Marcinelle: vozes de uma tragédia. - Acidentes do ... · ... o carvão continua sendo uma das...

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Emilio Gennari Educador Popular E-mail: [email protected] Marcinelle: vozes de uma tragédia. Nos anos 50, o carvão continua sendo uma das principais fontes de energia. A demanda gerada pela reconstrução do pós-guerra cresce, mas a competição acirrada com o produto estadunidense somada ao avanço na utilização do gás e do petróleo pressionam as margens de lucro das mineradoras europeias. A Bélgica não escapa deste processo e suas empresas tratam de baratear o carvão aumentando a oferta e reduzindo os custos ao mínimo indispensável. A produtividade em prejuízo da segurança multiplica os acidentes, torna-os corriqueiros a ponto de não fazerem mais notícia e mergulha suas vítimas no esquecimento. A tragédia do dia 8 de agosto de 1956, em Marcinelle, traz à luz uma realidade assombrosa, rompe o silêncio e levanta uma onda de indignação. Mas, que elementos, ao agir cotidianamente, haviam transformado a mina num barril de pólvora preste a explodir? Os dez anos que antecedem o acidente dão pistas que mesclam descaso, relações entre países, demandas econômicas e um trabalho cujos riscos são companheiros inseparáveis de todas as horas. Em 1945, ao sair da segunda guerra mundial com um parque industrial relativamente intacto, a Bélgica se depara com uma situação peculiar: possui grandes jazidas de carvão, mas faltam trabalhadores para extraí-lo. A população local que, para escapar das deportações, se esfolou nas minas durante a ocupação nazista reluta a descer nos poços em função dos riscos que apresentam. O impasse entre possibilidade de extração e falta de empregados é resolvido com a chegada dos imigrantes que apostam no sonho de uma vida melhor. Os cartazes governamentais que anunciavam o recrutamento para trabalhar nas minas da Bélgica prometiam salários que dificilmente seriam obtidos na terra natal. A mineração podia demandar um trabalho duro, mas a renda esperada alimentava a ilusão de que, em tempos relativamente breves, seria possível começar uma nova vida. Sob o desemprego do pós-guerra e sem ter como estimular a economia, o governo italiano assina um acordo pelo qual se compromete a enviar semanalmente para a Bélgica 2000 pessoas abaixo dos 35 anos, em perfeitas condições de saúde, em troca de carvão a preços menores. 1 Trocar gente por carvão é bom para os dois países. A Bélgica assegura uma força de trabalho saudável, barata e abundante, cujos contratos impõem o emprego nas minas durante o primeiro ano de permanência. A Itália ganha uma válvula de escape para diminuir as tensões sociais, reduz os gastos para comprar esta fonte de energia e movimenta a economia com os recursos que os emigrantes enviam às famílias. O acordo inclui cláusulas relativas aos alojamentos e às condições de trabalho sem que haja, porém, mecanismos efetivos de fiscalização ou uma pressão política que assegure o seu cumprimento. Tido como uma fatalidade desencadeada por uma manobra intempestiva, o acidente do dia 8 de agosto de 1956 vitima 262 pessoas das 274 do turno da manhã e tem forte repercussão na mídia europeia. A indignação volta a aumentar no ano seguinte, quando o relatório da apuração conclui que, apesar de velhas e desatualizadas, as 1 Médicos belgas realizavam consultas rigorosas antes do embarque em Milão e em território belga. O acordo homens-carvão, assinado em 15 de março de 1946, previa que, para cada mil operários italianos a serem empregados nas minas, Bruxelas exportaria para a Itália, a preços reduzidos, as seguintes quantidades de carvão: 2.500 toneladas por mês caso a produção mensal fosse inferior a 1.750.000 toneladas; 3.500 ton/mês se a produção ficar entre 1.750.000 e 2.000.000 de toneladas; 5.000 ton/mês caso superasse 2.000.000 de toneladas. Em Di Stefano, P. (2011), pg.12-13. Em função do acordo que cria a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), assinado por França, Bélgica, Alemanha Ocidental, Itália, Luxemburgo e Países Baixos, em 18/04/1951, e das denúncias relativas às péssimas condições de vida e de trabalho, em 1953, o governo italiano suspende o envio de trabalhadores para a Bélgica, mas a migração para este país continuará nos anos seguintes.

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Emilio Gennari – Educador Popular

E-mail: [email protected]

Marcinelle: vozes de uma tragédia.

Nos anos 50, o carvão continua sendo uma das principais fontes de energia. A demanda gerada pela

reconstrução do pós-guerra cresce, mas a competição acirrada com o produto estadunidense somada ao avanço na

utilização do gás e do petróleo pressionam as margens de lucro das mineradoras europeias.

A Bélgica não escapa deste processo e suas empresas tratam de baratear o carvão aumentando a oferta e

reduzindo os custos ao mínimo indispensável. A produtividade em prejuízo da segurança multiplica os acidentes,

torna-os corriqueiros a ponto de não fazerem mais notícia e mergulha suas vítimas no esquecimento.

A tragédia do dia 8 de agosto de 1956, em Marcinelle, traz à luz uma realidade assombrosa, rompe o

silêncio e levanta uma onda de indignação.

Mas, que elementos, ao agir cotidianamente, haviam transformado a mina num barril de pólvora preste a

explodir? Os dez anos que antecedem o acidente dão pistas que mesclam descaso, relações entre países, demandas

econômicas e um trabalho cujos riscos são companheiros inseparáveis de todas as horas.

Em 1945, ao sair da segunda guerra mundial com um parque industrial relativamente intacto, a Bélgica se

depara com uma situação peculiar: possui grandes jazidas de carvão, mas faltam trabalhadores para extraí-lo. A

população local que, para escapar das deportações, se esfolou nas minas durante a ocupação nazista reluta a descer

nos poços em função dos riscos que apresentam.

O impasse entre possibilidade de extração e falta de empregados é resolvido com a chegada dos imigrantes

que apostam no sonho de uma vida melhor. Os cartazes governamentais que anunciavam o recrutamento para

trabalhar nas minas da Bélgica prometiam salários que dificilmente seriam obtidos na terra natal. A mineração

podia demandar um trabalho duro, mas a renda esperada alimentava a ilusão de que, em tempos relativamente

breves, seria possível começar uma nova vida.

Sob o desemprego do pós-guerra e sem ter como estimular a economia, o governo italiano assina um

acordo pelo qual se compromete a enviar semanalmente para a Bélgica 2000 pessoas abaixo dos 35 anos, em

perfeitas condições de saúde, em troca de carvão a preços menores.1

Trocar gente por carvão é bom para os dois países. A Bélgica assegura uma força de trabalho saudável,

barata e abundante, cujos contratos impõem o emprego nas minas durante o primeiro ano de permanência. A Itália

ganha uma válvula de escape para diminuir as tensões sociais, reduz os gastos para comprar esta fonte de energia e

movimenta a economia com os recursos que os emigrantes enviam às famílias. O acordo inclui cláusulas relativas

aos alojamentos e às condições de trabalho sem que haja, porém, mecanismos efetivos de fiscalização ou uma

pressão política que assegure o seu cumprimento.

Tido como uma fatalidade desencadeada por uma manobra intempestiva, o acidente do dia 8 de agosto de

1956 vitima 262 pessoas das 274 do turno da manhã e tem forte repercussão na mídia europeia. A indignação volta

a aumentar no ano seguinte, quando o relatório da apuração conclui que, apesar de velhas e desatualizadas, as

1 Médicos belgas realizavam consultas rigorosas antes do embarque em Milão e em território belga. O acordo homens-carvão, assinado em 15 de março de 1946, previa que, para cada mil operários italianos a serem empregados nas minas, Bruxelas exportaria para a Itália, a preços reduzidos, as seguintes quantidades de carvão: 2.500 toneladas por mês caso a produção mensal fosse inferior a 1.750.000 toneladas; 3.500 ton/mês se a produção ficar entre 1.750.000 e 2.000.000 de toneladas; 5.000 ton/mês caso superasse 2.000.000 de toneladas. Em Di Stefano, P. (2011), pg.12-13. Em função do acordo que cria a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), assinado por França, Bélgica, Alemanha Ocidental, Itália, Luxemburgo e Países Baixos, em 18/04/1951, e das denúncias relativas às péssimas condições de vida e de trabalho, em 1953, o governo italiano suspende o envio de trabalhadores para a Bélgica, mas a migração para este país continuará nos anos seguintes.

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estruturas da mina não haviam contribuído para a catástrofe. Para os juízes que haviam conduzido a investigação,

o acaso era o responsável pela tragédia.

Sob o peso das acusações de negligência, o inquérito é reaberto e a sentença de 30 de janeiro de 1961

condena apenas o diretor dos trabalhos da mineradora, Adolphe Calicis, a seis meses de reclusão e a uma multa de

2000 francos belgas por homicídio culposo. Para os jornais locais, o tribunal havia optado por sacrificar o elo mais

fraco da gestão da empresa, transformando-o em bode expiatório.

Por outro lado, os sobreviventes, os membros das equipes de socorro e os familiares das vítimas, muitos

deles impedidos de prestarem depoimento nos inquéritos, apontam que o descaso com a segurança teve um papel

essencial na produção do acidente. Através de suas vozes, o passado faz chegar até nós o eco de uma tragédia

preparada à sombra de uma produtividade que não tem escrúpulos em sacrificar medidas básicas de segurança.

Resgatar a realidade que levou ao 8 de agosto de 1956 não visa trazer à memória uma história que pertence

a um passado distante e nem prestar homenagem às vítimas.

Analisar este acidente através das palavras de quem vivia o cotidiano do trabalho permite trazer à luz as

bases sobre as quais se alicerçava o crescimento econômico do segundo pós-guerra. O progresso, cujas imagens

marcavam os noticiários e as propagandas governamentais, se sustentava na desumana exploração do trabalho que

tirava das entranhas da terra a fonte de energia que o tornava possível. Após uma década de silêncios e desmandos,

seria uma tragédia a tornar visível os paradoxos e as contradições desta realidade incômoda.

Para nós que vivemos tempos nos quais modernizar as relações de trabalho é sinônimo de precarizá-las, em

que excedentes de desempregados e fluxos migratórios incessantes levam milhões de pessoas a aceitarem situações

degradantes, a tragédia de Marcinelle é um convite a manter viva a indignação e a não aceitar como preço natural

do crescimento e do progresso que vidas humanas continuem sendo sacrificadas no altar dos lucros empresariais.

1. O acidente.

Pouco depois das 7 da manhã do dia 8 de agosto de 1956, a troca de turnos assiste à descida de 274

trabalhadores aos diversos níveis de extração. Em operação desde 1822, os poços de Bois du Cazier, no distrito

carboníferos de Marcinelle, município de Charleroi, a 70 quilômetros de Bruxelas, atingem a profundidade de 1035

metros e os planos da empresa apostam em patamares ainda mais baixos.

De acordo com o relatório de investigação do acidente, às 7.56 hs, aos 975 metros de profundidade, o

operário italiano Antonio Iannetta, encarregado das operações no elevador do poço de extração está efetuando a

troca de um vagonete vazio, vindo da superfície, por um cheio.

Seguindo os procedimentos costumeiros, ele retira a trava presa ao trilho para permitir que o bloqueio

dianteiro da roda possa ser desativado. Em seguida, usa o vagonete cheio para empurrar pra fora o que está no

elevador. Nesta manobra, os bloqueios traseiros e dianteiro descem sozinhos sob o peso dos vagonetes e

permanecem nesta posição até que a troca seja realizada.

Em seguida, se tudo corresse conforme esperado, após posicionar o vagonete cheio, Antonio levantaria as

peças metálicas que bloqueiam as rodas e recolocaria a trava na parte dianteira para impedir que o vagonete saia do

espaço a ele reservado e esbarre nas paredes do poço durante a subida.2

Completada a substituição num determinado andar do elevador, transmitiria ao pessoal em superfície os

sinais sonoros para reposicionar o equipamento até completar o carregamento dos 8 andares disponíveis.

As figuras que seguem ilustram o funcionamento do sistema de travamento.

2 Vale lembrar que o bloqueio traseiro das rodas se movimenta apenas numa única direção, da esquerda para a direita e, uma vez erguido, o próprio trilho impede que deite em sentido contrário. Por isso, à diferença do dianteiro, este bloqueio não precisa de uma trava.

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Bloqueio dianteiro com a trava presa ao trilho Bloqueio traseiro onde a trava é desnecessária.

Posição das travas quando acionadas para a subida e a descida As travas durante a troca de vagonete

Ao efetuar a troca no primeiro andar do elevador, Antonio percebe que, após sair cerca de 30 cm,

o vagonete vazio emperra, por sinal, algo bastante comum em função do precário estado de conservação

desses veículos e do acúmulo de detritos entre os trilhos no piso do elevador. Por isso, ele contorna o

poço e levanta o vagonete vazio a fim de desbloqueá-lo e puxá-lo pra fora. Enquanto agacha para

suspender as rodas dianteiras, o elevador sobe inesperadamente.

Pouco mais de 2 metros acima dele, há uma viga de ferro que integra a estrutura do elevador. O

impacto solta a viga que, por sua vez, rompe o duto de óleo que movimenta as balanças hidráulicas com

uma pressão de 6 kg por cm2, o fio do telefone, dois cabos trifásicos de 525 volts que alimentam o

guincho e os aeradores3 e o tubo de ar comprimido que aciona os marteletes pneumáticos utilizados na

extração do minério.

Esquema simplificado do local do acidente

3 O aerador era uma espécie de grande ventilador cujas pás faziam circular o ar limpo que descria do túnel de extração para o de retorno de ar e daí para a superfície. Para ter uma ideia da estrutura da mina, veja a figura na página 7.

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A mescla de óleo nebulizado, ar comprimido e faíscas provocadas pelo curto circuito dá início a

um incêndio que se alastra rapidamente. O pó de carvão em suspensão, a madeira das escoras que

sustentam os túneis e das que estão amontoadas nas galerias, o grisu liberado nos desmoronamentos

provocados pelo incêndio e as próprias portas corta-fogo, também de madeira, se juntam ao vazamento

dos cerca de 850 litros de óleo em forma de névoa, às faíscas ininterruptas do curto-circuito, ao ar

bombeado para o interior do poço para transformar a mina num verdadeiro inferno.

O incêndio invade poços e galerias, espalha uma densa fumaça pelos túneis e derrete os cabos dos

elevadores matando os trabalhadores que ficam sem saídas.

Cerca de duas horas depois do acidente, os bombeiros decidem injetar água no poço de extração

da mina. O incêndio começa a recuar, mas o vapor desprendido alcança altas temperaturas e completa a

obra mortífera iniciada pelas chamas.

Resultado: 262 mortos, dos quais, 136 são italianos, 95 belgas, 8 poloneses, 6 gregos, 5 alemães, 3

húngaros, 3 algerianos, 2 franceses, 1 britânico, 1 holandês, 1 russo e 1 ucraniano. O mais velho deles tem

53 anos e o mais novo apenas 14.

Diante do ocorrido, a primeira pergunta não pode ser outra: de quem é a responsabilidade imediata

do acidente? Ou seja, por que o elevador partiu de repente se aos 975 metros de profundidade ninguém

havia acionado o sinal sonoro que indicaria ao encarregado dos contatos com o operador do elevador em

superfície que ele podia iniciar a subida?

Aqui, encontramos os primeiros problemas. Tanto o relatório oficial, como os depoimentos

gravados em vídeo ou recolhidos nos livros apontam elementos contrastantes. Vejamos.

Oscar Mauroy, que fazia a intermediação entre os trabalhadores nos setores de carga e o

maquinista que efetuava as manobras do elevador de extração solicitadas por ele, afirma ter recebido do

nível situado a 765 metros de profundidade o pedido de enviar um elevador vazio para que pudesse

despachar os vagonetes carregados. A solicitação havia sido feita depois do recebimento de 3 cargas

seguidas vindas de 975 metros acompanhada da sinalização sonora pela qual a esta profundidade não

havia mais carvão a ser levado à superfície.

Enquanto o último elevador do nível 975 estava sendo descarregado no pátio onde o carvão seria

selecionado, Oscar teria ligado para Gaston Vaussort, que trabalhava com Antonio, para pedir se ele

podia dispor dos elevadores no próximo período. Gaston teria respondido afirmativamente e avisado que,

em seguida, se afastaria do setor de embarque do carvão, mas que, ao voltar, entraria novamente em

contato com a superfície.

Vale lembrar que, entre o início da subida com os vagonetes cheios e a descida com os vazios ao

mesmo nível de profundidade passavam de 15 a 20 minutos, tempo que podia aumentar caso o elevador

tivesse que atender outros níveis de carregamento. Durante a espera, era comum que os operários destes

setores realizassem tarefas como empurrar os vagonetes vazios para a entrada dos túneis de extração,

trazer os cheios e colocá-los em posição e assim por diante. Estas operações faziam com que se

ausentassem momentaneamente dos locais de carga para retornar antes da chegada do elevador.

De acordo com as práticas corriqueiras, para Oscar, Antonio não deveria tocar no elevador sem

aviso prévio e sem a ordem de Gaston que intermediava os contatos da superfície com ele. De fato,

estando na Bélgica há poucos meses, o italiano não entendia a língua e era incapaz de se fazer

compreender.

A versão de Oscar Mauroy deixa no ar a possibilidade de Gaston não se encontrar no local do

carregamento na hora em que Antonio começou a empurrar o vagonete vazio pra fora do elevador. O

desencontro dos dois trabalhadores, portanto, seria a fatalidade que deu origem ao acidente.

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Sempre no relatório oficial, Antonio aponta outra realidade. Ele começa dizendo que estava

trabalhando naquela função há 3-4 meses e que, por conhecer todos os procedimentos, havia sido

designado para cumpri-la pelo diretor de trabalhos da mina, Adolphe Calicis.

No dia da tragédia, ele viu o elevador parar no nível 975 com os vagões vazios e começou o seu

trabalho de sempre. Diz ter certeza de não ter dado o sinal de subida e não sabe dizer por que o elevador

saiu sem mais nem menos. No depoimento de Antonio, Gaston Vassourt, que estava trabalhando com ele

naquele momento, não acionou o aviso de partida e nem lhe falou da conversa com Oscar pela qual o

elevador deveria estar à disposição do nível 765.

Bom, temos aqui um dilema insolúvel. Gaston, o único que poderia confirmar ou desmentir os

depoimentos, morreu enquanto tentava escapar do incêndio. Apesar disso, há um elemento intrigante em

relação ao qual não encontramos nenhuma resposta. Por que o elevador com os vagonetes vazios que

deveria servir ao nível 765 desceu até o 975? A sua parada neste posto de carga não deixaria Antonio com

a sensação de que deveria proceder ao carregamento normal, bastando para isso ter 8 vagonetes cheios

aguardando o embarque? Caso Gaston estivesse realmente com ele não poderia ter tido a mesma

impressão e ficado em dúvida em relação ao que fazer, ainda mais que o ambiente barulhento da mina

tornava difíceis as comunicações com a superfície via telefone?

A esta altura, duas escolhas se perfilam à nossa frente: navegar nas especulações4 ou reconstruir a

situação da mina e dos seus trabalhadores. Optamos pela segunda possibilidade por entender que ela

permite visualizar o trabalho diário e os elementos que prepararam a tragédia.

2. O dia-a-dia em Bois du Cazier.

Na investigação de um acidente, é bastante comum que as atenções se prendam ao momento que o

desencadeou. O senso comum sugere que se o trabalhador envolvido não tivesse agido daquela maneira,

nada grave teria acontecido. Mas, permanecer nas causas imediatas, impede que sejam levantados os

motivos de determinadas ações ou atitudes e nos torna cegos em relação ao conjunto de fatores que

contribuíram para a gravidade do ocorrido.

Para não cometer este erro, devemos nos

familiarizar com o dia-a-dia dos operários a fim de

identificar as anormalidades corriqueiras (e, por isso

mesmo, menosprezadas) que elevam as chances e a

gravidade de um possível acidente.

Apesar de os direitos de migrantes e belgas

terem sido unificados em 1948, oito anos depois, o

fluxo de migrantes fazia com que muitos deles ainda

morassem nas antigas barracas dos prisioneiros de guerra destinados à extração do carvão, no que havia

sido um campo de concentração nazista nas proximidades da mina.

Erguidas ao lado de montanhas de detritos, fruto do processo de seleção e beneficiamento do

material trazido à superfície, estas moradias não contavam com eletricidade e água encanada. Para beber,

4 Algumas entrevistas citam um possível conluio entre Antonio e a direção da empresa a fim de provocar um acidente que transforme o fechamento da mina num grande negócio graças ao valor do seguro. Esta hipótese não parece se sustentar, à medida que em Bois du Cazier estava sendo construído um novo poço de extração, que a mina voltará a funcionar em 1957 e será fechada somente dez anos depois quando o uso de outras fontes de energia tornará a extração do carvão de suas instalações economicamente inviável. No extremo oposto, culpar um imigrante seria uma estratégia maquiavélica para direcionar a indignação contra um grupo de estrangeiros particularmente hostilizado. Um exemplo disso era visível na entrada de muitos bares e restaurantes de Marcinelle onde havia um aviso com os dizeres “Proibida a entrada de cachorros e de italianos”. Mas a reação da mídia, da população, das entidades sindicais belgas e europeias contraria esta hipótese.

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lavar e preparar a comida havia uma única fonte ao ar livre. Os banheiros eram externos e coletivos e,

além das precárias condições de higiene, quem precisasse deles em dias chuvosos, devia ficar com um

guarda-chuva aberto em seu interior.

Sempre envolvidos em poeira, os barracos eram insuportavelmente quentes durante o verão e

gelados no inverno. Os cerca de 300 kg de carvão gratuito que o trabalhador recebia da mineradora para a

calefação passavam longe de proporcionar um ambiente confortável.

Quem vivia fora do acampamento, estava alojado em quartos localizados no subsolo das casas ou

em alguma pousada. Também nesses casos são inúmeras as queixas relativas à constante falta de água, a

ausência de qualquer possibilidade de lavar as roupas pessoais e do trabalho, às precárias condições de

higiene e à comida de péssima qualidade que era fornecida pelos proprietários.5

Em função dos preços e dos horários dos turnos, raramente os trabalhadores faziam suas refeições

no refeitório da empresa. Durante o trabalho no fundo da mina, havia um único intervalo no qual, em

geral, comiam um pouco de pão com manteiga e tomavam o café trazido de casa.

Os efeitos nefastos desta realidade nos empregados da mineradora eram constatados e alertados

pelo hospital de Charleroi, município sede do distrito de Marcinelle. Ao tratarem as fraturas dos que

haviam sofrido acidentes de trabalho, os médicos diziam que as mesmas eram agravadas pela fragilidade

dos ossos, fruto de uma alimentação escassa e pobre em nutrientes.

Sabendo disso, quantos dias trabalhadores presos num túnel poderiam resistir à espera de socorro?

A pergunta faz sentido à medida que as equipes de resgate em Bois du Cazier esperavam encontrar

alguém vivo a 1035 metros de profundidade, o último nível a ser alcançado. Nele havia túneis que saíam

da galeria principal em direção oposta ao fluxo da fumaça e havia sido o primeiro local a ter o incêndio

extinto pela água injetada pelos bombeiros e pela que, vertendo naturalmente das paredes da mina, vinha

se acumulando após o acidente, à medida que as bombas de sucção, encarregadas de levá-la à superfície,

haviam parado de funcionar. Mas, ao chegar 14 dias depois do ocorrido e abrir a porta corta-fogo do túnel

que uma mensagem numa tábua apontava como refúgio, encontraram 49 cadáveres. A disposição dos

corpos e das lâmpadas deixava entender que haviam se organizado para resistir à espera do resgate, mas

que seus corpos haviam sucumbido. Os depoimentos levantam dúvidas

sobre as causas destas mortes que os médicos das autópsias apontavam,

invariavelmente, como asfixia.

O trabalho era organizado em três turnos: das 7.00 às 15.00; das

15.00 às 23.00; e das 23 às 7.00. Ao passar pela portaria, os operários

diziam o número da identidade funcional e recebiam uma placa metálica

com o nome e o cargo. Em seguida, se dirigiam ao vestiário conhecido

como “sala dos enforcados” pelo fato de as roupas serem penduradas

em ganchos levantados até o teto. Feito isso, passavam no depósito,

entregavam a placa com os dados pessoais e recebiam a lâmpada com o

número da identidade funcional.6 A luz que ela produzia servia apenas

para iluminar as proximidades imediatas. Por isso, entre a escuridão das

5 Em 1946, o governo belga criou um programa para construir 25.000 casas para os trabalhadores das minas. Quatro anos depois, o número de moradias, cujos preços eram acessíveis apenas aos empregados em funções qualificadas, não passava de 3.500. Em função da falta de verbas e do fluxo de migrantes que, por não ter alternativas, se adaptavam à precariedade dos alojamentos, o programa foi suspenso. 6 Além de controlar os materiais fornecidos, este procedimento servia também para saber exatamente quem havia descido nos tuneis. Vale lembrar que o reconhecimento dos cadáveres, resgatados meses após o acidente e em avançado estado de decomposição, foi feito através de pedaços de tecido, objetos pessoais ou pela proximidade da lâmpada ao que restava do corpo do trabalhador. Supunha-se que o número gravado no suporte metálico fosse o da identidade funcional do falecido. Algo, portanto, bem precário e que, até hoje, desperta dúvidas em relação à verdadeira identidade dos corpos entregues às famílias em caixões lacrados.

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galerias e o pó de carvão em suspensão, às vezes, era impossível ver um colega a poucos metros de

distância.

Quase todos os estrangeiros do quadro de funcionários nunca haviam trabalhado na mineração e

sequer sabiam o que era uma mina de carvão. Antes da primeira descida, recebiam instruções vagas que,

de acordo com vários relatos, serviam a bem pouco. Para os proprietários de Bois du Cazier, trabalhar na

mina era a única forma de aprender, e isso tinha um custo humano elevado.

Calcula-se que, por inexperiência e falta de treinamento, na região carbonífera de Charleroi, onde

estava o distrito de Marcinelle, um em cada dois trabalhadores sofria um acidente de trabalho nos três

primeiros meses de atuação nos túneis. Os dados oficiais revelam que, só em 1952, nas minas belgas,

foram registrados 39.553 acidentes nos quais perderam a vida 43 trabalhadores.7 Além da precariedade

dos registros, o baixo número de mortos se deve, sobretudo, ao critério usado no cálculo. Para não pagar

as indenizações aos familiares, as empresas de mineração reconheciam como mortes por acidente de

trabalho somente aquelas que ocorriam no interior dos túneis. As pessoas que vinham a óbito em função

da gravidade das lesões sofridas não eram computadas como vítimas nem pelas estatísticas oficiais.

Para muitos trabalhadores, o pavor e a angústia começavam no elevador. Era comum ver novatos

chorando de medo pela rapidez da descida e por sentirem-se perdidos na escuridão. Alguns acostumavam

com o tempo, outros continuariam vivendo o início do turno como um mergulho nas trevas ou um ser

sepultado vivo. Em função disso, três em cada dez imigrantes teriam rasgado o contrato após o primeiro

dia de trabalho. Mas, até completar um ano na mineradora, optar pela recusa levaria o sujeito a ser detido

pela polícia e jogado numa cela imunda e superlotada, onde ficaria sem comer até “decidir” descer

novamente na mina. Quando não era o contrato, a vergonha de voltar para o país de origem derrotado e de

mãos vazias fazia muitos se resignarem a conviver com um trabalho massacrante.

Agora, some os fatores apontados ao fato de

agosto ser um mês de férias. No dia 8, a formação das

equipes de cada nível havia demorado mais que o

esperado, pois era necessário improvisar uma solução

devido ao número menor de operários. Ainda que não

pese na causa imediata da tragédia, o fato de alguns

não estarem familiarizados com a ramificação dos

túneis e os colegas de turno pode ter tornado mais

dramática a busca de uma rota de fuga após o acidente.

Apesar das imprecisões que corrigiremos com

os comentários, o desenho ao lado, inicialmente

publicado em La Nouvelle Gazette, e reproduzido em

todos os livros sobre o acidente, ajuda a visualizar a

estrutura de Bois du Cazier.

Da esquerda para direita, sinalizamos com o

número “1” o poço que estava sendo construído desde

maio de 1954 e, uma vez terminado, alcançaria os 1175

metros de profundidade. Feita em concreto armado,

esta estrutura dobraria a capacidade de extração da

7 Dados publicados em Ricciardi, T (2016), pg. 104.

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mina, objetivo que seria alcançado em 1960, elevaria a segurança do trabalho e ofereceria mais uma rota

de fuga em caso de acidentes.8

Os poços de extração e de retorno do ar, assinalados, respectivamente com o número “2” e “3”,

eram dividido em dois poços paralelos, em cada um dos quais havia um elevador. As galerias existentes

entre a superfície e os 650 m de profundidade do poço “2” estavam fechadas com paredes de tijolos. Isso

ocorria porque, uma vez esgotado o veio de carvão, o ar limpo que descia por ele não se perdesse em

lugares onde ninguém estava trabalhando, mas chegasse aos patamares inferiores onde, a partir dos 715 m

de profundidade, era levado aos túneis de cada nível por um aerador. Além de garantir a sobrevivência, o

fluxo de ar sinalizava aos operários o caminho do poço de extração para o de retorno do ar. Do primeiro,

entrava e saía o pessoal do turno, mas, em casos de necessidade, os elevadores de ambos os poços

poderiam ser usados para deixar a mina. O fluxo de ar e os trilhos sobre os quais se transportavam os

vagonetes eram as únicas orientações disponíveis para escolher o rumo a seguir nas emergências.9

Ao chegar à entrada das galerias principais pelo poço de extração, que, à exceção do nível 1035,

eram também os pontos de embarque dos vagonetes cheios, os trabalhadores de cada nível saíam em

direção a uma ramificação de túneis que, em alguns casos, tinham entre 50 e 80 centímetros de altura.

Nestes, entravam gatinhando e, colocando a lâmpada sempre à frente da posição em que estavam,

trabalhavam o veio de carvão deitados ou agachados. Além das posições desgastantes, muitas vezes o

trabalho era realizado com o corpo nu, inteiramente molhado de suor e com os pés na água que vertia

naturalmente de alguns pontos das paredes.

Grandes ou pequenos, os túneis eram sustentados por estruturas de madeira. Do mesmo material

eram também as portas encarregadas de cortar o fluxo de ar em caso de incêndio e os poços dos

elevadores nos últimos níveis de escavação. A opção pela madeira, e não por materiais que resistem ao

fogo, não se deve à idade da mina, à medida que os níveis mais produtivos eram também aqueles em que

a extração do carvão era mais recente, e sim ao fato de que este material permitia reduzir ao máximo os

custos e o trabalho que não fossem destinados à extração propriamente dita. Além disso, vários

depoimentos de operários da manutenção afirmam que quase diariamente eram chamados para arrumar

um vazamento no duto do óleo, um cabo elétrico danificado ou uma viga que cedia. Tudo era feito às

pressas, com gambiarras e sem reparos ou mudanças estruturais. O importante era retomar a extração o

mais rapidamente possível.

Numa mina antiga como Bois du Cazier, onde 50 cavalos ainda substituíam as pequenas

locomotivas que, em outras localidades, levavam os vagonetes cheios aos elevadores, reduzir custos e

aumentar a produtividade era a fórmula para se aproximar da concorrência com lucros compensatórios.10

Entre as formas de conseguir esta façanha, havia o pagamento de pisos salariais inferiores ao custo

de vida e a oferta de ganhos adicionais tentadores a quem superasse a média dos 9 metros cúbicos de

8 Após o acidente, as equipes de socorro tentaram chegar aos níveis da mina onde se concentravam os trabalhadores utilizando este poço que tinha duas galerias entre a estrutura em construção e a existente. Na primeira delas, a 765 metros, os socorristas se depararam com uma peça de aço semelhante ao fundo de um caldeirão que havia sido chumbada para evitar o contato acidental do grisu (um composto de gás metano inodoro cujas bolsas ficam presas entre as camadas de carvão), vindo da estrutura antiga, com as explosões de dinamite utilizadas na escavação do novo poço. Na segunda galeria, a 835 metros, havia um trecho de 6 metros de cumprimento onde o túnel tinha uns 60 cm de altura, tamanho insuficiente para que um socorrista pudesse passar com os equipamentos de respiração necessários. Ao escavar manualmente quanto bastava para passar rastejando, os socorristas chegaram a uma porta corta-fogo atrás da qual havia dois trabalhadores mortos. 9 Sem ter uma noção da extensão do incêndio, de início, os engenheiros mandaram cortar a ventilação que entrava no poço a fim de sufocar as chamas. Em seguida, a mesma foi retomada, à medida que deixar sem ar as galerias seria condenar a morte os que estavam nelas. 10 Em termos comparativos, em 1955, a produtividade média anual do trabalhador em Bois du Cazier era de 235 toneladas de carvão, enquanto na S.A. de Charbonnages (a mais poderosa empresa carbonífera da região) era de 241 toneladas. Obviamente, estamos nos referindo ao peso do carvão e não ao do minério levado à superfície. Não podemos esquecer que, em média, apenas uma em cada três partes do material retirado é de carvão de boa qualidade. As duas restantes são de rochas e materiais inertes descartados no processo de seleção e beneficiamento posterior. Os dados comparativos foram por nós produzidos a partir dos totais anualmente produzidos e do número de trabalhadores empregados divulgados em Ricciardi, T (2016) pg 105.

9

escavação diária obrigatória, algo que só era possível em prejuízo da segurança. No dia do acidente, por

exemplo, vários trabalhadores morreram porque, ao tentar escapar do incêndio, foram obstaculizados por

acúmulos de escoras depositados nas galerias principais à espera de serem utilizadas. Além de alimentar

as chamas, estas madeiras dificultavam o acesso aos elevadores do poço de retorno do ar, impedindo-os

de percorrerem os 27 metros de distância entre as duas saídas. A rapidez em completar este trajeto

insignificante logo após o acidente poderia representar a diferença entre a vida e a morte para um número

maior de pessoas. Como vimos acima, também o poço de retorno do ar contava com dois elevadores, mas

a sua utilização não demorou a ser inviabilizada pelo calor e a fumaça do incêndio que, por volta das 9.30

da manhã, derreteu os cabos de sustentação levando à perda dos equipamentos.

A empresa sabia do avolumar-se do risco, mas fazia vista grossa. Por sua vez, os operários viviam

o paradoxo de aumentar o risco em função do trabalho por produção como saída para garantir a

sobrevivência, melhorar o salário para enviar recursos às famílias e, em alguns casos, apressar o acesso a

ocupações mais rentáveis e menos perigosas fora da mina.

Quanto aos equipamentos de segurança, depoimentos e relatórios revelam a ausência do que a

legislação da época estabelecia como obrigatório. Em Bois du Cazier não havia salas-refúgio com água

potável e comida disponíveis em caso de emergência, máscaras com suprimento de ar independente,

equipamentos anti-incêndio e nem mesmo portas corta-fogo de ferro. Em relação aos extintores, um dos

peritos do tribunal alegava que sua presença não alteraria os rumos da tragédia, à medida que Antonio e

Gaston não haviam sido treinados para usá-los. Esta posição, que não causava estranheza num ambiente

onde o treinamento era visto como perda de tempo, foi contestada por outro perito para o qual bastariam

alguns deles e uma mangueira anti-incêndio para molhar o ambiente circunstante e apagar o fogo em

poucos minutos, fazendo com que tudo não passasse de um susto e alguns danos materiais.11

3. Voltando ao local do acidente com os depoimentos de trabalhadores e engenheiros.

Depois de montar as peças que oferecem uma visão geral do cotidiano na mina, vamos concentrar

as nossas atenções no elevador, no sistema de comunicação com a superfície, na presença de cabos

elétricos sem proteção pendurados a 15 cm dos dutos de óleo e ar comprimido.

Apelidados de “gaiolas” os elevadores tinham 12 metros de altura e

eram divididos em 8 andares de um metro e meio de altura por um metro e

meio de cumprimento e 80 centímetros de largura. No piso de cada andar,

estavam soldados os trilhos aos quais seriam fixados os vagonetes. Na troca de

turno, eram colocadas algumas tábuas que serviam de assento aos 5 operários

que viajavam em cada andar.

As extremidades que serviam de entrada e saída de vários andares dos

elevadores não tinham grades de proteção ou algo que impedisse o choque de

pessoas e materiais com as paredes do poço. Sem dúvida, uma situação de

risco quando pensamos que a velocidade das gaiolas no transporte das pessoas

era de 30 km por hora e dobrava no caso de uma carga qualquer.

Os depoimentos são unânimes em afirmar que era bastante comum que

um vagonete batesse na estrutura do poço de extração. A falta de uma barreira na entrada e saída de cada

andar do elevador era agravada por falhas nos bloqueios das rodas em função da pressa com a qual

11 Bois du Cazier era uma “mina seca” por não ter nenhum sistema que molhasse os túneis a fim de reduzir o pó de carvão em suspensão, o que deixava a madeira usada para escorar as galerias pronta para servir de combustível na eventualidade de um incêndio.

10

haviam sido armados, da sua má conservação ou das diferentes distâncias entre os eixos dos vagonetes

transportados. A maior parte desses incidentes ocorria nos níveis de carga mais profundos, à medida que a

estrutura dos poços era de madeira e, portanto, menos estável. Apesar da frequência com a qual se

repetiam, a mineradora não tomava nenhuma providência para impedir que voltassem a acontecer.

A precariedade do elevador era agravada pelo sistema de comunicação entre o nível de carga no

subsolo e o agente de superfície que mediava os contatos com o operador dos elevadores, situado a cerca

de 30 metros da saída do poço de extração e sem acesso visual ao pátio de descarregamento. Com base na

experiência acumulada, não era difícil fazer chegar uma gaiola ao setor de carga de uma determinada

profundidade. O problema era nivelar o piso de cada andar do elevador com os trilhos do patamar de

carregamento a fim de poder efetuar a troca de vagonetes vazios pelos cheios. Para indicar a manobra

necessária ao operador do elevador, quem fazia a intermediação na superfície não se comunicava com o

subsolo por telefone em função do precário conhecimento da língua pelos imigrantes e do ambiente

barulhento da mina, mas através de um sistema sonoro bastante rudimentar.

Próximo ao poço, havia uma corda presa à qual, em superfície, estava amarrada uma espécie de

martelo. Ao ser puxada, a corda levantava o martelo que era deixado cair sobre uma peça metálica. Dois

golpes significavam descer um pouco; três golpes: subir um pouco; um golpe: parar o elevador naquela

posição. Outras combinações indicavam as operações que extrapolavam as que eram necessárias para o

carregamento do elevador e o nível de carga em que a gaiola estava sendo solicitada.

O depoimento de Angelo Galvan, um dos chefes do turno da noite, revela que qualquer pessoa de

qualquer nível podia acionar o sinal sonoro e não apenas o operário que estava efetuando o carregamento

do elevador. Já haviam ocorrido situações de falta de sintonia entre quem terminava de colocar um

vagonete na gaiola e quem dava o sinal de partida. Além de nem todos conhecerem bem os códigos, havia

trabalhadores que lançavam mão de artifícios para receber o elevador antes de outro nível ou para tê-lo à

disposição por um período mais prolongado, o que, em alguns casos, podia criar situações de risco.

A precariedade do sistema de comunicação já havia causado um incidente semelhante ao do dia 8

de agosto. De acordo com o depoimento de Stefano di Biase, em 1952, exatamente aos 975 metros de

profundidade, um rapaz de 16-17 anos acionou o sinal de subida do elevador enquanto o operador

acabava de introduzir o último vagonete. O arranque produzido pelo motor de 1600 cavalos fez o

vagonete sair da gaiola e arrancar uma viga que quebrou as tubulações de óleo e do ar comprimido, mas

sem cortar os cabos elétricos.12

Felizmente, apesar de óleo e ar saírem sem parar até que se conseguisse

avisar o pessoal em superfície, não houve incêndio e tudo se resolveu com a paralisação do sistema de

carga para os reparos necessários. A tragédia do dia 8 de agosto de 1956 prova que a empresa não havia

aprendido nada com as ocorrências anteriores, tanto no que se refere ao sistema de comunicação e ao de

bloqueio dos vagonetes, como ao aprimoramento de um mecanismo que, ao detectar um vazamento,

paralisasse as máquinas que mantinham a pressão nas tubulações.

Finalizando, vamos entender por que óleo, ar comprimido e cabos elétricos desciam da superfície,

lado a lado, sem nenhum tipo de proteção e por que o fornecimento de energia não foi interrompido após

o curto-circuito inicial. O diálogo entre os engenheiros da mineradora e os peritos do tribunal, registrado

nos depoimentos oficiais, apresenta um panorama surreal. Vejamos.

Eugene Jacquemins, engenheiro-chefe da mina, diretor dos trabalhos na época da instalação dos

cabos elétricos no poço e membro da Sociedade de Estudos do Petróleo diz nunca ter pensado que a

proximidade de óleo, ar comprimido e eletricidade pudesse constituir um perigo: “na época, os nossos

12 Em Di Stefano, P. (2011), pg. 196.

11

conhecimentos, e também os de hoje, para dizer a verdade, não levavam a pensar que o óleo

queimasse. E também na universidade ninguém havia feito estudos ou teses sobre a inflamabilidade do

óleo. Obviamente, se alguém tivesse imaginado algo semelhante, teríamos discutido para avaliar outra

solução”.13

O perito judicial contesta as afirmações do engenheiro alegando que há 55 anos se sabe que

basta uma faísca para incendiar uma névoa de óleo, que o motor a diesel é uma das tantas provas de que

isso acontece e que, além do mais, a lâmpada a óleo vem sendo usada há mais de quatro mil anos.

Em relação à não interrupção do fluxo de eletricidade nos cabos elétricos em curto-circuito, Roger

Lefévre, engenheiro e diretor da mineradora, afirma não saber que havia um único relê atuando nos

disjuntores, no lugar de dois. Os operários da manutenção (cujos depoimentos não foram incluídos no

processo) acrescentam que todos os relês do sistema elétrico estavam em péssimo estado de conservação

e não recebiam ajustes ou reparos há, pelo menos, vinte anos, o que elevava fortemente as chances de

algo dar errado em caso de curto-circuito.14

Diante dos depoimentos, o tribunal opta por conceder o benefício da dúvida aos engenheiros e

diretores da mineradora, inocentando-os de qualquer responsabilidade no acidente. A federação das

mineradoras de carvão da Bélgica (FÉDÉCHAR) recebe o veredicto com uma profunda sensação de

alívio. Em carta endereçada aos principais responsáveis de Bois du Cazier, escreve: “Lemos com viva

satisfação a sentença do tribunal de Charleroi que encerra os debates sobre o trágico incêndio na mina

de Bois du Cazier. Fazemos questão de dizer que somos particularmente felizes pelo desfecho do

processo e expressamos a vocês a nossa simpatia”15

Ao inocentar a direção da empresa, a sentença transmitia um recado claro e cristalino: as precárias

condições de trabalho nas minas da Bélgica continuariam contando com o apoio da justiça.

Publicado em outubro de 1959, quando se esperava que o acidente não passasse de uma triste

lembrança, o veredicto desperta uma onda de indignação que leva o próprio procurador do rei da Bélgica

a apoiar o recurso impetrado pelos familiares das vítimas. Como vimos no início, a sentença de 30 de

janeiro de 1961, se limitaria a transformar Adolphe Calicis em bode expiatório.

Chegamos ao fim. Ainda que não tenhamos detalhado o método seguido na análise deste acidente,

é possível perceber que o resgate do cotidiano em Bois du Cazier não permitiu analisar apenas o momento

fatal, mas compreender os elementos que faziam a mina caminhar rumo à tragédia.

Entre o material ao qual tivemos acesso, a foto do vestiário com as roupas das vítimas não sai da

nossa cabeça. Por longos dias, as peças deixadas pelos operários permaneceram à espera de quem não

voltaria a vesti-las e foram testemunhas silenciosas de uma realidade em que a vida valia menos que o

carvão.

Emilio Gennari.

Brasil. Abril de 2017.

13 Idem, pg. 179. Texto traduzido do italiano pelo autor. 14 O relê supostamente responsável pela não interrupção do fornecimento de eletricidade foi apresentado pela empresa ao tribunal, mas a peça estava visivelmente adulterada a ponto de impossibilitar qualquer conclusão. 15 Em Ricciardi, T. (2016), pg. 160. Texto traduzido do italiano pelo autor.

12

Bibliografia

BASSO, W. I due volti della morte nera – Morire di carbone in Belgio. Ed Scanatabauchi,

Padova, 2012;

DI STEFANO, P. La catastrofá – Marcinelle, 8 agosto 1956. Ed. Sellerio, Palermo, 2011;

MELCHIORRE, R. Marcinelle, una tragedia italiana. Ed Textus, L’Aquila, 2006;

MORELLI, A. Gli italiani in Belgio – Storie e storie di due secoli di migrazioni. Ed. Umbra,

Foligno, 2004;

RICCIARDI, T. Marcinelle 1956 – Quando la vita valeva meno del carbone. Ed. Donzelli,

Roma, 2016;

SORGATO, R. Cuori nel pozzo - Belgio 1956: uomini in cambio del carbone. Ed. Marsilio,

Venezia, 2010.

Sites dos principais vídeos aos quais tivemos acesso de outubro de 2016 a janeiro de 2017:

http://www.lastoriasiamonoi.rai.it/puntate/marcinelle/541/default.aspx

https://m.youtube.com/watch?v=DxcwtSgsH_k

https://m.youtube.com/watch?v=i_fkqimLY3k

https://m.youtube.com/watch?v=Mm0Tvgz7E7Q

https://m.youtube.com/watch?v=6-ua-nBSt_I

https://m.youtube.com/watch?v=0W71Lg4oKaU

https://m.youtube.com/watch?v=bXPexYsT9XI

https://m.youtube.com/watch?v=gBl1FXfvhd4