Marcha a ré

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E então a terra começou a tremer. Eu estava comendo meu Bei- rute no Habib’s da avenida Ipiranga quando todos nós, clientes e aten- dentes, nos entreolhamos e vimos o teto balançar como o chão. Acha- mos, por um instante, que o prédio ia cair e saímos correndo pra rua. E qual não foi nossa surpresa e eles estavam lá: cruzando a esquina da Ipiranga com a São João, num ru- gido estrondoso, uma fileira de tanques Urutu, à toda velocidade. O barulho, ensurdecedor. No ter- ceiro tanque, o único deles branco e com as inscrições UN na lateral esquerda , estava ele, General Au- gusto Heleno, fardado impecavel- mente,o rosto com a tez tranquila de alguém se preparando para ser saudado fenomenalmente, batendo continência com a mão esquerda. A fileira de tanques passa se- guida de cavalos da tropa. No can- hão do tanque do general estão duas bandeiras – a do Brasil e a do estado de São Paulo, amarradas e depen- duradas lado a lado. Agora que re- solvo correr vejo que, no tanque à minha frente, está a presidente do país, algemada e cabisbaixa. Ao seu lado, bastante machucados e san- grando, estavam Lula, Dirceu Genoí- no e Haddad – esse estava com o nariz torto, de dar dó mesmo. O tan- que estaciona, devagar na Praça da República. Mal o comandante desce, se apoia no cano do canhão e, com a calçada já tomada grita “vencemos”. Então se joga, no braço de uma mon- tanha de idosos que o carregam aos gritos de “Heleno! Heleno! Heleno!”. Essa cena, obviamente, não aconteceu. Mas não deixaria de estar no sonho daquelas mais ou menos 500 pessoas presentes na “marcha com deus pela família contra o comunismo” – 399 son- hando com a entrada triunfal do militar; uns cem jornalistas e eu, ainda com o Beirute do Habib’s. /Marcha a Re Por Guilherme Mendes

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Dando uma passada pela Marcha com deus pela família contra o Comunismo em São Paulo.

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E então a terra começou a tremer. Eu estava comendo meu Bei-rute no Habib’s da avenida Ipiranga quando todos nós, clientes e aten-dentes, nos entreolhamos e vimos o teto balançar como o chão. Acha-mos, por um instante, que o prédio ia cair e saímos correndo pra rua. E qual não foi nossa surpresa e eles estavam lá: cruzando a esquina da Ipiranga com a São João, num ru-gido estrondoso, uma fileira de tanques Urutu, à toda velocidade. O barulho, ensurdecedor. No ter-ceiro tanque, o único deles branco e com as inscrições UN na lateral esquerda , estava ele, General Au-gusto Heleno, fardado impecavel-mente,o rosto com a tez tranquila de alguém se preparando para ser saudado fenomenalmente, batendo continência com a mão esquerda. A fileira de tanques passa se-guida de cavalos da tropa. No can-hão do tanque do general estão duas bandeiras – a do Brasil e a do estado de São Paulo, amarradas e depen-duradas lado a lado. Agora que re-solvo correr vejo que, no tanque à minha frente, está a presidente do país, algemada e cabisbaixa. Ao seu lado, bastante machucados e san-grando, estavam Lula, Dirceu Genoí-no e Haddad – esse estava com o nariz torto, de dar dó mesmo. O tan-que estaciona, devagar na Praça da República. Mal o comandante desce, se apoia no cano do canhão e, com a calçada já tomada grita “vencemos”. Então se joga, no braço de uma mon-tanha de idosos que o carregam aos gritos de “Heleno! Heleno! Heleno!”. Essa cena, obviamente, não aconteceu. Mas não deixaria de estar no sonho daquelas mais ou menos 500 pessoas presentes na “marcha com deus pela família contra o comunismo” – 399 son-hando com a entrada triunfal do militar; uns cem jornalistas e eu, ainda com o Beirute do Habib’s.

/Marchaa

Re

Por Guilherme Mendes

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I. “Não manchem nossa bandeira de vermelho!”

Abaixo teríamos uma longa reportagem, baseada em diversas en-trevistas e apurações, so-bre a “Marcha com Deus Pela Família e Contra o Comunismo”. Mas o re-pórter já adiante que uma série de fatores não per-mitiu que isso ocorresse. Vamos explicar um por um. Pra começar: não há como se apurar, racional-mente, a natureza de um protesto como esse. Esta-mos falando de um grupo de pessoas, reunidas em um lugar predeterminado e disseminado (para que mais pessoas pudessem apare-cer) que utilizam—se do so-brenatural (todo-poderoso) para uma causa um tanto defasada. Queria ter grita-do “Fora URSS”, mas senti que o território não estava lá pra esse tipo de coisa.

Chove? Não chove? No caso, vamos dizer que sim, choveu enquanto che-gava na Praça da Repúbli-ca, pouco depois das 14:30, para tentar cobrir a mani-festação. O caráter desta reunião é claro: pela pri-meira vez em muito tempo, a fatia conservadora da so-ciedade iria mostrar as ca-ras, demonstrar sua infelici-dade com o governo federal e o municipal – o estadual, ao menos em São Paulo, vai muito bem obrigado. Esta-riam todos ali prontos para não dar a outra face, o que poderia ser um espetáculo democrático ou simples-mente o motivo de piada. São mais de 200 cidades com protestos agendados, e a mídia deu até espaço

generoso para os “líderes” da proposta (a mítica en-trevista de Bruno Toscano já está nos anais da im-prensa contemporânea). E, noventa minutos antes do protesto ter iní-cio, sou saudado pela dona Silvia Donizete. Cabelos na altura do ombro, aí uns 40 anos e uma blusinha ama-relo-bandeira (vamos ouvir muito esse termo “bandei-ra” por aqui). Se a primeira impressão é a que fica, ela logo me entrega um sulfite A4, com a letra de “Eu te amo meu Brasil”. Posso escolher entre o verde, amarelo ou azul. A julgar pelos olhares vizinhos, me senti descon-fortável a não saber a letra de um dos clássicos ufanis-tas na época da ditadura. Enquanto isso, um trio elétrico – na verdade um velho Mercedes 1113 pintado de preto - era do-minado por vozes que imi-tavam timbres de políticos populistas, bradando com as mãos pra frente, como se martelasse uma foice em alguma coisa. Os discursos eram alternados com uma irritante versão do hino nacional na Sanfona e do Hino da Bandeira, que al-guns mais saudosos ousa-vam cantar. Pra não ficar pra trás, alguns emenda-vam o “recebe o afeto que se encerra em nosso pei-to ju-venil” e paravam por aí. Silvia também leva-va um cartaz, feito naquele estilo psicopata de letras recortadas, com os dizeres: “Intervenção militar já”,

“quero meu país de volta” e “Fora PT / Fora Dilma / Fora Lula”, que ela chamou de “dono de tudo”. Ainda tinha um pedido para Augusto He-leno ser o presidente eleito do Brasil em 2014 (ele nem dá pistas de que fará isso). Silvia não está sozinha no fã clube do militar. Várias faixas pedem a ajuda da FFAA – uma estranha sigla, que representa o “FA” de força armada, mas no plu-ra –, que elas sejam restau-radas, que elas são a única salvação do país, junto com a polícia militar, os bom-beiros, o Chips e o Vigilante Rodoviário. Quem ergue as placas é, em sua maioria, de meia-idade pra cima. Dos cerca de 1500 presen-tes, incluindo os policiais fazendo a segurança, não encontrei nenhum negro. Os discursos seguem, em terra e no alto do trio elétrico, como uma su-cessão de falas umas sem nexo com as anteriores e as seguintes. Acompanhei o caso de um senhor, com a camisa azul marinha bor-dada “Jesus é o caminho”, que deu entrevista à Vice . O seu discurso foi vazio e pro-lixo. E não porque era um discurso puramente con-servador mas sim porque era vazio e prolixo. Durante uns sete minutos ele ficou à frente da câmera, explican-do como Comunismo era ruim para, em instantes, emendar uma referência entre Comunismo e Hitler e falar sobre o mal que Marx, Engels, Hess e Hegel fize-ram. Ergueu uma cartaz, dupla-face, com um longo texto citando as batalhas sangrentas do comunismo, sobre os norte-coreanos (ele parecia chorar em fren-te às câmeras falando so-

(1) Aliás, interessante notar o trio que compunha à Vice: a repórter gostosa, o câmera tatuado e o sonoplasta, que mais parecia o fã de Weezer mais na dele. Eu posso ser leviano com tais fundamentos, mas...bem, era isso que parecia mesmo.(2) Ver reductio ad hitlerum.

bre isso, o que o óculos não deixou confirmar). E, no fi-nal, quando a repórter dis-se obrigado e ele seguiu de costas para o centro de ou-tra discussão, esta parecia estar saindo de um instan-te de nirvana, onde estava dormindo de olhos abertos. Em cima do palanque o discurso era semelhante. O que começou com adje-tivos mais comedidos, do tipo “estamos realmente muito chateados com este governo” foi ganhando ver-borragia, como se um co-mentário do G1 ganhasse vida atrás do microfone. No começo, as críticas di-retas ao governo atual e à Dilma Rousseff deram es-paço a outros posiciona-mentos. Um certo Marce-lo, de uma ONG chamada OPEN, foi mais além e deu os reais tons do comício: “Quem tem facebook aqui ou acompanha na Inter-net...no Rio de Janeiro teve uma deputada que quer sentar o pau nos paulista. Aqui pra ela”. Ele puxa um bandeira paulista, balança no ar e se delicia com um trovão de aplausos e urras. E ele vai engrossando “aqui é sangue na veia, porra” A bandeira enrola-se em si mesma e para de tremular, virando um pano retorcido. Outro exorta contra os mé-dicos cubanos, e mostra uma solução para o proble-ma de médicos no país: “sou a favor de médicos estran-geiros sim, mas sem ajudar este comunismo. Sou a fa-vor de médicos europeus, médicos inglês (sic)”. Não convém pressupor o porquê do fetiche de deixar os mé-dicos de uma das potências do setor no planeta para fora e troca de meia dúzia de loiros. Uma senhora che-ga mais próximo do cami-

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tados, ou a protestos de jovens esquerdinhas, a cor-poração deve ter se sentido lisonjeada com os gritos de “Fica PM” feitos pelos re-voltosos. Um mais distraí-do não aguentou e agrade-ceu, erguendo o polegar e dando um sorrisinho mali-cioso. Todo mundo ali ama a Polícia. Quando o coronel da PM fala (ele toma o mi-crofone de dez em dez mi-nutos) é uma alegria só. As palmas dirigidas à PM só são menores que as pal-mas para o general Augus-to Heleno e ao presidente do Supremo Tribunal Fe-deral, Joaquim Barbosa.

A marcha está agora pronta para sair. Ao contrário daquelas que balançaram o país em ju-nho, essa vai ter um traje-to bem definido, passando pelo Viaduto do Chá, pela prefeitura de São Paulo e seguindo, via Largo São Francisco, para a Praça da Sé. Na hora que este sai da República, da Sé sai o ato conhecido como “Ditadu-ra nunca mais” que reuniu estudantes, membros de partidos de esquerda e ou-tros seres de dreads justa-mente para a República. Os grupos não se en-contraram , não houve bri-gas e, por um sábado, São Paulo sentiu um cheiro de real democracia no ar.

II. “Isso é um samba do milico doido”

Fica até difícil com-parar as duas marchas por diversos aspectos. Sociais, políticos, econômicos. Sa-be-se que a única coisa que as unem é a Constituição e

um tema central: a ditadura. Pois enquanto a mar-cha dita “de esquerda” ti-nha o apoio de partidos, a marcha com Deus parecia poder contar só com ele. Pois nem um partido exis-tente é capaz de compac-tuar tantas ideias díspares. Um exemplo estava na concentração da pas-seata: apesar de todos ali estarem unidos por exigi-rem a queda do governo socialista , uns estão vesti-dos com roupas militares e querem Augusto Heleno no poder. Outros, com seus filhos no colo e mulheres ao lado, querem Joaquim Barbosa mandando os cor-ruptos pra cadeia como o Alienista metia os loucos para o tratamento. Os ma-çons, que lá estavam com uns aventais caprichados, também queriam algo. Os dois seminaristas que encontrei lá, Gabriel e Sau-lo, vieram do interior do Rio Grande do Sul para estudar em São Paulo e, vestido como dois penteados e bai-xinhos exemplares de Neo do Matrix, me explicaram a necessidade de um governo eleito democraticamente (coisa que, para eles, o atual não parece ser muito não).

A marcha vai andan-do e Deus ainda não deu o ar da presença, mas Nossa Senhora estava lá, sendo segurada pelo padre que, microfone na mão esquer-da e a réplica na mão di-reita, excomungava esse

nhão, olha pra cima e grita, como que para os deuses, “não, vocês não vão man-char! Não manchem nos-sa bandeira de vermelho”. Há um quê de raiva na face dessa senhora, mas há também um quê orgás-mico, como se ela estivesse retirando um grande peso de si. Ao gritar para que ti-rassem a mão vermelha do seu estandarte sagrado, ela lembrava aos cidadãos da Oceânia, do clássico 1984, que tinham ataques brutais e coléricos contra Emma-nuel Goldstein. Dá quase pra vera teletela se refletin-do na lente dos seus óculos.Loiros. Eles devem ser a maioria dos presentes. De-vem, pois mais da metade está calva ou com cabelos brancos. Da outra meta-de, um quarto ao menos é careca. Alguns são viris, camisas Fred Perry agar-radinhas, suspensórios e uns coturnos bem polidos, com cadarços brancos ou pretos. Uns levantam ban-deiras brasileiras, outros a flâmula bandeirante e ou-tros estranhas bandeiras azuis. Os policiais que estão ali aos montes conhecem a maioria- um cinegrafista que estava se esgueiran-do me contou ter encon-trado, atrás de um terno-e-gravata, um skinhead acusado de obrigar dois punks a pular de um trem da CPTM em 2002 . A maio-ria já assinou algum bole-tim. Mas hoje é quase certo que eles estarão protegi-dos por uma causa nobilis.

PM essa que nunca se sentiu tão feliz de bater ponto num sábado. Acos-tumada às reintegrações de posse em bairros afas-

governo prejudicial. Em outra placa ela está jun-to dos dizeres: “Nossa Se-nhora de Fátima / Livrai o Brasil do Comunismo”. Seu olhar é de súplica – parece que quer que a tirem dali.

Antes do início do protesto, um cidadão foi agredido pois saiu inadver-tidamente da estação di-reto no protesto, trajando uma camisa vermelha. Ou-tros dois, João e Pedro, que se fantasiaram de empre-gada e andaram ao lado do trio, tiveram o cartaz rasga-do e jogado no chão . Uma senhora que gritou (ou não gritou) palavras contrárias (contrárias, não hostis) aos bravos defensores de bem desta nação não foi poupa-da de vaias fortíssimas, de gritos de “Vai pra Cuba que os pariu” e, especialmente, de um senhor que, quase às raias da histeria, a acusava de alguma coisa. Ele pare-cia estar a ponto de quei-mar as Bruxas de Salem. Seus gritos eram incompre-ensíveis, como quem grita (3) Um morreu. O outro perdeu o

braço

(4) Se aquilo for socialista eu talvez vol-te para as aulas de história da 8ª série, pois aprendi algo errado.

(5) A reação de um deles foi de uma frieza sensacional. Ao dar entrevistas para a imprensa, foi aBordado com um grito sólido de “Vai pra Cuba”. Ao passo que ele apenas respondeu “então paga a passagem”. Risos entre os jornalistas.

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sem dominar o dom da fala. Seu tom de voz passava do rouco. Grunhidos eram in-compreensíveis. “olha aqui, olha aqui” – e então um pa-pel cujo título era “o Brasil pede socorro” foi jogado por ele na direção da senhora. Foram precisos outros ma-nifestantes para apartá-lo (sabe-se lá por quais razões um policial não interveio).

Se eles tem o direi-to da manifestação, ou-tras pessoas também têm. Premissa constitucional que todo mundo gosta de lembrar – quem nunca fa-lou “eu tenho liberdade de expressão” para alguém? Se este país fosse a tão pre-gada ditadura cubana ou norte-coreana, forças mi-

litares onipresentes, pro-vavelmente chamadas de “dilmilícia” estariam escon-didas nos prédios perto do fim da passeata, limpando calmamente metralhado-ras e as baiontetas. Tudo para manter o bem estar da população. Mas, sabemos, não é isso o que ocorreu.Mas, dito pelo não dito, me-lhor ficarmos de olho nes-

sa ditadura socialista aí.

III. “Por que não eles de novo?”

Desde antes do início das manifestações uma das propostas surgiu como aquele gancho para que alguém na discussão emendasse um “não é pos-

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sível”: diziam, à boca miú-da, que alguns deles que-riam a volta da ditadura militar no país. No come-ço era fofoca, eu ri. Custei a acreditar até ver as seis senhores de meia idade, com o biótipo de contado-res ou funcionários públi-cos, sustentando uma faixa amarela, com um “Inter-venção militar” em verde.

É difícil descer à natu-reza de uma posição como essa, por mais passível de respeito que ela seja. Mas 21 anos de torturas, destruição política, econômica e social para eles são “fruto de espe-culação”; Tortura? Era tem-po de guerra e eles fizeram bem menos que os comu-nistas. Comissão da Verda-

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de? “Comissão da mentira” bradou um senhor simpá-tico de cima do palanque.Provavelmente existe al-guém que, como eu, acha que deputados e senado-res a defender tal causa se-jam apenas meros empre-endedores, espaldando-se no novo nicho de merca-do: os ultra-reaças. Dá até pra imaginar uma maté-ria na Exame dizendo que:

O investimento do deputado Jair Bolsonaro foi de cerca de

R$120 mil. Ele investiu em roupas de farda, uma fonoaudió-

loga para que o ajudasse a encorpar a voz de macho e também

em brindes de approach com seu público alvo. “Investimos

muito em bandeirinhas, também em legalização às armas

e endeusamento do General Newton Cruz”, explica [...]6

IV.Terminologia Técnica

O termo usado pe-los mais ativos na passe-ata é “contrarrevolução”. Não golpe (mas nunca que foi) nem revolução, pois pega mal. Pelo menos foi assim que o Daniel, um ce-arense-paulistano, me fez entender. Branco, cabelos lisos, orgulhoso portador de uma aliança no anelar esquerdo e de uma bela ga-rotinha no colo, tentou me explicar. “havia uma revo-lução comunista no Brasil e os militares não permiti-ram isso. Eles são heróis”, argumentou. Peço que ele me explique o porquê de tantas perorações contra o mesmo alvo. A explica-ção não difere da cantile-na dos outros grupinhos. Dilma corrupta, PT corrupto, socialistas corrup-tos, ladrões e tudo de novo. Um engenheiro pede

para dar entrevista à Vice e passa cinco minutos acu-sando o PT de romper o contrato social. Em tese, ele e Daniel não estão er-rados. O PT domina há 12 anos a política brasileira. O tom do governo, dizem que de social, hoje é algo como uma centro-esquerda que, já com todos estes anos ex-pertise de um governo fede-ral, corre o risco de “instru-mentalizar” o poder, como um jornalista amigo meu disse, em uma roda de dis-cussão recentemente. Os mesmos nomes, com rela-ções tão fortes em tantos setores por tanto tempo são realmente estratégias arriscadas para uma nação tão multicultural como o Brasil, que se vê transtor-nada por questões com-plexas a todo o momento7. Mas isso não ocorre no Brasil, e Dilma Rousseff está a poucos passos de uma tranquila reeleição. Visto isso, nasce a celeuma, a in-tranquilidade, a necessida-de de uma intervenção mi-litar “nos moldes de 1964”, como pediam as placas. “São nossa última espe-rança”, diz uma. “Nos salve do comunismo”, diz outra. Nos salve do comunismo?

Por um momento nos desfaçamos das vestes da realidade e demos uma de Descartes para que pen-semos um pouco sobre a vagueza da frase “Nos sal-

ve do comunismo”. Como alguém vivendo no país da desigualdade social tão pregada por gente como Rachel Sheherazade, pas-sei parte da adolescência e juventude com a pergunta: “se estamos todos na mer-da, a solução é que eu fique rico?”. As aulas de história e a vida real, infelizmente, não me dão uma resposta positiva para isso. Mas dão pistas: faça como eu e ande, no mesmo dia, por Carapi-cuíba e pelos Jardins. Ou por dois bairros tão díspa-res nas cidades onde você more. Apenas no segundo – e mais rico – a ameaça do comunismo e do Stalinismo e do totalitarismo vermelho e dos ateus comendo crian-cinhas é mais latente, mais paranoica. Mas eles nunca estiveram tão ricos. Nunca antes na história deste país tiveram tantos prédios com varanda gourmet. Muito menos tantos SUVs rodan-do. Num país que herdou duas décadas de desigual-dade social fortíssima da época de regime, a reposta talvez não seja cada um fi-car rico à sua maneira, com-prando bugigangas lá fora e mostrando nas fotos como é bom andar pelo metrô de Londres (“ai amiga lá tudo funciona”). No Brasil, a chance da mudança existe, mas parece que o comunis-mo tá aí e não vai deixar não. Ok então, anotado isso a primeira questão nas-ce: se a mão vermelha nos impede de sermos felizes e livres com os nossos filhos,

de termos uma vida como na Suíça, quem poderá to-mar este lugar nos altos do Planalto e nos levar para o caminho correto? A respos-ta emergindo, vejamos são eles, os bons moços das forças armadas. Bons mo-ços estes que, em um pas-sado não muito longínquo, derrubaram um presidente eleito constitucionalmen-te; que deram início a uma era de 21 anos regada por doses cavalares de censura, perseguição política e ide-ológica; que tornaram esse país bonito e lucrativo para si próprios e apadrinhados, aumentado a já alta desi-gualdade social neste país. Mas tortura? Já falamos: eles pediram. Censurar jor-nais e programas de TV? Os-sos do ofício. Desigualdade social? Ou é apenas “a lei do mais forte no capitalismo”? A direita no país está abatida, pagando o pre-ço de anos de uma oposi-ção inoperante. É saudá-vel que um governo tenha oposição, que opiniões conservadoras sejam leva-das em consideração. Mas quem consegue levar gen-te como o ex-governador de São Paulo José Serra a sério? Aécio Neves há mui-to caiu em descrédito no cenário nacional; Geraldo Alckmin não consegue sair de seu próprio feudo – São Paulo; e nem Marina Silva empolga mais. Jair Bol-sonaro, Marco Feliciano e outros nomes são relega-dos ao status de piada ou de pena, inclusive mem-bros dos próprios partidosMesmo com nomes sufi-cientemente poderosos para disputar o governo, os “anti-petralhas” não con-seguem se afirmar, e 2014 parece ser apenas uma re-petição deste cenário. O

(7) Aqui um parênteses: o poder instrumentalizado cabe às nações mais tradicionalistas e homogêneas, como a Rússia. Vejamos o exemplo de Putin, que é o presidente do país há 15 anos. É difícil acreditar mas, por detrás de toda a manipulação e de suas propostas polêmicas e agressivas, ele realmente têm o apoio da população. A chama-da “lei anti-gay”, uma das diversas ações russas capaz de causar polêmica no mundo inteiro, causou um frissom dentro da comunidade LGBT de lá, mas

que pouco abalou a população. Se eles realmente pensam assim, quem somos nós, não-russos, a achar que eles estão errados? A imobilidade e tradição da sociedade russa permitem a um gover-nante reine sobre o Kremlin por anos e anos. O que, sabemos, é muito diferente do Brasil. Findo este devaneio, voltemos ao texto principal.

(6) Caso uma cópia caia em mãos do Grupo Abril S/A, um aviso.Pelo amor de deus, essa é uma nota fictícia, como explicado antes. Não digam que não avisei.

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motivo? Antes do motivo, peço para que, se os se-nhores já riram o suficien-te, vão ali fora tomar uma água, exercitar as mandí-bulas, este tipo de coisa.

Pois bem: a culpada sempre foi e sempre será ela, a urna eletrônica. Du-rante repetidos discursos oradores inflamadíssimos, quase que em chamas, pro-puseram ela como a cau-sa da perpetuação do PT no poder. Já citaram bol-sa-família, alienação, mas a grande estrela mesmo é a urna. “Os Estados Uni-dos são a maior potência do mundo”, iniciou a fala ao microfone um senhor, “e eles são o país mais de-mocrático do planeta”, con-tinuou, deixando de lado

que o resultado lá é deci-dido por delegados, e não pelo povo, e também se esquecendo do escândalo ocorrido em 2000, na elei-ção de George W. Bush, “e vê lá, se com aquela rique-za toda, eles querem sair do voto em papel” (palmas estrondosas e assobios) Realmente o orador está de parabéns. Repre-sentando aquelas pessoas lá embaixo, ele se portava como uma criança mima-da que, ao errar o terceiro arremesso no jogo de bas-quete, começa a culpar o aro, a bola, o próprio tênis. A urna eletrônica entrou em 1996, durante o gover-no FHC, e desde então é um modelo para todo o plane-ta. Nove relatórios já foram feitos sobre a qualidade e

transparência da urna, e outros países copiam seu modelo. Alguns destes relatórios alguns desta-cam chances de falha no projeto. Mas é de se espe-rar, no mínimo, que tais opiniões sejam levadas a cabo e analisadas. Não é difícil pensar em falhas em um sistema cujos da-dos são guardados em disquetes e transferidos via telefone – no jogo do poder tudo pode ser manipulável. Mas credi-tar isso como motivo de suas derrocadas ao invés de anos de pensamento retrógrado que não vai de encontro às necessi-dades de grande parte da população brasileira é como não olhar para a própria culpa. E é isso a

que os conservadores se prestam: protestar pela fal-ta da própria mobilidade.

Estou de rua Libero Badaró, numa abafada tar-de de 1972. O clima ordeiro nas ruas. A polícia sendo aplaudida, um ônibus pre-to e um carro de som toca, interminavelmente, a tal canção de Dom e Ravel.

O chão onde país se elevou (lá lá lá lá)

A mão de Deus abençoou

Mulher que nasce aqui

Tem muito mais amor

As pessoas estão feli-zes na rua e... espera, tem alguém com um iPhone 5s na mão. Outro ali na fren-te grita, a plenos pulmões: “fora PT”, mas este grupo só

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nasce em 1980. E o simula-cro cai como uma máscara. O que era para ser vendido como “Comando de caça aos Corruptos”, tal como na faixa do caminhão, é uma reedição do CCC, o “Comando Caça Comunis-ta” dos jovens militares; as placas pedindo a volta da FFAA na verdade querem derrubar – derrubar não, palavra muito forte, va-mos dizer “intervir” – em governos democráticos. Não parece, mas é sim Março. De 2014 mesmo. No final das contas, se eles passaram de 1000, se-riam muitos. No ponto final da concentração, a vitória dos idosos nas escadarias da Praça da Sé, houve mias peroração, mais discur-so prolixo, mais exortação

contra o governo. O cartel/quadrilha do metrô foi pou-pado por hoje. Mensalão Mineiro também estava em folga. Sarney, curiosamen-te, não passa por este dis-curso (Justiça seja feita: também não passou pelo outro protesto). Sobrou mesmo para os ladrões da pátria, que agora eram acudidos por um ou outro skinhead em alguma cal-çada ali perto – um deles foi preso acusado de ata-

car um dito “black bloc”8 . A pergunta continua sem resposta: o que eles querem? É demonstrar que sentem falta de uma re-pressãozinha nas costas? Daquele cargo na reparti-ção que fazia sua família ser influente? Ou era mes-mo de arrancar a unha de comuna? Seja qual foi o nível de sadismo de um dos presentes, padres ou skinheads ou ambientalis-tas de araque, as deman-das egocêntricas de cada um dos setores ali repre-sentados felizmente não eram a vontade de todos.

Uma última prova? No final, subo à pedra do marco zero de São Paulo e guardo uma foto de re-cordação. Revendo a foto um tempo depois, noto os

detalhes: todos de bran-co, com esforço, lotando a escadaria da Igreja. Os mendigos que foram ex-pulsos dali causavam mais volume. E, atrás das pla-cas, atrás dos pedidos de intervenção e de blitzkrieg no congresso (sim, eles são da época dessa gíria), as portas da igreja. Fechadas. Pois é. Talvez nem Deus tenha aguentado ver sua imagem associa-da dessa forma em vão.

(8) Cabe aqui uma nota final sobre o papel e ação da imprensa no ato: se você confia na qualidade do produto noticioso brasileiro, saiba que, ao ocor-rer o tal ataque na região, tal a impre-cisão de tantos jornalistas, que a infor-mação saiu apenas após uma “reunião de campo” entre os presentes. Sim, cada jornalista se juntou num círculo, disse o que viu e, baseado nesse telefone sem fio de informações, se pautaram em coisas que mais ou menos seguiam o bom senso. E estavam nascidas, assim, as manchetes de sites e jornais do dia seguinte.

guilherme mendes, 20, é estudante de jornalismo e transeunte pela capital paulista.

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