiquadas (notadamente de tipo bolchevique) de “revolução”, contentem-se com (ou jamais consigam ir além de) um trabalho de sísifo, eventualmente exitoso na escala da tática, mas que carece de fôlego e estratégia e tende a se esgotar no minimalismo lúdico-político simbolizado pela ação voluntarista e indignada dos rebeldes de cada geração (“rebeldes com data de validade”?…), deixando atrás de si, com frequência, não muito mais que uma tênue memória das derrotas e das vitórias (ambas plenas de lições). Enfim, back to the blackboard. Com humildade, sim; mas com determinação. Notas [1] Nascido em 1901, Lefebvre aderiu ao PCF em 1928, época em que o partido já demonstrava uma tendência nitidamente stalinista e de subserviência à orientação de Moscou, consolidadas no início da década seguinte. A despeito de algumas tensões com a linha oficial do partido, ele permaneceu em suas fileiras até 1958. E que não se diga que “não havia alternativa”: para além dos agrupamentos trotskistas, basta lembrar, acima de tudo, do grupo Socialisme ou Barbarie (e da revista homônima), fundado em 1949 por Cornelius Castoriadis e Claude Lefort, que eram então marxistas heterodoxos. [2] Foram por mim consultadas as seguintes edições: La vida cotidiana en el mundo moderno (Madrid, Alianza Editorial, 1972 [primeira edição francesa: 1968]); O direito à cidade (São Paulo, Moraes, 1991 [primeira edição francesa: 1968); La revolución urbana (Madri, Alianza Editorial, 4.ª ed., 1983 [primeira edição francesa: 1970); La pensée marxiste et la ville (Paris, Casterman, 1972); Espacio y política: El derecho a la ciudad, II(Barcelona, Península, 1976 [primeira edição francesa: 1972]); La production de l’espace (Paris, Anthropos, 1981 [primeira edição francesa: 1974). Sobre a longa passagem de Lefebvre pelo PCF e os “serviços sujos” que ele foi, como aliás muitos outros intelectuais a serviço de partidos stalinistas, forçado a fazer (o que incluiu de autocríticas a ataques praticamente “encomendados” contra dissidentes e adversários do partido), a tudo isso se sujeitando, deve-se registrar que os verbetes da Wikipedia dedicados a Lefebvre em francês e espanhol silenciam sobre esse lado sombrio de sua vida política, dando inclusive a entender que ele teria sido quase sempre um campeão da resistência ao stalinismo. Muito mais honesto é o obituário “Henri Lefebvre, 1901-1991”, assinado por Michael Kelly e publicado em 1992 no número 60 do periódico Radical Philosophy. [3] Em O direito à cidade, Lefebvre não deixa dúvidas: a classe operária ou trabalhadora seria, por um lado, a única classe capaz de fazer a revolução; por outro lado, imersa na alienação (imersa na “quotidianidade”, por ele grandemente reduzida à carga negativa do “consumo dirigido”), essa mesma classe não teria “espontaneamente o sentido da obra” (e, portanto, da verdadeira criação do novo, da verdadeira emergência histórica), mas

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somente do “produto”. A tradição filosófica (e artística), essa sim, seria a depositária de tal sentido (cf. p. 144 da edição mencionada na nota anterior). Em outras palavras, a classe operária não perceberia a “totalidade”, e portanto teria dificuldades em compreender (leia-se: sozinha) que o seu “ser” a predestinaria a uma “tarefa histórica”. Esse “sentido (da obra)”, ela o receberia de fora: a saber, da “Filosofia”. Eis uma maneira elegante e intelectualizada de dizer o mesmo que Lenin: ou o proletariado se deixa guiar pela intelectualidade marxista (ela, sim, detentora de um sentido de “totalidade”), que atuará como sua ideóloga e tutora, ou o proletariado chegará, no máximo, ao reformismo. O longo trecho a seguir condensa muito tanto da agudeza (e da relativa originalidade) quanto do beco sem saída da concepção de Lefebvre; ele foi extraído de um artigo publicado em 1971: “(…) em um plano que poderiam ser caracterizado como de junção entre o teórico e o prático, Marx descobre que a classe trabalhadora precisa tomar lições, que o conhecimento não é imanente a ela; por exemplo, a classe trabalhadora [classe ouvrière], como classe, não sabe o que é o funcionamento geral da sociedade. Quando um partido político que a quer “representar” apresenta um programa, esse programa ignora uma parte muito importante do funcionamento global de qualquer sociedade; é isso que diz a crítica do programa de Gotha. A classe trabalhadora alemã, a mais desenvolvida, mesmo informada e educada por um partido que propõe uma agenda política, não capta o que é o funcionamento geral de uma sociedade, isto é, não só produção e trabalho, mas também a educação, a saúde, a escola, a universidade e, finalmente, toda a organização social. A empresa não coincide com a classe, e a classe enquanto classe não conhece o funcionamento global da sociedade, a forma de gerir a sociedade, o que significa que ela conhece mal a gestão do excedente social que lhe vai além. Devemos, portanto, ensinar-lhe. É aqui que entra o pensamento de Lênin. A classe operária, explorada, carrega o peso simultâneo da acumulação de capital da classe burguesa, tal como ela existe, e da própria ordem burguesa. Ela é a base da ação revolucionária; mas como uma classe, ela tem limitações. Ela não se alça, enquanto classe, a um projeto de classe da totalidade social. A espontaneidade é essencial; ela sofre ímpetos e recaídas; ela possui limites; a receptividade da classe trabalhadora existe, mas também tem os seus limites.” (Henri Lefebvre, “La classe ouvrière et-elle révolutionnareire?” L’Homme et la société, nº 21, páginas 149-156; o trecho se acha na página 151). Nessa passagem, de maneira contundente, o autor nos fornece uma indicação: 1) de que ele percebe que a classe, enquanto tal, remete a um único (ainda que essencial) aspecto da totalidade social (a esfera da produção), insuficiente quando a tarefa é compreender e revolucionar a sociedade inteira; 2) de que, para ele, a “classe ouvrière” continua sendo vista como o sujeito potencialmente revolucionário por excelência (em outros momentos do mesmo artigo, Lefebvre menciona, tangencialmente, os jovens e os estudantes, mas seu interesse se direciona basicamente para a “classe ouvrière”, que ele distingue do “proletariado”, encarado como uma massa mais ampla e heterogênea); 3) de que, para ele, a “classe ouvrière” precisa ser “instruída” e “educada” por um agentes de algum modo externos a ela (mais ou menos no sentido preconizado por Lênin e prenunciado por Marx na sua famosa crítica do programa de Gotha). É à luz disso que se precisa tentar avaliar o grau de (in)coerência de Lefebvre ao clamar por “autogestão generalizada”: se, por um lado, ele percebe certos limites do classismo estrito e do economicismo, fortemente entranhados na tradição de pensamento da qual ele provém, por outro lado lhe é sumamente difícil desembaraçar-se por completo do enfoque hierárquico e vanguardista que é igualmente tão próprio a essa tradição. Quanto à descoberta da autogestão por Lelebvre, vale a pena consultar, além de A revolução urbana, também L’irruption: de Nanterre au sommet (Paris, Syllepse, 1998 [primeira edição em 1968]) e “Theoretical problems of autogestion”, incluído no livro State, Space, World, organizado por N. Brenner e S. Elden (Minneapolis, University of Minnesota Press, 2009 [primeira edição francesa do ensaio de Lefebvre: 1966], p. 138-152). [4] Essa feia palavra, canhestro aportuguesamento do inglês gentrification (derivado de gentry: pequena nobreza), designa, resumidamente, um processo de câmbio socioeconômico-espacial em que uma população residente de baixa renda é objeto de pressões e mesmo de remoção compulsória, sendo as residências de trabalhadores pobres substituídas por moradias de classe média ou de luxo, ou ainda por empreendimentos comerciais de alto status. Aos poucos, o termo vai deixando de ser um mero e hermético jargão técnico para adentrar o discurso político quotidiano, mormente dos movimentos sociais.

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[5] Abordei esse problema no artigo “Which right to which city? In defence of political-strategic clarity” (Interface: a journal for and about social movements, 2[1], 2010, p. 315-333). [6] Trata-se esse de um dos termos-chave do debate crítico-político dos últimos vinte anos, em torno do qual, no entanto, subsistem várias incompreensões e interpretações banalizantes (quanto a este último problema, vale registrar, de passagem, que a versão mínima mais usual entre os movimentos da atualidade – “autonomia em face dos partidos e das instituições do Estado” – é, para usar um eufemismo, muito insuficiente.) Não é viável tentar dissipar uma espessa névoa de confusões e polissemia em uma simples nota de rodapé, de maneira que prefiro remeter o leitor à fonte mais precisa e profunda que conheço, a esse respeito: a obra de Cornelius Castoriadis. Ver, por exemplo, a título de introdução: “Introdução: socialismo e sociedade autônoma”, em Socialismo ou barbárie: O conteúdo do socialismo (São Paulo: Brasiliense, 1983 [publicado originalmente em 1979, na França]); “La logique des magmas et la question de l’autonomie”, em Domaines de l’homme – Les carrefours du labyrinthe II (Paris, Seuil, 1986); “Pouvoir, politique, autonomie”, em Le monde morcelé – Les carrefours du labyrinthe III (Paris, Seuil, 1990); “La démocratie comme procédure et comme regime”, em La montée de l’insignifiance – Les carrefours du labyrinthe IV (Paris, Seuil, 1996). Para uma discussão detalhada da dimensão espacial da autonomia – assunto, infelizmente, negligenciado por Castoriadis -, consulte-se o meu livro A prisão e a ágora: Reflexões em torno da democratização do planejamento e da gestão das cidades (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2006). Por fim, cumpre salientar, de todo modo, que estas alusões e recomendações referentes a um tratamento conceitual “rigoroso” não tencionam sugerir que a práxis deva, simplesmente, deixar-se conduzir por discussões filosóficas e científicas, e muito menos que estas pouco ou nada teriam a aprender com a ação e os discursos políticos concretos da atualidade. No fundo, é quase o contrário: por mais que seja lícito e mesmo necessário chamar a atenção para deficiências e lacunas e até contradições no âmbito do quotidiano das lutas, as maneiras concretas como os discursos e as práticas vêm sendo construídos constituem, por si e em si, um terreno repleto de lições a serem refletidas, inclusive acerca das brechas e portas de entrada através das quais as resistências vão dando vida, em circunstâncias variáveis e não raro muito adversas, a uma categoria essencialmente política que, se não fossem as suas apropriações às vezes “superficiais”, correria o risco de permanecer confinada a um ambiente de debate acadêmico. [7] Conforme resumi algum tempo atrás (“Ação direta e luta institucional: Complementaridade ou antítese? [Primeira Parte]”, [27 de abril de 2012; http://passapalavra.info/?p=56901]), “[a]ção direta é como (principalmente) os anarquistas têm denominado, há gerações, a atividade de luta armada, mas também de propaganda, agitação e organização, com a finalidade de promover a revolução social e eliminar a exploração de classe e o Estado que lhe dá respaldo. Houve época em que, entendida como “propaganda pela ação” e privilegiando-se o enfrentamento armado, a “ação direta” foi confundida com o emprego da violência, tendo sido, às vezes, até mesmo reduzida ao terrorismo. Felizmente, mesmo entre aqueles que não rejeitaram ou rejeitam, na qualidade de último recurso ou amiúde como estrita necessidade, a resistência armada, a ação direta passou a merecer uma definição bem mais abrangente. Neste texto, consoante essa linha interpretativa, ela designa o conjunto de práticas de luta que são, basicamente, conduzidas apesar do Estado ou contra oEstado, isto é, sem vínculo institucional ou econômico imediato com canais e instâncias estatais.” A ação direta contrasta com a luta institucional, que, segundo o mesmo artigo, “significa o uso de canais, instâncias e recursos estatais, tais como conselhos gestores, orçamentos participativos ou fundos públicos. Aqui, entretanto, estabelece-se já uma distinção entre uma posição marxista-leninista e uma postura compatível com o campo libertário: a luta institucional abordada neste texto é uma luta institucional não partidária, ou seja, que não tem como pressuposto a criação de partidos políticos ou a filiação a partidos políticos por parte dos ativistas.” [8] “Guerra de posição” é uma expressão inspirada na guerra de trincheiras da Primeira Guerra Mundial, utilizada no âmbito da teoria da hegemonia de Antonio Gramsci. A interpretação gramsciana original, segundo a qual o modelo da Revolução Russa (ou, melhor dizendo, o modelo da tomada do Estado pelos bolcheviques em outubro de 1917) não poderia ser realisticamente replicado no Ocidente, com sua sociedade civil e seu Estado muito mais complexos, cabendo, isso sim, um processo de conquista gradual, “trincheira por trincheira”, degenerou posteriormente no “entrismo”, que é a visão francamente oportunista (embrionariamente presente em

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Gramsci) de acordo com a qual cumpre adentrar o Estado, onde e como for possível, para depois tentar transformá-lo a partir do interior. [9] O eurocomunismo foi formulado na década de 1970 por estrategistas políticos italianos, espanhóis e franceses vinculados aos partidos comunistas, que desejavam romper com o stalinismo cada vez mais anacrônico que então ainda predominava nos esclerosados PCI, PCE e PCF. A tentativa de buscar uma via alternativa que não fosse nem o (cripto-)stalinismo dos PCs nem o reformismo acomodado da social democracia teve defensores ilustres, como o brilhante teórico greco-francês Nicos Poulantzas, mas acabou por revelar-se, na prática, como um pretexto para o “entrismo” mais escancarado e oportunista. [10] Convém não esquecer que o neoliberalismo, como modelo de política econômica (crença reforçada no livre mercado e no “Estado mínimo”, privatizações etc.), não surgiu nos anos 1970 ou 1980. A eleição de Margareth Thatcher como primeira-ministra britânica em 1979 e a ascensão da reaganomics (política econômica do governo Ronald Reagan) após a eleição de Reagan para a Presidência dos Estados Unidos, no ano seguinte, foram marcos simbólicos e práticos importantes; porém, a implementação daquela agenda só se tornou possível na esteira da crise do capitalismo que, agravando-se ao longo da década de 1970 com os dois choques do petróleo, forçou e catalisou transformações tanto econômico-tecnológicas (“Terceira Revolução Industrial”, aumento de produtividade, novas ondas de desemprego tecnológico, incremento da extração da mais-valia relativa, consolidação da globalização econômico-financeira) quanto político-econômicas e econômico-político-sociais (enfraquecimento das políticas econômicas keynesianas e dos sindicatos, postura cada vez mais defensiva e mesmo conservadora dos partidos social-democratas). Desenvolvido como abordagem de política econômica já nos anos 1930 e posteriormente identificado com (e popularizado por) nomes como Friedrich Hayek, o neoliberalismo entrou em relativo ocaso durante os “Trinta Gloriosos”, dominados ideologicamente, no campo burocrático-gestorial, pelo keynesianismo, sendo (re)convocado como ideologia e enfoque básico do capitalismo somente a partir da década de 1980, servindo ao mesmo tempo como expressão das propostas mais reacionárias, antenadas com os interesses de uma boa parcela do empresariado e também da classe média resentidas com o Estado. [11] A state-centred matrix foi o modelo desenvolvimentista baseado em pesados investimentos e forte regulação estatais (incluída a maciça criação de empresas estatais) que, na América Latina, se estendeu entre as décadas de 1930 e 1970. A expressão foi cunhada por Marcelo Cavarozzi em seu artigo “Beyond Transitions to Democracy in Latin America” (Journal of Latin American Studies, 24(3), Cambridge e outros lugares, 1992) [12] Alonguei-me sobre isso, com a ajuda de exemplos concretos, em A prisão e a ágora, op.cit.. [13] O conceito de “regime urbano” (do inglês urban regime) foi proposto por Clarence Stone no começo dos anos 1990 (vide o artigo “Urban regimes and the capacity to govern: A political economy approach”, Journal of Urban Affairs, 15[1], 1993, p. 1-28) para caracterizar as combinações de formas institucionais e interesses econômicos (especialmente interesses de classe) que se expressam sob a forma de estilos de gestão específicos: uns mais abertos à pressão dos trabalhadores e permeáveis à participação popular (com ou sem aspas), outros mais repressivos e refratários a uma agenda “progressista”. Ainda que a classificação proposta por Stone não deva ser transposta irrefletidamente para uma realidade bem diferente da estadunidense, como a brasileira, a ideia do conceito é útil em si mesma. [14] Também chamado de “empreendedorismo urbano” e “empresarialismo urbano”, vários estudos importantes e esclarecedores têm sido publicados sobre isso que, aqui, prefiro chamar de “neoliberalismo urbano”, por exprimir de modo mais simples e direto a essência do fenômeno, que consiste em uma “tradução” da agenda neoliberal para arena urbano-local e as os interesses e agentes específicos vinculados à acumulação de capital nesse âmbito, em que o papel do Estado, a atuação das diversas frações do capital, as estratégias de acumulação, os conflitos sociais e os modos de resistência assumem características particulares.

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[15] A ideia do “Estado-penitência”, que em grande medida substituiu o “Estado-providência”, deve-se a Loïc Wacquant, que a desenvolveu em uma série de trabalhos, entre eles o livro As prisões da miséria(originalmente publicado em 1999, e que no Brasil apareceu em tradução de 2001, publicada pela Jorge Zahar, do Rio de janeiro. [16] Essa característica de muitos movimentos e protestos contemporâneos foi abordada por mim em vários trabalhos, entre eles os artigos “Marxists, libertarians and the city” (City, 16[3], 2012, p. 309-325), “Libertarians and Marxists in the 21st century: Thoughts on our contemporary specificities and their relevance to urban studies, as a tribute to Neil Smith” (City, 16[6], 2012, p. 692-698) e “Towards a libertarian turn? Notes on the past and future of radical urban research and praxis” (City, 18[2], 2014, p. 104-118).  [17] No livro A prisão e a ágora (op.cit.), busquei apresentar e esmiuçar o pano de fundo e as condições em que os conceitos de “prática espacial insurgente” (desdobramento e especificação recontextualizados do conceito mais geral de “prática espacial”, esboçado por Henri Lefebvre quarenta anos atrás) e “território dissidente” se tornam bastante úteis para a análise das lutas sociais da atualidade. Um tratamento mais introdutório e direto desses mesmos conceitos foi oferecido, mais tarde, no meu livro Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2013 – vide os capítulos 4 e 10). [18] Uma discussão das ideias de “reificação do urbano” e “fetichização dos problemas urbanos” pode ser encontrada no livro A prisão e a ágora, op.cit. (vide o subcapítulo 4.2. da Parte I). O assunto já havia sido tangenciado em minha tese de doutorado, de 1993, e no livro O desafio metropolitano: Um estudo sobre a problemática sócio-espacial nas metrópoles brasileiras (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2000 – vide o Cap. 3 da Parte I). [19] Vide a pág. 38 de Murray Bookchin, “Por um novo municipalismo”, em Ecologia social e outros ensaios (Rio de Janeiro, Achiamé, 2010 [1980-1982]). [20] Desenvolvi, em uma dissertação de mestrado defendida em 1988, uma análise a propósito da diferença entre as lutas “de bairro” e “a partir do bairro”, no âmbito de uma reflexão sobre as potencialidades e limitações do ativismo de bairro; essa análise foi, muitos anos depois, retomada no livro O desafio metropolitano, op.cit. [21] Os temas (e problemas) do “corporativismo territorial” e da “politofobia” foram examinados por mim igualmente no livro O desafio metropolitano, ibidem. [22] Nesse livro, cuja primeira edição brasileira foi publicada, sob o título A questão urbana, em 1983 pela editora Paz e Terra, do Rio de Janeiro, Castells (que no início dos anos 1980 já se havia afastado do marxismo estruturalista de sua juventude, adotando uma posição eclética) deixa claro, apesar de sua linguagem sinuosa e rebarbativa: os “movimentos sociais urbanos” podem até ser conjunturalmente importantes, mas estão fadados a ser estruturalmente secundários, já que as “contradições urbanas” são “estruturalmente secundárias” elas próprias, e a relevância desses movimentos será proporcional à intensidade com que souberem ser bons coadjuvantes do movimento operário – devidamente conduzido, este último (que seja bem entendido), pelo partido supostamente representante dos interesses da classe trabalhadora. Interessantemente, já não havia mais, no início dos anos 1970, nenhum movimento operário digno desse nome; o que havia, isso sim, eram a ideologia “eurocomunista” e as ambições político-eleitorais do PCF. [23] Vide Gabriela Delamata, Los barrios desbordados: Las organizaciones de desocupados del Gran Buenos Aires (Buenos Aires, EUDEBA [= Série Extramuros, n.° 8], 2004), p. 48. Em espanhol, no original: “En efecto, el ‘trabajo territorial’ contiene en si mismo su propia definición política. Realizar trabajo territorial no sólo significa, en este caso, afianzar el trabajo del colectivo en el espacio local, sino por sobre todo, atribuir a esas actividades comunitarias aptitudes de cambio social. En primer lugar, el trabajo en el territorio se propone como producción de nuevos valores de solidaridad que reconstituyan los lazos interpersonales y las dimensiones existenciales de

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las personas resquebrajados por el desempleo, la pobreza y las formas de autoritarismo que bajo distintas modalidades calaron en la sociedad. En segundo lugar, esta construcción comunitaria apunta a la producción de una sociedad nueva, que no antagoniza directamente con los lugares del poder instituido para imponerse, sino que se proyecta y autoafirma como ‘soberanía no estatal’.” [24] Apud ibidem, p. 43, nota 20. Em espanhol, no original: “En realidad, el barrio siempre fue un espacio de las organizaciones de los partidos y no de las organizaciones de los trabajadores. Y, digamos, esto ha abierto una discusión importante, y en segundo lugar, el territorio fue lo que permitió que la Central tuviera y mantuviera un nivel de presencia en el conflicto social que de otra manera no hubiera podido tener, si se hubiera quedado restringida al ámbito estrictamente laboral.” [25] Vide Raúl Zibechi, Autonomías y emancipaciones: América Latina en movimiento (Lima, Universidad Nacional Mayor de San Marcos, 2007), p. 26. Em espanhol, no original: “[l]as nuevas territorialidades son el rasgo diferenciador más importante de los movimientos sociales latinoamericanos, y lo que les está dando la posibilidad de revertir la derrota estratégica.”. [26] Política de escalas” (politics of scale) é a expressão, ainda não totalmente consolidada no Brasil, por meio da qual geógrafos anglo-saxônicos vêm designando “a articulação de ações e agentes operando em níveis escalares diferentes (isto é, que possuem magnitudes e alcances distintos) com a finalidade de potencializar efeitos, neutralizar ou diminuir o impacto de ações adversas ou tirar maiores vantagens de situações favoráveis; por exemplo, ampliando esferas de influência (ao expandir audiências, sensibilizar atores que sejam possíveis aliados etc.) e propiciando sinergias políticas (ao recrutar novos apoios, costurar alianças etc.).” Essa é a maneira sintética como retratei, em uma primeira aproximação, a essência do conceito, em um artigo de 2010 e, posteriormente, em meu livro Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial (Rio de janeiro, Bertrand Brasil, 2013), no qual podem ser encontrados vários pormenores teórico-conceituais sobre a temática das escalas e sua relevância científica e prático-política. [27] Paralelamente, aliás, a um “giro espacial” (spatial turn) nas ciências sociais e humanidades, do qual se vem falando (às vezes com um certo exagero) desde a década de 1990. Pensadores como Foucault e Lefebvre, diga-se de passagem, tinham já antecipado e preparado esse “giro”, cada um a seu modo e com ênfases e interesses distintos, em vários de seus trabalhos dos anos 1960 e 1970. [28] “Nova intransparência” é, na verdade, a tradução livre e aproximada que se difundiu no Brasil da expressão habermasiana “neue Unübersichtlichkeit”, que significa, basicamente, “nova incapacidade de se obter visões de conjunto”. Apesar da razoável aproximação de sentido daquela tradução para o português, algo da expressão alemã se perde com ela, pois não é exatamente de “intransparência” que se trata, mas sim da dificuldade para se conseguir formar juízos lúcidos em meio a uma complexidade atordoante de fatores e elementos, com tantos ilusionismos, contradições, deformações, confusões e falsas aparências. Não é à toa que a categoria da “totalidade”, usada e abusada pelos vários marxismos, é uma das ilustres baixas em uma quadra da história em que se celebra desabridamente o minimalismo, reação por certo exagerada às generalizações excessivas de outrora. [29] Vide Cornelius Castoriadis, “L’époque du conformisme généralisé”, em Le monde morcelé – Les carrefours du labyrinthe III (Paris, Seuil, 1990). [30] “ Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert; es kommt drauf an, sie zu verändern.” [31] Consultem-se, por exemplo, as coletâneas Post-Scarcity Anarchism, publicada em Edimburgo e Oakland pela AK Press, 3.ª ed., em 2004 (em especial os ensaios “Ecology and Revolutionary Thought”, de 1965, “Towards a liberatory technology”, também de 1965, e “Post-Scarcity Anarchism”, de 1968), e Social Ecology and Communalism, de 2007, igualmente publicada pela AK Press (ver, sobretudo, o ensaio “What is Social

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Ecology?”, publicado em 1993 e revisado em 1996 e 2001). Vide, ainda, The Ecology of Freedom: The Emergence and Dissolution of Hierarchy, de 2005 (primeira edição em 1982), também publicado pela AK Press. [32] Consulte-se, por exemplo, o ensaio “Technique”, incluído na coletânea Les carrefours du labyrinthe (Paris, Seuil, 1978); vide, também, o livro Da ecologia à autonomia, publicado em São Paulo pela editora Brasiliense, em 1981, e que consiste na transcrição de um debate travado entre Castoriadis e Daniel Cohn-Bendit (que figura como coautor) na Bélgica, no ano anterior.