MARCUS, O IMORTAL - UM ENCONTRO COM ALBERTO AMGNUS

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MARCUS, o imortal Coelho De Moraes 1

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ROMANCE QUE ABORDA TEMAS DA FILOSOFIA EM TEMPOS DE ALBERTO MAGNO E TOMÁS AQUINAS. EIVADO DE MISTICISMO E LUTAS CONTRA OS PERSEGUIDORES CATÓLICOS.

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Direitos de Cópia para Cecília Bacci & Guilherme Giordano [email protected]

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FATECmococa [email protected] Coleção BROCHURAS & PDFs & ESPIRAIS

Revisão e Correções Professora Ana Maria Zeferino

Capa COELHO DE MORAES

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Selo Editorial FATECmococa

Registrado e Catalogado na Biblioteca Municipal e Mococa

Cidade de Mococa São Paulo 2009

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UM ENCONTRO COM ALBERTO MAGNUS

Para Rose Braga

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OPUS 1 Sim. Eu tenho mais de 800 anos de idade, mas quem me conhece não pensa dessa forma. A única coisa que me dá um ar de diferença é a bengala com castão de prata herdada de meus avós, gente escondida em tempos arcaicos, quando as nuvens da Idade nublavam ainda mais todo o conhecimento. O texto de Alberto Magnus chegou às minhas mãos por uma dessas curiosas coincidências, apesar de que eu sempre estive a colecionar objetos que montassem uma memória secreta dos eventos de nossas vidas. Sim. Os meus oitocentos e vinte e tantos anos de idade me fizeram remontar ao século 13, quando conheci Alberto. Abro tais atas com episódios daquele tempo. Ele andava pelos campos, escrevendo e pesquisando. Pena e nanquim sempre fizeram parte de sua vida, da mesma forma que ervas e púcaros de beberagens. Era incansável. Alberto Magnus Lucius, eis o seu nome completo. Não me lembro se era 1.245 ou 48. Encontrei-o quando estava em Paris e o Mestre terminava de anotar um conjunto de escritos após palestrar para Acadêmicos sobre Secreta Mulierum. Um encontro numa estalagem que rendeu provas de amizades, mas de grandes inimizades também. Algumas dessas levaram a assassinatos. Eu era jovem, não mais do que vinte e três anos, e vinha para estudar as Artes Médicas. E aí começará a história. OPUS 2 A epístola preliminar de seus trabalhos em França, se bem me lembro, são considerações acerca dos infortúnios da magia para os fracos. - Caro Marcus – assim ele me chamava – é necessário aceitar o fato de que toda a ação recebe uma reação e aqui não vai nada de novo, desde Hermes Trimegistus. - Sim, Mestre. - Portanto, toda vez que um mago interferir no equilíbrio, ou no fluxo, ou ainda interferir na organização da natureza, haverá uma reação. O mago não é onisciente. Muitas vezes o mago pensa que pode mais do que realmente pode. - Acredito nisso. - Daí as concepções errôneas de Mago Branco e Mago Negro. São valores relativos. Pois bem, caro Marcus, pois bem. Ciente disso, o mago deve se preparar mental e fisicamente para o embate, que na maior parte das vezes não é espiritual, nem espectral... mas puramente somático. O mago pode sofrer ações em seu corpo que precisa resistir. Se o corpo estiver enfraquecido a mente não agüentará o embate. Tais eram alguns dos ensinos de Alberto Magnus. Caminhávamos pelas alamedas cobertas de lama, tendo Alberto com o braço amigavelmente em meus ombros, como dois companheiros trovadores e taberneiros. E, em meio a ensinamentos, ele apontava estradas e montes e dizia de outras lendas complementares aos nossos estudos e aos tempos de perseguição obstinada... Ele falou certa vez sobre Calatin, a quem procuravam por todos o portos da Europa, lembrando de histórias antigas, portanto, postas em dúvida: “- Por aqui passou Calatin, um estranho de origem cigana, dos eslavos, que conhecia fragmentos do Oculto e os usava para obter suas vantagens”. E em seguida retornava para as aulas e direcionamentos na senda do esoterismo. Mas, na verdade, o meu respeito sempre continuava imenso pelo Grande Alberto. Naquela mesma época, um padre originário de Antuérpia, um tal master Wickerscheimer, negociou com Alberto umas palestras em Erfurt. Era tarde chuvosa e ele saiu com sua charrete protegida, partindo em viagem. Fiquei no seu cargo para ministrar aulas fundamentais aos iniciados no estudo da Pedra Filosofal – assunto em que eu era aprendiz, ainda - seguindo passos do trabalho de Tomás de Aquino. Uma obra dedicada ao irmão Reinaldo, provavelmente um dos irmãos da Ordem dos Irmãos Predicadores. Nessa oportunidade me realizei, permitindo aos alunos um estudo de importância para suas vidas, com base nas lições de Hermes, O Três Vezes Grande, O Três Vezes Mestre, O Três Vezes Mago.

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Enquanto Alberto esteve fora, pude visitar outras Escolas e participei de uma série de reuniões secretas para se decidir, em um nível de oculto, sobre o fingir-se ignorar a ambivalência do sagrado e do maldito no domínio religioso, apesar das evidências claras, mesmo no estudo do Genesis Bíblico. Essas palestras e reuniões se fizeram sob o manto da noite, pois todos estávamos fugindo dos espiões papistas. Lembro que uma jovem muito atenta aos estudos – em nosso meio o número de mulheres sempre foi maior do que o de homens - dizia: “Se a faculdade de crescer e multiplicar é uma bênção para o homem e a mulher, a primeira maldição só é dada às mulheres: Multiplicareis o número de partos” e hoje, perto de oitocentos e trinta anos, eu vejo que a incapacidade da espécie humana para regular sua proliferação é a mais terrível maldição que paira sobre a humanidade. - A mãe é um mistério – dizia Sonja, a jovem que estudava conosco. - É o aspecto sombrio da mãe, isso de sempre dar à luz, sem parar. - Conseqüências coletivas e materiais... desastres, e falta de alimento... por isso os homens nos culpam. A blasfêmia recai sobre nós e isso é cômodo. - Mas, Sonja, as civilizações tradicionais... - ... por causa da menstruação, a substância da mulher aparece como que ligada ao mundo por uma magia noturna e os padrecos nos impõem responsabilidades por uma influência espiritual malévola - ela me toca no queixo, gentilmente – o próprio Alberto é muito severo com isso. Pergunte a ele. Tive que ouvir e calar. Essas mulheres nos dão lições constantes. Apesar de serem providas de útero e serem loucas, era evidente, a cada dia uma nova diretriz brotava nas reuniões. Sonja liderava essa turma de jovens. OPUS 3 O mensageiro me trás uma correspondência. Não fosse o nevoeiro da manhã e ele tertia chegado mais cedo, como me disse, enquanto bebia água das ânforas bentas. Abro-a. É de Alberto . O Lúcius de seu nome é a luz que nos ilumina diariamente. Durante todo aquele dia molhado eu estudara o texto e o coloquei na lista de leituras da noite. Eu escrevera para Alberto no sentido de elucidar umas dúvidas pendentes, principalmente sobre o assunto das mulheres. Os homens se fingiam de doutos e pouco perguntavam. Viam que a agilidade das moças era tal que os poria para os cantos escuros da sala de estudo. Alberto respondeu: “Quanto àqueles que recebem a mulher na comunhão diária, em nossa opinião, merecem severa censura: pelo uso demasiado freqüente que possam fazer dela, eles são culpados de que a Santa Eucaristia perca o respeito que lhe é devido. As mulheres têm outra visão da coisa. De resto o desejo que as mulheres têm da comunhão é mais resultado da sua superficialidade do que de uma verdadeira devoção. As mulheres, no culto, se interessam pela devoção à grande Mãe, ou Deusa. Para elas, a Deusa continua entronizada, enquanto nós, pássaros de Maria, ficamos a adorar o que é simplesmente Maya, ou a ilusão”. Tardezinha. - Me dá aqui isso – Sonja tomou a carta de minha mão. Fiquei meio constrangido. Ela percebeu e me deu um beijo no rosto. Sonja sorria. - Gostou do que vem escrito? - É magnífico – Sonja correu para a sala e releu a carta. As mulheres exultaram. Os homens ficaram com certo ar de incredulidade. Nesse momento, as portas laterais se abriram e, após o ranger de madeiras, vimos o Bispo de Montpellier entrar com um séqüito de soldados e outros padres. Várias pessoas se ajoelharam. As mulheres não. Nem eu. - Quem é responsável pela reunião? Mestre Alberto está aqui? – a voz esganiçada do soldado ecoou na sala. Eu me aproximei. - Eu sou responsável pelas aulas e essa é uma classe de medicina, senhor. - Medicina... – falou Montpellier, enxugando o rosto molhado de suor, apesar do úmido tempo – o estudo da sabedoria de Galeno e Hipócrates, pois bem. Mas chegamos em um momento em que uma dessas... mulheres... falava... e... – olhando para mim – ... elas têm esse direito? - O senhor Bispo bem sabe que nas classes de Mestre Alberto todos são bem recebidos... inclusive... - Até o clero – disse Sonja, que não se continha. Os soldados se moveram em torno do

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Bispo que a olhou de cima abaixo. - E... o que é que liam, se é que posso saber? - Líamos uma carta de Alberto. Ele está em Antuérpia, para estudos – disse eu, tentando contornar a situação e evitando qualquer tipo de confronto. Aquela não era uma boa hora para isso. Os sinos de NotreDame repicaram. O Bispo olhou com estranheza ao repicar dos sinos. Alguns estudantes se benzeram. O Bispo não se deu por vencido e, observando os bordados da seda em seu lenço, que dobrava carinhosamente, disse: - Contem para mim... o que está escrito na carta – parecia um pedido , mas na verdade era uma ordem. Peguei a carta das mãos de Sonja, fazendo questão de colocar a moça atrás de mim, querendo torná-la invisível. Abri a voz e repeti todo seu conteúdo e, à medida que eu lia, o rosto de Montpellier se abria em sorriso. - Ah! Muito sábio o Mestre Alberto – disse o Bispo – muito sábio em colocar as mulheres em seu devido lugar. Sempre soube que seguia os ensinamentos paulinos. – Senti que Sonja se movia atrás de mim. Ela sempre foi inquieta. O Bispo dava continuidade à sua explanação como se a aula fora dele: - Haveria maior paz na Terra se não fosse a Mulher, que nos leva para o pecado e para a intolerância... - Não me parece isso o que diz o texto, se me permite o senhor Bispo. - Não, não permito nada – e os soldados se moveram novamente e me deu a impressão que levavam as mãos ao punho das espadas. Senti que Sonja segurou meu braço – Nem sei por que um jovem como o senhor recebe a permissão para ministrar aulas... Alberto deve ter se equivocado nesse ponto, ou, quem sabe, trata-se um treino... mas a mim parece claro o que diz esse texto, seguindo o ensinos de Paulo e colocando a Mulher no seu devido lugar de mãe e seguidora do pátrio poder. Nada mais! - Senhor Bispo – eu disse, mas fui tolhido novamente pelas mãos de Sonja, segurando minha capa. - Sim...? - Mais alguma coisa? O senhor gostaria de nos ensinar mais alguma coisa? – Montpellier, com um travo de orgulho crispado nos lábios olhou-me e repassou o lenço no pescoço. O seu anel episcopal brilhou suavemente contra a luz de candeeiros que tínhamos. Ele negou com a cabeça. Segundos de silêncio. Os estudantes estão mudos. Os soldados esperam. O Bispo olha para todos e fixa seu olhar em Sonja. - Evitem as reuniões noturnas... ler sob a luz do candeeiro faz mal para os olhos... e para a saúde da mente também.

Imediatamente virou-se e partiu com seu séqüito barulhento. Quando a porta bateu, respiramos com intensidade. Sonja me tomou com as mãos segurando meu rosto. - Pensei que você comentaria o sentido oculto do texto. - Montpellier nos poria na fogueira. - Amanhã conversaremos sobre isso – ela disse – com todos. Mestre Alberto enviou uma carta muito radical. Um parágrafo apenas e o texto é de uma importância revolucionária sem igual. - Nem sei se todos aqui aceitarão esse Tratado de Comunhão – eu falei – Acredito que teremos inimigos entre nós... principalmente os mais enraizados nos dogmas da Fé. - Os estudantes não foram selecionados em testes e provas intensas? – ela perguntou. - Foram – eu falei – porém, em determinados momentos o medo aflora e pode haver desistências. Na verdade, as tais provas e testes nunca são definitivos... enquanto houver estudantes e enquanto Alberto nos fornecer pérolas e novos ensinamentos... a qualquer momento pode haver quem resolva sair e... - Na verdade... as aulas são testes constantes... - ... e Mestre Alberto testa seus pupilos até o limite máximo do rompimento com os valores tradicionais... inclusive eu... - Amanhã debateremos... provavelmente teremos mudanças em nosso grupo de estudantes. Acredito que todas as mulheres estarão do lado de Mestre Alberto... e de seu lado também, Marcus. – Sonja disse com convicção expressiva. Olhei para ela. As luzes dos candeeiros e de algumas velas piscaram nos seus olhos. As pessoas se preparavam para sair. Demos os últimos cumprimentos e Sonja partiu em sua charrete ao lado de mais quatro jovens estudantes. Eu sabia que o Tratado da Comunhão traria contrariedades e nos colocaria mais visados ainda ante o poder papal, tendo Montpellier como braço de ferro.

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Dobrei cuidadosamente os escritos, amarrei-os numa bolsa de couro e olhei a noite cair. OPUS 4 A lua desapareceu. Nada se via, nem nas cidades e nem nas matas. Todos sabíamos que eram noites de Lilith atingindo seu máximo de atividade. Eu sabia que não veria Sonja durante a semana toda e, quando a visse novamente, ela estaria um tanto mudada, levemente mudada e cansada. O Sol e a Lua, o macho e a fêmea combatem. Um confronto de opostos onde cada princípio oponente detém o seu oposto. Há necessidade do uso de escudos. Durante noites e madrugadas as mulheres debatiam sobre a possibilidade de instalarem um governo feminino para o mundo. Elas mesmas diziam que o domínio do dia pertencia aos machos e o domínio da noite pertencia às fêmeas. Dois tipos de clareio: o de luz e o de fogo. Excelentes noites. E eram aquelas, antes do sumiço temporário das mulheres, excelentes noites onde ainda tivemos tempo para os debates do Tratado da Comunhão. E isso trouxe o cisma. - Quanto àqueles que recebem a mulher na comunhão... – falava para a escola, como debatedora, Sonja, com sua voz contralto bem postada - ... serão os padres ou serão os que se acoitam com as mulheres? - Certamente o Tratado de Comunhão nos fala dos aspectos do sacramento – opinou o estudante Borgausen. - Nada disso – foi a vez de Tomasina – esse texto é profano e fala da sexualidade. Àquele que recebe em comunhão... não a comunhão com hóstias, a não ser que chamemos nosso aparelho genital de animalzinho a ser imolado ao senhor macho – todos riram. Tomasina sempre teve bom humor. Borgausen fechou o semblante. Sempre foi o mais intolerante. - Tomasina está certa. A escrita é cheia de símbolos e de maneira a contentar os religiosos. Protegendo-nos de alguns insanos. Escapando de uma interpretação que nos traga problemas. Viram quando Montpellier concordou com Mestre Alberto? – falei. - E Mestre Alberto passava uma mensagem secreta. - Mas isso é um sacrilégio duplo. O assunto escrito e a maneira de fazê-los passar por um tipo de escrito da Igreja Católica – gritou Cantimpré, filho de fidalgos e herdeiro de fortunas, quase se alterando. - O que o incomoda, Sr. de Cantimpré? – perguntei. - O fato de Mestre Alberto ir longe demais. - Até onde será esse longe demais? O senhor terá uma medida da distância? - Até onde é permitido ir? – perguntou Tomasina – A distância dos homens será igual à das mulheres? - Não vou questionar a doutrina Paulina – resmungou Cantimpré. - A doutrina Paulina nos manda obedecer ao homem da casa – foi a posição de Tomasina, cobrindo-se com seu xale azul, que tinha desenhos de luas em suas várias formas e faces – Estamos propondo um governo de iguais. Excluindo o que chamamos o “homem da casa”. - A distância do homem o leva para fora. A distância da mulher adentra o corpo – replicou Sonja. - Amigos – falei – o texto é claro. Mestre Alberto não nega que o casal se ame. Ele apenas sugere que seja todos os dias para que não se perca o valor dessa comunhão. - Mas ele não pode comparar Santa Eucaristia com sexo – gritou Thorndike. - É claro que pode. Ele tem todo o direito. - O sexo como Santa Eucaristia? – foi a vez de Borgausen. - Sangue, corpo e nossa alma, ou nossa ânima, em função do amor de homem e mulher? Valorizar esse amor?–questionou Sonja. - O que os preocupa é a mistura dos temas ou o fato de usar palavras que normalmente usamos na Igreja para referendar outras idéias? Digo a vocês que as palavras não são propriedades da Igreja. Sempre usaremos quaisquer palavras para propagar ou explicar nossas idéias – expliquei. - E o desejo que as mulheres têm da comunhão é mais resultado de sua superficialidade do que de uma verdadeira devoção... – Sonja fez uma pausa na sua leitura - ... os

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senhores deveriam agradecer pelas sugestões aqui contidas... são sugestões que permitirão que homens e mulheres tenham uma vida mais saudável... - É claro que queremos a comunhão... mas não com um fim em si, pois sabemos que o produto dessa comunhão é uma possível gravidez... – esclareceu Tomasina - ... não podemos querer a comunhão como devotas, nem como se fosse a nossa condição obrigatória... queremos a comunhão, sim... mas que não seja nada profundo a ponto de nos trazer a gravidez e que não seja o tempo todo, desvalorizando o que sentimos e nos pondo em riscos de concepção... - Na verdade – opinei – a Igreja as quer grávidas, pois o controle é maior e mais eficaz. De outra forma, quanto maior o número de crianças, mais os senhores feudais terão braços para uso em suas terras... isso me parece claro... - Você está misturando tudo, Marcus, cuidado – foi a opinião de Borgausen – vá com mais calma. Política é uma cousa. Medicina é outra. Religião... - O engano é de vocês. Esses temas todos se misturam. O fato é que isso é real – eu disse e vi Borgausen, Cantinpré e Thorndike conversarem a sós e balançarem suas cabeças em desaprovação. Por outro lado, as mulheres ampliavam seus discursos e discutiam ativamente aqueles pontos. Terminamos a noite ali, naquele estado de dúvida que torna a mente um tanto adoentada, sabendo que o assunto ainda merecia muito debate e, permitindo o caminho das outras idéias que ainda viriam. A partir de então não mais veríamos as mulheres, que se preocupavam com seus afazeres da Lua Nova. Vimos a charrete de mulheres desaparecer nas brumas. Cães ladravam. Volta e meia um vulto passava sobre nossas cabeças e nos surpreendíamos pelo tamanho do pássaro. Adejava com força e desprendimento. Seriam As Aves de Aristófanes? Daquele dia em diante, os três rapazes que não concordaram com o discurso de Mestre Alberto Magnus não apareceram mais para as aulas. Não estavam no burgo, tampouco. Na taberna não se ouviu mais falar deles e da universidade, onde moravam, soube-se que desapareceram sem deixar vestígios, ou melhor, os únicos vestígios deixados eram suas roupas e livros que nos pareceram esquecidos nos quartos. A impressão é que depois daquela noite eles não teriam retornado aos seus aposentos. Recebi, um dia, uma outra carta, escrita em papel pardacento, feito em casa, dizendo que sabiam do paradeiro dos jovens. Carta sem assinatura. Especialmente naquela semana os ventos foram mais vigorosos e os animais se mostravam muito mais irritados. A poeira das ruas era tanta que impedia à pessoa andar nelas à noitinha. Minha opinião é que o mundo estava muito barulhento naqueles dias e o que eu mais ouvia eram gargalhadas esporádicas, perdidas e soltas, trazidas pelo vento... ecos de cavernas e murmúrios de árvores. Sonhava com Sonja, quase sempre. E eram sonhos cálidos. OPUS 5 A semana sem a presença das jovens era sempre um período diferente. Após a interferência de Montpellier e as idéias expostas, percebemos que Cantimpré e os outros se mostraram estranhos. Mas, naquela semana, nem a presença deles trouxe a relativa constância dos encontros. Os jovens haviam desaparecido completamente com uma certeza que caía como pedra. As notícias não eram claras. Muito boato e conversa solta dissipavam-se no interior das casas e albergues, junto a lareiras e círculos de pessoas medrosas. Todos, na verdade, sabíamos para onde iam as mulheres, mas notamos que várias vezes, em datas passadas, os três rapazes se ausentavam, no mesmo período, na semana negra, preferentemente à noite e saíam com seus cavalos para a floresta. Da última vez, segundo a carta que eu recebera, eles saíram e ladearam carroças de soldados. Ou seja, nessa vez os estudantes pediram reforço policial. A polícia do clero. Suas manobras de espionagem pareciam bastante claras. Tirando a coincidência de que se escondiam sob as sombras da Lua Negra, os alunos nunca nos convidavam para essas investidas. Em geral, a semana negra, a semana sem as mulheres, era escolhida por nós, para experiências em laboratórios. Principalmente as experiências alquímicas, bem como estudo dos atributos das ervas e substâncias naturais de vários tipos. A busca do poder oculto que faria uma substancia de se tornar curativa. Era até normal que, após a

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semana negra, as mulheres, ao voltarem, nos trouxessem vegetais, minerais e substâncias orgânicas desconhecidas para novos experimentos e testes variados. Um grupo complementava o outro, apesar de nunca perguntarmos frontalmente para onde elas iam. Isso ficava como um segredo entre nós. Sabíamos quem eram e o que eram aquelas jovens. Aumentava o fascínio e isso nos bastava. Recebi outra epístola de Alberto, também. Ele aconselhava, pedia veementemente, que tivéssemos cuidado com as idéias expostas, com as idéias que ainda chegarão e com as pessoas que ouvissem tais idéias. Ele nos estimula ao trabalho. Pede apoio ao trabalho de Sonja. Na carta há um alerta, pois há matéria publicada em seu nome que não lhe cabe nem em pensamento nem em estilo. Ele cita o “Líber Aggregationis”, por exemplo, e o “De Marabilibus Mundi” que são falsos flagrantes cujo estilo não acorda com os outros seus escritos. Na verdade, são os mais miseráveis livros produzidos pelo obscurantismo e o autor desses textos nem se deu ao trabalho de imitar Alberto. Então, ouvi o barulho de carroças entrando no burgo. - São os dominicanos – gritou Pietro de Ferrara. - Esse pessoal é de uma ordem nova e já mostra serviço – declarou Alexandrino, o menor. - São de Toulouse. Essa Ordem de Dominicanos apareceu em 15. É nova mesmo – eu disse – Fundaram a Ordem para a luta contra os albigenses. - Mas já existiam desde 1206 – exclamava LaCordaire. - Não! Engano. O que existia era a Ordem Contemplativa das Dominicanas, fundada por Domingos, o Castelhano. - Ele foi pessoalmente lutar contra os albigenses? – perguntou Pietro. - Sim. Após a confirmação da sua Ordem por Honório III, ele partiu para o Languedoc com essa missão – eu expliquei, tendo que aumentar um pouco a voz, pois uma fieira de cavalos e carroças passava sob nossas janelas, levantando poeira e afastando a população. Alexandrino, o Menor, tinha dezessete anos e uma curiosidade imbatível. Não tinha família. Desde criança vivia na Universidade e agora estava cursando conosco. Mas ainda sabia pouco. - E quem são esses albigenses? - ele perguntou. - São da cidade Albi, no Sul da França – eu falei. - São também conhecidos como Cátaros – gritou Pietro, pendurado numa escada e olhando a rua lá de cima. Desceu rapidamente quando o grupo de cavaleiros se afastou adentrando o burgo. - E por que os Dominicanos lutaram contra? – perguntou Alexandrino. - Porque – prontamente me pus a explicar – eles eram seguidores da seita maniqueísta. Essas idéias vêem de Maniqueu, de origem persa, e pregam austeridade total e proibição do casamento. As comunidades de fiéis eram dirigidas pelos considerados puros... ou cátaros. - Só isso? - Os cruzados foram liderados por Simão IV de Monfort... – e um sorriso apareceu no rosto de Pietro - ... e esse Simão, pio e católico, saqueou Carcassone e Béziers... os albigenses foram derrotados em Toulouse e Muret. - E qual é o problema dessa seita? Era tão nociva assim? – perguntava LaCordaire – Que tanto mal poderia trazer para nós? - Acontece, LaCordaire – retomei a palavra – que Maniqueu explicava a criação do mundo como que uma luta entre duas forças. A do Bem e a do Mal. Um princípio essencialmente bom simbolizado pela Luz. O outro princípio essencialmente mal simbolizado pelas Trevas – refleti um momento – ... e há quem diga que a Luz existe apenas para iluminar a escuridão... mas, mesmo para um hábil observador domingueiro, caos estava no princípio das coisas e dos tempos... escuridão ou trevas já existia desde o começo dos tempos... as trevas vêm na frente. - Mas... por que se luta contra eles se a Igreja Católica prega o mesma? - Não. Ela prega que o mundo foi criado pelo princípio essencialmente bom. Os Maniqueístas afirmam que os dois princípios são as fontes de criação do Universo – falei. - E você bem sabe como é que funciona a liberdade de pensamento em nossas terras, não é mesmo LaCordaire? – brincou Pietro de Ferrara, enquanto folheava displicente alguns livros.

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- Agora – eu completava – esta seita vem desde o século terceiro depois de Cristo, ou seja, é tão antiga quanto a Igreja Católica, que nasceu na mesma época. Portanto, há uma luta por espaço político e por domínio nas searas religiosas. - E o que os Dominicanos estarão fazendo aqui, hoje? - Isso eu não sei. Talvez alguma nova missão. Talvez algum foco albigense em Paris. Talvez... – meu pensamento se levou para Sonja e durante alguns momentos eu me deixei sonhar com a leveza da jovem - ... talvez.... procuram algum outro tipo de perturbação da fé... - É melhor retornarmos aos estudos – declarou LaCordaire, após a fria pausa – tem muito trabalho pela frente e eu não quero perder minha bolsa. Em segundos estávamos debruçados sobre a tábua de experimentos. Era um bom grupo. Sentimos a falta de Thorndike, Cantimpré e Borgausen, pois eram argutos estudantes, mas eles já faltaram outras vezes, coincidentemente durante as semanas negras, como já foi dito. Tínhamos a obrigação de manter o trabalho em andamento, apesar de tudo. Lição maior era nunca perguntar muito pela vida dos estudantes. Discrição total. Há histórias que não podem ser contadas. Há idéias que não podem ser reveladas. E o véu da noite caiu sobre nós. OPUS 6 Vento. Gritos. O povo dizia que as almas estavam libertas, mas não falavam sobre isso muito alto. Então a lua desapareceu. A lua negra se estabeleceu em nossas noites e, junto ao vento, podíamos ouvir uivos alternados com risadas e rasgos de pavor. No começo era a Iniciação. A carne nada valendo, mas mantendo seu poder de estímulo e de poder; a mente nada valendo também, a não ser que valorizássemos ao extremo os assuntos da memória e da sutileza. Lembrei da fatal história de Calatin, o cigano. Um estremecimento atingiu meu corpo e por pouco eu não caio, amparando-me nos batentes da porta de carvalho. Mas, tudo aquilo passou. A semana teve fim e pela manhã, um sol cálido abriu o céu. Muita névoa doce. O aroma da floresta era claro e definido, trazendo valores de fogueira e carne queimada.

- Aquilo que é desconhecido, embora firmemente baseado sobre o seu equilíbrio, dá vida.

Virei-me. Era Sonja e as moças. Tomasina, Clara e Beatrix. Cansadas, pálidas, um tanto alheias, tendo os rostos macilentos, o ar de quem não conseguiu dormir. Havia certo nervosismo naqueles jovens semblantes. - Boa dia, moças– vi que sentaram-se nos tamboretes e passaram a brincar com frascos – parece que vocês trazem novidades. - Marcus, estamos cansadas. - Isso eu vejo. - Então fica um pouco calado – disse rispidamente Clara. Elas se entreolharam. Algo estava errado. Ou muito certo. Talvez o errado fosse eu. Pietro de Ferrara não se conteve: - Calma, jovens. Marcus não acusou ninguém. Só perguntou. Se quiserem que fechemos nossas bocas, assim o faremos. Façamos de conta que nada ocorreu. - Marcus – era Sonja – preciso conversar com você. É minha obrigação. - A hora que desejar. - Agora, então. Fomos para a biblioteca. E o que ouvi foi estarrecedor. Ela começava com um preâmbulo místico, bem ao sabor das arengas universitárias. Aprendi com Alberto que deveria ter a máxima paciência. O que podia vir daí era pior do que perder algum tempo com a introdução. - Em todos os sistemas de religião deve ser encontrado um sistema de Iniciação, que pode ser definido como o processo pelo qual se chega a aprender sobre aquela Coroa, aquela sabedoria, o âmago desconhecido. E nós, mulheres, temos o nosso. Você sabe que quando nos afastamos na Lua Negra, vamos praticar o nosso sistema religioso... - Sei... não discuto isso. - Bom. – ela fez uma pausa contundente como que a refletir e pensar se deveria se abrir - Embora ninguém possa comunicar o conhecimento ou o poder para realizar isto que

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nós podemos chamar a Grande Obra, é, todavia, possível que os iniciados guiem outros, e nós mulheres temos que ter o maior cuidado com as nossas práticas. Temos que obedecer aos nossos dogmas e, enfim, proteger a nossa integridade, com todas as forças. – ela assim falava enquanto deslizava seus dedos sobre a lombada dos livros inúmeros. - Todos devem superar seus próprios obstáculos – eu falei. - Expor suas próprias ilusões. Suas verdades, seus temores. Porém, outras pessoas podem ajudá-lo a fazer ambos, como você vem fazendo conosco... como o Grande Alberto faz com todos nós... e os Mestres podem tornar-nos completamente aptos a evitar muitos dos falsos caminhos que não levam a lugar algum. - Isso tudo tem a ver com Cantimpré e os rapazes? - Sim... infelizmente tem – ela disse e um arrepio passou por mim. Imediatamente lembrei das palavras de Alberto: “Deve-se assegurar que tudo seja devidamente provado e testado, pois há muitos que pensam serem Mestres, os quais sequer começaram a trilhar o Caminho do Serviço, que para lá conduz”. - Estávamos em meio aos trabalhos da nossa Grande Obra. O momento da Iniciação havia chegado... a semana era importante demais... o clima propício... as mulheres estavam aptas. - Fiz menção para falar, mas ela tapou minha boca com as mãos e apertou minha boca, quase chorando que estava por dores e anseios de sua alma. - Escuta. Ouve, eu e as meninas rogamos, ouve com atenção: pois apenas uma vez a Grande Ordem bate à porta de alguém. E era o nosso momento. Não podíamos permitir nenhuma interferência. Nenhuma... Ninguém poderia conhecer qualquer uma de nós e sair ileso desse encontro. Até mesmo nós, membros da Ordem, jamais poderíamos conhecer uma a outra, até que também tivéssemos atingido a Maestria. - Os rapazes seguiram vocês – eu disse. Ela aquiesceu. Escondeu o rosto com as mãos. Balançou a cabeça como se quisesse afastar os pensamentos. - Um passo irrevogável – ela completou. OPUS 7 Eu e Sonja nos viramos imediatamente por causa do barulho. Carruagens. Fomos para o salão das aulas. Todos estavam preocupados. Segui para as janelas de vitrais venezianos e vi um aglomerado entre povo, clérigos e soldados. Traziam carroças e, sobre elas, corpos. Olhei atônito para meus companheiros. Procurei os olhos de Sonja. Ela acudia suas amigas. Beatrix tinha desfalecido, pois adivinhava algo. Pietro de Ferrara disse que iria ver o que estava acontecendo e partiu. Uma garoa leve começou a descer sobre a terra das ruas, prejudicando o caminho. Vi Pietro se aproximar e percebi que ele sentia algo como um choque. Conversou com algumas pessoas. Os cavalos relinchavam, muitos gritavam, ordens eram dadas e os soldados desapareciam pelas vielas. Quando notei que um dos militares mais autorizados apontava na direção da Universidade, desci da escada e chamei as mulheres. - Vocês têm que sair daqui. Já! - Ir para onde? – Sonja perguntou. - Agora eu não sei. Mas não podem ficar – rapidamente tomava dos objetos das mulheres e as impelia para a rua, pela porta traseira. - Explique-se, Marcus – insistiu Alexandrino, o Menor – assim sem mais nem menos? - Depois... depois... elas sabem... poucos devem saber... Um barulho terrível me pareceu quando a porta se abriu e Pietro entrou esbaforido. Seus olhos saltavam das órbitas. O cabelo em desalinho. Arfava. Tomou da água e gritou: - Estão mortos! Thorndike, Cantimpré e Borgausen, estão mortos. Horrivelmente mortos. - Do que é que está falando ?– disse LaCordaire. - Mortos. Catimpré está desfigurado, sem metade da cabeça, sem miolos... Borgausen tem perfurações em lugar de olhos... parece que a boca foi amarrada com barbante, costurada... o outro ficou sem os membros, braços, pernas... e sexo... Olhei para Sonja. Ela olhou para mim e baixou sua cabeça. O trotar dos cavalos nos acordou do pasmo e corremos em direção à rua. Saímos, atarantados, sem rumo, carregando o que podíamos pegar pelo caminho. Empurrei as mulheres para o bosque que se estendia perto. Elas corriam em desabalada carreira.

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Voltei. Quando entrava de volta na Universidade notei que os cavalos dos soldados estavam também lá dentro, destruindo tudo em redor, desde mesas a vidros e papéis. - Onde estão as bruxas? - Aqui não há bruxas. - Vou repetir! Onde estão as mulheres!? - Elas partiram há uma semana e ainda não voltaram – gritei como resposta. O soldado ao meu lado deu-me uma bofetada. - Há alguns anos, um número de manuscritos cifrados foi descoberto e decifrado por certos estudantes – a voz falava lá do fundo. Era Montpellier. Ele continuou: - Eles atraíram muita atenção, pois pretendiam derivar de certos outros que se diziam Rosacruzes. – Um sorriso lhe apareceu aos lábios: - Você prontamente entenderá que a genuinidade da afirmação nada importa, sendo tal literatura julgada por si só, não pelas fontes que lhe são reputadas. Da mesma forma que ocorre lá na rua. Os jovens estudantes, seus colegas, mortos... de maneira audaciosa... e terrível... e me parece, durante a Semana Negra. - Não sei do que está falando. - Claro que não. Deixem-no. O nosso problema é outro. Deixem os outros jovens. O nosso assunto é com as mulheres. Capitão, vá para as ruas. Eu assinarei um edito em que pese sobre as cabeças das mulheres a sentença de morte. Após partirem eu comecei a procurar. Entre os manuscritos, estava um que dava o endereço de certa pessoa em terras germânicas, por nós conhecida como Gertrud von Bingen. Teria parentesco com Hildegard, a sóror musicista? Descobrimos as cifras e cânones e citações, além de senhas salmodiadas para podermos escrever para Gertrud e, de acordo com as instruções recebidas, permitir que uma mensagem chegasse a Alberto, por caminhos alternativos. - Mas, a regra absoluta dos adeptos é não interferir no julgamento de qualquer outra pessoa, quem quer que seja – disse Alexandrino, o Menor, enquanto arrumávamos nossas roupas e nos preparávamos para partir em jornada. - Não podemos deixar as mulheres sozinhas. Temos de encontrar um meio de auxiliar as moças em sua fuga. - Elas fizeram aquilo tudo, Marcus? – perguntou LaCordaire. - Não sei dizer... Os adeptos que já tenham conhecimento suficiente para capacitar a si mesmos ou aos seus companheiros, certamente formularão um elo mágico de proteção a esses mesmos adeptos. Não concorda? - Só não pensei que tudo se precipitasse. - Nem eu... talvez nem Alberto... de qualquer forma – falei – corremos perigo permanecendo aqui. - Marcus! – Pietro me chamava – devo anunciar que eu formulei um elo mágico... um elo de proteção... Rituais novos e revisados foram emitidos, e conhecimento fresco jorrou em correntes... ou delírios e pesadelos sobre nossos... companheiros curiosos... - O que você quer dizer? - Eles levaram soldados e a milícia burguesa para a reunião das mulheres... os beneditinos... - Temos que ir embora agora! Peguem o que conseguirem... Saímos a correr.

OPUS 8 “Nós devemos passar por cima dos infelizes embustes que caracterizaram o período seguinte. Epístolas que pediam a prisão das mulheres por práticas ilícitas corriam por todo o Reino Franco. Já se provou totalmente impossível elucidarem-se esses fatos complexos. Nós nos contentamos, pois, em observar que a morte dos três colegas, por inépcia e invasão dos segredos alheios, era questão obrigatória. Os rituais foram elaborados, na noite anterior, em plena Lua Nova, apesar de bastante eruditos, em prolixo e pretensioso contra-senso: as mulheres, segundo Pietro de Ferrara, dançavam e cantavam. Muitas gritavam a olhos vistos, olhos abertos e cabelos soltos. O conhecimento se provou sem valor, mesmo onde estava correto. Rodopiavam seus corpos em torno de fogueiras e tanques onde se fervia algo. O aroma era anormal e muitas vezes Pietro estava tonto e em estado febril, ma ele tinha sua missão a cumprir. É em vão que pérolas, mesmo que não tão claras e preciosas, sejam dadas aos porcos,

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dizia o manuscrito. Quando os cavaleiros apareceram, as mulheres gritaram mais. Os cavaleiros apearam e partiram para o círculo traçado no chão. Foi como se explodissem. As mulheres gargalhavam. Ordálios de desprezo latejavam os corpos de todos. Os jovens estudantes quiseram a todo custo tomar as companheiras e sujeitá-las, sendo impossível que qualquer um ali falhasse. Candidatos inadequados foram admitidos, por nenhuma razão melhor do que a de sua prosperidade mundana. Porém, não se contava com as forças invisíveis que protegeram os corpos nus das mulheres. Resumindo. Falharam. O escândalo surgiu e, com ele, o cisma. Vieram a público os corpos destroçados dos jovens. O poder estabelecido se prontificou a sair em perseguição. Uma grande repulsa contra o estudo se apoderou daquelas cabeças. O povaréu faria o que o poder religioso mandasse. Deu-se ínicio à caça. Professores foram presos. Não nos quiseram prender, mas pediam a cabeça de Alberto. Urgia que ele se mantivesse em Erfurt, ou onde pudesse se esconder. E, para tanto, amiga Gertrud, peço que se afaste um pouco de suas flores e procure Alberto. Eu envio essa carta, com zelo e cuidados, Marcus”. - Apesar de ser erudito de alguma habilidade e um magista de notáveis poderes, como vai a sua iniciação? – perguntou-me curioso Alexandrino, enquanto lavávamos nossas roupas no rio. - Eu havia caído de meu posto original quando conheci Mestre Alberto e, então, eu estava imprudentemente atraindo para mim forças do mal, grandes e terríveis demais para que eu suportasse – levantei-me para olhar a bússola e observar as condições do tempo. - E o que fazer agora? - Agora comeremos – falou Pietro – peguei raízes e um pouco de vegetal. Há tubérculos saborosos também. - É isso. – continuei - Não sendo ainda um adepto perfeito fui, em determinado momento, eu tinha sua idade, mais ou menos, lançado pelo Espírito no Deserto, fiquei lá por sete anos, estudando à luz da razão os livros sagrados e os sistemas secretos de iniciação de outros povos e gentes. Finalmente, foi-me dado certo grau, pelo qual uma pessoa se torna o mestre do conhecimento e da inteligência, e não mais seu escravo. - Nesse caso você percebeu a inadequação da ciência, filosofia e religião; e expôs a natureza auto-contraditória da faculdade do pensamento. - Sim. Tal era a missão – peguei algumas folhas de alface e mastiguei devagar. - Fui à Bretanha, depois à terra dos Celtas e fui admitido, fraternalmente, em um templo pequeno. - Não está escrito que as tribulações serão encurtadas? – disse Pietro. Rimos, para desanuviar nossas mentes. - Daí, seguindo diretrizes de Alberto Magno, resolvi preparar todas os eventos, grandes e pequenas, para o dia em que a Autoridade fosse recebida por todos, já que ninguém sabia onde procurar por adeptos mais elevados, mas sabíamos que o verdadeiro caminho para atrair a atenção das forças era equilibrar os símbolos, as sagas, os rituais e os estudos. O templo – no caso, a Universidade - seria construído antes que a divindade pudesse habitá-lo. – Sorvi uma beberagem quente fornecida por LaCordaire. – Daí a vinda de todos vocês... mesmo aqueles jovens que morreram. - Correu-se muito risco. Preparar toda ciência e sabedoria arcanas, escolhendo apenas aqueles símbolos que fossem comuns a todos os sistemas e rigorosamente rejeitando todos os nomes e palavras que supostamente implicassem em qualquer teoria religiosa ou espiritual, era avançar demais na sabedoria de nosso tempo, não acham? – perguntou Alexandrino, o Menor, espantado com o conteúdo das informações que eu passava. - Mas havia dificuldades maiores. A língua, por exemplo – eu disse - Descobrimos que toda língua tem uma história e o uso, por exemplo, da palavra “espírito” implica na Filosofia Escolástica e nas teorias Hindu e Taoísta significados concernente à respiração do Ser Humano. - Dessa forma trabalhamos com enigmas, textos crípticos, indefinições, não é ? – perguntou LaCordaire. - Exato – eu disse. - Não, certamente, para velar a verdade ao aprendiz, mas para adverti-lo contra valorizar o que não é essencial.

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- Então, que ele não assuma precipitadamente o nome de um Deus e que não se refira a qualquer Deus conhecido, mas somente a um Deus que somente ele mesmo conheça. - E sobre os rituais? – retornou LaCordaire, me oferecendo raízes secas. - Que eles pareçam implicar em filosofia Egípcia, Taoísta, Budista, Indiana, Persa, Grega, Judaica, Cristã ou Mulçumana. Que se reflita que isto é um defeito da linguagem; a limitação literária e não o preconceito espiritual da humanidade. A noite descia e o frio surgia, mormente perto das águas de rios e lagos. Dormiríamos em breve. - A nós agora, interessa uma fuga definitiva. Se possível procurarmos por Sonja e Alberto. Cada um deles se encontra em seu próprio perigo. - E se nós formos as iscas... já pensou nisso? – perguntou LaCordaire. - Nós laboramos dedicadamente para que jamais sejamos levado a perecer sobre esses pontos; muitos homens santos e justos foram dizimados. Ninguém aceita o diferente, inda mais se são conhecedores de segredos que a natureza esconde em suas fórmulas. Assim, todos os sistemas visíveis perderam a essência da sabedoria. Para eles, nós procuramos revelar o desconhecido e, ao mesmo tempo, o profanamos. - No entanto – disse Pietro, atiçando a pequena fogueira para nos aquecer - há um tempo certo para o repouso e um tempo certo para as fugas. É hora de descanso. - Partiremos na madrugada – eu disse. - Já abandonamos lares, posses, mulheres, filhos, a fim de realizar a Obra. Resta, com tranqüilidade, calma e firmeza, abandonar a própria Grande Obra, neste momento. - Tem idéia de para onde vamos? – perguntou LaCordaire. - Creio que devemos pedir ajuda a Tomás. Tomás de Aquino. - Mas ele é dominicano. E mora longe... - Alberto também... ademais Tomás é seu discípulo, como nós... Virei para meu lado da floresta e pensei em outras possibilidades para nossa fuga. Para não levantar maior atenção sobre nós era preciso que nos escondêssemos no seio dos inimigos. Dormimos.

OPUS 9 Viajar era uma obra tumultuada. Caminhávamos lentamente encontrando chuva, lama, montes e povos que ora nos eram delicados, ora não nos queriam por perto. Muita vez foi necessário fugir de beatos que viam o demônio em nós. Às vezes outras éramos tomados como braços papais atrás de feiticeiros. Os Franciscanos nos abrigaram em acampamentos, agradavelmente. Era gente hospitaleira, que nada perguntava. Pouco se falava entre eles, na maior parte do tempo. Em outros momentos não paravam de falar, como se fossem crianças, brincando pela relva, pelos matos, nadando, o dia se tornando em festa. A ordem dos Franciscanos era nova, relativamente nova. O seu fundador havia morrido há pouco mais de vinte anos e fora canonizado em torno de 1229, ou 1230. Mas o fato é que seu exemplo se espalhou pela Europa e muitos filhos de gente fidalga se entregaram à ordem, homens e mulheres, em sua maioria jovens, criando cismas e tormentos para os familiares, portanto, a ordem tinha seus adeptos, mas era perseguida pelos ricos, principalmente. Durante meses vagamos pelas estradas e no fim, olhando para nossa aparência, já pensávamos que nos havíamos tornado franciscanos também. Nosso aspecto era terrível, entre maltrapilho e sujo. Sei que não era uma prática normal o banho, mas eu, LaCordaire, Alexandrino – o Menor, e Pietro de Ferrara sabíamos das benesses da limpeza e do asseio, que nos livraria de males e doenças. Esses e outros conhecimentos nos legavam apelidos dos mais extravagantes, desde simples bruxos a doutores e professores. Era mister alcançar alguma vila hospitaleira e mudarmos nossa imagem. A meta era permanecermos instalados e ministrar matérias comezinhas, como álgebra, filosofia... aulas gerais, assim teríamos dinheiro. Era preciso roupas limpas e um ar próspero. Para alcançar as terras de Tomás de Aquino, aluno do mestre Alberto, ainda havia tempo. Mesmo assim, uma semana depois, simpósios e debates, algumas conferências nas vizinhanças e visitas a fidalgos nos foram adequadas. A vila recebeu, então, a visita de cavaleiros. Inúmeros. Eram cruzados. A poeira levantada e o estrondo das patas dos animais assustaram a todos, porém os soldados não deram atenção a ninguém, permaneceram quietos, apearam

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rapidamente e procuraram apoio para alojamento e alimentação. Por sorte o comandante daquela tropa também era fidalgo e de boa estirpe. Em princípio, os soldados não estavam ali para desatender a gente do burgo. Ouvi que o comandante, ou chefe, um sujeito imenso, apurado, cabelos encaracolados que desciam pelo capacete, passou a gritar, quando apeou defronte à estalagem: - Had! Essa noite aqui. Quero que mandem um templário na direção das minhas tropas... já que elas não podem entrar neste burgo. - A manifestação de Nuit – disse LaCordaire - O desvelar da companhia do céu. Não sei se é um cruzado. Mas pode ser um dos cavaleiros da Ordem do Templo. - Certamente o comandante tem conhecimentos secretos. Mas, ele me parece estranho com aquele ar cinzento. Provavelmente seus seguidores também. Curioso mesmo era o aroma pútrido que, repentinamente, se instalou, sutil, no ambiente. - Esperemos que sim. Pelo menos teremos a oportunidade de conversar com pessoas que compreendem os mistérios. – LaCordaire se aproximou educadamente do cavaleiro que retirava o manto com a cruz de malta nele estampada. - Senhor, seja bem vindo. Posso invadir sua privacidade e perguntar se todo homem e toda mulher é uma estrela? O cavaleiro olhou para LaCordaire e notei que tinha olhos fundos, cinzentos, muito frios. A pele um tanto esfarinhada como se fosse pulverizada. Os outros cavaleiros pareciam do mesmo recorte e feitio. Mesmo o sorriso dado em seguida não trouxe maior calor ao semblante dele. Era certo que o cavaleiro entendera a insinuação e, respondeu: - Todo número é infinito; não há diferença. Era a senha, a palavra velada, o sinal, a possibilidade de aliança. Ele voltou-se para seus comandados e disse, em alta voz: - Senhores. A vila nos será benfazeja. Há aqui pessoas com as quais poderemos falar e saber mais de alguns mistérios. Pelo menos, os mistérios que me são permitidos saber. - Ajuda-me, ó senhor guerreiro da Thebas mística, no meu desvelar ante as crenças dos homens! – saudou Alexandrino, o Menor. E complementou a saudação com um movimentar de corpo, à guisa de humildade: - Sê tu Hadit, meu centro secreto, meu coração e minha língua! - Entremos – ele disse – falaremos melhor lá dentro. Certamente obteremos pousada por aqui. E, se nada disso der certo, seguiremos para a primeira caverna das cercanias. A noite caiu lentamente. Era uma fria noite de Setembro. A brisa cresceu e a mataria uivou arbitrariamente, enquanto os animais encontravam espaço nos currais para descanso. Em momentos o manto noturno cobriu as ruelas da vila. Cães últimos corriam desarvorados em busca de outros cães ou cuidados. No interior da estalagem a lareira aquecia o corpo de comando da soldadesca. Entre eles o cavaleiro Templário que conhecemos, chamava-se Bernard, de Clairvaux, oriundo de uma família de Toulose. No entanto Bernardo não me era um nome estranho. Ele se aproximou com um caneco de vinho quente e sentou-se no tamborete ao lado: - Há quem acredite que eu não preciso de alimento. – sentou-se pesadamente. Um aroma estranho nos alcançou. E vocês, jovens... Estão longe da sua terra, então!? - Em fuga - disse eu – Estamos procurando Tomás de Aquino. Os dominicanos nos darão algumas explicações. Tomás poderá nos ser útil. - Vocês falaram de Alberto, o Grande. Ainda vive? Onde ele está agora? - Não sabemos, na verdade. Tinha partido para Erfurt. Talvez hoje esteja em Colônia... talvez tenha voltado para Paris, talvez tenha fugido, também, não sei. - Talvez... talvez... – Bernard levou a taça aos lábios secos, ressequidos... – talvez... É... a fuga parece o destino de todos. Seu nome é Marcus, não é? Veja, Marcus! Isto foi revelado por Aiwass, o ministro de Hoor-paar-kraat. Há conhecimentos muito secretos que nem mesmo o mais sábio dos padres e sacerdotes versados no conhecimento hebraico poderá resolver. Nós podemos! Nós seremos perseguidos. Nós seremos execrados. Nós morreremos. - Sim! Bem o sei. - Entre nós, Templários, por exemplo, veja a contradição: Há grupos papistas e antipapistas. Há grupos que desejam a eliminação completa dos semitas. Há outros que apenas desejam propagar as benesses do Santo Graal – bebeu outro grande gole de vinho, como se nunca bastasse – e isso tudo nós queremos descobrir. Queremos debater, buscar, questionar... e esse é o nosso pecado... parece. - Eu entendo. E para onde cavalgam? Oriente? - Não. Estamos buscando a Igreja de Planès. Sei que há lá uma imagem de Maria da

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Catalunha e sabemos que dela jorra límpida água. É para lá que vamos. Não que isso signifique algo muito apropriado para mim e em meu estado. Mas, como clérigo, espero que tais águas me façam voltar adequadamente ao meu formato original. Percebi que algumas pessoas, poucas, que andavam pela sala de refeição nos olhavam com certa curiosidade. Bernard passou a falar mais baixo. Eu e meus amigos de fuga apenas ouvíamos, embevecidos. - A Igreja está entre os reinos de França e Espanha. No alto dos Pireneus. Há registros guardados em Perpignan, registros legais na antiga capital do Reinado de Maiorca que certo abade – Alberich, se não me engano – recebeu a construção diretamente do Rei, em 1180. Ao pronunciar estas palavras, coincidência ou não, um vento imenso desdobrou faces de janelas e abriu um par de portas. Bandeiras tremularam. Velas se apagaram e Bernard riu e disse: - É sempre assim. Efeitos especiais dos incorpóreos. Eles nos seguem. No começo nos assustamos um pouco, mas depois, vemos que a algazarra não passa disso. Janelas, ventos, um pouco de fogo... Pirotecnia. Estou acostumado, agora – e sorveu um pouco mais de vinho quente – Mas, como eu dizia, é para lá que vou. - Sei – disse eu – que os mouros estiveram na Europa e foram expulsos por Charles Martel. Você não está se referindo à Mesquita, está? - Sim. Estou. Leia isso, Marcus. Tomei o papel da mão de Bernard. Enquanto isso ele se preocupou em procurar lamparinas. Dizia precisar de um pouco mais de luz... - Luz! Eu quero luz! A minha alma precisa de luz, - afirmou categórico. Na carta eu vi escrito: - Adorai então o Khabs, e vede minha luz derramar-se sobre vós! Que meus servidores sejam poucos e secretos: eles regerão os muitos e os conhecidos. Estes são tolos que os homens adoram; seus Deuses e seus homens são tolos. Saí , ó crianças, sob as estrelas, e tomai vossa fartura de amor! Eu estou acima de vós e em vós. Meu êxtase está no vosso. Minha alegria é ver vossa alegria. Olhei para ele e perguntei som evidente ar de espanto e ignorancia: - E daí? - E dái?! Esse texto tem parecença com a maneira muçulmana de escrever, principalmente no Alcorão. Alberich, o célebre Alberich, foi quem traduziu no interior dessa Mesquita ou Igreja transformada. É sabido que os mouros não destruíram as igrejas e mudavam o interior delas sacralizando-as como Mesquitas. Os cristãos deveriam ter inveja da sabedoria de fenícios, mouros, persas e asiáticos em geral. - Sim. Eu sei, no entanto, a construção dos Pireneus é claramente cristã. O formato dela é trifoliado, querendo propor a trindade cristã, coisa que os muçulmanos não aceitam. - Claro, mas os muçulmanos são mais inteligentes e sábios... não acha? – Bernard perguntou, inclinando a cabeça e esboçando o que me pareceu um sorriso maroto – Creio que Cruzadas e essas lutas sanguinárias só estão acontecendo por que os Mouros são obrigados a se defenderem... - A culpa é dos cristãos – esclareceu LaCordaire. - Cristão vivem de culpas... mas, a culpa é mais óbvia se observarmos as ações do clero...Mais precisamente do papado – declarou Bernard – enquanto abençoam canhões e navios endereçando-os à mortandade. Acima de nós, o precioso azul celeste. O vento amainava ou era pura impressão. Cães ladravam e às vezes algo como risadas no ermo. - É o esplendor nu de Nuit; Ela se curva em êxtase para beijar os ardores secretos de Hadit. O globo alado, o estrelado azul, são meus, Ó Ankh-af-na-khonsu! – declamou Bernard, olhando para céu, despejando mais um copázio de vinho, mas, continuou, como se não houvesse mais ninguém por ali: - De qualquer forma eu quero encontrar o lugar antes que as tropas do papa nos encontrem. Sei que lá há um túmulo de um rebelde sarraceno. Esse sujeito ousou tomar uma nobre cristã para esposa. Histórias, eu sei... - Como sabe disso? - O nome dele era Othman - El Chemi. Ele e seus soldados estavam em terreno franco. Ali conheceram a mulher. Ela se chamava Lampagie, filha do Conde Eudes. Othman se encantou por ela, dizem as histórias, ela retribuiu o interesse. O conde estava perdido entre a invasão moura e sua própria incapacidade. Permitiu que o desejo de Lampagie fosse realizado. Morreram por lá. O emir declarou Othman traidor. Lampagie era minha avó. – Bernard respirou, pelo menos foi um movimento que pareceu um profundo ato de sorver os ares, - Agora sabem que o sacerdote e apóstolo andam em mim, mas

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também em mim está o curioso, o encarregado, aquele que não recebe ordens, aquele que deseja saber se é a parte de sangue mourisco que corre em minhas veias que me dá vontade de tirar fora a cabeça do papa. Othman cobrira sua esposa com um manto que lhe valeu a alcunha de Mulher Escarlate, tendo todo o poder do seu lado. - Lembro que Alberto falou, certa vez, sobre um eremitério catalão onde foram encontrados corpos cobertos de ouro e jóias. Disse que uma mulher tinha sido retirada do chão e a supunham princesa árabe. Parece que os vilões carregaram a estátua, pois o corpo está rígido e negro, e o carregam no verão para uma floresta próxima a uma fonte qualquer. Depois é levado de volta para Odeilia ou Lívia, uma antiga construção castelã, em princípio de setembro – Pietro de Ferrara nos informou exemplarmente. Bernard esboçou aquilo que costumamos chamar de sorriso e falou: - É isso. É justamente isso que me faz ir atrás. Estamos em Setembro. Essa é a época. Acredito que terei novidades então. Quando entrei para a Ordem ela já estava perdendo sua meta original. Proteger os peregrinos que iriam para Jerusalém. Mas, eu acreditava ainda nisso. Éramos os Pobres Cavaleiros de Cristo. Eu pessoalmente acompanhei aquele maluco do Francisco de Assis em sua investida ingênua com os emires, se bem que ele nem atinasse para o fato. Ele não conseguia me enxergar tsnto que estava tomado pelas inspirações divinas. Tolices! - E após? Os muçulmanos retomaram a Terra Santa, não é? - Sim. Retomaram. Aí a sede foi estabelecida em Chipre. Com administração em França. Felipe, o Rei de França, invejoso, começou a perseguir o Grão Mestre dos Templários, com medo de seu poder crescente e influência. Não queríamos obedecer a nenhum senhor Feudal. - Mas, por que isso tudo? Que eu saiba os Templários não detêm riquezas, nem bens, nem nada... – perguntou Alexandrino. Nisso uma porta bateu ruidosamente e legamos o barulho aos restos de vento ou a algum animal perdido. - Você tem razão. Agora, estamos sob perseguição constante. Provavelmente seremos excomungados. Para mim, tanto faz. Vimos que era meia–noite. Ninguém mais na estalagem. Até o dono fora se deitar, resmungando. Então uma voz e várias vozes passaram a declamar na rua. Havia um canto triste, enfadonho e soturno. Várias pessoas pediram para que viéssemos dormir, pois as almas já estavam caminhando nas ruas. Olhamo-nos curiosamente. A música em homofonia subia e descia cantando as seguintes frases:

“Queima sobre suas testas, ó esplêndida serpente! Ó, mulher de pálpebras azuis, curva-te sobre eles. Com o Deus e o Adorador eu nada sou; eles não me vêem. Eles estão como que sobre a terra; Eu sou o Céu, e não há outro Deus além de mim e meu senhor Hadit.”

- Meus soldados caminham pelas ruas, - disse Bernard. – Sairei com eles. Os olhos cinzentos de Bernard se apertaram. Ele caminhou para a noite, com aquele seu passo pesado, atendendo ao chamado, e acompanhou a multidão de pessoas . OPUS 10 Saímos, também nós, curiosos contumazes, atrás da procissão. Subimos montes, relvas, caímos em charcos, a escuridão não nos assustava, pois sabíamos de seus segredos. Os únicos problemas eram buracos e ribanceiras. O perigo estava ali. A procissão seguia com tochas e cantorias. Vislumbrávamos, na claridade de archotes, o corpo robusto de Bernard e seus soldados. Havia um aroma pestilento crescendo no ar. Eram nossas referências fugidias. O odor era muito ruim. Não se sabia de onde procedia. Mas, seguíamos céleres e percebemos que a falange se reunia no interior de uma cratera na rocha. Certamente uma gruta. Ninguém a nada nos impedia. Era como se fizéssemos parte da procissão desde seus primórdios, mas a sugerir pela roupa das pessoas, eles caminhavam há meses. Entramos na gruta e pisamos um riacho. Pietro aproveitou para refrescar pés e mentes. De lá de dentro uma voz se fazia ecoar entre pedras e flamas ardentes. - Agora, portanto, Eu sou conhecida por vós por meu nome Nuit. Para ele, me farei conhecer através de um nome secreto que darei oportunamente. - Ele quem? – perguntou Alexandrino. - Não sei – tive que responder rapidamente sem querer perder nada daquele discurso. - Posto que Eu sou o Infinito Espaço e as Infinitas Estrelas de lá, fazei vós também

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assim. Que não haja diferença feita em vosso meio entre uma cousa e qualquer outra cousa; pois é daí que nos vem a dor. Eu sou Nuit, e minha palavra é seis e cinqüenta. Então eu vi que alguém se ajoelhou aos seus pés e essa pessoa me parecia Bernard que foi, imediatamente, tratado de profeta. Ele disse: - Sou seu o profeta e seu o escravo, mas, quem sou eu, e qual será o sinal? Assim ela lhe respondeu, curvando-se, como uma tremeluzente chama de azul, pois de azul estava vestida, seus cabelos eram ruivos e seus braços tudo-tocante, tudo-penetrante, suas mãos amáveis, pareciam desprender energia e se enfiaram na terra úmida, recoberta de lodo, fácil de manipular, penetrou na terra negra, e seu corpo flexível se pôs arqueado para o amor, e seus pés macios se afastaram. Não machucando a nada que se aproximasse, ela disse: - Tu sabes! E o sinal será meu êxtase, a consciência da continuidade da existência, a onipresença do meu corpo. Bernard de Clairvaux, como um sacerdote respondeu àquela tornada em Rainha, mas antes beijou, respeitosamente, suas sobrancelhas densas, e viu-se que o orvalho da luz dela banhando seu corpo inteiro num doce perfume de suor exalava para a caverna inteira: - Ó, Nuit, fica no Céu, que seja sempre assim; que os homens não falem de Ti como Uma, mas como Nenhuma; e que eles não falem de ti de modo algum, posto que tu és contínua! Um coro escondido atrás de uma pilastra de pedras exclamou em som único: - Nada, suspira a luz grácil e encantadora das estrelas, nada e dois. - Pois eu estou dividida pela graça do amor, para a oportunidade de união – disse a ruiva - Esta é a criação do mundo, que a dor da divisão é como nada, e a alegria da dissolução, tudo. Por estes tolos dos homens e suas dores não te importes de modo algum. Eles sentem pouco; o que é, é balançado por fracas alegrias; mas vós sois meus escolhidos. – Nisso ela apontou para Bernard. Alguém deu a ela uma espada muito longa, que brilhava como prata, e ela continuou: - Obedecei ao meu profeta! Persegui os ordálios do meu conhecimento! buscai-me apenas! Então as alegrias do meu amor vos redimirão de toda dor. Isto é assim: Eu o juro pela abóbada do meu corpo; pelo meu coração e língua sagrados; por tudo o que eu posso dar, por tudo o que eu desejo de todos vós. Bernard, sacerdote e profeta, um enigma, caiu em um profundo transe ou desmaio e disse à Rainha do Céu!: - Escreve para nós os ordálios; escreve para nós os rituais; escreve para nós a lei! - Meu escriba, Ankh-af-na-khonsu – ela respondia, brandido levemente espada - o sacerdote dos príncipes, não mudará em uma letra este livro; mas, para que não haja tolice, ele o comentará pela sabedoria de Ra-Hoor-Khu-it. Mantras e encantamentos; o obeah e o wanga; os trabalhos da baqueta e da espada; estes o profeta aprenderá e ensinará. O coro voltou à carga, salmodiando e caminhando. Nesse momento pude ver que tais corpos eram descarnados, vivos, porém, descarnados, semidotados de alguma alma transitória. Deles emanava o cheiro fétido. Eles clamavam: - Quem nos chama Thelemitas. Pois ali há Três Graus, o Eremita, e o Amante, e o homem da Terra. Faz o que tu queres, há de ser tudo da Lei. - Deixai esse estado de multiplicidade – ela completou - multiplicidade limitada e desgosto. Assim com teu todo; tu não tens direito senão fazer tua vontade. Faz isso, e nenhum outro dirá não. Pois vontade pura, aliviada de propósito, livre da sede de resultado, é toda senda perfeita. Tremenda quantidade de sinos começou a badalar. Em princípio não sabíamos de onde vinham, mas percebemos depois que outros seguidores, como sacerdotes, carregavam tais sinos e os badalavam sem cessar. - Nada é uma chave secreta desta lei. Sessenta e um os Judeus a chamam; Eu a chamo oito, oitenta, quatrocentos e dezoito – a ruiva clamou em altos brados, olhos abertos, pernas abertas, a espada girando sobre seus ombros. De repente ela parou e olhou fixamente para Bernard que estava ajoelhado, banhado em suor: - Meu profeta é um tolo com seu um, um, um; não são eles o Boi, e nenhum pelo livro? Ab-rogados estão todos os rituais, todos os ordálios, todas as palavras e sinais. Ra-Hoor-Khuit tomou seu assento no Leste ao Equinócio dos Deuses. Saímos todos. A reunião tinha chegado ao fim. Desligou-se tudo como se nada

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ali houvesse. A escuridão tomou forma. Movimento e barulho somente. Lá fora notamos que os descarnados sumiam nas trevas, nas brumas, entre as folhas, em silêncio e enquanto tal se fazia Bernard reapareceu, lépido como sempre, com seu tamanho, e sua roupa de guerra. - Viram tudo? – perguntou. - Sim – prontamente respondi. - É o seguinte: Há quatro portões no palácio que precede a Igreja dos Pireneus; o chão desse palácio é de prata e ouro; lápis-lazúli e jaspe estão lá; e todos os aromas raros; jasmim e rosa... mas, também estarão por lá os emblemas da morte. Por enquanto esses emblemas são o anel episcopal e a coroa de Felipe. Eu devo entrar com minhas hostes por partes ou de uma só vez, atravessando arrevesados portões. Devo ficar de pé sobre o chão do palácio. Se não cumprir à risca o ritual – e Bernard deu uma olhada para dentro da gruta – se não fizer como ela deseja ou espera, então, devo receber os terríveis julgamentos de Ra Hoor Khuit! Concordei em parte com Bernard. Mas tínhamos nosso caminho. Ele seguiria o dele. - Não posso me comprometer a esperá-lo nem do Leste nem do Oeste. Todas as palavras são sagradas e todos os profetas verdadeiros; salvo apenas que eles entendem pouco; resolvem a primeira metade da equação, deixam a segunda incompleta. Mas, eu espero, Bernard, que você tenha tudo na clara luz, e algo, apesar de nem tudo, na escuridão, que sempre é bom reservar algo para depois. Multidão de cavalos apareceu. Eram os soldados trazendo seus animais e a montaria de Bernard. Ele gritou, esporeando o corcel, que se ergueu nas patas traseiras: - Invocai-me sob minhas estrelas! Vou atrás do Amor, através da história de Othman e Lampagie, minha ancestral... é a lei, amor sob vontade. Que os tolos não confundam o amor; pois existem amores diferentes. Existe a pomba, e existe a serpente. Escolha bem, Marcus! A tropa partiu rapidamente. Desapareceram na noite. - Acendamos incenso – disse eu para os amigos – escolhamos os de madeiras resinosas e gomas; não haverá presença de sangue ali. Fomos testemunha de uma noite sagrada. - Você acha que devemos retornar para a estalagem? – perguntou LaCordaire. - Não. É melhor que continuemos nossa estrada. Ninguém entenderia e não teríamos o que explicar. Caros amigos, anotemos. Pietro, abre o livro e escreve essas minha citações. São conclusões. Podem ser manifestações. Pietro tomou de folhas dobradas e um carvão que sempre trazia nos bolsos de algodão. - Meu número é 11, como todos os números deles que são de nós. A Estrela de Cinco Pontas, com um Círculo no Meio, e o círculo é Vermelho. Minha cor é preta para o cego, mas o azul e o dourado são vistos por quem vê. Também eu tenho uma glória secreta para eles que me amam. - Ei! – disse Alexandrino, com ar de alegria e atenção positiva – parece aula de Alberto. Sorri e continuei: - Mas amar-me é melhor que todas as coisas: se sob as estrelas noturnas no deserto tu presentemente queimas meu incenso diante de mim, invocando-me com um coração puro, e a chama da serpente ali, tu virás um pouco a deitar em meu seio. Por um beijo, tu então há de quer dar tudo; mas quem quer que dê uma partícula de pó, perderá tudo nessa hora. Vós reunireis bens e provisões de mulheres e especiarias; vós vestireis ricas jóias; vós excedereis as nações da terra em esplendor e orgulho; mas sempre no amor de mim, e então vós vireis à minha alegria. Eu vos ordeno seriamente a vir diante de mim num manto único e coberto com um rico adorno na cabeça. Eu vos amo! Eu anseio por vós! Pálido ou purpúreo, velado ou voluptuoso, Eu, que sou todo prazer e púrpura, e embriaguez no sentido mais íntimo, vos desejo. Colocai as asas e elevai o esplendor enroscado dentro de vós: vinde a mim! - Esplêndido! Mas que conclusão se pode tirar? - Se você se prostrar a mim eu darei todo o reino da Terra. E a resposta é...? - Não!! – todos gritamos em alegria. - Bernard que me perdoe, mas, a manifestação de Nuit está por um fio – eu disse. Arregaçamos nossas mangas. O sol não tardaria. Vimos que os montes se pintaram de vermelho e pássaros entoaram suas ladainhas matinais. A madrugada anilada se erguia como um palácio. Lá, bem longe, uma grande poeirada se erguia na

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estrada, atrás dos montes. Eram os soldados de Bernard em desenfreada correria. Sem mais demoras reentramos na gruta. Era nossa vez, agora.

OPUS 11 Vasculhamos inteiramente os recônditos das cavernas e nada encontramos a não ser roupa velha, escudos e tochas apagadas. O cheiro péssimo ainda perdurava por ali. - Ouçam, amigos, que são pessoas de visão! – disse eu, enquanto ouvia minha voz ecoar nas solidões da gruta – Há, aqui, muita pena de dor e remorso. São eventos para mortos e para quem está morrendo. - Por que diz isso, Marcus? – perguntava LaCordaire. - Estas são mortas, estas pessoas; elas não sentem. Nós não somos nem existimos para o pobre e triste: os senhores da terra são nossos parentes. Aquela procissão de mortos sinaliza para guerras e combates sem fim. Sinaliza para doenças e desavenças. É de se perguntar: Deve um Deus viver num cão? Não! Eles se regozijarão, nossos escolhidos: quem se lamenta, infelizmente, não é nosso. - O que será nosso, então? – gritou Alexandrino, com um leve tremor na voz, angustiado pela expectativa.

- Beleza e força, gargalhada e langor delicioso, força e fogo são nossos– respondi prontamente, não sem refletir vagamente sobre as alianças que o mundo visível fazia com o mundo invisível. - Nós nada temos com o proscrito e com o incapaz – falou Pietro, como que ameaçando as entidades espirituais com sua voz estentórea. - Que eles, nossos perseguidores, morram em sua miséria. Pois eles não sentem. Compaixão é o vício dos reis: pisa sobre o desgraçado e o fraco: Felipe V está se desfazendo em vícios. - Mas a lei do forte está conosco, Pietro: esta é a nossa lei e a alegria do mundo. O corpo do Rei deve dissolver-se, ele permanecerá em puro êxtase para sempre se for possível e terá de morrer. Conclamemos agora. Ajoelhem-se, amigos. Todos começamos a ecoar cânticos e novas elegias com as palavras: Nuit! Hadit! Ra-Hoor-Khuit! O Sol, Força e Visão, Luz, para os servidores da Estrela e da Serpente. Das águas a borbulha se fez presente. A caverna pareceu mergulhar em sombras densas para, em segundos, reanimar-se em neblinas doces e a cheiro de malva e incensos. Do centro do lago uma cabeça de mulher, como a da ruiva, apareceu e falou, se apresentando: - Eu sou a Serpente que dá Conhecimento e Deleite e glória brilhante. Nossos corações se animaram com embriaguez. Ela continuou: - Para me adorar, tomai vinho e drogas estranhas das quais Eu direi ao meu profeta, e embebedai-vos deles. Nesse momento, lembrei-me de Bernard com sua caneca de vinho quente. Eles não se feriram em nada. A mulher estava em êxtase e continuava: - A exposição de inocência é uma mentira. Sejam fortes, ó homens! desejem, aproveitem todas as cousas de sentido e êxtase: não temais que Deus algum vos negue por isto. - Vejam! – gritei - estes são graves mistérios; pois há também amigos meus que são eremitas. Agora, será difícil encontrá-los na floresta ou na montanha; certamente o faremos em camas de púrpura, acariciados por magníficas bestas de mulheres com extensos membros, e fogo e luz em seus olhos, e massas de cabelos em chamas em volta delas: é lá que os encontraremos. Encontraremos esses amigos e rebeldes no governo, em exércitos vitoriosos, como é o caso de Bernard de Claivaux. - Cuidado para que um não force ao outro, Rei contra Rei! – ela disse em alto brado. Amai-vos uns aos outros, com corações ardentes; nos homens baixos, pisai no violento ardor de vosso orgulho, no dia da vossa ira. Vós sois contra os monarcas, Ó meus escolhidos! Eu sou a secreta Serpente enroscada a ponto de saltar. Se eu levanto minha cabeça, Eu e minha Nuit somos um. Se eu abaixo minha cabeça e lanço veneno, então há êxtase na terra, e eu e a terra somos um. Mas vós, escolhidos, levantai e acordai! Das águas surgiram colunas brilhantes. Muita água levantou de seu leito e escorreu molhando nossos pés. Harmonias sonoras sempre se prontificaram a ecoar pelos ambientes, ornamentando as vontades sacramentais. Muita vez nos entreolhamos paralisados pela magnificência dos brilhos purpúreos. Trombetas silenciosas ressoaram, sem alarido, mas com magnífica harmonia, com timbres cálidos e tranqüilizantes. Música e ardores da alma sempre estiveram juntos. - Que os rituais sejam corretamente executados com alegria e beleza! Há rituais dos

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elementos e festas das estações. Chamem o povo para uma festa... Uma festa para a primeira noite do Profeta e sua Noiva! Anotem que eu quero uma festa para os três dias da escritura do Livro da Lei. Entendam que eu desejo outra festa... uma festa para o Supremo Ritual, e uma festa para o Equinócio dos Deuses. Ouvindo tudo aquilo, Pietro passou a escrever em seus papéis estudantis, rápido, valendo-se da experiência de escriba. O que ele havia perdido contava lembrar após, apoiando-se na memória dos amigos. - Uma festa para o fogo e uma festa para a água; uma festa para a vida e uma festa maior para a morte! Há morte para os cães. Não te apiedes dos caídos! Eu nunca os conheci. Eu não sou para eles. Eu não consolo: Eu odeio o consolado e o consolador. Eu sou única e conquistadora. Eu não sou dos escravos que perecem. Sejam eles danados e mortos! Amém. Repentinamente, um azul resplandeceu sobre ela e contrastou bravamente com seus cabelos avermelhados, tornados em tijolo vivo, e havia ouro na luz daquela noiva: mas o fulgor vermelho estava maior em seus olhos; eu via reluzentes lentejoulas, entre púrpura e verde, coruscando na superfície de sua pele. - Púrpura além da púrpura: esta é a luz mais alta que a visão – disse eu, embevecido ante a visão da mulher. - Há um véu: e esse véu é negro – disse LaCordaire, sempre ressabiado. Mas seguiu em sua explanação, em sua especulação sobre o que via e ouvia: - É o véu da mulher modesta; é o véu da lamentação e o pano da morte: nada disto parece ser dela. - Arranca esse espectro mentiroso dos séculos – gritou Alexandrino: - Não esconda os vícios do mundo em palavras virtuosas. - Estes vícios são meu serviço – disse ela, bruscamente saindo do transe, olhando para Alexandrino - Vós fazeis bem, e Eu vos recompensarei aqui e para o futuro. Atenta pois receberá a visita de súcubos. Então ela se virou para mim e sua conduta se tornou lânguida, porém me pareceu honesta, gentil e solidária: - Não temas, ó profeta, quando estas palavras forem ditas, tu não ficarás triste. Tu és enfaticamente meu escolhido: e abençoados são os olhos sobre os quais tu olhares com alegria. Mas eu te esconderei sob uma máscara de tristeza: aqueles que te olharem temerão que tu sejas caído: mas Eu te ergo – ela levantou os braços – Eiu te erguerei durante séculos. De repente, ela ergueu os braços ainda além e pássaros cristalinos voaram pela abóbada da gruta em gorjeios inusitados. Ela gritava para pessoas que estivessem além, como se se tratasse de mensagem que devesse atravessar véus: - Ide embora! Todos, zombadores; apesar de vós rides em minha honra, vós não rireis longamente: então, quando vós estiverdes tristes, sabei que eu vos abandonei. Os pássaros gritavam muito e os ecos retornavam como cachoeira. Enquanto ela voltava para o seio do lago, imersa em uma labareda que rasgava os espaços, eu e os companheiros de jornada nos dirigimos, entre as pedras, para a abertura da gruta. Exaustos nos deitamos na relva coberta de orvalho. Havia muito que pensar sobre a experiência da manhã. No entanto era fácil concluir que havia uma conspiração que permeava as dimensões do espaço. Gente normal, vislumbradores, entidades variadas e seres inadmissíveis ao conceito humano teciam relações para uma ação na superfície da Terra, na superfície visível da vida. - Sim! não acredito em mudanças – eu falei, após alguns instantes - Os reis da terra serão Reis para sempre: os escravos servirão. Tenho para mim que ninguém há que será derrubado ou levantado. Tudo prevalecerá como sempre foi. - Porém, há mascarados que serão servidores – LaCordaire disse, entre haustos e grandes respirações - Pode ser que um mendigo qualquer seja um Rei. Um Rei pode escolher sua vestimenta como ele quiser: não há teste certo: mas um mendigo não pode esconder sua pobreza. - Cuidado – foi a vez de Pietro de Ferrara. Todo o cuidado é pouquíssimo, então. As relações com as pessoas levarão a cuidados extremos. Quem sabe se, por acaso, não há um Rei escondido? Quem sabe mesmo entre nós? - Você fala assim, de brincadeira? - perguntou Alexandrino - Se qualquer um de nós é um Rei, ninguém poderá feri-lo. - Portanto, golpeia duro e baixo – LaCordaire afirmou, sem antes limpar o suor do rosto. - Você está cansado, LaCordaire... estamos todos cansados – falei – e, devo dizer que na

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voluptuosa plenitude da inspiração; a expiração é mais doce que a morte, mais rápida e risonha que uma carícia do próprio verme do Inferno! Pietro! por enquanto escreve... é melhor escrever palavras doces para os Reis! Seja quem for. - É! Tem razão – ele respondeu - Há ajuda e esperança em outros encantos. A Sabedoria de Alberto diz que devemos ser fortes! Podemos agüentar ardores de alegria. Podemos refinar os êxtases! Mas é preciso exceder! Exceder! O encontro final será sempre com a Morte. - Com a Morte?! – perguntei. - Sim! A Morte! Morte! Você desejará ardentemente a morte. Mas a Morte será proibida para você. Quando ele terminou, olhei e vi que estavam dormindo, ressonando e isso me deixou em estado de alerta pois acreditava piamente que era a voz de Pietro que dizia as últimas frases. Ele falara claramrne mas já não estava entre nós. Alguém falara por ele. Mas eles não estavam presentes. Cansados, dormiam a sono solto. Fui para perto de Pietro de Ferrara e peguei seus apontamentos. Ali se escrevia claramente: “4 6 3 8 A B K 2 4 A L G M O R 3 Y X 2 4 8 9 R P S T O V A L” uma sucessão de letras e números. “O que significa isto?”, perguntei-me e pus-me a folhear as anotações. Encontrei dados interessantes, mas nada do que a mulher falara no lago. O texto era outro e dizia: “Levanta-te, pois nenhum há parecido a ti entre os homens ou Deuses! Levanta-te, ó meu profeta, tua estatura ultrapassará as estrelas. Eles adorarão o teu nome, quadrado, místico, maravilhoso, o número do homem; e o nome de tua casa 418. O final do esconder de Hadit; e bênção & adoração ao profeta da amável Estrela!” Claro estava que muito daquilo era incompreensível, se bem que eu me lembrava de que a mulher ruiva chamou Bernard de profeta, também. Todo aquele texto secreto me parecia digno de observação e terminava com as palavras “Abrahadabra; a recompensa de Ra Hoor Khut é vossa.” Abrahadabra sempre foi uma palavra para destruição. OPUS 12

Quatro meses se passavam, entrávamos no novo ano. As primeiras notícias, em janeiro, que chegavam de longe, contavam histórias de duas hostes de guerreiros desabalados pelos montes e charnecas. Uma das hostes exalava um pesado fedor por onde passava e acreditavam os povos que se tratavam de mortos ambulantes, incluindo suas montarias. A outra trazia em grita absurda pelos vales o nome de Calatin, que também chamavam irmão do Cão. Víbora. Assassino. Tinha a fama de invadir povoados e destruir tudo, levando as mulheres para prostituir e os garotos para a escravidão. Com mensageiros e outros auxílios tivemos a oportunidade de saber que Tomás estava em Aquino, na casa paterna. Para lá fomos, então. Foi com ânimo redobrado e imensa alegria que o encontramos a ler, após sermos atendidos por seus serviçais e seus parentes. Tomás abriu os braços e nos recebeu a todos de uma única vez. - Que Deus esteja com todos vocês, meus caros. Discípulos de Alberto são meus irmãos. Como foram de viagem?

As primeiras palavras transcorreram leves, nos apresentamos, falamos das últimas experiências; Tomás nos instou ao descanso e na manhã seguinte, após as orações obrigatórias junto a seus parentes, Tomás nos recebeu na biblioteca. A família de barões tinha interesse na cultura sagrada e profana e ficamos abismados com as obras, manuscritas por doutos de todos os tempos, expostas nas fortes armações de madeira que eram as estantes da sala. Um pequeno fogo aquecia o ambiente. - Então os senhores não sabem onde o mestre se encontra? – ele perguntou. - Sim! É correto. Os braços da Santa Inquisição parecem se ampliar a cada dia. Dessa vez o alvo foi a Universidade de Paris, onde você estudou – respondi. - Onde tive a oportunidade de conhecer mestre Alberto. - Mas há notícias de que ele saiu de Erfurt na direção de Colônia. Lá ele ensina e funda classes. - Sei que os tempos estão mudados – disse Aquino - quando estudava em Paris o grande problema era Aristóteles, de cujo ensinamento setores da Igreja tentavam nos afastar. - Mas o nobre Tomás – dizia Pietro – também foi vítima de certa perseguição. - Sim. Os estudos sobre o conhecimento de Gregos e Árabes... um certo confronto com as posições Cristãs, o pensamento Aristotélico, enfim, trouxeram problemas, mesmo que

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eu fosse contra os averroístas, como realmente sou... Ou, melhor, tenho uma outra visão sobre os assuntos. Por isso estou aqui, em retiro na casa paterna. - E os Dominicanos? - Eles não sabem de nada e nada opinam. É raro ver um dominicano com um livro nas mãos. E minha idéia é me dedicar ao ensino. Aqui em Roccasecca eu posso ficar tranqüilo e estudar mais. Alberto me deu graves incumbências e uma delas é destrinchar as idéias sobre a existência e a bondade de Deus. A antiga contenda entre Fé e Razão. Estou dando do meu melhor sobre o assunto. - E você tem ponderado que... - Que não pode haver conflito algum entre Fé e Razão. – Tomás cortou a fala de Alexandrino – para Santo Anselmo... – e Tomás tomou fôlego levando o olhar para o céu que via através da janela imensa – ... para Santo Anselmo, Deus é perfeito e deveria ter como um de seus perfeitos atributos o da existência. Mas eu discordo. Podemos definir Deus como ser perfeito, mas isso não implica sua existência. - Mas é uma definição... – disse Alexandrino. - Sim... mas uma definição é apenas uma idéia. E nada garante que uma idéia possa existir na realidade. - Mas Aristóteles indica dizer que nada se move por si. E o mundo é dotado de movimento – afirmei. - Exato caro Marcus, por isso eu afirmo que a causa primeira é Deus. O mesmo raciocínio vale para a causa em geral, não acham? – respirando profundamente – no entanto eu ainda estou pensando sobre isso e... também sei que a via de pensamento de vocês é a linha velada que tanto interessava a mestre Alberto, não é mesmo? E... - ... você, como Dominicano, aceita isso sem questionar? – foi a impetuosa pergunta de LaCordaire. - Eu prefiro me calar. Os dominicanos são os que preservam os cânones e saem em busca de hereges. Eu não aceito isso. Há interesse de que essas ordens se enfronhem nas Universidades para que o papado tenha total controle das idéias... - No entanto nada disso adiantou. Pelo menos por ora... é só ver o próprio Tomás e ver mestre Alberto Magno... – falei. - Mais ele… do que eu... com maiores problemas... e sempre perseguido... se mestre Alberto não fosse dominicano já estaria preso, essa é que é a verdade, caros amigos – disse Tomás – eu mesmo fui acusado por Boaventura de dialético. Ele dizia que eu e Alberto e outros prelados éramos do grupo dos dialéticos: “Especular primeiro, devoção depois” – todos rimos – e tudo por culpa do aristotelismo. - De acordo com o Boaventura – eu disse – filosofia e razão só se justificam como itinerário da alma até Deus. À razão compete achar no mundo sensível os vestígios das idéias perfeitas. - Quem sabe? Pode ser que esteja certo. Quem sabe? - Tomás – mudei o curso da conversa – por que os Dominicanos? Por que a vida religiosa? - Bem, amigos – e ele nos fez sinal para nos sentarmos nas poltronas de couro – quando eu tinha cinco anos meus pais me localizaram no Monastério beneditino em Monte Cassino. Deixei esse Castelo de Roccasecca direto para os braços do meu tio, que era abade, então. - Aí veio a guerra... - Sim... Monte Cassino se tornou palco de batalha entre as tropas imperiais e o exército papal. Minha família me fez chegar a Nápoles. Lá conheci os dominicanos. Houve um rompimento com minha família para me tornar frei. Depois disso, Paris. - E o encontro com Alberto. - Exato.

OPUS 13

Passamos muito tempo no castelo de Roccasecca. Estudamos com Tomás e visitamos os estábulos da região. Tivemos acesso a livros importantes e a toda obra de Aristóteles, inclusive aos livros proibidos pela Igreja, algumas obras salvas do incêndio por Guilherme de Baskerville, e descansávamos das lides intelectuais colhendo frutos nos pomares aldeãos. O período de meditação e confinamento a que nos restamos foi, em primeiro lugar, em respeito à hospitalidade de Tomás e, em segundo momento, por opção para que nossas cabeças pudessem repassar os acontecimentos insólitos até

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aquele momento. Foi nesses momentos que a imagem de Sonja retornou ao meu espírito e minha preocupação natural se avivou.

Perguntei a Tomás da possibilidade de obter informações sobre ela. Ele prometeu que entraria em contato com uma série de mensageiros e amigos de outras paragens. Muita gente passava por Roccasecca, eu bem notei, e através desses viajantes tentaríamos obter notícias. - Como eu disse – Aquino afirmava, tentando se esconder do sol daquela manhã sob uma macieira imponente,– a revelação Cristã e o conhecimento são facetas de uma verdade única. E não há conflito de uma com a outra. - Os seres humanos sabem alguma coisa quando a verdade é imediatamente evidente – eu dizia, argumentando claramente. - Claro. Mas essa verdade pode se fazer evidente se se apelar, imediatamente, para verdades evidentes – ele replicava. - Acreditam em alguma verdade quando aceitam a verdade advinda de autoridades – dizia LaCordaire – e se esquecem da potencialidade individual de descobertas pessoais. Não acha? - Sim. Devo admitir que esse ousado pensamento tem seu valor, porém – fez uma pausa contundente – ele está excedendo os limites da nossa época. - Em outras palavras – entrava na conversa Pietro de Ferrara, que até aquele momento se limitara a comer as maçãs colhidas e tomar suas anotações – o pensamento herético deve ser impedido imediatamente. Não deve vir a público. - Sim. Cá entre nós, sim. Principalmente se vier de leigos ou estudiosos de ciências... digamos... misteriosas, com sabor secreto evidente... – Tomás completou – preocupação que os amigos devem ter diariamente. A Fé religiosa é a aceitação das verdades advindas da revelação divina. Esse é o pensamento que vigora... claro é que Alberto terá mil argumentos para contrapor a tudo isso... mesmo que dominicano. Aliás, o ser dominicano permite que Alberto fale o que quer, por enquanto... - É como essa maçã que hoje você come, Pietro. Um dia ela tirou os humanos do Jardim do Eden, hoje você se alimenta dela, inofensivamente, mas, amanhã, pode dar algum boa idéia para alguém... – falei. - Só se atingir a cabeça da pessoa – brincou Tomás. - A despeito do fato de que isso parece fazer com que o conhecimento e fé sejam dois reinos completamente diferentes... – Alexandrino retomou, curioso. - Sei que há coisas nas revelações divinas que podem ser conhecidas em sua essência pelo vulgo... pelas pessoas comuns... assim, eu diria, serão “preâmbulos da fé”, incluindo a existência de Deus e de certos atributos seus. - Entrariam aí a imortalidade da alma humana e princípios morais? – perguntei. - Creio que sim... - E os princípios morais não teriam variação de povo para povo ou os cristãos se outorgam autoridade máxima nessas questões de céu e almas e mensageiros dos céus? - Creio que sim... a primeira assertiva me parece correta, mas, saibam, eu vou defender minha batina dominicana até o fim... em termos de idéias... é claro... mas sei que mouros e muçulmanos são também sábios e detêm uma parcela poderosa da sabedoria do mundo. No entanto... – Tomás aproveitou para sentar-se sobre um poderoso tronco caído às margens do riacho. Ao longe camponeses trabalhavam e enviaram um aceno para nosso grupo, ao que Tomás de Aquino respondeu, amável – ...no entanto, eu dizia, o resto daquilo tudo que foi revelado e está incompreensível até para nós estudiosos eu chamarei de... “mistérios da fé”. - Por exemplo... – Alexandrino perguntou. - A Trindade, por exemplo. A encarnação de Deus em Jesus Cristo. A ressurreição e assim por diante. - Somente com o poder econômico e militar que a Igreja tem ela poderá enfiar isso na cabeça das pessoas, assim, sem mais nem menos – disse eu – e mesmo assim, levará muito tempo para que esse tipo de idéias se torne algo natural. Encarnação de Deus em Jesus? Isso é muito difícil de entender... me parece o velho uso de tomar sabedoria pagã e transforma-la em sabedoria cristã. - Claro. Por isso o chamo de “mistério da fé”. Ninguém entende, ninguém compreende... - Mas serve para que a igreja mantenha seu poder e seu braço forte – completou LaCordaire. - Temo dizer que você tem razão.

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Nisso, nossa atenção se deslocou para um serviçal da casa, como um mensageiro que se aproximava com cartas. Após os pedidos naturais de licença ele ofereceu a Tomás os papéis e se retirou. Após ler rapidamente do que se tratava Aquino disse: - Cartas do Grande Alberto. OPUS 14

“Quem é Alberto? Ele nascera em torno de 1200. Sua importância é capital, o que o livra de muitos

problemas com as esferas políticas. Tomás de Aquino é seu discípulo. Muita gente entre a Germânia , Espanha e França recebe ensinamentos de Alberto, o Grande. Eu, Marcus de Paris, humilde aluno, tenho esse privilégio. Todos nós temos. Pietro de Ferrara, que deixou a família riquíssima para ganhar os caminhos da escolástica e mergulhar nos misteriosos domínios do oculto. Alexandrino, o menor, jovem rebelde já muitas vezes preso pelas autoridades e torturado por defender a opção de liberdade de pensamento, após sua última fuga foi dominado por uma força surpreendente, até hoje inexplicável, que derrubou com os ombros as paredes da prisão em que se encontrava. LaCordaire, tranqüilo pensador, poderoso homem de armas, lutador excepcional que partiu das milícias parisienses por desobedecer a ordem dada para um massacre contra grupos de judeus que habitavam a região da Campânia. Todos amigos e discípulos de Alberto Lúcius.

Mestre Alberto é autoridade igualada a Aristóteles, conhecido no planeta inteiro como Doutor do universal, por uns, e por outros como o Médico Universal, graças a seu trabalho em Ciências Naturais. Títulos que lhe vieram com o tempo.

Na carta endereçada a Tomás ele relata que não sairá de Colônia. A questão dos estudos e dos ensinamentos ocultos está estimulando uma revolta por parte de segmentos da Igreja e lá ele se encontra em certa segurança. Ele sugere cuidados a Tomás de Aquino e o convida para ir a Colônia. Alberto conta que desde seus estudos de Arte em Pádua, quando se prontificou a entrar para a ordem dos Dominicanos nunca tinha sido objeto de tanta preocupação por parte das autoridades. Soube ele, sem atinar se a informação procedia, que grupamentos de clérigos incitaram camponeses à delação de pessoas que estivessem em contato com o sobrenatural. Queimaram gente nas praças públicas. As milícias de segurança nada fizeram. Um medo se espalha pelas cidades da Germânia e isso já se torna um modelo. Uma noite desce sobre a Europa, diz ele.

Alberto relata que em Colônia o respeitam com total propriedade. Tanto é que está abrindo um centro de estudos e pede para que seus mais diletos alunos o acompanhem. Tomás de Aquino diz que Alberto fala em meu nome. Gostaria que eu estivesse por perto. Diz que há um futuro alvissareiro para mim, se me mantiver no estudo das artes profundas. Ele ressente da falta de mentes abertas para que ele argumente e discuta sobre as mais recentes interpretações dos escritos Aristotélicos. Quer fazer isso antes que a Igreja proíba a leitura do mestre grego. Sabe que alguns prelados se movem e já proibiram a leitura de Platão e outros. Um obscurantismo proposital parece descer sobre todos”. - É isso – disse Tomás. - Parece que nosso mestre está com muito trabalho e precisa de ajuda. Convido a que os senhores, nesta semana que entra, meditem amplamente sobre o que fazer. Eu tomei minha decisão e vou para Colônia. Os dias de descanso e contemplação se foram. Preciso beber na sabedoria do mestre Alberto, novamente, e para lá irei. - Faremos isso, Tomás – disse-o em nome dos amigos – Tomaremos esses últimos dias para conversarmos sobre o assunto. - É claro que se quiserem permanecer aqui o castelo de Roccassecca ficará à disposição.

Mas, não. Partimos todos. Tomás em direção da Germânia, levando cartas minhas a Alberto e eu, com os amigos, de volta a Paris, procurando Sonja e Bernard de Clairvaux. Nas cartas que enviei para Alberto pedia explicação e luz sobre todos os eventos pelos quais passamos, mesmo que parecessem extraordinários e inacreditáveis. Pedia para que enviasse correspondência de reposta na direção de NotreDame, a igreja.

OPUS 15

Em acordo com Burckhardt, as mulheres estavam em perfeita igualdade com os homens. Nada mais equivocado. A desigualdade entre os sexos começava no nascimento. A maioria das crianças que eram abandonadas era do sexo feminino. Se não

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eram abandonadas se permitia que morressem asfixiadas, por conta de amas-secas assassinas, pagas para isso. A maioria era do sexo feminino, o que prova que as famílias preferiam filhos a filhas. Ainda assim, as oportunidades educacionais para as moças eram muito limitadas. A maioria das mulheres não tinha educação alguma. Se tivessem alguma serventia era para se tornarem freiras ou eram dirigidas para o casamento. Em geral as mulheres se tornavam freiras, pois as famílias não podiam arcar com o dote que a levariam a um casamento.

Como trabalho havia a tecelagem, a fabricação de velas dos arsenais, ou como lavadeiras, ou ainda no trabalho de campo, arando e lavrando. Mas, também cartomantes, curandeiras e parteiras – essas, ocupações ligadas à bruxaria.

Além disso, facilmente se encontrava nas estradas as salteadoras armadas. Mulheres completamente livres e destemidas, vestidas de homens – certamente por ser uma vestimenta mais ágil do que pretender roubar coches com vestidos. Raro o momento do encontro entre mulheres intelectuais, conhecedoras dos segredos misteriosos da curanderia e do herbalismo e a atitude viril de roubar os mais abastados. Mas é aí que reencontramos Sonja e suas companheira dos antigos estudos em Paris. Em plena Itália.

Tomei conhecimento disso tudo por que nos idos de 1252 recebi várias cartas de Alberto e Tomás. Eu e os rapazes só conseguimos chegar a Notredame por essa época. As fugas e desaparições eram inúmeras, tomávamos outros caminhos, andávamos em círculos, alguns de nossos detratatores diziam que andávamos em elipses para negar a harmonia das esferas, enfim, e sabíamos das aventuras e das ações densas cometidas por Tomasina, Beatrix, Clara e a querida Sonja. Tirando isso e a vontade de vê-las, o que me impressionou foram os escritos, que seguem abaixo, de Alberto sobre o abade de Clairvaux. O sacristão Perpignan nos entregara as missivas.

“Caro Marcus. Felicidades nas pontas do triângulo. Causou-me espécie o que você relata sobre Bernard, seu encontro com ele, suas

conversas e o episódio na gruta. Pois bem, sem mais delongas, devo dizer que Bernard de Clairvaux morreu em 1153, portanto há quase cem anos. Era um dos doutores da Igreja francesa, um dos pilares da igreja ocidental. Mais tarde ele se tornou monge Citerciense e acabou escolhido como abade de Clairvaux. Como nós, ele era um teólogo lutador. Como nós, ele era duro em seus pareceres e muita vez defendeu com unhas e dentes as posições da Igreja. Um defensor de Reis e Papas. Apesar de tudo não rejeitava o racionalismo na teologia. Como nós, era um professor dedicado, porém intensamente intransigente, defensor da igreja ortodoxa. Lembro do Conselho de Soisson, quando conseguiu a condenação dos professores de Abelardo, e depois no Conselho de Sens. Hoje sei que foram erros de fera tenacidade. Conselheiro de Papas e Reis, como já disse, foi proponente ativo para a montagem da segunda Cruzada. É dele a idéia da ordem dos Templários. Político entre papas e na eleição de papas. Policial na persecução de esquemas corruptos dentro da igreja. Aquele homem destemido e sempre lembrado por toda a cristandade. É sua a obra De Diligendo Deo.

Caro Marcus, não se surpreenda ao encontrá-lo por aí. Cuidado com o que ouve e o que vê. Bernard hoje é um meio, um médium inconsciente, para que as nossas lutas se mantenham em ação. É ao lado dele que Sonja está, assaltando nas estradas e correndo entre guerras e entre povos e cidades. Quando Bernard o encontrou, Sonja estava entre os soldados, mas recebeu ordens explícitas de não se mostrar para você.

Por outro lado, a questão do tal Calatin, de quem já lhe contara uma parte da demoníaca saga, ele está vivo e perdura em destruições, hoje pela costa sul de Espanha. É um ser vivente normal. Anormal nas suas ações. Ele congrega um exército imenso e conta-se por aí que traz respaldo dos mouros que estão em Jerusalém, mas nisso eu não acredito. Calatin parece ter nascido do mais voraz dos vulcões... ele exerce um fascínio absoluto sobre pobres seres sem eira nem beira e leva a todos de roldão em suas façanhas pelas florestas. Sobre Calantin todo o cuidado será pouco.

Sei de seu carinho por Sonja. Sei que a menina é afeiçoada ao caro Marcus. Mas, por enquanto, há que se manter distâncias. Há uma causa em jogo e eu devo dizer que Bernard - morto e vivo – Sonja e você, são componentes desse jogo. Perdoe-me, mas, demiurgos podem e sempre modificarão os caminhos da história e da natureza, buscando um ideal de paz. É puro cinismo dizer que não se fará nada ou se deixará que a natureza siga seu rumo. Os homens comuns alteram a natureza com a tecnologia e artifícios que

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vêm evoluindo a cada dia. O demiurgo altera a natureza em suas profundidades essenciais. Tudo é muito complexo e a vida se consome nisso.

Fica a benção meritória e votos de coragem. Alberto Lúcius, de Colônia.” OPUS 16 A impressão que me ficou da carta só me fez acreditar mais que aqueles tempos

eram de grande mudança nas vidas de tantos quantos pudessem escolher entre abaixar a cabeça e obedecer ou aprender e seguir em frente, mesmo que isso custasse vidas e talentos.

Comovido, contei tudo aos companheiros. Não se detiveram da nossa empreitada. Dos nossos estudos. Prontificaram-se a caminhar nessa senda do oculto e quiseram determinar constantemente a disposição de enfrentamento que logo chegaria até nós.

Debatemos arduamente sobre Bernard e houve consenso. Se era alguém que se fazia passar pelo cavaleiro ou, se por essas razões de miraculosos acidentes, era ele, redivivo, em busca de seu Graal particular, não saberíamos. Espantou-me ainda o fato de Sonja o acompanhar. Espantou-me a imagem da salteadora. A mulher que cavalgava ao lado de seres claramente destroçados, rotos, de aspecto deplorável, ornada de elmos e armaduras. - Toma a própria estela da revelação – disse LaCordaire – e coloca-a num templo secreto. Vamos atrás desse templo. É hora de agir com mais ciência com as armas que temos e conhecemos. Se não me engano e pelo que entendi, Alberto lhe dá esse aval, Marcus. - É. Tem razão. Esse templo já está corretamente disposto. Precisamos saber de sua clara localidade. - Talvez seja a tal Igreja dos Pireneus e a aparição, digamos assim, de Bernard e os acontecimentos da gruta sejam sinais... – disse Pietro – O que sei é que a imagem do que é sagrado não desbotará, mas que uma cor milagrosa retornará a ela dia após dia, caso tomemos a ofensiva e acionemos os mecanismos secretos do universo. - Fecharemos tudo em um vidro trancado como uma prova ao mundo - completou Alexandrino. Tive que concordar com eles. - Esta será nossa única prova de combate constante. Eu proíbo qualquer argumento contrário. Conquistar os mecanismos do mundo! Isso bastará. - Talvez – explicava LaCordaire – seja necessário fazer fácil o exorcismo da casa mal-ordenada na Cidade Vitoriosa de Roma. Você mesmo, Marcus, transmitirá isto com adoração, como o profeta, apesar de não gostar da situação como está. - Saiba que passaremos por perigo e tribulação – eu disse. - Adorar o trabalho pela causa com fogo e sangue – falou LaCordaire com épico olhar. - Sair para as ruas conclamando as hostes a se posicionarem com espadas e lanças – opinou Pietro. – Tudo isso me parece com os sagrados ideais de cavalaria. - Não vamos tão avidamente nos agarrar em promessas; mas não havemos de temer incorrer em maldições. Os soldados do Papa estão por toda a parte e muitos se farão passar por eles – eu falei, subitamente incorporando uma força que não sabia de onde vinha - Nada temeremos do todo; não temeremos nem homens, nem Fados, nem deuses, nem coisa alguma. Dinheiro não temeremos, nem riso da tolice popular, nem qualquer outro poder no céu ou sobre a terra ou sob a terra. - É isso, Marcus! Misericórdia seja fora: malditos os que se apiedam! – gritou Pietro - Essa estela que trazemos e levamos para todos os lados, produzida em nossos laboratórios e sacralizada sob a égide de Alberto, ela será chamada Abominação de Desolação; conta bem seu nome, e será para todos como 718. Um número de intensa magia e preponderância. Imediatamente tomei da estela de mármore cinzento onde escritos variados eram vistos e sobre ela impusemos nossas intenções. Mero simbolismo. - Levanto a imagem da estela para que ela seja direcionada para o Leste – falei, sentindo que meus braços dormiam e que minha boca se elevava em tons e alturas - As outras imagens serão agrupadas ao meu redor para me suportarem: que todas sejam adoradas, pois elas se juntarão para exaltar nosso trabalho. Eu represento o objeto visível de adoração; os outros são secretos. Imediatamente fizemos pausa em nossa disposição e Pietro ficou encarregado de

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buscar uma mulher nas ruas, de preferência uma que tivesse simpatia pelos trabalhos secretos. Não demorou muito. Coisa de quarenta minutos e retornou com Urraca, mulher do mestre barbeiro e ela mesma parteira. Uma mulher esguia, cabelos soltos e ondulados, não mais que vinte e cinco anos, e pediu que ela esperasse sentada em um tamborete, enquanto retomamos a ronda. Pietro se pôs a confeccionar o perfume: uma mistura de farinha e mel e grossas sobras de vinho tinto: depois, procurando nos armários em cofre escondido sob o selo de Salomão, tomou, então, óleo de Abramelin e óleo de oliva, e depois, amoleceu e amaciou com gotas de rico sangue fresco. Nesse momento Urraca se aproximou, abriu as pernas e retirou de dentro da vagina resíduo de sangue menstrual. O melhor sangue era o da lua negra. - Um momento, disse Pietro – e saiu para a rua, novamente. No retorno trouxe, em um pires de barro, mais um pouco de sangue. O sangue fresco de uma criança. Pietro passara a lâmina da faca sobre a pele tenra do menino. A criança chorou muito, segundo ele, por causa do corte em seu dedo, mas logo se calou quando Pietro lhe ofereceu água fresca e um broche de pedras verdes. Em seguida, sem piedade alguma, partiu para cima de inimigos declarados. Eram soldados papais e de um deles trouxe mais gotas de sangue, que ele foi juntando à massa que construía. Sempre nos mantínhamos em espera. A cada saída de Pietro a sensação era de que o tempo havia parado. Em seguida, vinha a sensação do perigo. O sangue seguinte tinha que vir de algum sacerdote ou adoradores dos ídolos, comprovadamente ligados aos inquisidores. Por último, o sangue de algum animal. - Pronto! Peguei todos os sangues necessários. Assim Pietro pegou da massa, daquela borra sanguínea e queimou: daquilo fez bolos e comeu alguns. Depois engendrou outro uso; estendeu diante de mim e acendeu a massa. Logo os perfumes e um mar de orações: não demorou muito para que a casa ficasse cheia de besouros, grilos e vagalumes. No momento seguinte matou a todos, nomeando os inimigos – Papa, Reis, soldados, perseguidores. - Eles cairão diante de nós – disse Pietro, e o suor porejava-lhe a testa - Também seremos fortes na guerra. Além do mais, que sejam tais insetos mortos guardados longamente, é melhor; pois eles aumentam nossa força. - Mas o lugar sagrado será intocado através dos séculos: acredito agora que a busca da igreja de Pireneus seja o caminho correto a seguir – a fumaça se espalhava pela casa e pessoas já falavam alto do lado de fora, questionando o que acontecia no interior. - Apesar disso, com fogo e espada abriemos os caminhos. Ainda assim uma casa invisível lá permanece, no alto das montanhas, talvez... e permanecerá até a queda do Grande Equinócio. - O outro profeta pode ser você, Marcus, e terá de se erguer e trará febre fresca dos céus; é o que esperamos. – falou laCordaire. - Uma outra mulher acordará o ardor e adoração da Serpente; talvez seja Sonja... talvez... outra alma... outro sacrifício manchará a tumba de antigos Reis e Papas; outro rei reinará; então, a noite negra chegará; bênçãos não mais serão derramadas. A noite de Horus. Inexplicavel, mas com grande poder, a mulher Urraca que estava conosco e doara seu sangue menstrual passou a falar em claro delírio, estampando-se nela a mesma imagem da mulher da gruta, que saía do lago: - Heru-ra-há; Hoor-pa-kraat; Ra-Hoor-Khut. Ela ainda continuou a falar desbragadamente, apontando o dedo para mim. Os olhos estavam esbugalhados e os cabelos grudavam-se na cabeça dominada pelo suor:

- Eu te adoro na canção. Eu sou o Senhor de Tebas, e eu o inspirado antevidente de Mentu; auto-sacrificado Ankh-af-na-khonsu. Saúdo o Ra-Hoor-Khuit! Aum! que isto me preencha! – e imediatamente ela desfaleceu.

Batiam na porta. No início de maneira normal, depois, após os gritos, batiam com paus e socos. A turba gritava lá fora, já com o misto de medo e terror daquilo que já nem sabiam do que se tratava. - A luz está em mim – eu disse, animado pela visão das luzes e das cinzas - E sua flama vermelha é como uma espada em minha mão para empurrar a ordem. - Há uma porta aqui atrás, não muito secreta, mas ótima para determos durante algum tempo esse pessoal – falou rapidamente LaCordaire – é por aqui que sairemos. - Por Bes-na-Maut, em meu peito eu bato – a mulher gritou, e se debatia alucinada, socando a si própria. Ela pulava como se estivesse em transe e ria e chorava e gritava pelos animais e pela coleção de animais presos nos campos do condado. Alexandrino

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tentou carregar a mulher Urraca, porém seus movimentos eram intensos demais. Sua voz estava se tornando rouca: - Pelo sábio Ta-Nech, eu teço meu encanto. Mostra teu esplendor-estelar, Ó Nuit! Ó serpente alada de luz, Hadit! Habita comigo, Ra-Hoor-Khuit! Tudo isto, agora, está escrito em um livro que eu reputo sagrado, para dizer como cheguei até esse ponto, até aqui e, devo esclarecer que não seria possível sem meus amigos e companheiros de senda. Há uma reprodução desta tinta e papel para sempre guardados em lugar seguro - pois nisto está a palavra secreta e não apenas na língua dos povos sagrados - e o comentário sobre este Livro da Lei será impresso belamente em tinta vermelha e preta sobre a estela, sobre os papéis perfumados e belos papéis feitos à mão. -Corre, Marcus, a porta está de desfazendo a machadadas. A mulher fica. Ela não pára de gritar e pesa demais. – gritou Pietro – O que era para ser feito já foi – e a madeira da porta se estilhaçava enquanto tentava-se fazer Urraca entrar nos planos semi-secretos além das paredes. Nisso ela despertou e facilitou nossa fuga. Do corredor, já com a parede abaixada e dando-nos tempo para ganharmos distância, ouvimos que a porta da frente desabou em estrondo, que a multidão não parava de ulular, que as peças da sala eram destruídas e que insetos e besouros e escaravelhos restantes eram pisoteados por todos e todos bradavam que nos queriam matar, aos bruxos e feiticeiros. Mais tarde, sentados nos gramados dos campos, já mais leves, presos a um torvelinho de tranqüilidade, em torno de pequena fogueira, comíamos um pouco, recuperando energias corporais e mentais. Eu disse: - E , para cada homem e mulher que encontrarmos, seja para jantar ou para beber com eles, esta é a Lei a ser dada. Então eles terão a chance de permanecer nesta felicidade ou não; isto não é problema nosso, por fim. Será problema deles. - E o trabalho do comentário? – perguntou Pietro, escriba e magista empolgado com as resoluções. - Isso é fácil - disse Urraca - e Hadit queimando em teu coração fará rápida e segura a tua pena de escrever. Não argumente; não converta ninguém; não converse muito! Os que querem emboscar, derrotar, devem ser atacados sem pena ou rendição. - É, essa mulher sabe o que fala. De onde vem tanta palavra, mulher? - perguntou Pietro, com outras intenções, além de saber das origens de Urraca. - Foi o encontro com a Mulher Escarlate. É preciso que tenha cautela! - Se pena, compaixão e ternura visitarem meu coração – ele continuou – eu vou me permitir deixar meu trabalho, de vez em quando, para brincar com as velhas doçuras femininas. - Então minha vingança será conhecida. Eu alienarei seu coração, – e Urraca riu, como leve displicência e certo ardor. Pietro gostou do que viu. - Parece que minha escolha foi correta. Fui encontrá-la onde devia. - Eu me expulsei dos homens: como uma meretriz encolhida e desprezada, eu rastejava por ruas úmidas escuras e muitas vezes sofri que morria com o frio e com a fome. Agora vejo que me posso abrir novamente para gozos. Longe da prisão da minha casa. Longe dos olhos das matronas do burgo. - Mas que Urraca se erga em orgulho! – falou Pietro de Ferrara. Que ela me siga em meu caminho, se quiser, pois eu a seguirei no dela, se ela mo permitir! Que Urraca mate seu coração, em detrimento do meu! Que Urraca seja berrante e gozosa! Só não haverá promessas de que Urraca será coberta com jóias e roupas ricas! - Urraca – ela mesma falou - está, agora, desprovida de vergonha diante de todos os homens!

- OPUS 17 O que aconteceu naqueles dias eu escrevi. Tomei dos manuscritos do escriba Pietro e enviei para Alberto, depois do encontro em Paris. Citei Urraca. Nomeada Urraca de Valverde, filha de ciganos, açougueiros, barneiros e nômades, mulher ligada aos poderes da baixa magia, e, hoje, componente do nosso grupo de viajantes. Vamos aos Pireneus, se nada nos atrapalhar. Este esboço de livro será traduzido para todas as línguas por quais passamos e em cada eremitério deixaremos uma cópia para que o futuro encontre os caminhos do sagrado, como estamos vendo e como estamos seguindo. Sei que, após tudo isso, virá alguém, de onde eu não digo, que descobrirá a Chave dos mistérios. Então, esta linha traçada é uma chave e este círculo esquartejado em sua falha é uma chave também. E Abrahadabra será sua criança, palavra primeva,

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explico aqui. Que se não vá – o curioso - não vá atrás disto; pois por isso apenas ele – curioso puro - pode cair. Abrahadabra continua sendo uma palavra de perigo. “Caro Alberto, este mistério das letras está acabado, e eu quero ir para o local mais sagrado. A procura é intensa. Várias vezes deparamos com preconceitos e a suspeita de terceiros sobre nossos trabalhos. Vagamos há cinco anos. Mande benesses e augúrios a Tomás de Aquino. Que ele pense em nós com carinho. Lentamente estamos nos inserindo nas mais misteriosas salas e secretos corredores dos enigmas. Torna-se difícil o relacionamento normal com as pessoas de modo geral. Sonhamos com agrupar o máximo de estranhos, como Urraca, mas passam-se os anos e são poucos os que nos querem. Eu estou em uma quádrupla palavra secreta, a blasfêmia contra todos os deuses dos

homens. Cristãos e muçulmanos nos perseguem. Alguns budistas perdidos de seus navios mercantes não se aproximam e nem nos carregam. Urraca grita nas noites, enquanto esbanja seu corpo com os homens. O problema dela é o novo dogma da Maria inviolada. Urraca deseja que ela seja despedaçada sobre rodas: por sua causa, as mulheres são desprezadas ao máximo! Sonja é outro exemplo da rebeldia. Também o é pela graça da beleza e da paixão! Eu, por mim, desprezo também todos os covardes; soldados profissionais que não ousam lutar, mas brincam; todos os tolos, desprezo! Não há lei além de “faz o que tu queres”. Há, enfim, um fim da palavra do Deus entronado no assento de Ra, aliviando as vigas da alma. O olho de Ra, o triângulo divino, a tríade que tudo vê. O olho do sol - Ra . Alberto, para todos, ainda, para todos, isto parecerá belo. Sei que o texto pode lembrar as palavras de um louco, mas o mundo está de outra forma que não aquela em que deixei Paris fugindo dos soldados. Mas há algum sucesso. Salve! guerreiros gêmeos – Alberto e Tomás, mestre e aluno, sobre os pilares do mundo! pois o tempo está bem próximo. Há um esplendor em meu nome secreto e glorioso, que vejo em sonhos e não tenho como descrever. LaCordaire se faz de meu confidente. É o mais velho e mais experiente, além de me defender de todos os golpes do destino. A paixão por Sonja. As visões e a interpretação desses delírios. Hoje só posso dizer que o final das palavras é a Palavra Abrahadabra. E com ela eu deixo selar esta carta para que caia em suas sábias mãos. OPUS 18

O tempo se foi medido em relógios de água. Clepsidras brilhantes. Eu e o grupo estávamos nos reinos italianos quando nos chegou um mensageiro

que conhecia Alberto Magno e pode trazer novas. Acolhemo-lo na cabana de um antigo rancho franciscano, próximo de Rivotorto, bem perto de Assis. Soubemos que Tomás de Aquino se tornou mestre em teologia e depois estava na Itália, junto à corte papal. Novamente em Paris e depois outra viagem para encabeçar os dominicanos com a formação de um grupo de estudos gerais. Para Tomás, a educação era necessária. Padres e religiosos, segundo ele, tinham a obrigação de saber e saber cada vez mais.

Quanto a Alberto, ele se tornou provincial dos dominicanos, em seguida, sem perder a noção de sua responsabilidade, foi tornado bispo de Regensburg e pastor incondicional das Cruzadas. Não sei das relações misteriosas dele com Bernard, então.

Foi por essa época que conhecemos Siger de Brabant, em uma de suas viagens para saber dos Averroistas da Sicília.

No entanto, numa noite de Novembro, se não em engano no dia 10, um dia que me pareceu sagrado pela quantidade de sinais que vi nos céus, ouvimos novamente falar da horda de Templários que rondava o continente. Um monge que voltava de peregrinação à Terra Santa nos encontrou a tomar sol numa velha abadia perdida na floresta. - Bons dias – disse ele - É por aqui que se vai a Roma? - Esse caminho o levará à Veneza e esse outro a Nápoles. Depois, segue com uma caravana que sai em dezembro para Roma – respondi amavelmente – De onde o senhor vem? - Venho das Ilhas. Mais precisamente da Córsega. Fugindo. Vou para Roma em busca de consolo e perdão. Matei um padre. Aquilo assombrou sobremaneira a nós todos que escutávamos.

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- É. Acho que era padre. Estava à cavalo e trajava uma roupa com a cruz de malta. Se não era um padre era um dos cavaleiros do Templo. - E quando foi isso? – LaCordaire perguntou, rispidamente. O outro olhou de soslaio e levantou as sobrancelhas, antes de responder: - Quando eu retornava de Jerusalém, na direção da Sicília. - Mas os Templários estão presentes para proteger os peregrinos... não é isso? – perguntou Pietro, mais para buscar resposta do que claramente interessado no assunto ou para tomar qualquer partido. - Vocês têm água? – o monge pediu. - Claro que sim... desculpe-nos pela má recepção – dei um salto rápido. Fui buscar a moringa e ainda pude notar que o monge mirava bem a todos, cenho franzido, leve sorriso. Ele falou: - Obrigado – e sorveu o líquido – isso é certo. Os cavaleiros existem para isso – bebeu outro gole – mas não existem para amealhar tesouros – bebeu novamente, dessa vez, muito mais e longamente. A água caiu sobre a sua roupa, – ... e nem para defender os interesses do demônio. - O senhor pode explicar isso melhor? – perguntei. O sol intenso atingia sua testa como a iluminá-lo para boas palavras e dons. - Obrigado pela água. Eu sou Feblen. Monge. Porém, de origem fidalga. Seguidor dos franciscanos. Se estamos nos desfazendo de nossos bens terrenos, não posso admitir que cavaleiros papais entesourem as jóias e riquezas em troca de proteção. Na Sicília acontece muito disso. - Você está com a razão, - mas ele pareceu não ouvir. -Na Ilha há grupos formados que se tornaram protetores das comunidades. Claro está que têm de ser pagos para exercer o ofício que ninguém pediu. E são todos de origem Templária. - Desse jeito estarão desobedecendo as ordens da igreja – declarou Pietro. - Para eles tanto faz. Não é como no passado. Segui muito esses Templários. Desde a época em que meus avós os chamavam de Pobres Soldados Cristãos. Faz muito tempo. – ele deu uma pausa olhando para o céu – Não acham que hoje choverá, não é? Esse vento me incomoda. E esse calor. Há muita umidade no ar. - E por que o senhor matou um padre ou Templário? Já que o senhor tociu no assunto vá ate´o fim, – perguntou Alexandrino e o monge ficou olhando para ele, atentamente, durante segundos, tomando todos lufadas do vento que pareceu se ampliar após ser mencionado pelo monge. - Você não é muito jovem? Jovem demais para tanta pergunta. - Tenho vinte e um. - Estudante? Vocês são estudantes? - Sim – eu disse – mas por enquanto estamos fora de nossa jurisdição, que é Paris. Faz tempo que não retornamos. Somos antigos alunos de Alberto... - Ah! … O Grande Alberto... - Sim. E também amigos de Tomás... - Tomás de Aquino... o doutor... ah!... muito bem... logo terão os templários no seu encalço também... pena... - O que quer dizer com isso? - Quero dizer que os processos da Inquisição estão mais severos, digamos assim... os padres, os papistas e seus asseclas estão caçando os... como direi... diferentes...e, pelo visto, vocês estarão nessa lista de diferentes... é preciso cuidado. Pensadores... – disse debochado e ainda riu. - Parece que a Igreja não quer deixar sequer um aspecto do mundo a ser examinado e taxado de bom ou mal para as pessoas... segundo eles, é claro – disse LaCordaire. - Correto, meu jovem – o monge falou – Magnificência ou miséria, ingenuidade, tons sinistros, tudo passa pelo crivo dos padres... a eles exaspera as grandiosas conquistas do pensamento humano... – ele passou a mão pela cabeça calva – Mundo com muitos lados e milhares de interpretações está fora da realidade, segundo citam os representantes papistas. A tendência é uma idéia única e uma única direção, com a bênção do papa, é claro. - Mas estamos no Mundo velho de sempre, deixando de lado os Orientais e Muçulmanos, Semitas... estamos onde a civilização herdou uma grande parte da sabedoria grega... a base de nosso pensamento – disse Pietro, anotando tudo e descrevendo a todos – e por

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ser Velho e Pensador a esse mundo se deve resguardar uma boa quantia de formalismo, mas não de perseguição. - Mas o fato é que o senhor matou um padre. - É. Isso é fato. E sou obrigado a correr para as abas do papa antes que me mandem para lá. Pelo menos posso me declarar culpado de alguma coisa e pedir perdão – novamente o vento bateu em nossas vestes. Urraca apareceu, carregando roupas e objetos que ela lavara. Ela e o monge se olharam. Ele estranhou a presença da mulher e perguntou: - Quem é? A concubina de vocês? Algum tipo de escrava? - Não - adiantei – nada disso. Ela fugiu conosco e é companheira do grupo. Saiba que nos revezamos no cuidado com o coletivo. Por coincidência, o senhor chegou no turno dela. Alexandrino, por exemplo, é responsável, nesse turno, de colher frutas e buscar pomares. Eu tenho a responsabilidade de pescar. Pietro de Ferrara é o escriba e está no turno de segurança, da mesma forma que LaCordaire. - Sei... sei... – disse o monge, demonstrando que em nada daquilo acreditava – de qualquer forma, bons dias, minha senhora... – e não desgrudou os olhos de Urraca que lhe retribuiu um sorriso. - Fale sobre a morte – instigou Lacordaire. - Está bem. Falarei. Mas antes gostaria de vinho. Vocês têm? – Ante o espanto de todos o monge ainda concluiu: - Essa água de vocês é muito ruim. - Não – prontamente respondi – Mas temos pão e uvas. - Não quero. Os Cavaleiros do templo de Salomão... religiosos, furiosos e guerreiros... dardejavam pelos campos sobre cavalos poderosos. Meu avô, eu dizia, conheceu e acho que foi um deles. Talvez de certa importância. Seu nome era Geoffroy. Família de Saint-Omer. Ninguém falava disso lá em casa, é bem verdade. Ele dizia que os teares da família, apesar de trazerem riqueza, não poderiam tecer alianças com nefastos anticristãos e que a Terra Santa era nossa... essa coisa toda... e dizia aos gritos... Resolvi arriscar um nome. - E Bernard de Clairvaux? - Você sabe sobre ele? O pai dos Templários?! – olhou para mim com estranheza. - Sim. Que sabe você sobre ele? - Bom… ele considerou uma série de regras para a ordem... a Ordem dos Cavaleiros do Templo... e direcionou-a para um sistema que impunha pobreza, castidade... – e olhou para Urraca enquanto ela retornava – castidade e obediência... pelo menos era o que estava no papel, bem manuscrito pelos maiores da Ordem. Cousa do século passado, eu creio. - Seu avô era o quê, no grupo... que cargo ocupava? – perguntou Pietro. - Era artesão... Havia capelães, cavaleiros, oficiais de apoio... era uma Ordem bem estabelecida... ainda é... o problema é que só deviam obediência ao papa e nunca às leis seculares... isso causou transtornos... - Senhor de Saint-Omer, se é que posso assim chamá-lo – devo dizer que encontramos Bernard, anos atrás... – vi que o monge se espantou com o que disse e um leve sorriso de mofa aflorou-lhe os lábios. - Vocês o viram?. Isso provaria que Bernard está vivo... ou que vocês estão mortos... e que eu estou maluco. - Não! É, verdade... , estávamos em França ainda e ele estava atrás da Igreja dos Pireneus... - É – pareceu aceitar a situação – as coisas estão muito mudadas nesse mundo. Ao mesmo tempo me surgem duas linhas de caminhos através da pobreza. Franciscanos e Templários. Um grupo que eu desejo sempre seguir, se destina à pureza de valores e mansidão... à amizade, ao trato do bem com a natureza... enquanto isso, o outro grupo desencadeia uma guerra, mortes e violência com o mesmo propósito de luta por tomar Jerusalém de volta, definitivamente, para a cristandade. É pode ser por aí... o espírito de Bernard ainda está vivo. Entendi a metáfora. - A questão é a ameaça do reino tradicional da nobreza... – disse eu – Franciscanos desmistificaram e puseram em questão a riqueza da Igreja e as posses de seus prelados, levando a que grupos se opusessem ao franciscanismo. De outro lado, Templários levantam a possibilidade de que cavaleiros devem se conduzir dentro de uma linha de pureza e a única riqueza será, no caso atual, a defesa do santo sepulcro e a guarda de peregrinos... qual nobre não quer amealhar suas riquezas e manter privilégios e posses?

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- Concordo. Daí as contendas. - Ah!Isso me faz lembrar um episódio. Tempos atrás. Posso ver ainda hoje... passando como uma nuvem sobre meus olhos. Os cavaleiros descendo a encosta, cobertos de um manto branco com a cruz desenhada no peito e nas costas... trovejando os cavalos... rompendo as barreiras de pedras... derrubando choças e pessoas pelo caminho... armados até os dentes...um mau cheiro absurdo... - Mau cheiro? – perguntou LaCordaire. - Sim... essa lembrança específica... não todas... mas essa... abomináveis cavaleiros com cavalos fumegantes... os cavalos pareciam rasgados...Vi que atacavam muitos nobres aos quais deveriam defender!... Não entendi aquilo. Era uma força militar especializada, parecia ser bem conduzida... seus soldados ministravam as espadas com certeza nos corpos dos soldados nobres que se dirigiam à Terra Santa. Morriam muitos, aos gritos, aterrorizados... Nessa noite eu corri muito... cheguei a uma Igreja, tentando escapar da fúria daqueles insanos mas notei ao chegar, a nave era circular... a igreja toda era circular... eu percebi que estava em uma Igreja dos Templários... - Quer mais água? – vi que o monge de Saint-Omer se comovia. - Não... obrigado... porcaria de água... – seu olhar se perdia no horizonte - percebi que o formato do madeirame e as bancadas lembravam a comanderias e bancos. Era uma igreja templária, sem dúvida. Não posso ter errado. - Hoje os Templários servem de banqueiros para os Reis. Muitos grupos Templários financiam cruzadas. Mais ainda para forçar que mais peregrinos se dirijam à Palestina. Provavelmente esse ataque dos Templários que o senhor testemunhou foi no retorno da viagem, não é... - Sim... sim... tomando de volta o investimento, talvez? Mas e aquela gente estranha, a soldadesca torpe que eu vi? E com eles ainda ia um corpo de soldados que me pareciam mulheres. Um grupo formado apenas por mulheres. Por isso acreditei que delirava. Para que serve uma mulher? - Talvez seja o grupo de Bernard de Clairvaux – vi que ele sorriu, novamente. - Outra vez isso? - Outra vez. De qualquer forma, a quantidade de propriedade, terras e moedas que têm hoje atrapalham projetos de clérigos e nobres por toda a Europa – disse Pietro – para nós, tanto faz. Afinal ele acumula suas riquezas há quase cem anos. - Acontece – disse eu – que a maior parte desse grupo ligado a Bernard tem origem também entre os soldados hospitalares... – resolvi falar mesmo que causasse espanto em Saint-Omer – não acredito que estejam vivos, na acepção da palavra, como nós. A ordem dos Hospitalares vem do século 11. - Em Jerusalém cuidavam da saúde e das necessidades dos peregrinos, em um Hospital dedicado a São João, em plena Terra Santa – explicou LaCordaire. - Regularizaram-se em cânones através de bula papal no século seguinte, em torno de 13. Seu primeiro mestre e superior foi Gerard de Martignes. A partir do sucessor de Gerard é que a Ordem se tornou ligada aos assuntos militares. Defendia os interesses do Reino latino de Jerusalém – declarou Alexandrino, o menor. - Pelo visto, vocês sabem de tudo – falou Saint-Omer. - Agora que a luta está ferrenha. Todo mundo acha que Jerusalém não sairá mais do poder dos Muçulmanos. A Europa está mobilizada. Até mesmo as crianças são levadas para as Cruzadas, crianças de doze, treze, quatorze anos... morrem aos montes... a esfera paralela está em desequilíbrio... daí Bernard... daí os soldados estranhos... o mau cheiro... – disse eu e completei – temo revelar que os sepulcros estão abertos... O grupo de Hospitalares, querendo manter seus cuidados e boas ações, também está, em parte, inimiga dos Templários. Há várias dissensões de cada lado. - Creio que tudo se aclara agora, meu caro... quero água agora... – bebeu rapidamente... sorvia... estava sedento e pareceu meio atormentado, mesmo com o estranho sabor de nossa água. - O que sei é que os Hospitalares proverão os peregrinos fora da Terra da Santa, para que os que tiverem coragem de ir para lá sigam com seu risco. Agora – deixei em suspense uns instantes – o caso de Bernard e seu pessoal é outra coisa... - Ocorre e cabe em outra esfera de conhecimento e de crenças e de pesquisa... caro Saint-Omer. - LaCordaire veio salvá-lo das más lembranças. - Por isso, achamos que o tal padre que o senhor matou - e ele parou com a moringa na boca – não era nem padre nem templário... e hoje estamos duvidando que fosse algum

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ser vivo consciente – Sain-Omer olhava estupefato para mim e para os outros companheiros – provavelmente era um Golén... um morto-vivo elaborado segundo a Cabala... da mesma forma que Lázaro, retirado dos mortos... um morto-vivo... - Sabemos que Goléns não têm vontade própria – e o monge permanecia com o olhar de sabujo perdido. Por fim, falou: - Está muito boa essa água. Quero mais. OPUS 19

Dias de tensão. Nunca mais ouvi falar de Sonja e meus sonhos se tornaram secos, horrendos,

sem formas definidas. Cantoria sobre Calatin era ouvida pelos campos. Ora um herói. Ora um monstro

sem alma. Urraca perdia vários filhos. Filhos meus e dos outros companheiros. Os desejos sexuais eram partilhados entre todos e não havia momento nem questão que nos fizesse entrar em conflito. Homens e Mulher sabiam que desejos devem ser solucionados e, estando o casal junto e vivendo no mesmo lugar, era natural o enlevo e o prazer.

Mas filhos ela não conseguia reter. Nos primeiros meses, talvez por causa da dureza da vida nas florestas e em burgos menores, fosse impossível a gravidez normal. Por outro lado, sabíamos que Urraca de ValVerde fazia uso de ervas periodicamente. Certa de que crianças não seriam de ajuda alguma naqueles tempos difíceis, melhor não tê-las. Com certeza ela pensava assim e sabia que uma vez grávida seria destinada a uma cidade maior para ter o filho. Seria dispensada do grupo. Viveria por conta própria e ela não queria tal destino.

Uma vez aconteceu algo insólito. A criança veio a nascer. Não havíamos percebido o estado de Urraca. Confirmo

que vivíamos muito interiorizados e egoístas e ela deu à luz uma criança deformada. Acredito que não tenha sido aquela a única criança que Urraca teve. Acontece que essa chorou ao nascer e acordou a todos nós. Fui encontrar Urraca no mato, tentando se esconder com a criança quasímodo. Quando isso aconteceu, longe de Itália, estávamos nas proximidades de Paris, e eu contava encontrar novas sobre Sonja. Na Ilha, numa noite muito escura, estávamos por perto da Catedral de NotreDame, Urraca caminhava com a criança no colo, mas pretendia deixá-la às portas da Catedral, quando os soldados do bispo invadiram a praça frontal com ímpetos de aprisionar a todos. Sabíamos que conosco vinham alguns grupos nômades de ciganos.

Corremos desabalados. Passando sob os pórticos da Igreja dedicada a Virgem Maria, sob a arcada frontal, vi que a criança escapou dos braços dela e rolou pelas escadas. Um soldado apareceu e descerrou grande pancada na cabeça de Urraca e ela rolou pela escadaria. Ciganos foram presos. Ela escapou. Vimos de longe que o soldado tomara da criança, que provavelmente desmaiara, e se limitava a lançá-la para dentro de um dos poços de rua, resolvendo rapidamente o problema. Mas ele parou. Alguém o chamava. Era um clérigo, roupa negra, que se dirigia a ele e tomava a criança para si.

Finalizando as formalidades de hierarquia, a porta se fechou e tivemos que partir, mesmo chorando.

Esse foi um dos episódios que tenho conhecimento acerca das crianças desvalidas nascidas de Urraca de Valverde. E assim os anos se passavam, com clareza estonteante.

Em torno da década de setenta, os meus companheiros de viagem já me olhavam com certa diferença. Muitas vezes durante as conversas os assuntos não acabavam e eu via que todos eles estavam um tanto arredios. Isso me enchia de angústia.

Por instâncias do destino, aportávamos em uma estalagem ampla. Foi por essa época que encontramos o Inglês. Chegávamos a uma estalagem,

com certa preocupação. Depois de muita conversa ele se apresentou formalmente e esclareceu das suas intenções. Era mais um Frade Franciscano advindo das ilhas britânicas para um encontro com Tomás de Aquino.

Como é claro perceber, havia boa diferença entre condes produtores de estrume, com todos o seu dinheiro e brasões alugados, e o empobrecido mas aristocrata conde da casa vizinha. O bem sucedido conde pode ser tão rico quanto Midas, mas tudo isso não vale em sabor quase nada, perto dos senhores de origem fidalga.

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Ali estava Roger Bacon - conhecido como Doctor Mirabilis, um dos mais famosos frades de seu tempo - recém chegado das ilhas, coberto de pó pela jornada através do continente, que descia do cavalo sorrindo e cumprimentando a todos sem distinção, mas notava-se nele o ar distinto de um bem formado.

Na estalagem tomou uns dos melhores quartos. Os que davam frente para uma lagoa ampla, que esgueirava por árvores luxuriosas, eram os quartos preferidos e mais caros. Certos pássaros que eu não conhecia vinham beber ali. Bacon retirou o chapéu e se deliciou com o ar fresco que lhe tocava na quente tarde de domingo. - Marcus... - Sim, Sr. Bacon. - Teremos algum serviço religioso hoje à noite? - Não sei dizer... não temos ligação com ordem alguma, na verdade... somos cientistas... - Eu também... quer dizer... sou cientista, mas tenho ligações com o franciscanismo... e, na verdade, procuro Tomás de Aquino. Quero conversar com ele sobre minhas idéias sobre estudos enfáticos sobre empirismo e ao uso da matemática no estudo da natureza. - Tomás deve estar na Germânia, ao lado de Alberto... – vi que Bacon fez sinal com os dedos, em negativa e cofiou barba e bigode, enquanto seu olhar se perdia nas pradarias à direita. - Não... marcamos uma data aqui... deve chegar a qualquer momento – e eu fiquei feliz ouvindo Bacon dizer sobre a imediata vinda de Tomás de Aquino. - Muito bom. Os doutores se encontram... - Tomás é um doutor... eu sou um mero especulador. Espero que Alberto venha também. Quero apertar as mãos daquele que é conhecido como um novo Aristóteles. - Há muito que não os vejo. - Então será o momento dos grandes encontros, não é, Marcus? - De qualquer forma venho estudando o que os mestres propuseram. - É... existem passagens interessantes... dignas de sérios debates – ele disse, com ar mais de galhofa do que a de um empedernido pesquisador – a síntese que Tomás nos relata em que coisas naturais e coisas reveladas... ou seja... conhecimentos naturais e conhecimentos revelados, uma meta que os pensadores querem atingir, não me parece receber agradável recepção de coração aberto pela maioria dos... clérigos... podemos assim dizer, não é caro Marcus? - Concordo. - Portanto ele tem muito que nos falar e nos fazer acreditar em suas elucubrações. - E seu trabalho? Como é visto nas Ilhas britânicas? - Bom. Não sei se você sabe, mas eu me dedico a uma análise que dá muita ênfase à matemática, como já disse, e tenho um apreço muito especial pela experimentação. Tenho que ver como é que tudo funciona. E tudo tem que se mostrar muito claro através das leis matemáticas. Tenho escrito muito sobre isso – ele fez um sinal ao estalajadeiro que veio dizer que a alimentação estava pronta no salão, lá embaixo – Estive em Paris entre 40 e 47... - Eu saí de lá por essa época... fugindo de certas perseguições inquisitoriais... - É... isso ainda continua... – seguimos por descer as escadas de madeira – eu, por mim, sigo no estudo. E estou propondo que haja método na investigação dos fenômenos... nem adianta perguntar, pois nem sei que métodos... também estudo essa linha de conduta, mas é necessário uma regra, uma disciplina para se obter conhecimentos... e prová-los. - Na Universidade de Paris...? - Eu ensinava Filosofia... foi lá que conheci Alberto e suas magníficas idéias sobre a transubstanciação; ele criptografava os temas e explanações como se fossem sobre relatos ao texto bíblico e na verdade estava escondendo segredos da pedra filosofal – ele riu abusivamente, enquanto sentava-se à mesa e me cedia lugar. – Ainda bem que ele saiu de lá, - disse Bacon. - Saímos todos á mesma época. Ele veio para Colônia e ficou. - Bebe um pouco comigo. – Virando-se para o estalajadeiro – traga, por favor, mais um copo e um pouco de água... - Não tem como... – disse o homem da estalagem - é melhor beber vinho ou algum suco de fruta pois as águas estão contaminadas.

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- Eles acreditam que certa epidemia que grassa pela região é trazida pela água – eu disse – mas não é isso. De qualquer forma é melhor ficar com o vinho, que é fraco, ou chupar frutas sumarentas. - Isso é bom. É uma maneira de imitar o Cristo. Bebendo vinho. Façamos isso. De qualquer maneira, sente-se. Conversemos, Marcus... conversemos... – ele rasgou um pedaço de pão, provou, mastigou com insistência e continuou – como eu dizia... fiquei lá até 47, em Paris, depois retornei a Oxford. Recebi muita influência de Robert Grosseteste. Depois ingressei na Ordem dos Franciscanos, como bem pode ver pela minha roupa, mas não pelos meus hábitos... e essas... digamos, pouca ortodoxia em pensamento palavras e obras tem me causado muitos dissabores com os superiores. Da mesma forma que aconteceu com Guilherme de Baskerville. - Parece que estamos no mesmo barco... - Todos estamos. Você conheceu Grosseteste? Um sujeito parrudo. Forte. Falastrão? Não!? Para mim um dos maiores, claro que nem se aproxima de Alberto, no entanto seus caminhos são diferentes. Matemático, teólogo, iminente cientista... foi o primeiro chanceler da Universidade de Oxford... é... o sujeito é impetuoso... depois se tornou bispo de Lincoln. Se opôs aos italianos em certos aspectos e posições eclesiásticas – Roger Bacon não parava quieto em seu lugar enquanto falava e comia, sem perder as maneiras simpática e amistosas – tem certeza que não quer comer? - Não, obrigado. - Enfim, um reformador. - Sei que essa... luta – eu frisei – trouxe problemas com o Rei e com o Papa. - Sim. Henrique III e o papa Inocêncio. E a questão toda não é Grosseteste, nem Tomás de Aquino ou Alberto ou Marcus ou, humildemente, eu... o problema é um sujeito chamado Aristóteles... a Igreja está na garganta com esse grego longínquo e... - sorvendo rapidamente o suco de laranjas – nós estamos dando corda para nossa própria corda nos enforcar... é isso. A escolástica revolucionária é aristotelista.

Pietro de Ferrara e LaCordaire entraram para o salão de refeições. Haviam se lavado. Apresento-os a Roger Bacon e nesse momento eu percebo que Bacon também percebe algo, olhando a eles e a mim, em seqüência muito rápida, no entanto nada disse. Algo em nossas feições e atitudes o afetou. Ofereceu o repasto para os amigos. Eles traziam mais frutas dos campos. Uma coleção de morangos silvestres e algumas raízes, também. - O senhor esteve pessoalmente com o papa Clemente? – perguntou LaCordaire. - Sim... tive a honra... tive a honra de que ele me pedisse um trabalho que me deixou bem contente. Foram três obras: Opus Majus, Opus Minus e Opus Tertium. Maior, Menor e Terceira. - A da reforma da educação? – LaCordaire, novamente. - Exato. Vejo que o senhor é um estudioso, e que me honra com isso. Argumentei que o estudo da natureza por observação e exata medida seria a correta fundamentação para o conhecimento sobre a criação do mundo. E aí, lógico, propus que o currículo universitário permitisse as matemáticas, as línguas, a alquimia e outras ciências... especialmente a óptica. Agora estou escrevendo um compêndio para o estudo da Filosofia e o tema é a crítica aos métodos aplicados à filosofia e teologia em nossos dias... por isso meu pedido de reunião com Tomás e ... espero... Alberto. - Alberto está vindo? – gritou Pietro. - Não posso garantir – disse Roger, afastando o prato limpo que deixou com algumas cascas de mamão – Eu o espero também.

OPUS 20

Levaria uma semana para a chegada dos mestres. Enquanto isso debatíamos alguns assuntos que nos eram importantes com o franciscano Roger Bacon e ele não dispensava uma conversa acirrada. Volta e meia ele tinha que gritar, furiosamente, dizendo: “mas eu não estou nervoso e nem estou brigando com ninguém... estou sendo apenas enfático”. E sentava-se para mais uma hora de árdua argumentação. - Tenho um trabalho destacado em alquimia, prática que a Igreja condena. Isso eu exerço em segredo. Fui acusado de convocar os elementos da natureza... - E o espelho? - Disseram que eu criei um espelho que podia revelar o futuro e esculpir um busto capaz de falar. Mas o que eu acho é o seguinte: o trabalho alquímico é como uma horta:

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mesmo se colhemos o que não pretendemos, ainda assim teremos melhorado a colheita. Mas, acredito, consegui alguns feitos interessantes. Sou capaz de acender uma vela. Nisso caiu a noite.

* Em torno da estalagem, que era muito simples e primitiva apesar de confortável

e grande, situava-se uma colônia de ciganos onde batalha e egocentrismo se multiplicavam a gosto de todos. A cooperação entre eles era resolvida pelo meio ambiente. As funções climáticas formavam grupos de aliados, para preservarem o todo em ações conjuntas ou, então, os desagrupava. Nem se sabe direito como é que perduravam, aqueles ciganos, pois não havia noite sem que morte ou ferimentos fossem produzidos. Quando o espectro da morte por inanição – por causa de seca ou por chuva intensa, sem possibilidades de busca de alimentos – se alastrava e encarava a todos de frente, a pura necessidade de assegurar a existência impelia a sociedade a uma ação cooperativa de trabalhos diários – então mortes e ferimentos diminuíam, provavelmente, equilibrando a balança populacional. É que eles se dedicavam ao roubo.

Foi ali que conhecemos Andréas Baden. Cigano barbado vestido de couro e muita jóia pendurada. Um dia voltava para casa, para a tenda que chamava de casa. Dizia, ao chegar, para as suas mulheres, que visitara mais de trinta feiras, ao norte de Itália e trazia algumas cabeças cujos dentes de ouro não conseguira retirar. Dizia que sofria de queimaduras, abrasões provocadas pela sela de seu cavalo, após tantos meses fora da colônia. As mulheres ficaram apreensivas. Trazia, também, braços e pernas de cobradores de impostos. A cada cidade que ia, a cada estrada que tomava, havia pedágios que exigiam que pagasse impostos para entrar e sair. Não havia dinheiro que sobrasse. Era necessário um sistema compensatório e ele optou por trazer cabeças e dentes de ouro, jóias ainda presas a braços – junto com os braços – e botas elegantes, trazidas com as pernas. Tal era Andréas Baden.

Os mercadores viajantes chegavam pela manhã. Com guardas armados montaram suas tendas. Coloriam o ambiente acinzentado da manhã fria. Comerciavam entre si e com a população local.

Traziam objetos exóticos: tafetás, especiarias, sedas, muito couro e pele, muito perfume. Alguns vinham do oriente e traziam mercadoria característica, como Andreas Baden, que carregava utensílios variados, por força de uma profissão longínqua, própria e predominante na família através dos tempos, pois era ferreiros, caldeireiros, produtores de panelas, chaves, pregos, ferramentas, selas, cintos e outros objetos de couro. Alguns eram exibidores de feras amestradas, chamados lovares e manushes. Outros ainda, que eram antigos traficantes de cavalos, negociavam com carruagens e barcos, sendo também exímios comerciantes, mecânicos e lanterneiros, como os ciganos do grupo de Calatin. Havia também os que vendiam ouro, jóias, roupas, tapetes, mercadores ambulantes ou feirantes.evidentes em sua roupagem cigana e na cantoria de seus ancestrais. Andréas tocava rabeca e um pouco de alaúde, por exemplo.

Senhoras e senhores se amontoavam em meio a tendas e muitas vezes desapareciam entre outras que se encontravam fechadas e cujo mercado era o da carne humana. Era isso que Andreas fazia. Comercializava sexo aos senhores e senhoras dos burgos, entediados com suas vidas aborrecidas, sem cores nem valores outros. Dessa forma cultivava sua coleção de cabeças e membros mais ricos.

Não entendia nada de zeros ou divisões. Mas Andréas mantinha um livro em que anotava seus lucros...”O senhor do burgo tal... me esqueci do nome... me valeu dez florins”. Estranhos livros de mórbida contabilidade.

Alguns diziam que Andréas Baden tinha parentesco com Calatin, o Raivoso. Quando Andréas chegou na colônia, voltando de sua próspera viagem, as

mulheres disseram que uns senhores da Guilda de Tapeceiros o esperava. Parece que os tecidos levados para venda, por parte de Andréas, tinham uma quantidade de fios que a lei não contemplava e o custo daqueles tecidos estava exorbitando o mercado e os preços das feiras. Os senhores da Guilda vinham em seu encalço para obterem uma compensação por perdas de seus próprios tecidos. - Senhores. Nem sei quantos fios tem os tecidos que vendi. Foram todos roubados de um mercador. A única coisa que fiz foi obter o lucro. Portanto – ante o olhar aterrador de todos e isso quem me conta é uma das ciganas de Andréas – portanto, se querem tirar satisfação com alguém, falem com o morto. Deixei-o nas barrancas Brancas, perto de Livorno, ao norte.

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- Já temos problemas com a Igreja, que diz não ser cristão ter lucros, e ainda por cima temos que lidar com um bastardo desses ciganos – disse um deles, que imediatamente caiu por terra, esfaqueado por Andreas. Os outros senhores da Guilda se armaram, mas ao mesmo tempo quinze outros ciganos tiraram punhais árabes e traçaram desenhos no ar. - O problema dessa gente é não saber lutar e nem usar o facão... o outro problema, o do mercado, é de vocês, cristãos ou não – disse Andréas – e, o nosso problema já é outro. O que sei é que há falta de terra para todos... pelo menos para nós, expulsos de todos as terras em que aportamos. Falta dinheiro. Todo mundo, inclusive vocês, se regem por costumes e tradições. Nós também. - Andréas olhou-os fixamente e continuou, como últimas palavras – Guardem suas armas. Não sairão vivos daqui. Provavelmente as burras de couro que carregam têm muita moeda. Precisaremos dela. Esse é o destino.

Ato contínuo, uma coisa que não durou mais do que dois minutos, os senhores da Guilda de Tapeceiros jaziam mortos junto à fogueira.

Apesar disso tudo a colônia não entrava em conflito com o estalajadeiro, mas isso foi explicado, pois o estalajadeiro sempre se servia de alguma ciganas e pagava bem. No entanto, alguns dias mais tarde, Alexandrino caiu em febres e teve delírios inesquecíveis. Pústulas e ardências fluíam de seu corpo. Ele relatava, gorgolejando, fatos incompreensíveis e estranhos. Notamos todos que as mulheres, a partir daquele dia, desapareceram da estalagem. No dia anterior, ou melhor, na noite anterior, Alexandrino tinha por sua vez, desaparecido também. Quando retornou estava confirmado em males e miasmas. Ele citava um ritual da prosperidade, e, ao mesmo tempo falava dos prazeres e dos gozos com as mulheres. Saltava na cama e gritava na noite. Foram quatro dias de sofrimentos.

Em uma dessas investidas da febre e dos tremores, encharcado de suor, olhos abertos olhando o nada, ele passava a cantar cantigas profanas claramente provençais.

Observando atentamente a tudo aquilo Roger Bacon sugeriu que usássemos conhecimentos ocultos. Ele não o faria. Sua obra tinha uma linha que exaltava o fazer do ser humano comum. Mas ele sabia que versávamos sobre o oculto e sugeriu alguma coisa que elevasse o ânimo do companheiro. Algo positivo. Algo que o retirasse das trevas em que estava e propôs que trabalhássemos naquele caso à luz do dia. Ele e o estalajadeiro garantiram o segredo e a tranqüilidade.

LaCordaire insinuou que um traçado estelar dentro do Ritual de Prosperidade, coisa já citada pelo próprio Alexandrino, poderia alimentar de bons augúrios a alma de Alexandrino, que agora chorava. - Muito bem – eu disse - Cuidemos disso agora. Usemos os ensinamentos do Ritual, com base no conhecimento Ocidental... ao menos, suas bases principais – concluí. Em seguida, Pietro passou a fazer o que chamamos de invocação a Júpiter, usando simbologias romanas. Alexandrino estava inundado de suor e Urraca cuidava dele com carinho. Pietro traçou, no chão do último quarto, virado para o sol que nascia, um Heptagrama - uma estrela de sete pontas.

Em seguida, e Roger Bacon anotava em seu caderninho coberto com pele de urso o que via e ouvia, sem assombros ou qualquer tipo de manifestação preconceituosa, Pietro traçou a estrela na ordem indicada, com um bastão. Esse bastão era usado raramente e não tinha nada de especial. Era um pedaço de madeira queimada que mais parecia uma haste grossa de carvão. Aliás, a mão de Pietro ficou muito preta de tanto pó que saia espontaneamente do bastão. Esse bastão teria efeitos sobre o imaginário coletivo. Um elemento catalisador de atenções. Usou o bastão como bem podia usar o dedo indicador da mão direita. O efeito sempre é o mesmo. - É que não temos um de ferrite – ele disse para Bacon. O bastão ideal é um de ferrite, se pudéssemos magnetizá-lo com um ímã – ele explicou, identificado com Bacon que a tudo anotava como ele.

Pietro, então, pediu que todos fechassem seus olhos e passassem a visualizar aquela estrela desenhada no chão, agora flutuando no ar, de maneira a parecer que a mesma é feita de luz. – Uma luz azul-clara – ele pediu e ainda deu uma ordem a Urraca, – Vá e pegue incenso. Antes de dar continuidade vamos alterar nossas consciências com um pouco de incenso – e enquanto ela voltava, – aproveita e traz o pequeno gongo que LaCordaire trás amarrado em sua bolsa. - Ao mesmo tempo que retraçava a estrela no chão, Pietro recitava: “ EL ZARAIETOS PANTOKRATOR”.

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Naquele momento, passamos a pedir em voz baixa, um burburinho assomando o quarto, no formato de uma oração. Após alguns instantes Roger Bacon, já ciente do caminho ritualístico, acompanhou o murmúrio de oração, cujas palavras vinham no sentido de enaltecer as virtudes de Júpiter. Eram pedidos de prosperidade e volta da organização e da ação para Alexandrino, o menor.

Passei a tocar o gongo, sempre quatro vezes, pois esse é o número de Júpiter. Houve uma pausa. Alexandrino resfolegava. Pietro salmodiou e em seguida

propôs um novo trabalho, mas desta vez usando o Ritual Oriental. Imediatamente Roger tomou de seu pequeno bastão de carvão – similar no uso ritual, porém, como escriba, a fórmula mágica ele bem sabia que era outra - e anotou que Pietro de Ferrara iniciava a invocação da deusa Lakshmi. Dessa vez lançou-se incenso à base de ópio, cujo poder de alterar consciências é muito amplo. - Faremos isso, exaltando seus epítetos e seus atributos.

Urraca tomou a dianteira para ajoelhar-se e elevar as mãos à altura das orelhas, espalmando-as com a concha para dentro e, assim fazendo, falava, monotonamente: “A radiante. Nascida das águas do mar de leite. Presente das águas. A trajada de branco. Filha do lótus. Aquela que é revelada com o lótus. Poder de Vishnu. A amada dos céus e da terra, a amada de todos. Aquela cujo hálito é doce. Aquela cujas mãos são róseas pétalas de flor de lótus. A exótica. A perfumada. A dourada. A que derrama e provê o amor. Aquela que derrama e provê boa sorte. A abençoada. A iluminada. A luminosa. A sorridente. Aquela que sempre sorri. Aquela de cujas mãos chovem moedas de ouro. A deusa bondosa. A deusa da riqueza. a deusa da prosperidade. A deusa do amor. A deusa da fortuna. A afortunada. A próspera.”

Uma rajada de vento brando invadiu o quarto. Alexandrino se retorceu levemente, mas mostrou um rosto tranqüilo e isso nos deixou felizes. No entanto, Urraca de Valverde ainda não terminara sua litania e deu vazão aos atributos da deusa: “ Beleza divina da forma, mostrando a perfeição da mulher, presente em todas as mulheres. Muitos colares e jóias com gemas coloridas. O lótus, sobre o qual ela está sentada ou em pé. Algumas vezes, a deusa é secretariada por elefantes, de diversas cores: branco, preto, cinza, rosa, marrom, azul, púrpura, vermelho, laranja , que espargem nela as águas da "mãe ganga", a mãe natureza. - Ei! É uma Vênus-Afrodite Indiana – comentou Roger Bacon, virando-se para mim. Eu assenti. Ele estava surpreso e confiante.

Novo Heptagrama foi desenhado, mais incenso foi queimado, o gongo soou sete vezes, e, em seguida, traçou-se o símbolo de Vênus após o Heptagrama.

Finalmente, Alexandrino descansou, com um sono profundo. Por enquanto aquilo bastava.

OPU 21 Finalmente os Mestres chegaram e foi um dia festivo. Vinham Aquino, Alberto e mais tarde outros professores para os debates. Chegaram no mesmo dia e a estalagem tomou ares de festa. O estalajadeiro persignou-se pois naquele mês a féria seria boa. Um seminário de doutos à beira da estrada, longe de olhares espiões. Longe da perseguição dos padres. A estalagem se transformou em uma universidade onde tantos mestres de importância vinham dar sua declaração e dali tirarem diretrizes para seus trabalhos e suas lutas contra o poder estabelecido e favorecendo a consecução de conhecimento e sabedoria. No entanto, também estávamos prestes a vivenciar um episódio terrível, envolvendo Andréas, os ciganos e o cavaleiro-filósofo Siger de Brabant. Alberto e eu conversamos longamente, como que fazendo um relatório dos anos de distância. Apesar de uma e outra carta, as informações que recebíamos um do outro e de nossos trabalhos eram esparsas. A estrada, o tempo, as preocupações nos trouxeram a distância. Ele me contou que Sonja estivera na Germânia, mas, como a maioria de nós, livre pensadores e pesquisadores da natureza, estava fugida e tentava ganhar caminhos para o oriente. Queria saber de mim. Sentia minha falta. Tentara por toda maneira um contato. Enviara cartas e documentos, mas nada houve que nos encontrássemos. Alberto então sugeriu que as cartas e mensagens fossem enviadas para algum lugar neutro e ele tomou a iniciativa de propor. Toda a mala de correios seria enviada para a casa de

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Aquino, no castelo de Rocassecca. Mesmo que demorassem para ler as correspondências, um dia teriam novidades um do outro. - No menos, isso – disse ele, passando a mão levemente sobre a testa – Está de acordo? Assenti com a cabeça. - Muito bem. Dessa forma – ele continuou – se poderá também guardar segredos de últimas descobertas. O que conversarmos aqui, caro Marcus, será escrito e promulgado entre nós, com uma cópia que irá para suas mãos, depois de terminado todo o documento. O que não impede de que anote o que bem entender... será, na verdade, um favor que nos faz. Concordei, novamente, com a cabeça. Naquele momento os outros monges, professores e doutos se aproximavam da sala, conversando com certa alegria e contando fatos e descrições de suas terras. Sentaram-se à mesa. Entre eles, Siger de Brabant, que me apertou a mão com uma forte pegada e com veemência, denotando que o sujeito tinha uma força e tanto. O estalajadeiro fechou o estabelecimento. Com uma piscadela e batendo a mão numa sacola, com um sorriso ele confirmou que estava bem pago por aquela quinzena. Houve apresentações e fui convidado para participar ativamente do seminário, na qualidade de aluno de Alberto e pesquisador. Pietro de Ferrara seria, como sempre, o escriba principal, enquanto LaCordaire e Alexandrino estariam presentes como ouvintes, copistas, sem direito a opiniões, a não ser que tivessem permissão abalizada para isso. O encontro, como já disse, duraria quinze dias e por sorte eram dias quentes. Aliás, dias muito quentes e intensos, pois fatos grotescos vieram à tona enquanto discutíamos gerenciamentos alquímicos e a construções de novos sistemas de pensamento. - Sigo o que o Comentador nos diz, como ponto de referência para os estudos Aristotélicos. Graças a ele os árabes tiveram uma clara visão do pensamento de Aristóteles. Os muçulmanos devem agradecer a esse professor-filósofo pelo estreitamento dos laços de pensamento com as bases da filosofia ocidental. - Isso ficou muito claro – disse um alquimista presente, oriundo do Egito – Mas, nós, filhos do Nilo, nos interessamos, principalmente, não pelos trinta e oito tratados de Ibn-Ruchd, ou Averróis, como dizem vocês, sobre o Comentador... o que nos interessa são seus trabalhos originais sobre astronomia, física e medicina. Muito mais do que a sua “Incoerência da incoerência”. O mestre juiz Ibn-Ruchd muito soube aproveitar sua sapiência em Leis para se livrar de ser conduzido aos tribunais, também. - Bem... citemos como sempre a perseguição... sempre as perseguições contra o que é novo no pensamento, que havia o Comentador sofrido entre as gentes do Islam – Alberto cedia um pouco de informação e credenciais ao nosso Averróis – enquanto esteve sob proteção do califa Abu Yaqub Yusuf, ele estava protegido. Depois da morte do homem as coisas mudaram. Eis um ponto de importância para os nossos debates. Como manter o trabalho de investigação? Como evitar as perseguições? Como publicar o novo conhecimento, levando a outros estudiosos a possibilidade de continuidade das idéias? - Alberto abriu alguns manuscritos, à nossa frente e continuou – Tais são minhas preocupações... nada disso interessa ao povo inculto... talvez lhes interesse a parte fantástica e misteriosa dos enigmas... mas e a experiência real e a aplicação objetiva disso tudo? Lembrem-se de que o Califa Mansur o baniu da sua corte por causa de seus conceitos religiosos nada ortodoxos segundo o pensamento Muçulmano. Persegue-se lá, como cá se persegue. - Vale dizer que Averróis tem mais resposta entre Cristãos e Judeus. A sua maneira de pensar, a concordância entre filosofia e religião é que o traz para a nossa pauta de discussão – disse Bacon – além de retirarmos das experiências de vida de cada um desses nossos antepassados aquilo que os pode salvar e aquilo que os pode perder – concluiu. - Se os senhores permitem – eu disse – vejo Averróis como aquele que percebeu nos filósofos algo dos profetas que ensinam os mesmos princípios que os profetas religiosos, mas, numa situação de profunda subjetividade, em forma mais abstrata.

Os debates se seguiram, passando pela vida de Averróis ou Ibn-Rushd e passando pelos estudos de Ibn-Sina ou Avicena. Alternávamos a alimentação frugal com querelas menores, descansos e seminários outros com exposição das últimas experiências. Havia entre nós os práticos, os teóricos, os pensadores sem escola, vários

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mestres que expunham suas descobertas, sorvendo opiniões e intercalando argumentos e defesas de teses.

Mais tarde, à noite, quando me recolhia, ouvi barulhos que eram estranhos para nós que ali já estávamos, e que passaram despercebidos para os recém-chegados. No entanto, os meus companheiros, de cansados, decidiram cair no repouso, pois a manhã traria novos debates. Eu desci as escadas e caminhei na direção do estábulo. Lá encontrei Urraca de Valverde suada, resfolegando sob um homem, mantendo relação de sexo com Andréas, o tal cigano. Mas havia outras pessoas com eles, seguravam tochas. Resolvi que deveria partir, mas um tapa estalou e tive que, forçosamente, virar para ver do que se trava. Urraca havia sido esbofeteada. Mas, de repente, uma chuva de tapas e socos caíram sobre ela, por parte dos homens todos. Depois a levaram para fora e carregaram a mulher para os lados da colônia. Segui-os.

Um lote de outras mulheres amarradas já se encontrava perto da fogueira. Andréas Baden dava ordens numa língua que eu pouco conhecia. Uma ou outra palavra, parecida com o latim, era-me de entendimento. E o que eu soube daí não me agradou. As mulheres seriam vendidas. E os compradores eram padres e monges de uma abadia vizinha.

Imediatamente o comboio de mulheres foi arrastado pelos campos. Elas choravam pouco, pois quanto mais chorassem mais apanhariam.

Eu não sabia o que fazer. Retornei e tentei dormir. Na reunião seguinte contei o ocorrido para todos. Não

se sabia o que fazer. Eram homens sedentários. Não afeitos à violência nem dos campos de guerra, nem dos campos rurais, mas eram homens que lidavam com livros e a sensibilidade só lhes daria remorsos pela inutilidade de suas possibilidades perante a injustiça. Sabiam eles que tomadas de decisão de tal ordem e em público significariam, para eles, sempre a prisão ou a fogueira, e, provavelmente, o fim das reuniões na estalagem. - Sei que estamos em posição ridícula de desconforto – disse Alberto Magnus – e algo deve ser feito antes de continuarmos com nossos debates doutrinários. Fez bem, Marcus, em nos contar. Fez mal, Marcus, em esperar até essa manhã chegar. Não sabemos o que pode ter acontecido. E pode ter acontecido o pior. - Se me permitem – disse Siger de Brabant – vou me responsabilizar por esse assunto, em nome de todos. Não adianta que venham em grupo para essa contenda, que é o que me parece. Eu já estou acostumado a fugir com meus soldados e lutar de arma na mão, entre a discussão de uma doutrina e outra. Se me permitem. eu me retiro na direção dessa colônia. Quero Marcus comigo.

E fui. Siger de Brabant parecia mais soldado do que um mestre filósofo. Empunhava a

espada com destreza e o tempo que perdeu foi o tempo de colocar uma armadura leve e buscar armamento e selecionar um grupo que partisse conosco. Outros de seu grupo manteriam a segurança da estalagem.

Foi por esta época que ouvi alguns trovadores recitarem uma história que falava do homem de Hamelin que levava crianças para fora da cidade, invadia com elas uma montanha de pedra e nunca mais os pais davam conta dos filhos. Em algumas paradas para trocas de cavalos se citava o nome de Calatin, o Cão. Mas não me consta que Calatin tocasse flautas ou soubesse cantar qualquer tipo de canção. Sua fama se fazia à base de espadas e carreiras de cavalos invadindo alguma cidade ou fugindo de guarnições. Nada mais do que isso.

As patas dos cavalos, derrotando arbustos e pedras soltas, esbatiam, ritmadas no chão orvalhado, mandando, para os prados, um som de colossos percorrendo nuvens. Siger seguia na frente, cabelos anelados esvoaçando sob o elmo que lhe descia bem protetor, cobrindo orelhas e uma parte das espáduas. Qualquer um duvidaria das qualidades de Siger como professor, mas ele era um dos grandes da Universidade de Paris. Sua família era de origem Belga. Um dos mais famosos Averroistas, apesar da pouca idade.

Aquela crise de temperamentos nos levou a batalhas e pequenas lutas. Não entendi até agora por que Andréas apareceu em nosso caminho. Andréas não entendeu como foram aparecer cavaleiros armados em seu

caminho.

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Enfiadas em carroças as mulheres já estavam na estrada, cercada por outros seguidores do cigano. É claro que a nossa chegada foi inesperada. A cem metros da tropa de escravagistas Siger disse, fazendo o grupo parar: - Sabe usar alguma arma, Marcus? - Nunca uso, mas treinei na Universidade, o uso da espada de duplo gume. - Toma. Esta fica com você – ele disse – Vamos nos aproximar dos ciganos – falou para os companheiros – Tomem muito cuidado.

Mas não foi necessário. Os ciganos aceleraram o passo e dispararam a correr em direção a uma campina forrada de névoa lá para baixo do pequeno vale. Imediatamente viu-se que outros soldados estavam ali. Eram soldados do clero, provavelmente, à espera da encomenda. - Não é a primeira vez – Siger gritava – que encontro essa canalha – e acelerava a cavalgada – estava já ansioso para fazer algo – a poeira subia molhada sobre nossas roupas – e essa é a hora. Nisso eu ouvi: “BRABANT!” – um grito. Uma saudação? Uma palavra de ordem de carga em nome de Siger. Seus comandados gritaram e partiram céleres na direção do outro grupo e dos ciganos.

Mas eles eram muitos. No entanto, não parecia. Tamanha a desenvoltura de Siger e dos soldados. Eu

sempre me via atrás. Meu cavalo parecia nem correr. Segurar aquela espada significava para mim mais a possibilidade de me defender do que de atacar. Ou ainda, a de não atrapalhar o grupo de Brabant.

Pequena pancada de chuva piorou o solo, tornando-o em lama. O calor estava insuportável. Densa névoa se estabelecia nos baixios do vale. A visibilidade diminuiu. Então, veio o choque dos grupos. Parecia que duas carroças cheias de moedas e baús e peitorais de metal se chocavam em estremecida carreira. Gritos. Clangores de lanças e lâminas. Andréas estava amedrontado, curioso e um tanto aturdido, mas isso durou pouco. Rapidamente entrou na luta.

Aquele choque durava meia hora. Todos muito hábeis, mas nenhuma morte. Um dos soldados do lado cigano perdeu um braço, somente, mas parece que nem se deu conta. Lutava com o outro da mesma maneira hábil. Como se tivesse mais uns três.

De repente, uma parada de comum acordo. A carroça com as mulheres estava na lateral, perto da estrada. Os grupos se

separaram como que combinando um descanso, cada um para seu lado. Ouvi que Brabant falava números e letras para seus comandados. Para mim ele disse: - “Defenda-se! E já estará ótimo. Não quero me preocupar com você, Marcus”.

Voltaram à carga. Dessa vez tudo foi mais rápido ainda, se bem que nenhuma morte também desta

vez houvesse ocorrido. Ao perceberem que o grupo de Siger era compacto e bem treinado, como que fulminados por uma única e imediata idéia, os ciganos desapareceram do campo, ao som de uma trompa tocada por um dos homens. Deixaram a carroça com as mulheres. Solta, enfim, Urraca veio em minha direção chorando e pedindo perdão. - As mulheres estão muito maltratadas – disse Brabant, escutando ao pé do ouvido o que um de seus comandados dizia – Levaremos as mulheres para a abadia, como se fossem os ciganos. Quero entrar naquele lugar e vasculhar a podridão local.

Fomos. Entramos no prédio com facilidade. Fomos bem recebidos. O abade, vestindo

grossa vestimenta cinzenta nos acolheu com sorrisos e benevolências, mas eu notei cavalos cansados e suados por perto, o que indicava que alguém, ou algum grupo teve de correr bastante para chegar até ali na nossa frente. - Exijo alimento, água e roupas para essas mulheres – Brabant disse. Imediatamente Siger adentrou à abadia e ninguém manifestou qualquer negativa. Ele se virou para mim: - Marcus! Aqui amigos e professores estiveram confinados em nome do papa para que recuperassem o juízo e negassem a sabedoria e o conhecimento – Brabant subia escadas e entrava em salas e procurava algo. Tomou de uma tocha, pois os interiores são sempre muito escuros. Ele continuou: - É claro que perderam as vidas! – e jogou urnas e malas no chão.

Tomei papéis e rolos que se espalharam.

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- Veja por si só. Arquivos da Inquisição. O Santo Ofício deve endurecer em suas ações - ele disse- e você sabe que as vítimas seremos nós – Tomou de papéis – Olhe! Os padres de França dizem que os documentos foram destruídos. Não é verdade. Eles guardam isso tudo para algum dia usarem contra as famílias e amigos da vítima.

Eu me vi despertado em horror e medo. Trinta e oito documentos papais, secretos e confidenciais, sobre o movimentos dos professores, dos alquimistas, das bruxas, dos pensadores, dos pedreiros livres, dos templários, enfim... episódios dramáticos e obscuros. Papéis cuja origem era a força de repressão favorecendo uma Igreja distante dos ensinamentos cristãos. - De acordo com informes que tenho, já tombaram oitenta pessoas, entre livre-pensadores e inocentes úteis... assim como o nosso estalajadeiro, que em troca de algumas moedas, reserva sua estalagem para um bando de conspiradores. Certamente vai para o codex negro. Mas, de acordo com as versões dos papistas, mais de cem pessoas desapareceram, cremadas ou não. – ele disse, remexendo em todas as gavetas e baús. - Isso é um absurdo. Olha. Aqui diz que dos cento e dez listados, sessenta e cinco teriam morrido tentando fugir, dezenove desapareceram ou foram purificados... - ... provavelmente em meio à fumaça dos atos públicos e fogueiras... - ...dezesseis estavam presos em masmorras e abadias. Sete se tornaram padres, abjurando de tudo e dois outros, não suportando a prisão, se mataram. - Em geral, eles também se referem a “atos piedosos”, quando alguém de grupo herético tem que punir a falta de seus companheiros. Na verdade, Marcus, estamos numa luta ainda não declarada. Ninguém deseja declarar nada, enfim. Qualquer afirmativa ou ação bem delineada pode sugerir ato de hereges. O braço da Igreja cairá como uma pedra – concluiu de Brabant. Em seguida ele amontoou os documentos encontrados e fez um fardo. Levaríamos aqueles. - Conheço cardeais– disse ele –que poderão fazer uma revisão desses documentos e, quem sabe?, preparar um documento final para publicarmos e espalharmos pelas igrejas e pelos reinos. Há padres que participam ativamente de movimentos contra os poderes opressores do papado. Não sei se darão nomes ou se se identificarão, pelo menos enquanto estiverem vivos, mas isso pouco importa, agora.

Ajudei a carregar os malotes para os cavalos. - Há também sábios não ligados à Igreja – Siger explicava – que recebem ou tomam para si um título clerical apenas para confundir. Da mesma forma há soldados papais que se dizem professores e sábios com a intenção de penetrar nas Universidades e Monastérios usando nomes falsos. Muito perigosos! – descemos as escadas principais e logo estávamos beirando os cavalos sob os olhares assustados de vários padres. Pareciam adivinhar que algo não ia mesmo bem, mas não ousavam argumentar, tamanho o temor que Siger de Brabant inspirava neles – Liberem a carroça das mulheres! Partamos! – ele gritou e puxou as rédeas.

As portas imensas de madeira e ferrolhos se abriram em lâminas e saímos para a estrada de pó vermelho. Um leve sol escoava límpido. Pouca bruma e o que havia de caligem eram apenas as trevas impostas pela terra que as patas dos cavalos levantavam. - Marcus! - Sim, Siger! - Tem mais. Tenho ouvido que nesses últimos tempos a ordem das milícias papais e dos seus asseclas temporais, duques e barões, é não fazer prisioneiros e acabar de uma vez com qualquer fonte do Mal. Há episódios terríveis.

Ele contava enquanto mais calmamente seguíamos nosso caminho de volta. Trotávamos. - Há o caso de uma freira de nome Caterina Carnesecchi listada como bruxa, feiticeira, amante do demônio e muitos outros adjetivos desmerecedores. Ela teria cometido um “ato piedoso” com um padre e nesse caso a acusação era de que Caterina teria... favorecido sexualmente o tal padre... esse era o tal ato piedoso... por coisa tola, até... o padre Melchior, da Abadia de Cornaro teria dito que por estar muito tenso com as perseguições precisava de um “refrigério da alma” e a freira foi instada a diminuir a tensão do padre. No entanto, o padre morreu nos braços da freira, dizem. Em seguida, ela foi presa e a justiça papal mandou queimá-la. Caterina fugira para a Espanha, mas uns “dragões” da tropa especial a encontraram em uma localidade no Languedoque. Ela

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e outras freiras. Ficou presa seis meses e não deram alimento algum para a mulher a não ser côdeas de pão e um pouco de água. Quando ela já não falava coisa com coisa mandaram-na para um tribunal inquisitorial e, - ele sorriu sem muita vontade – concluíram que os devaneios e o falatório sem sentido de Caterina e outras freiras se dava por influência dos espíritos do Mal. - Como você sabe disso tudo? - Tenho muitos agentes que tentam proteger essas pessoas inocentemente presas. - E depois? Ela foi morta? - Foi, mas antes a levaram para uma prisão em Paris. Foi levada em lombo de cavalo. Escusa-se dizer quer tinha já os cabelos cortados e usava roupa de meretriz. Armaram uma grande fogueira numa praça. Ela ainda perguntou “Essa é a hora de aplicarem a justiça?” Ainda conversaram bastante. Ela se sentiu traída. As ordens clericais tinham por obrigação, segundo ela, de defenderem seus direitos de religiosa e mulher. - Quem contou isso para você foi seu executor? - Sim. Ele disse que mais além ela perguntou se “havia, enfim chegado a hora da misericórdia”. Ele respondera que sim. Era o momento de ir para o céu, ele achava. Nisso, fogueira acesa. Vários soldados a pegaram pelos pulsos e calcanhar e a lançaram nas chamas crepitantes. Disseram que ela não gritou. - Duvido. - Eu também. O fato é que Caterina foi queimada. Mas, nem sei se você percebe, há uma onda mística que ronda as pessoas. Há certa literatura, entre os nobres, que conta nossas histórias, ampliam os feitos, e, parece que esse escritos, essas brochuras caminham por aí e fazem com que as pessoas sintam nostalgias de épocas que nunca viveram e transbordam em paixões... há que se ter cuidado – nisso, Siger de Brabant virou-se com seu cavalo e foi conversar com outros cavaleiros, dar-lhes ordens e procurar os caminhos corretos para o retorno. OPUS 22

Passamos a noite na floresta. Um caçador e mestre de lutas hábil como Siger de Brabant, permanece atento

aos mínimos detalhes. Porventura sua mente lutadora, a faculdade filosófica o ajudam nesse sentido. Vi que ele não descansa. Líder do grupo, conversou com os soldados que o acompanhavam e o respeitavam. Ordenou que descansassem. Em especial a um que mandou enviar novas à estalagem, logo pela manhã. Antes, no entanto, teria o arauto de passar a noite bem no maior conforto possível àquelas condições. Siger saiu à tarde em busca de caça. Entrou no mato, enquanto a luz permitia, e viu rastros – eu estava de seu lado e fui observando tudo: choveu durante o período vesperal, por isso nos atrasamos. Havia pegadas; pequenos galhos rasteiros quebrados; o capim amassado em vários pontos; vimos que um pequeno animal havia sido devorado e a carcaça ficou à mostra, indicando que fora há poucas horas; um grande silêncio no ar, não se ouvia canto de pássaros, nem ruídos de pequenos outros animais.

Siger supôs que houvesse um javardo por perto. Ele teve, então, que tomar duas atitudes. Se, por experiência anterior, tivesse certeza de que o javardo estava nas imediações, podia preparar-se para enfrentá-lo ou sabia que caminhos evitar, se não estivesse em condições de enfrentamento. Sabia que armadilhas armar, se estivesse pronto para pegar o animal; sabia como atrai-lo, se quisesse mantê-lo vivo.

Era sempre assim. Siger de Brabant se apoiava em todos os sinais e signos de observação para tomar qualquer decisão. Era na caçada, na luta contra os ciganos e assim o era nos seus estudos de filosofia e ciência proibida. O caçador – Siger de Brabant - podia ainda, sem muita certeza, afirmar se havia ou não um javardo nas circunvizinhanças, nas floresta e matas escondidas na tarde, nos arredores e, nesse caso, tomaria uma série de atitudes para verificar a presença ou ausência do animal; podia percorrer trilhas, quem sabe?, próprias de javalis, corças, cervos e animais rasteiros; podia examinar com mais argúcia e cuidado as pegadas e o tipo de animal devorado; podia comparar, em sua lembranças e rememorações de outras caçadas, situações nas quais esteve presente um javardo bruno e sua presas malcheirosas. No entanto, após isso tudo, alegremente, Siger balançou a mão direita, chamando a todos e, de repente, estávamos sentados em redor à fogueira, todos, soldados e as mulheres. Alimentávamo-nos. O javali caíra ante a espada de Siger. Devidamente cozido em fogo brando e brilhante de óleos e temperos, a carne do animal nos foi adequada. Dizia Siger

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que oferecia o alimento ao modo da culinária beduína. Só que lá eles usavam carne de camelo. Na manhã seguinte partimos, rapidamente, nem bem o sol aparecia no horizonte. No meio do caminho encontramos camponeses que pareciam saber de Siger e se acercaram do grupo. - Não é o sábio que recebe instruções espirituais através da natureza? – um dos homens sujos disse, em sotaque desconhecido, apontando para Siger. Faz tempo que não o vemos. – O homem parecia gritar na pradaria, falando para nós e para seus acompanhantes, também, amplamente sujos - Certa vez, há muitos anos, encontrei esse grande senhor chamado de Brabant – Siger refreou o cavalo e parou para ouvir o que dizia o outro – Este senhor de Brabant costumava caminhar pelas florestas perto da Ilha, na França, sorvendo a névoa das manhãs, me parecia. - Quem é você? – Siger perguntou. - Não vai se lembrar porque não me conhece. Eu era certo brãhmana avadhuta... nos encontramos no passado... e meu título pode significar... - “Um filósofo santo livre das coisas mundanas” – completou Siger. Agora me lembro. Eu o vi e me aproximei do avadhuta que andava por ali – virou-se para mim – e este homem diz que é o mesmo andarilho. - Sim. Eu vagava embevecido com as gotas de orvalho e com as brisas simples que passavam através das folhagens úmidas. O tal andarilho não parecia ter medo. Este tal homem avadhuta parecia, também, muito jovem e erudito, muito sábio para sua idade, apesar de muito sujo. – Siger desceu do cavalo para falar mais de perto com aquela gente. Fizemos o mesmo. Aproveitei a oportunidade para conversar com o estranho pessoal que me pareceu ter o tipo físico de hindus e sacerdotes da Ásia. Siger perguntou: - Não está ocupado em nenhuma atividade religiosa prática? Caminha por estas bandas como se fosse jardim de sua casa? Sabe dos perigos que rondam os caminhos? O avadhuta olhou para Siger e este deu continuidade ao rol de perguntas: - Como, tendo uma inteligência extraordinária, está o senhor viajando pelo mundo, sem eira nem beira, pelo que posso ver de suas roupagens e falta de limpeza? - De modo geral, senhor de Brabant, os seres humanos trabalham arduamente a fim de cultivar religiosidade, desenvolvimento econômico, gozo dos sentidos e também conhecimento da alma, e sua motivação comum é aumentar a duração de suas vidas, adquirir fama e gozar de opulência material. - Em geral, apesar da sua razão, não posso deixar de dizer, as pessoas desejam a fama, desejam tornar-se famosas ou aumentar sua riqueza e duração de vida através de práticas espirituais. - Muitas pessoas comuns pensam, por exemplo, - eu entrava na conversa com opiniões de estudos antigos e querendo mostrar que tinha certo conhecimento das filosofias orientais - que o sistema de yoga destina-se ao aprimoramento da saúde, que se pode orar à divindade por dinheiro e que o conhecimento espiritual destina-se a aumentar o prestígio perante a sociedade. Portanto, por que é que estão tão sujos assim, já que há rios e muita chuva para banho? Não é uma incoerência?

Siger de Brabant, sinalizando para que todos descessem de suas montarias e ficassem à vontade para conversar ou não, continuou: - Você, porém, embora capaz, erudito e eloqüente, não se dedica a fazer coisa alguma, nem tampouco deseja nada, pelo que se pode ver; pelo contrário, parece estupefato como se fosse uma criatura fantasmagórica. Vocês todos estão longe do que chamamos vida normal e pode-se ver que não têm qualquer contato com o prazer material e que viaja com esse grupo solitário de nômades. Portanto, por favor, diga, qual é a causa do grande êxtase que sente interiormente? Igual a vocês apenas os franciscanos. Sei de monges e freis e irmãos que dirigiram ao Oriente para aprendizado das técnicas de meditação, como bem disse Marcus, do yoga... - Às vezes, - dizia o homem, provavelmente, em nome dos outros seguidores - pessoas ignorantes acham que a vida espiritual renunciada é somente para os impotentes, simplórios, incompetentes nas coisas práticas. - Os detratores de Francisco muitas vezes diziam que a vida religiosa deles era um apoio para quem não é hábil em alcançar um status elevado no mundo. Mas Francisco os lembrava que ele mesmo vinha de família rica e que deixou tudo de lado.

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- Ou seja – completou o nômade – Ele mesmo fizera sua opção contra a riqueza, e seus métodos de efetuar práticas. Meu querido de Brabant, tenho muitos mestres espirituais nos quais me refugio. - Provavelmente obtém deles alguma compreensão transcendental... - Sim, e agora vagueio pela terra em condição de homem liberto.

Soldados e mulheres resolveram se sentar sob umbrosas árvores. A vizinhança era assim. A estrada, reta e direta, por onde passávamos, fazia sua trilha sob uma infinidade de árvores que traziam grande sombra. Mas, mais além podíamos perceber um pequeno rio que serpeava a localidade. Fomos para lá, mas somente eu, Siger e o homem, cujo nome eu ainda não conhecia. - Yadu – eis o meu nome. Refugiei-me em vinte e quatro gurus e eles me guiam, por assim dizer, nas sendas do Zend Avesta. Sou como a terra, o ar, o céu, a água, o fogo, a lua, o sol, o pombo, o píton, o mar, a mariposa, a abelha, o elefante e o “ladrão de mel”; o veado, o peixe, a prostituta Pingalã, a ave kurara, a criancinha, a mocinha, o fazedor de flechas, a serpente, a aranha e a vespa. - Com certeza – disse Siger, tomando um pouco de água do riacho - por estudar as atividades deles você aprendeu a ciência do eu. - Sim. Você bem sabe do que fala, senhor de Brabant. Bem sabe. OPUS 23

Estávamos novamente na estrada. Passáramos um burgo em chamas e não me lembro de, na vinda atrás dos ciganos, ter passado por estradas similares. Os hindus ficaram para trás, já entretidos em outros assuntos. - É que nos perdemos – disse um dos soldados. - Como assim? – perguntei. E ele deu de ombros. Brabant veio em auxílio. - Há alteração no equilíbrio do ambiente. Enquanto conversávamos com os nômades, com certeza as gentes dos Templários passaram por aqui. Não sente certo ar de entranha decomposta? - É... agora que você tocou no assunto. - As névoas são passageiras, mas nos farão rodar e andar em círculos. Ficar aqui também de nada adianta. Não quero mais parar.

A impetuosidade de Brabant não tinha freios. Ele ordenou que alimentassem os cavalos e que muita água lhes fosse fornecida. Eles seguiriam. O sol já era intenso pelo meio do dia. O cheiro de carne podre aumentou. - Eu sei que os ciganos agiram de má fé, no entanto, as mulheres não deixam de ter relações com a alquimia e feitiçaria. Isso ajuda em muito as inferências invisíveis – ele disse. Uma pessoa sóbria, mesmo quando molestada por outros seres vivos e, nesse caso, não tão vivos, deve entender que seus agressores agem sob o controle de alguma força, sempre, e por isso jamais devemos nos desviar da senda que trilhamos... devemos nos manter em nosso próprio caminho. Eis um princípio de magia, caro Marcus... Esta regra eu aprendi com a terra.

Os cavalos relincharam alvoroçados, pois sentiam a presença de outros animais e outros seres. Prestando muita atenção nas curvas da estrada só podíamos notar que aves negras cruzavam o caminho, de árvore a árvore a sombra se ampliou, apesar do horário. Urraca se aproximou e pediu para se manter ao meu lado. - A terra é o símbolo da tolerância – Siger falou, olhando para a mulher, com certo ar de quem não pode fazer mais nada e percebe que nem a mulher poderia, a não ser sofrer as conseqüências. Montamos e a trote seguimos. O vento ficou mais intenso. Muita areia atrapalhava os cavalos e nos impediria de acertar com os atalhos. - A Terra será constantemente molestada, caro Marcus, por entidades vivas demoníacas. Às vezes, florestas densas são destruídas por seres cobiçosos e a superfície da terra é encharcada pelo sangue dos soldados mortos em guerras cruéis. Em nenhum momento em minhas lutas, tenho como meta principal a morte do oponente. Você viu que travamos um combate e não houve perdas. - A não ser aquele braço que você tirou do cigano. - Um detalhe... mero detalhe de lembrança, apenas. Ele não fará isso novamente, eu espero. Pelo menos com aquele braço. Entretanto, a despeito de todos esses distúrbios, a terra continua a nos fornecer todos os recursos. Dessa forma poderemos aprender a arte da tolerância, estudando as atividades da terra.

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Rumamos em corrida louca através do manto de pó e folhas que desabavam sobre nós. Então rolou, perigosamente em estrondo, uma pedra enorme, que dilacerou troncos e outras pedras, arrancou touceiras e matos em sua passagem. Não paramos e, por nós, uma saraivada de pequenos bólidos veio nos atingir as costas, fazendo com que os cavalos ficassem nervosos e acelerassem. Mas Siger não parava de falar. - Uma pessoa deve aprender com a montanha a dedicar todos os seus esforços a serviço dos outros e a fazer do bem-estar dos outros a única razão de sua existência. Grandes montanhas sustentam quantidades ilimitadas de terra, mas naquele momento pareceu que estavam líquidas e friáveis, pois jorrava uma enxurrada de barro e lama que brotava dos altos montes à nossa esquerda. - Percebe, Marcus – Siger gritava entre a poeira que nos ressecava a boca - que, por sua vez, essa avalanche nos direciona? Que essa tempestade de areia e folhas mostra o caminho que devemos seguir? As montanhas também derramam ilimitadas quantidades de água cristalina sob a forma de cascatas e rios, e esta água dá vida a tudo. Percebe? Eu queria sair dali o quanto antes. Urraca de ValVerde, em minha garupa, se agarrava com força imensurável. Teve um momento que ela me cutucou e apontou as laterais da estrada, além das árvores e eu pude ver outros cavaleiros que por ali transitavam. - Quem são? – ela perguntou, no meu ouvido, ainda gritando. - Não são os soldados de Siger? - Não! - Então, eu não sei! - São os Templários – falou De Brabant e vi que ele acenou para sua milícia, correndo naquela direção, todos levantando armas, deixando eu e Urraca a sós, na carreira desabalada em meio de um nada cercado de ventos e terra. OPUS 24 Em um átimo nosso cavalo despencou na água. Urraca bem se prendeu ao meu corpo com unhas e dentes, para não cair da montaria. Mesmo assim, quando nos livramos do redemoinho de terra, pedras, folhas e galhos, nos vimos imersos em água abundante, de correnteza copiosa. Nada mais. Em volta um silêncio de pedra e uma imobilidade incessante. Subimos para a beira, encharcados e cansados. Juntos dormimos um pouco. Fizemos uma fogueira para secar roupas e assar alguns milhos. Depois disso veio a noite e nem sinal dos cavalos tanto de Templários quanto da milícia de Siger. Quando esfriou, na madrugada, Urraca veio para perto de mim e não dormimos, pois nossos abraços foram mais intensos. Buscas memoráveis. Engalfinhados em ardores, sentíamos pele contra pele e uma união ímpar. Os corpos se esquentavam e eram solidários. Naquele momento, percebíamos que estávamos rodeados por inumeráveis objetos materiais que possuíam qualidades boas e más. E nós dois, eu e Urraca, éramos defensores do prazer imediato e não nos tínhamos, evidentemente, como quem tivesse transcendido o bem e o mal materiais. Na verdade, muita vez nos deixávamos enredar, impondo severo contato com objetos materiais de vulto, como nossas loções oleosas para banho, alimentos que ampliavam a sensação dos corpos, perfumes e loções. Algum tempo depois nos separávamos, cansados, sobre as roupas jogadas no chão de terra fina. A noite era imperiosa, com estrelas e sombras misteriosas. Era possível ouvir um canto vindo das lonjuras. Mulheres cantando, entoando hinos e algum grito. Percebi que a noite era de Lua Negra. - Mas, antes se deve agir como o vento – ela disse. - O quê? – eu tornei – Não entendi. - Antes devemos agir como o vento. – Urraca repetiu, com certo sorriso nos lábios quentes. - Às vezes, o vento sopra através da floresta, transportando fragrâncias de frutos e flores. Em outros momentos, o vento queima e reduz a cinzas essa mesma floresta. – E isso ela dizia como em estado de fascinação, olhar fixo no céu, o peito arfando levemente, os seios amplos agindo como estorvo ao pensamento claro. Entretanto, o vento nos foi fiel e manteve-se tranqüilo em forma de brisas quentes enquanto nossos corpos se enrodilhavam na grama, perto da fogueira latejante. Urraca manteve-se apegada a mim e gemia deliciada. Eram atividades auspiciosas e pouco toleradas pela Igreja e pelo crescente número de moralistas, defensores de uma retidão frustrada, permanecendo alheios em sua própria natureza.

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Pode-se estar numa cidade infernal ou num bosque aprazível. Em ambos os casos deve-se experimentar bem-aventurança transcendental no encontro de corpos e nos amores e isso é definitivo. Portanto, devemos aprender com o vento a arte de andar pelo mundo material sem apego, mas curvando árvores, acendendo labaredas, empurrando seres frágeis, levantando folhas e poeira. Lembro que dormi. Dormimos. Uma ou duas horas e de repente ouvi gritos lancinantes. Eu ainda tonto pensei ver mulheres várias enquanto Urraca gania desesperadamente. Fui puxado pelos braços, mas estava tonto, de sono e dos braços da mulher. Fui depositado numa cama de palhas e tive minhas roupas arrancadas. Uma fogueira enorme crepitava no meio da praça de árvores. Muitas mulheres nuas e semi-nuas dançavam, mas eu não conseguia distinguir faces ou vozes. Elas cantavam ladainhas febris e tinham certo arroubo de enlouquecidas. Elas vinham para cima de mim com desejos de cópula. O ruído era intenso e após duas vezes a copular eu cansei e percebi que elas forçavam a que eu bebesse alguma coisa. Um líquido viscoso que parecia sangue com outras substâncias de origem láctea. No começo da noite elas me tomaram várias vezes, mas eu caia de cansaço e após o tempo necessário elas me tomavam novamente. Seguiu assim a noite. Em todas as mulheres eu queria ver o rosto de Sonja, mas não a encontrava. Mera desculpa. Por fim, acordei e era manhã. Estava sozinho. Nem Urraca nem mulheres, apenas uma fogueira, ou o que restava dela em palha e madeira molhadas, fumegando sob o orvalho e o frio da manhã. - Embora o vento poderoso sopre nuvens e tempestades pelo céu – pensei - o céu jamais se compromete nem é afetado por essas atividades. Mas não é o meu caso. Tenho que me recompor para pensar e inventariar o que restou dessa noite. OPUS 25 Três dias depois eu chegava à estalagem e a primeira pessoa que encontrei foi Siger, que ria, sentado em um tamborete, livro à mão, olhando para mim. Fez um cumprimento, lá do alto da sua janela, e entrou para o aposento. Os amigos estavam preocupados, mas não consegui diminuir-lhes a atenção em função da perda de Urraca e das mulheres. Numa rara ocasião como aquela, arrisquei a adverti-los de que talvez Siger soubesse mais do que contou, mas Pietro de Ferrara disse que ele não tocara no assunto, pelo menos entre eles. Já com os amigos doutos, Pietro não saberia afirmar. LaCordaire explodiu: - Bem, eu não quero alguém para me dizer o que é que se pode ou não se pode fazer, numa circunstância dessas. Estamos numa encruzilhada de pensamento e vertentes... deve ter um caminho. - Ninguém aqui é pago para dizer coisa alguma, LaCordaire. Mas, parece claro que estamos todos à mercê de experiências muito estranhas... mesmo para o nível de nosso conhecimento. E é claro, tem muita coisa escondida e secreta... - Isso é bem certo – LaCordaire concordou a contragosto. - Não é somente na negligência aos refinados processos da lei e dos arcanos que os estudiosos sobrepujaram os contemporâneos da Europa – eu continuei e acabei por contar o que ocorreu na viagem, sem esconder o episódio com Urraca e as outras mulheres. - Bem disseram que as mulheres chegaram muito diferentes em emoções e sentimentos, comparando como estavam quando daqui foram – falou Pietro. - E Siger tem algo a ver com isso. Ele ficou em conversação com os Templários... pelo menos com aqueles representantes descarnados. E eu fui tomado pela lascívia e pelo mistério das mulheres. Quando lutavam, ele substituía a espada com terríveis golpes de machado bem assentados nos escudos dos inimigos... era um cavalheiro com punhos do desordeiro. - Há outro bom exemplo – dizia LaCordaire, enquanto eu me sentava no catre - foi a briga pelo controle da estrada que atravessa a floresta que temos aqui ao lado da colônia de ciganos. Vi tudo isso que você descreve, Marcus. O tal senhor de Brabant é muito poderoso com arcos e flechas, também. Parece que uma ligação vital entre estradas e rios... um sistema de transporte que foi disputado por monges e aristocratas da região, nesses últimos três dias. Um aristocrata inglês chamado Morgan. Morgan mantinha em

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suas mãos um dos extremos da estrada, e o outro terminal – o que dava vazão aos rios, era mantido pelos monges, mas auxiliados pelos ciganos. Tudo aquilo a proteger uma fortaleza. A fortaleza do Fisher King, como dizem por aqui, assim mesmo, em inglês. - A coisa foi resolvida com a entrada de Brabant na história. Nem bem chegou e partiu para aqueles lados, carregando pólvora e uma guarnição maior. - Onde ele conseguiu pólvora? - Não sei... Cada lado – monges e Morgan - colocava barcos, charretes, em seu extremo da estrada ou entrada de rio, fazendo com que cada um deles parecesse o dono definitivo das linhas. Então partiram uns contra os outros, como se fossem duas máquinas, a correrem uma contra a outra. No meio do caminho – LaCordaire finalizou a fala de Pietro – De Brabant explodiu tudo e os dois lados ficaram sem saber mais o que fazer. Os dois lados eram perdedores. E mesmo depois disso não cederam; cada um se retirou da luta carregando o melhor que pode, inclusive destruindo casas da colônia ou barcos. - O que vejo é que há um corpo-a-corpo pela supremacia de determinados poderes, agora concentrados nesta região. Não é à toa que sumidades da religião, da magia, da ciência, da filosofia se encontram nessa pequena estalagem – falei. - Só que estão a fazer um barulho terrível e logo chamarão atenção para esse pobre local – disse Pietro. - Não há nenhuma trégua a ser pedida ou ser concedida. Até mesmo a pólvora chinesa teve sua utilidade nessa disputa; chegou a ser empregada para eliminar oposições e demonstrar um poder maior, por parte de Siger, o que fez com que os outros grupos murchassem em seus ideais. Isso só parece, caro Pietro. É apenas a imagem do que está por baixo. Uma ilusão construída. Um véu – continuei, após um gole de boa água. - Os grupos interessados estão por toda parte. Já estão por aqui, com espias e falsos amigos. Todo cuidado é pouco, agora. O papado se mostrou intransigente demais... teimoso e perigoso demais; tive acesso a documentos que mostram que a Inquisição está recrudescendo em métodos e modos de investigação e... persuasão. Enquanto meios menos violentos, tais como o seqüestro, são notáveis pela engenhosidade e pela imoralidade. Mas, há também assassinatos. - Não é preciso dizer que os padres estão obrigando um e outro a saltar para a fogueira... por que tratariam o público com reverência ou bondade? Enganar e sugar os inferiores nesta terra é considerado algo normal e as confrarias, paróquias, monastérios, são como um mercado persa... uma casa particular de jogos para os ricos, para cardeais, no qual o público faz as apostas em indulgências e um lugar no céu... e os poderosos ajeitam as cartas. - Quem mais está aí? - Magos e pensadores árabes – disse Pietro. Alguns já discutiram com Tomás de Aquino, defendendo Averróis e você sabe como Tomás se dirige aos averroístas. Bateram à nossa porta. Era Siger. Pediu para entrar. Cumprimentou-me, tocando a testa com os dedos, rapidamente, e contou um resumo do resto de horas que passou ao lado dos Templários, dias atrás. Ele afirmou que estados de proibição e estados de mistérios darão resultados funestos e terríveis naqueles próximos anos. Alberto viria para falar comigo sobre o assunto. - Proibido! Inúmeros assuntos proibidos pularão em nossos colos em breve. O que parece é a aproximação de uma rachadura imensa entre os poderes pensantes e a Igreja – Siger falou bem alto. Ele adaptava-se a situações alternativas como um missionário, que na verdade era. Ele, Siger de Brabant, em uma terra de seres primitivos, de pensamentos basais, recusava-se a tornar-se um nativo, preservando sua integridade ao custo de estudos, alguma batalha e desavenças constantes com os superiores de sua ordem. - Muitos o admiram, - eu disse - e mesmo o amam. - Mas eu não tenho amigos íntimos e nem é bom que tenha; não há homem que me trate apenas pelo primeiro nome, e nem serei amado por mulher... assim... completamente. - Todo mundo vai pensar duas vezes ao se aproximar, após ver como o senhor De Brabant maneja o escudo e as armas de guerra – disse LaCordaire, sempre com a sua astuciosa sinceridade - Como seria de esperar, enfim, o senhor é uma massa de excentricidades. Siger de Brabant se retirou, desejando uma boa noite.

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Passei mais dois dias dentro do meu quarto e só ouvia rumores. Recusei a ler os relatos das reuniões, que Pietro mantinha em livros empilhados junto de uma parede em seus pacotes originais; e não via sentido em arrumar a cama; as cobertas eram puxadas quando o frio se esgueirava pelo madeirame das paredes; ou para fora nas manhãs mais quentes. A preguiça era minha meta. Um tanto taciturno, podia sentar-me por longas horas em silêncio quando as visitas – Pietro, LaCordaire e Alexandrino que de repente desapareceu de nossas vistas dizendo que passearia nos campos, vinham ansiosas por relatar os pronunciamentos. - O senhor de Brabant – passei a ouvir, em gritos exasperados, uma das vozes que estavam em reunião. Em princípio era para que tudo aquilo fosse sigiloso – O senhor é um soldado terrível com um machado lidando com as determinações papais. - Assim o faço, quando as autoridades o exigem... – Siger exagerava na explicação – a Igreja, monsenhor, põe de lado as fichas das alminhas que devem ir ao céu... as alminhas que de alguma forma deviam algum pagamento... faltosos a alguma missa, e quando as ovelhas foram separadas das cabras ela, a Igreja, como que por acidente, misturava as duas novamente, sem saber quem pagou ou não as maravilhosas indulgências. Percebi que ele era curiosamente sádico, era capaz de piadas cínicas misturando religiosidade e ciência, muitas vezes parecendo que não se levava a sério. Fiquei sabendo de uma história sua, de tempos passados quando a juventude se expressava com maior vigor. Siger estudava ainda no seminário... Para livrar-se de um fazendeiro que queria a destruição do seu convento... tomou, um dia, emprestado do fazendeiro um saco que devolveu, depois, com um vespeiro dentro, com a seguinte nota: “Mexer no convento é como abrir esse saco.” Muitas vezes fazia a cena com o papel de ser enigmático, recusando-se a se comprometer com certas ideologias; uma vez pediram sua opinião sobre um certo texto erudito, ele respondeu: "Há uma boa média de palavras... creio que de quinhentas e trinta e quatro em média. A média do autor do texto é que é baixa." E, o mais estranho, este homem sardônico, muitas vezes hilariante, comprovadamente guerreiro e comandante, era também muito cativante e tinha a indefinível qualidade de ser atraente às mulheres. Diziam, ele não confirmava e nem negava, limitando-se a sorrir, balançando estudadamente cabeça coroada de cabelos anelares, que sempre estava envolvido com uma ou outra mulher, e nem sempre porque desejava. - "O que você faz quando uma mulher se atira sobre você, pretextando tomar bênçãos ou uma conversa sobre teologia?" perguntou uma vez. OPUS 26 Mais debates. As discussões se sucediam na semana e eram árduas. Aprendizes e mestres conseguiram retirar das mínimas idéias uma vasta complexidade de temas e diretrizes. - O que eu sei – dizia Bacon – é que uma nova era se aproxima. Coisas novas se anunciam veementemente nos céus, na terra, entre as pessoas, entre os poderosos... entre nós. Vou repetir aqui o que Jerônimo disse, quando vislumbrava a invasão e pilhagem de Roma: “A voz fica na garganta e os meus soluços interrompem a mim, enquanto dito essas frases... enquanto perco minha palavras em meio ao salgado das lágrimas... ao ditar estas palavras. Foi conquistada a cidade que conquistou o universo.” Um novo bando de visigodos, comandados por um novo Alarico, está invadindo o saber, construindo novas pontes, enxergando novos túneis... se naquele momento, trezentos e tantos Jerônimos soluçavam... hoje devemos dar a mão para novas bênçãos e abrir nossos olhos para esse benéficos invasores. - Certamente, antes mesmo desse golpe, as fronteiras do Império já estão cada vez mais violadas por levas de migrações de vários saberes, conhecimentos bárbaros, anotações e sabedoria estrangeiras nos impõem discussões mais acaloradas – eu resolvi participar mais ativamente e fiz questão de expor minhas convicções. - As invasões bárbaras – completou Tomás, com certo desdém. - Há que se ressaltar que houve um tempo em que a economia e as ações políticas estavam em crescente desorganização – eu falei e percebi que havia atenção – Não podemos nunca deixar de lado as vitórias e desventuras mundanas. Como essas atividades interferem na vida das pessoas. Olhem bem! Rotas comerciais hoje são abandonadas, as vilas ganham população, mas o campo recebe gente de várias outras

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povoações e então, as províncias se rebelam. - Concordo com essa visão, Marcus. O cenário é claro, a divisão do Império em Ocidente e Oriente, tantas vezes realizada e desfeita, vai se impondo definitiva – Alberto Magnus disse, encostando as pontas dos dedos, mão contra mão. – E o antigo Império Romano, sabemos todos, hoje é a Igreja Católica Apostólica Romana, herdeira de tudo, para o bem e para o mal. O Ocidente transforma-se, lentamente, em um mosaico de reinos que já eram chamados de "povos bárbaros" , os invasores bárbaros, como diz Aquino. E eles vão assimilando em suas tradições valores romanos – houve uma pausa em que ele pensava - o cristianismo, se é que podemos chamar o cristianismo de valor romano. - A nossa época se caracteriza como uma era de obscurantismo, perseguições, essa mistura dos místicos e de religiosidades disparatadas, sem ajustes, sem controle – falou o monge de Cister – e não duvido que quando passar tudo isso, os herdeiros de todo esse pensamento não venham, com arrogância, implantar um novo nascimento das artes, da literatura, de tudo, enfim... sob o domínio de reis e lordes, longe do poder das nossas igrejas benditas. - Igreja bendita fica por sua conta – replicou Magnus - Essa carga de desprezo pelo novo e pela pesquisa não lhe cai bem... por cerca de mil anos se divulga um esplendor do mundo greco-romano e seu, digamos, renascimento. E o que temos aqui, se bem observarmos? Epidemias tidas como punição divina. Guerras incessantes contra mouros, contra islâmicos, contra feiticeiros e alquimistas? Onde a aplicação diária de um conhecimento útil às pessoas? E esse profundo sentimento de medo... nem a morte temem tanto quanto o simples estar vivendo sem saber para onde ou por quê. - É impossível ignorar os produtos culturais, mesmo os subvencionados pela própria Igreja. - Ela é a principal culpada pelo retrocesso da cultura – gritou Vermont, fazendo balançar a mesa, estrepitosamente. Vermont era Franciscano e não suportava mais as perseguições. - Mas, é também responsável pela conservação de quase tudo o que se preservou do pensamento clássico greco-romano – explicou o cisterciense. No mundo predomina o campo, e a agricultura de subsistência... - ... os monastérios, esses refúgios rurais onde os religiosos, longe da vida mundana, buscam a purificação da alma – falou em tom certamente zombeteiro Siger de Brabant. - Mesmo nesse caso... devo dizer, com todo respeito ao nosso guerreiro... a Igreja representa sobrevivência da cultura. Ali, os monges, enquanto rezam e trabalham... - Ora et labora – falou Tomas Aquino bem baixinho para o meu lado – esse monge é um beneditino disfarçado, acredite... - ...se dedicam à religião, à organização do trabalho rural e da cópia, à compilação, à tradução, ao comentário de textos da Antiguidade. - Não podemos esquecer dos árabes... – dizia Bacon – nunca! Para além do mundo cristianizado, há nas regiões árabes e islâmicas um pensamento filosófico e cientifico. Não se pode esquecer disso! - O rei é uma pessoa santa – começou o senhor de Brabant - assim como a água, porque está livre de toda contaminação. O Rei é amável por natureza, e, ao falar, produz uma bela vibração, como a da água corrente - . Estava claro que Siger se deliciava com a jocosidade. - O que você que dizer com isso, Siger ? – Tomás perguntou. O Monge de Cister olhava com certa mofa. - Deixa que eu continue a minha história... Simplesmente por ver, tocar ou ouvir tal pessoa santa, qualquer ser vivo se purifica, assim como uma pessoa se purifica pelo contato com a água pura. Deste modo, uma pessoa santa, tal qual um lugar sagrado, purifica todos aqueles que entram em contato com ela, uma vez que sempre canta as glórias do Senhor. – De repente ele se exaltou – Querem nos fazer entender que uma aliança entre papa e rei signifique que o último é santo? Se nem o primeiro o é? Essas alianças servem para eliminar focos de pensamentos alternativos e novos... enquanto seus monges copiam e comentam conceitos da antiguidade... temos os árabes com o conceito puro e vivo para usarmos já... e além do mais... esses comentários, como o senhor de Cister fala, são comentários com certa tendência... dirigidas por superiores que comentarão de acordo com o interesse do papado... Por acaso se esquecem o episódio de Guilherme de Baskerville? – ele olhou a todos, principalmente ao monge enquanto durava o silêncio - Por acaso esquecem o lugar em que estamos e as influências que

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temos recebido ao longo de todos esses séculos? – ele olha para todos como se estivesse prestes a desferrar golpes e morder. Um e outro monge sentem arrepios de medo. – Isso que percebem ser uma novidade, é, aparentemente, mas só aparentemente a renovação dos quadros do saber. Sempre se centralizou todo o conhecimento na Europa... é comum dar suporte, por escolha e comodidade, nos mais importantes centros urbanos do reino franco: Lion, Reims, Chartres, Paris. Puro reducionismo!, - ele gritou. – Grave redução! O fenômeno é muito mais disseminado e suas origens remontam a outros povos e terras. Desde logo temos a península Itálica, que disputa a primazia não só para as ciências da medicina e do direito, onde o seu pioneirismo e predomínio são inquestionáveis, mas também para as traduções greco-latinas de filosofia helênica e da patrística, além de serem daí originários alguns dos mais influentes pensadores em todo o processo, como Anselmo de Aosta e Pedro Lombardo, disso não podemos negar. A renovação das ciências das coisas, as artes do quadrivium e as ciências exatas, dependem das traduções e de obras compostas na península Ibérica, região onde se realiza a mais impressionante massa de traduções científicas, médicas, filosóficas e religiosas... a partir de quem?... a partir de que povo?... a partir do árabe, por um vasto e ainda pouco conhecido conjunto de tradutores não só hispânicos, mas também atraídos um pouco de toda a Europa; de fato, na Península Ibérica encontramos também itálicos, francos, um eslavo, germânicos, britânicos e conversos, a traduzir obras do árabe para o latim. Não cometo aqui erro algum... nem desabono o que já sabemos e o que haveremos de saber, mas não aceito a redução das coisas, nem a limitação da sabedoria que outros povos nos trazem... mesmo que de outros credos.... Das ilhas britânicas provêm alguns importantes mestres que já estão em Paris e, um ou outro tradutor ativo na península Ibérica, mas ainda não se destaca aí nenhum centro escolar. Da Bretanha, provém um dos mais... figura das mais destacadas da filosofia: Pedro Abelardo. – Ao ouvirem esse nome vários padres e monges emitiram grunhidos de horror e de ressentimento. - Mas as mudanças são bem visíveis e fazem-se sentir um pouco por toda a Europa. Nisso ele parou e apontou o dedo em riste para todos, para logo em seguida tomar um ar sonhador e poético, retomando a palavra dizendo: - Uma pessoa santa é como água pura, livre de contaminação e capaz de purificar todas as coisas. Assim como a água pura é transparente, a pessoa santa manifesta transparentemente a Personalidade de Deus dentro de seu coração. Tais os conceitos que estão impingindo nas pessoas das vilas e dos campos, que nem sabem ler e nem sabem entender coisa alguma... A divindade do antigo César logo passará para algum Rei... Reis que já nascem divinos...! Estamos corrompendo as pessoas com essa baboseira de que o amor a Deus é o reservatório de toda a felicidade, e que elas buscarão essa felicidade depois que estiverem mortas... Tolices! Devemos fincar nosso pé contra isso. Fazer uma parede de proteção contra essas atitudes bélicas do cristianismo e seus representantes... - O senhor propõe o quê? Tirar o papa de Roma? Levá-lo para algum outro lugar e dar-lhe umas chineladas? - Isso não seria mau... mas ele é tido como uma pessoa santa - continuou Siger, tempestuoso - assim como o fogo, às vezes aparece sob forma oculta e outras vezes se revela. Para o bem-estar ou para o mal-estar das almas que desejam felicidade a todo custo..., uma pessoa santa pode aceitar a posição adorável de um mestre espiritual e este mestre espiritual pode ser um falso mestre e, assim como o fogo, produzir o pecado que era já passado em sólida promessa de futuro pecaminoso... daqueles que adoram, aceitando as oferendas. - Andar com as mulheres pelos burgos faz parte desse pecado, senhor de Brabant? – perguntou sorridente o monge de Cister, dono daquele ar característico de quem dá o cheque-mate. - Não. É a busca de um prazer carnal interessante e humano. As fases da vida material, a começar do nascimento e culminando na morte, são todas propriedades do corpo e não da alma propriamente dita, assim como os aparentes minguar e crescer da Lua não afetam a Lua em si. Se é que me entende... Essas transformações – e nesse momento Siger de Brabant começou a andar pela sala, assim como quem discursa num palco a sua mais recente poesia - são impostas pelo fluir do tempo. O corpo se submete a seis transformações e os hindus podem me auxiliar nesse pensamento: nascimento, crescimento, manutenção, produção de subprodutos, degeneração e morte. - E a sua comparação continua sendo lunática... – disse assim o monge.

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- Sim. A Lua é minha referência para hoje. A lua dos sabás, a lua satélite, a lua das esferas celestes, a lua das grandes noites... De forma semelhante, a Lua parece crescer, diminuir e desaparecer. Ora, como o luar é um reflexo lunar da luz do Sol, a Lua não cresce nem diminui; percebemos o reflexo da Lua em diversas fases. Quero usar essa analogia que me parece boa... a alma eterna não nasce, nem morre... o corpo material é certamente uma manifestação efêmera e fantasmagórica da potência externa do Senhor. - O que é agora... um encontro filosófico se transforma em encontro de ocultistas... – disse o monge. - É mais um dos temas que trataremos nesse encontro. Vi que ao lado do monge de Cister outros pensadores e professores, clérigos ou não, se agruparam , como uma reação contra o tema obscuro. Parece que tomavam seus lados para um possível embate terrível. - A questão da Lua... a questão do homem... os sabás... a alquimia... são caminhos de estudos que uma parte grande de nós todos estamos seguindo, se não para usar, pelo menos para conhecer e poder refletir sobre a matéria, já que povos inúmeros de todos os tempos são depositários de saberes e ciências similares... Não é por que critico averroístas e árabes que não vou buscar saber sobre eles. Saber para debater e argumentar... – falou Tomás. - Contra inimigos de Deus e dos homens... - Também não me interessam valores preconcebidos... não acredito que o monge de Cister venha ao nosso encontro para se vestir de uma mente fechada... - replicou Tomás com certa tranqüilidade... - Sendo a alquimia uma obra do demônio, ou ao menos um depreciável sonho, um gênio, um doutor, um mestre como Tomás não lhe pode dar crédito – disse Vermont, enfiando as mãos para dentro da bata. - Tal é, em efeito, o fundo pueril e especial das argumentação que vimos recebendo nesse campo: em rigor, eu digo, não se pode contestar nada a um autor que quer demonstrar na mesma obra que nem Zoroastro, nem Pitágoras, nem Plotino, nem Porfírio, nem Jâmblico, nem Jerônimo Cardan, nem Geber, nem Arnaldo de Vilanova, nem o nosso excelso e forte amigo Roger Bacon aqui presente, muito menos Tritêmio, nem se quer... os Reis Magos... nunca haviam sido iniciados em qualquer aspecto da Magia. E o senhor monge de Cister, Vermont e estudiosos querem afirmar que tais homens não serviram para nada, ao longo das nossas histórias e da história do mundo? - Há um texto em que trabalho agora – dizia Tomás - onde combato formalmente a possibilidade da transmutação metálica. Mas deixo claro e em aberto que aceito discutir essa possibilidade. Aceito a transmutação, em si... o fenômeno em si... ou não poderia aceitar a carne no pão, nem o sangue no vinho... Tanto que comento a possibilidade da feitura de ouro, não como a maioria dos alquimistas aceita, por ação do fogo, mas acredito, por ação do calor do Sol e nesse caso, não digo do calor do Sol do céu, mas do enxofre – o Sol na Terra. Não há uma simples transmutação... como se propaga popularmente... mas há uma complexa transmutação. E é necessária muita paciência para se chegar ao intento. - Muita coisa não se deve esquecer – falei – como, por exemplo, um ponto incontestado e incontestável que é o fato de Tomás de Aquino ser o mais ilustre discípulo de Alberto Magno. Seria muito difícil e paradoxal querer eximir ao Grande Alberto de haver praticado a Magia e a Alquimia, e seria mais incrível ainda pretender que um mestre do gabarito de Alberto, respeitado por todos, que dá uma importância tão grande à ciência do mistério, não tivesse ensinado a seu discípulo ao menos umas noções desta mesma ciência. - Mas, senhores, - falou Tomás – qual é o verdadeiro papel da alquimia na nossa época? Em geral se acredita que é objeto de horror, de anátema e de maldição, em mesmo nível dos malefícios, dos envenenamentos e dos homicídios – Tomás de Aquino olhava a todos com ar professoral e manifestações corporais intensas. Nesse momento a porta se abriu e Pietro de Ferrara entrou, sem interromper, vindo para meu lado, dizendo que Alexandrino estava pior. Tinha delírios e sonambulismos, mas assentou-se para escutar e fazer o seu papel de escriba. Tomás continuava - Nada menos – ele dizia - nada menos exato. O Tratado da Pedra Filosofal, como cita o comentarista Boaventura Des Periers é quase um artigo de fé em nossa era. Somos contemporâneos de grandes torpezas e grandes descobertas, senhores.

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- Não se pode citar a todos os autores eclesiásticos que falam desse trabalho com admiração; contentemo-nos com recordar a Marbode em sua obra De Lapidum ou então a Jacques de Voragine na sua Legenda áurea. Posso citar ainda a Pierre de Natalibus no Catalogus Santorum, que diz, na vida de Santa Margarita, que a Pedra pode expulsar ao Maligno. Ou seja, há ações. Há reações. Há uma série de aplicações e experimentos já feitos com a Pedra Filosofal. - A alquimia – eu interferia novamente – já que se tocou nesse assunto, é entre outras, uma ciência exata de amplo uso em nossa época. Ainda que não forme parte entre as “sete artes”, o seu ensinamento iniciático se dá não menos que a aritmética, a cosmologia, a física ou a música. Sobre a alquimia há tratados importantes do Mestre Alberto, como já disse, além de obras de Hildegard von Bingen, incluindo a música das almas e de Hucbaldo de Saint-Amand, só para citar esses. Nem se se atribuirá sua invenção ao demônio. Como muita gente passou a falar ao mesmo tempo e o barulho ficou insuportável, Alberto resolveu que naquele dia os debates teriam fim. Havia muito a se discutir, desde os pontos referente à Lua, levantados por Siger de Brabant, além da inesperada intrusão nos campos da alquimia. O assunto brotou espontâneo e o tema atropelou as datas marcadas. Para finalizar o encontro Alberto disse: - A ciência que nos conduz ao conhecimento desses fenômenos e ao entendimento deles é a sabedoria por excelência. Isto de se falar das fases das sete operações principais da transmutação se oferece também à meditação sobre obras herméticas quase desconhecidas. - Esta frase, grande Alberto, se me permite – diz Cister - me pareceu sem sentido... - Mas saber sobre a Pedra Filosofal é uma das mais elevadas e inspiradas ações que existe. Portanto, senhores, peço que estudem o tema e achem nele o sentido. Em seguida, Alberto Magnus, de pé, elevou prece, com braços abertos, para espanto de vários e citou as seguintes frases: - Ars Laboriosa Convertens Humiditate Ignea Metalla In Caliditas Humiditas Algor Oculta Sivitas. - Cunctipotens Autor Lucis Omnia Regit. - Author Mundi Omnipotens Rex. - Iucunde Generat Natura Ignea Solis. - Iu Gehenna Nostrae Ignis Scientiae. - Aurifica Ego Regina. - Album Quae Vehit Aurum. - Trium Elementorum Receptaculum Recondo Aurifodinam. - Separando Venerum Leniter Philosophiis Homogeneam Viscositatem Resuscitat. - Medicinam Ego Rubeam Creo Universalem Regiamque In Utero Soli. - Solus Altiora Laboro. ALCHIMICHAOS.CALOR.AMOR. IGNIS. IGNIS.AER.AQVA.TERRA.SVLPHVR.MERCURIUS.SAL - Estas sentenças darão, de alguma maneira, a chave absoluta da Obra que deveremos desencadear, e acabei desejando que todos os presentes, como o têm feito todos os estudiosos que chamarei adeptos, tenham o maior êxito em suas experiências, se quiserem depositar a sua confiança e suas esperanças unicamente em Deus. Alberto Magnus assim finalizou. OPUS 27 Ao sairmos da reunião Mestre Alberto fez um sinal mostrando que queria conversar comigo. Era importante e urgente. Corremos, daí, eu e Pietro, para vermos Alexandrino, mas não o encontramos. Saímos todos da estalagem; a noite cobria os espaços e o véu era espesso. No retorno, o braço de Alberto estava sobre meus ombros e disse-me rapidamente que Tomás deveria dar-me algumas aulas finais sobre a transmutação dos metais e que isso seria segredo. Os outros estudiosos, pelo que ele vira, não estavam ainda tão aptos a receberem ensinamentos do oculto e temia que a reunião que ali se realizava pudesse se dissolver em contendas e rixas futuras. De qualquer forma, eu fiquei à espera de Tomás, mas já sabia que nada se daria enquanto ele não terminasse com suas perorações sobre as escolas antigas, incluindo Ibn Ruchd e Averróis, para depois adentrar em terrenos do oculto.

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Eu e Pietro, na mesma noite, saímos para a vila dos ciganos, mas o silêncio ali imperava, muito fora do normal. Nada obtivemos de notícias sobre Alexandrino. Depois nos embrenhamos, com tochas, mata a dentro até umas ruínas onde sabíamos que alguns grupos nômades se encontravam para dormir e continuar a jornada na manhã. Das pessoas que se encontravam no local somente uma nos deu atenção, mas vimos que tinha motivações místicas e a conversa foi nessa direção. Mais um avadhuta, um peregrino pobre e contemplativo. O avadhuta falou: - A perda de um amigo! Quantas coisas nos são dadas e depois retiradas... - Alexandrino é um dos aprendizes mais capazes, mas nesses dias ele tem suportado intensa ação do mundo místico... – eu expliquei. - Uma pessoa aceita toda espécie de objetos materiais, ou mesmo almas para cuidar, em caridade e, no momento apropriado, quando lhe é solicitada, ela devolve os objetos e as almas sem manifestar apego algum. Assim, tanto ao aceitar quanto ao renunciar a objetos e almas, dos sentidos, é certo, ele não se enreda. Esta é uma lição a ser aprendida com o Sol. Mesmo quando refletido em diversos objetos, o Sol nunca se divide, nem se funde em seu reflexo. Apenas aqueles que têm cérebros obtusos considerariam o Sol dessa maneira. De forma semelhante, embora a alma se reflita através de diferentes corpos materiais, ela permanece indivisa e não-material. Por isso se deve ficar atento às experiências e o que ele aprendeu com diferentes seres vivos e elementos da natureza material. Jamais devemos entregar-nos a afeição ou preocupação excessivas com ninguém nem coisa alguma, senão passaremos a experimentar grande sofrimento, exatamente como aconteceu com certo pombo tolo. - Acontece, avadhuta, que as relações entre cidadãos ocidentais caminham em outra direção. Em geral tendemos a cuidar e ficarmos solidários com os amigos e colegas de uma mesma ordem – esclareceu Pietro – E me parece que os seus podem passar ao longe que nada alterará a forma de pensamento. Nem a mínima preocupação? - Era uma vez um pombo – o avadhuta começou, como se nem tivesse prestado atenção em Pietro - que vivia na floresta com uma pomba. Havia construído um ninho dentro de uma árvore e ali viveram por vários anos. Os dois pombos eram muitíssimo dedicados. Com os corações atados por afeição sentimental, cada um deles atraía o outro com o olhar, com os movimentos do corpo e com revelações de pensamentos íntimos. Confiando no futuro, eles atuavam como um casal amoroso entre as árvores da floresta, descansando, conversando, divertindo-se, comendo e tantas outras atividades. Sempre que desejava algo, a pomba seduzia o pombo com lisonjas e ele, por sua vez, a satisfazia, fielmente fazendo tudo o que ela queria, mesmo à custa de grandes dificuldades pessoais. Dessa forma, ele não conseguia controlar os sentidos na companhia dela. Então vieram os pombinhos. Eles desenvolveram muito afeto por seus filhos e sentiam muito prazer em ouvir o som de seu arrulho desajeitado. Deste modo, com amor, eles se puseram a criar os pombinhos recém-nascidos. Ao verem os filhos assim felizes, os pais também ficavam felizes. Com os corações atados pela afeição mútua, e completamente confundidas pela energia ilusória de Deus, as tolas aves continuavam a cuidar da jovem prole. O avadhuta fez pequena pausa, olhou para o céu, mediu um árvore, suspirou e seguiu: - Certo dia, os dois chefes da família saíram para buscar comida para os filhos. Eles erraram pela floresta por longo tempo. Veio um caçador que levou os pombinhos. Quando os pombos regressaram, a mãe viu os filhos presos na rede do caçador, encheu-se de angústia, e, chorando, precipitou-se em direção a eles enquanto estes gritavam chamando-a. Estando presa nas garras da energia ilusória do Senhor, ela esqueceu-se completamente de si mesma e, voando em direção a seus filhos desamparados, foi imediatamente presa pela rede do caçador. Em seguida, veio o lamento do pombo. Ele se achava arruinado. Claro que sou um grande tolo e não executei atividades piedosas apropriadamente, pensou ele. Não pude me satisfazer nesta vida, nem pude satisfazer o propósito da vida. Minha querida família, que era a base de minha religiosidade, desenvolvimento econômico e gozo dos sentidos agora está desamparadamente arruinada. Eu e minha esposa formávamos um casal ideal. Agora sou uma pessoa desgraçada vivendo num lar vazio. Minha esposa irá morrer, meus filhos também serão mortos ! Por que deveria eu objetivamente querer viver ? Sinto tanta dor no coração por

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ter de me separar da família que a própria vida passou a ser mera dor para mim. Viu seus pobres filhos presos na rede e à beira da morte. Vendo-os a lutar pateticamente para se libertar, sua mente desorientou-se e, ao observá-los em desespero, ele próprio caiu na rede do caçador. O caçador, tendo assim capturado o pombo, a pomba e a ninhada, satisfez seu desejo e partiu para sua casa. Ante nosso olhar atento o avadhuta concluiu: - As portas da liberação estão inteiramente abertas para quem alcançou a vida humana. Apesar de tal oportunidade, se um ser humano simplesmente consagra seu tempo à vida familiar, ou a vida entre amigos, ou a vida em grupos e sociedades, como a tola ave desta história, então ele deve ser considerado como alguém que sobe até um lugar bem alto apenas para tropeçar e cair. Tal é a história de seu amigo. Tal me parece a história de vocês, se não tomarem atenção e se advertirem dos perigos a que estão expostos. Eu e Pietro de Ferrara olhamos um para o outro. É inevitável que o ser vivo experimente misérias sem as ter desejado, pensei. Tanto o avadhuta quanto Alexandrino poderiam passar por momentos desse tipo... momentos de duração muito variável... Nem se pode provar que o avadhuta não estivesse se escondendo por de trás daquela teoria toda, retirando de si as responsabilidades da solidariedade como Pietro já dissera. Do mesmo modo, eles poderão experimentar felicidade mesmo que a não busque. Caindo, por assim dizer, do céu, sobre suas cabeças absortas. Assim, uma pessoa de discriminação inteligente não faz esforço algum para obter a felicidade material. Tolos podem ir para o céu. Padres podem ir para o céu... seja lá o que isso signifique. Na caminhada de volta, provavelmente uma píton fugira do acampamento onde o hindu avadhuta se encontrava, nas cavernas, por assim dizer. E ela estava à nossa frente. A esperança é que tal cobra tenha sido alimentada periodicamente e esteja no seu processo de domesticação. - Se observarmos o que o avadhuta falou talvez devêssemos seguir os esforços dessa cobra e abandonar os esforços materiais e aceitarmos nos manter com o alimento que a providência proporcione, quer este alimento seja delicioso ou insípido, quer muito, quer pouco... - Quer sejam professores de filosofia perdidos na floresta ou representantes de qualquer seita oculta... – falei mais por brincadeira. - É – Pietro se resumiu a emitir, mas continuou, olhando para a píton - Se em dado momento não conseguirmos saber mais sobre Alexandrino, resta que nos mantenhamos em termos pacíficos, com muita paciência. Pacíficos e materialmente inativos, mantendo o corpo material sem fazer muito esforço, em compasso de espera, enfim, foi ele quem saiu de onde estava.... - E se foi carregado contra a própria vontade? – perguntei. - Olha a píton escorregando pela pedra, em movimento movediço e lento. Mesmo que goze de plenas forças, não devemos ativar nossa ansiedade e angústia, mas devemos permanecer sempre atentos aos verdadeiros interesses da pessoa. Talvez Alexandrino estivesse farto de nós e da comunidade... - Talvez ele estivesse sem poderes para decidir... Já que o havíamos deixado doente. - Concordo – Pietro disse – Esperemos então que o Senhor o esteja protegendo sob todos os aspectos. O exemplo da píton é dado para que aprendamos a não desperdiçar nosso tempo inutilmente. - Contudo – eu falei, enquanto tomávamos a estrada novamente, já que a cobra saiu de nossa frente, embrenhando-se na mata - não devemos entender erroneamente que o objetivo da vida é ficar deitado no chão como a píton, ou fazer um espetáculo de autoflagelação. A mera renúncia é uma fase imatura de compreensão espiritual, por isso não acredito que o avadhuta vá muito longe com sua teoria, principalmente quando perceber que a cobra sumiu e ele não tem mais espetáculo para fazer no burgo... pelo menos não com ela. - Certo. Assim, o exemplo da píton não deve nos estimular a nos tornarmos totalmente inativos, mas sim a nos tornarmos ativos espiritualmente, e consequentemente inativos no que diz respeito ao gozo material dos sentidos. - Apenas para podermos, naquele momento, pensarmos melhor e tomar a melhor atitude. Nada mais do que isso – completei.

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Alexandrino não reapareceu nem ao longo da manhã, nem durante a tarde e quando a noite caiu Tomás já estava terminando sua peroração sobre as escolas e métodos de trabalho e estudo. - É por meio dos filósofos árabes que muito do aristotelismo chega ao pensamento do Ocidente – ele dizia. – Mas, isso não quer dizer que devemos engolir toda a tradução ou comentário. - Além disso, as realizações cientificas e técnicas do Islä – matemática, astronomia, medicina ou engenharia – já prenunciam os estudos sobre superiores – disse Roger Bacon, bebericando uma chávena de chá. Tomás continuou, agradecendo a contra-gosto a intromissão do amigo. - No Ocidente cristão, a acumulação gradativa de cópias, traduções e comentários de textos antigos criou bases para a formação de um pensamento original, é o que percebo. - Uma nova escola de pensamento? – perguntou Pietro. - Sim. Isso será inevitável. Ganha corpo essa nova escola, e devemos, sobretudo, fomentá-la nas universidades, sem medo, fornecendo temas e pesquisando toda o tipo de fenômeno, trazendo luz aos homens e aos povos. - O desenvolvimento dessa nova escola, como o egrégio professor nos ensina – falava o monge de Cister - está se valendo, além da Igreja e a sua imposição, da unificação da fé crista, do emprego do latim, que é a língua universal... e isso é correto? - Eu acredito que sim – respondeu Tomás - embora ainda ache restrito o campo de ação dessa nova escola, pois ela alcança pequenos círculos de letrados, como nós... - Sei que Tomás deseja que a luz alcance com mais abrangência e eficácia as pessoas... porventura, as mais diversas regiões do mundo cristão devem passar a se comunicar com rapidez e consciência de sua fé, e um representante desse intercâmbio foi, com certeza, o monge da Bretanha, chamado Alcuíno. - Sim, mestre Alberto, Alcuíno de York, chegou à França a chamado do rei Carlos Magno. Tinha a missão de organizar o sistema educacional do Império. Para isso, ele funda escolas – sempre ligadas às instituições católicas unificando, para tanto, o conteúdo do ensino, que compreendia, à maneira romana, as sete artes liberais, isto é, dignas de um homem livre, e aí estava um perigo terrível, motivo de amplas perseguições e injúrias: gramática, retórica e dialética. - Ou seja – interrompi – aquilo que chamamos de trivium... - Exato, além de geometria, aritmética, astronomia e música, ou seja, o quadrivium. Nenhuma dessas artes, porém, justificava-se por si mesma: elas estavam a serviço da ciência das ciências, isto é, a teologia, mesmo que Mestre Alberto venha a discordar de mim. - A minha discordância acompanha apenas a linha de ação de certas personagens dessa nossa história, em função de suas raízes e seus pensamentos... por exemplo John Scott... Na fase em que essas escolas lançam suas bases institucionais, a teologia, seguindo o pensamento de Agostinho, é bastante marcada pelo platonismo. João Escotus Erigena é o principal representante dessa tendência teológica, não negaremos isso, e marca evidentemente os pontos em que me apoio para essa discordância. Nesse momento, o estalajadeiro pediu sua licença e foi aceito alegremente no aposento. Trazia mais chávenas com boa hortelã e outras ervas condimentadas, revitalizando nosso ânimo para a longa noite de debates. Algumas peças de porcelana grosseira passaram de mão em mão e durante alguns segundos quinze debatedores de vários lugares passaram a beber e a meditar, silenciosos. - Bem, senhores – retomava o senhor de Roccasecca – para John Scott bem como para Agostinho, a teologia expressa-se melhor por negações, ou seja, por aquilo que Deus não é. - Isso, no entanto, não impede – deseja esclarecer D’Espangner, com muito sotaque e uma certa gagueira nervosa na fala, deixando transparecer uma solenidade feminil e trejeitos delicados – a ele, o nosso excelente John, em sua obra Da Divisão da Natureza, de deduzir logicamente uma Ciência implicada na hierarquia dos seres, ou "naturezas", como as denomina. - Concordo. Por isso devemos expor essas idéias e conseguirmos uma linha para nossos pensamento atuais : primeiro, ele supõe a natureza que cria e não é criada. Deus como Princípio; depois, a que é criada e que cria; o Verbo, correspondente às Idéias de Platão; em seguida, a que é criada e que não cria o mundo sensível; e, por fim, a que não cria e não é criada, ou seja, Deus, considerado finalidade última.

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- O princípio e o fim estão, assim, interligados por uma cadeia de seres, que começa em Deus e nele termina – explicou Alberto Magnus - Tal sucessão seria a história, cuja finalidade, através dos tempos, é a de ser reabsorvida pelo princípio que a iniciou: Deus. Os homens se moveram em suas cadeiras, alguns anotaram dados, outros permaneciam atentos, um e outro demonstrava incredulidade. - A preocupação com as palavras é enorme para mim – dizia Monsieur de Vermont. Se a verdade está contida na Bíblia, é preciso saber lê-la, distinguindo o que pode ser entendido no sentido literal do que é apenas simbólico. - No entanto, nesse caso, não podemos deixar de lado o que os judeus nos reservam em termos de ideação e interpretação do símbolo, através da Kabalah – concluiu Alberto e houve certo rumor na sala. - Por isso, a nova escola se apresenta primeiro como estudo da linguagem, de que trata o trivium, para depois examinar a realidade das coisas, o quadrivium. Quatro é o número do sólido e da terra, e das coisas materiais. - Entre as palavras e as coisas, no entanto, que relação pode haver? - perguntou de Cister. - Veja bem – exortou Tomás de Aquino - A rosa, símbolo de perfeição, é também um nome que sobrevive à morte da própria flor; a palavra fala até de coisas inexistentes. Qual, então, a relação entre o nome e a coisa, a linguagem e a realidade? - Mas isso é um verdadeiro problema – exclamou de Cister. - Uma questão que irrompe nos corolários do universal – disse Pietro, secundado por frei Otto da abadia de Munz. - Isso ultrapassa os níveis da gramática e da lógica... - Sim, torna-se tema da metafísica e da teologia – completou Tomás. - Essa questão tem origem numa tradução latina de Isagoge, obra de Porfirio, em que esse discípulo de Plotino comenta a lógica de Aristóteles. Citarei o que Porfírio diz: "Não tentarei enunciar se os gêneros e as espécies existem por si mesmos ou na pura inteligência, nem, no caso de subsistirem, se são corpóreos ou incorpóreos, nem se existem separados dos objetos sensíveis ou nestes objetos, formando parte dos mesmos." - Diante disso, eu quero dizer – asseverou Alberto Magnus – que temos a obrigação moral de escolher entre duas posições básicas, cada uma comportando uma série de variantes, como é fácil aquilatar. Mas essa é a questão: Seguirmos o nominalismo, defendido por Roscelin de Compiegne que considera os universais meras palavras sem existência real, ou não. - Universais? – perguntei, e Alberto explicou. - Universais são termos que designam idéias gerais como "homem" e "animal". Eles não passariam de resultantes da abstração que o intelecto faz a partir da percepção de coisas individuais: ... este homem... este animal. - E qual a outra senda a se trilhar? – perguntou Pietro. - A isso se opõe o realismo, que sustenta a existência efetiva dos universais. Essa existência pode ser considerada, à maneira de Platão, como anterior e separada em relação às coisas, ou então, como presente nas coisas e delas inseparável, de modo semelhante à noção aristotélica de forma. Mas como podem ver, qualquer caminho que se siga há mil variantes e descaminhos para serem observados e examinados antes de tomarmos uma posição unificada e considerada definitiva. - Qual a sua tendência, mestre Alberto – perguntou de Cister. - Estou me identificando com a teoria realista, agora muito mais, após estudos meticulosos das obras de Abelardo e Anselmo. São aulas esclarecedoras, mas tudo isso ainda é apenas minha opinião. Digo que estou em fase de formar uma opinião. Quero aprender mais. - Tomás pode abrir esse leque de opções falando-nos sobre os dois? – perguntei. Tomás coçou o pescoço, escolheu anotações, passou os dedos longos sobre o papel e disse: - Bem, o realismo de Anselmo concentra-se na demonstração racional da existência de Deus: a palavra "Deus" indicaria um ser perfeito, o maior de todos; mas, se Deus não existisse, seria preciso supor algo que fosse ainda maior e que tivesse existência real, pois existir é uma condição de perfeição. Então a palavra "Deus" só pode indicar um ser realmente existente. Se, desse modo, Anselmo demonstra logicamente a existência de Deus, isso não significa que para ele a razão se sobreponha à fé. Antes, ao contrário, é porque a fé fornece a verdade divina, que torna possível o uso sem equívoco da razão.

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- Um bom argumento, sem dúvida – opinou Monsieur de Vermont. - Uma solução intermediária é sustentada por Pedro Abelardo. Para ele, os universais – dizia Alberto, pondo-se em pé para captar um pouco de água do cântaro de barro – os universais só existem no intelecto, mas, ao mesmo tempo, mantêm relação com as coisas particulares na medida em que lhes dão significado. Desse modo, é como significado que os universais subsistem às coisas. Abelardo tece tais considerações, que deram uma nova direção às investigações lógicas, sem as vincular às questões teológicas. Por outro lado, porém, forneceu para a teologia um modelo de argumentação que marcou muito a todos. Um método que confronta duas opiniões contraditórias a respeito de cada questão, para, desse confronto, extrair uma solução satisfatória. Novamente as anotações foram executadas com uma ou outra dúvida sendo corrigida. Cister, Vermont e Otto entraram, porém no tema do islamismo e passaram a sugerir que Tomás se posicionasse. Parecia que construíam uma equipe à parte. Para Tomás estava claro que, aos povos árabes, o Islã, palavra que significa "submissão à vontade divina" é muito mais do que uma simples religião. - É o que lhes dá identidade cultural e o que, durante muito tempo, lhes proporcionou unidade política, portanto não é matéria a se dedicar sem atenção especial. Em torno do Islã, quero acreditar, gira a história das religiões, é preciso compreender. Segundo o Corão, que todos aqui conhecemos, livro sagrado do islamismo, a origem do Islã está na missão que Mohammed teria recebido do anjo Gabriel... o mesmo anjo guardião do Jardim do Éden... o mesmo anjo que expulsou o casal do paraíso... o mesmo anjo mensageiro do nascimento de Emmanuel. - Ou seja, manifestação através da espiritualidade, sem contestação de parte alguma – disse Alberto. - Mohammed tinha a missão de propagar a vontade de Alá, o único Deus verdadeiro e criador de todas as coisas. A partir daí, Maomé assume a condição de Profeta e inicia sua pregação, que também é uma campanha política, mas podemos ver um sem número de similaridades com os hebreus, seus primos e mesmo o messianismo cristão – disse de Brabant. - Essa frase me soa herética, senhor de Brabant – foi a opinião de Otto. De Brabant olhou para ele e deu de ombros. – Mas tem coisa pior, se é que você deseja saber. O poder militar, por exemplo: em torno da fé ele unifica as tribos e os clãs em que se dividiam os árabes. Sofre perseguições que o obrigam a exilar-se, a chamada Hégira, mas contra-ataca, subjugando aqueles que não aceitam o Islã – Siger sorriu. – Já pensou, Otto, se tivermos que impor nossas idéias na base da catapulta e do laço? Aí iríamos para Roma, da mesma forma que Mohammed se instalou em Medina e, depois, Meca? - O fato é que os califas que se seguiram, os profetas, levaram adiante essa obra, construindo um vasto império que, no século X, já abrangia a Espanha e o norte da África, estendendo-se, a leste, até a região do rio Indo – disse eu, no intuito de ampliar as informações sobre aquela gente moura. E continuei: - Essa expansão, no entanto, não se fez sem divergências internas. Dentro do islamismo surgiram seitas dissidentes, como a dos xiitas. Além disso, rivalidades de todo tipo provocaram o surgimento de vários Estados árabes independentes. Apesar de motivados à conquista pelo ideal do jihad, a guerra santa, os muçulmanos, como são chamados aqueles que praticam o Islãmismo, foram tolerantes com os povos que dominaram. Admitiram outras religiões, com exceção das que cultuavam ídolos, e se abriram para variadas culturas, principalmente do pensamento grego e helenístico. Isso significou traduzir para o árabe diversas obras escritas em grego e siríaco: obras de filosofia, matemática e medicina. Logo passaram a re-elaborar o conteúdo dessas obras e a realizar suas investigações. Da mesma forma que nós. - E o Islã trouxe superações – disse Tomás. - O que o senhor deseja dizer é que há neles um pensamento superior? – perguntou de Cister, deixando transparecer certa ponta de desconforto e azedume – Devo lembrar que somos todos cristãos... espero... - Eu não disse isso, mas podemos dar atenção ao que se segue. Na matemática, por exemplo, a limitação dos gregos – que só conheciam a geometria – foi superada pelo desenvolvimento da álgebra, desenvolvida por Al-Kharezme. Foi também por seu intermédio que o Ocidente conheceu os algarismos arábicos. Além disso, aos árabes se deve o desenvolvimento da trigonometria, a noção de algoritmo, a invenção do número

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zero e muitas outras realizações. - Física, astronomia, química, palavra que tem a mesma raiz árabe do termo alquimia, medicina, biologia, geografia, geologia, história: não houve área do conhecimento que os árabes não tivessem investigado, antecipando muitas das descobertas que o Ocidente reivindica como suas. - A busca do saber, da ciência, é obrigação de todo muçulmano, homem ou mulher, são as sábias palavras do Profeta Mahommed – disse Siger, olhando para Otto e de Cister, como que afrontando aos dois – o Profeta deixa claro que o desenvolvimento do conhecimento por meios racionais aproxima o homem da sabedoria divina, acaba incentivando a explosão científica e isso acontece no Islã até os dias de hoje... não é à toa que as Cruzadas estão se materializando e se armando brutalmente há dezenas de anos... não somente por causa do Santo Sepulcro ou por causa da Cidade Santa... - Os jogos políticos e da guerra santa estarão sempre presentes – disse Alberto – O fato é que os sábios muçulmanos encontram no pensamento de Aristóteles um instrumento poderoso. Mas a difusão do aristotelismo no mundo islâmico faz-se de modo curioso. Os árabes traduzem o conjunto do Corpus Aristotelicum e a este agregam, como se fosse do mesmo autor, parte de Enéadas de Plotino, bem como textos do neoplatônico Proclo. Por isso, elaboram uma concepção que mescla o aristotelismo e o neoplatonismo, em que o Uno concebido por Plotino é identificado, não sem problemas, a Alá. Resta então investigar a relação entre a Inteligência, ou seja, de um lado, e as coisas e o homem, de outro. - Nessa questão – Tomás abria os braços como se abarcasse o céu imenso e todas as gentes - o aristotelismo fornece a chave. Al-Kindi, do século IX, formula esse problema: “como o intelecto humano pode apreender a essência das coisas, se pelos sentidos só é possível conhecer que elas existem?” A solução encontra-se na Inteligência... que transceda o intelecto humano e que tenha o conhecimento das essências. É ela que torna possível o conhecimento, fornecendo ao intelecto humano as essências, ou formas, e fazendo-o passar da potência ao ato. Ação, movimento... drama. O que sabemos é que Al-Farabi retoma a questão da inteligência. Para ele, há uma hierarquia de várias Inteligências agentes: a primeira emana de Deus, a segunda, da primeira, e assim sucessivamente. A última situa-se na esfera lunar... - E é aí que retomaremos o nosso assunto da Lua, caros amigos... – sorriu desveladamente o filósofo-cavaleiro de Brabant - ... e dela provem as formas que tornam as coisas inteligíveis ao intelecto humano e que lhes dão existência. - Mas, se a Inteligência agente leva as coisas a ser o que são, fazendo-as passar da potência ao ato, elas podem adquirir ou perder a existência? – perguntou Monsieur de Vermont - Esta não será necessária às coisas, isto é, não faz parte da sua essência... me parece que ela é apenas contingente. - Exato! – exclamou Tomás de Aquino - Por isso, a existência das coisas depende de uma causa, aquela em que a essência e a existência coincidam: Deus. E isso devemos aos árabes. - Todos esses temas estão... – eu interferia na pausa que se fez -...estão presentes no pensamento de Ibn Sina, o nosso conhecido Avicena – Vi que Pietro de Ferrara, rapidamente completava toda informação em seus escritos: - Ibn Sina, nascido nas proximidades de Bukhara, e morto perto de Hamada. - O homem foi um sábio dos maiores... analisou uma série de doenças, formulou a hipótese de que certas moléstias eram causadas por pequenos organismos presentes na água e na atmosfera... - Isso é heresia, meu amigo – quis afirmar o monge de Cister. Mas Tomás não ligou para aquela interrupção. - Sua obra Canon é leitura obrigatória em qualquer ensino de medicina na Europa por muitos séculos. - Não me preocuparei em ler os inimigos... - É por isso que a mentalidade da época é tacanha. Nós damos passos para trás, em vez de galgarmos degraus que já foram construídos – Tomás elevou a voz. - A única coisa que agora ouço é uma defesa dos orientais sobre a nossa civilização e isso é inadmissível. – disse de Cister – A nossa inteligência não pode ser formada por pessoas de baixo nível e de clara raiz demoníaca. - O senhor está se excedendo – falou Alberto – Todos aqui partimos do princípio de que não se deve fechar os olhos para o conhecimento alheio, além do mais, está provado

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que, se não fossem esses árabes, o que sabemos seria muito pouco. De Cister pareceu aquietar-se. Passou a mão pela testa e tirou gotas pesadas de suor. - Avicena abarcava todas as áreas do conhecimento. Não podemos desdenhar de suas afirmações. Nem deixar de estudá-las. E a sua filosofia está aí para acender luzes. Avicena, como Al-Farabi, concebe uma série hierarquizada de Inteligências agentes, das quais a última dá a forma à matéria, fazendo com que as coisas sejam o que são; ao intelecto humano tornam possível o conhecimento. Avicena concorda com Al-Farabi quanto à distinção entre a essência e a existência, mas acrescenta a essa questão algumas precisões: para ele há o ser necessário, isto é, aquele que por sua essência não pode não existir. - Explique melhor, Tomás. - Nele, a existência e a essência são idênticas – Tomás esperou que Pietro escrevesse, pacientemente - Há, em segundo lugar, o ser possível, que se desdobra em dois: o ser possível por essência é aquele que não pode não existir porque a existência lhe é causada, enquanto o ser puramente possível é o que pode vir a existir, contanto que a existência lhe seja causada. Na linguagem aristotélica, o ser necessário é o ato puro; o ser possível necessário é a potência que se torna ato, mediante uma causa; e o ser puramente possível, apenas potência. Dai se conclui que o ser necessário é o único que existe por si, sem nenhuma causa, sendo ele próprio a causa de tudo o que existe: é Deus, o único e eterno criador. E com tais palavras os estudos daquela noite tiveram fim. OPUS 28 Tomamos nossa sopa na varanda da estalagem. LaCordaire, já refeito por um sono prolongado, compareceu. Estava quente o tempo. Estava quente a sopa. Nisso Alexandrino surge na estrada. Maltrapilho e em febre, rindo e gritava alvoroçado: - Eu quero ser um sábio... um sábio alegre e amável... pelo menos na aparência... não quero ser grave e pensativo... como os professores – e cuspiu para as janelas da estalagem. - Calma, Alexandrino, vamos entrar – instou LaCordaire. - Não quero entrar, coisa alguma... De fato, eu sou como... como o oceano... insondável... insuperável – Pietro tentou tomar um de seus braços mas foi jogado ao chão – Sou transcendental... não posso ser medido... limitado... nunca me perturbo... nunca! Nunca!... sou como as águas tranqüilas do grande oceano – e Alexandrino tropeçou, desabando sobre a areia da entrada da estalagem. - Encontrei quem pudesse me oferecer indulgências – ele continuava sem que pudéssemos interferir - indulgência sexual para assim perder a capacidade de compreender a realidade espiritual que está além da matéria... não quero saber de realidade espiritual alguma... quero o gozo... agora...o mais do que suficiente... comida suficiente para manter-me vivo. - Alexandrino, onde você esteve...? – perguntou LaCordaire - As mulheres da Lua... - Explica melhor – Pietro pediu. - O homem deve ir de porta em porta, aceitando apenas um pouco de cada visita.... a ocupação da abelha... tirar o néctar das flores grandes e pequenas... como a abelha a extrair a essência ou o néctar... aquilo que fluiu das pernas da mulher... a abelha não perde tempo tentando levar um arbusto inteiro ou um jardim... essa é a diferença entre a abelha e o asno – e Alexandrino começou a rir sem parar. Gargalhadas que duravam minutos – o asno... burro!... que carrega carga – de repente ele nos olha, mas parecia transfigurado tanto pela noite quanto pelas lâmpadas de querosene – ... a educação... – e apontou para cima – ... a educação significa tornar-se um asno intelectual que carrega carga de conhecimento... inútil! Inútil!... muito inútil! Seus padres... – Pietro jogou um balde de água no corpo de Alexandrino e a poeira se tornou em lama - ... aceitar o essencial... Então ele parou e dormiu. Foi um custo levá-lo para o quarto. Muita febre fez que o banhássemos para o repouso. - Precisamos também dormir um pouco ou começaremos com delírio – disse Pietro, guardando sua bolsa e escritos no armário de ébano.

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- Não quero saber disso. Portanto, se os senhores permitem, vasculharei essas matas. Talvez se encontrem por aí respostas para explicar esse estado de Alexandrino. E saiu. Corri atrás de LaCordaire. Não sentia sono algum. O mistério me fazia esquecer qualquer cansaço. - Partiremos na direção de lagos e amplas clareiras. São esses os caminhos. Durante horas andamos em direção do brilho da Lua. - Olha! – ele falou – não me lembro de ver aquela construção. Parece recortada em ouro e mármore. - Não é uma Igreja e há pessoas na entrada – olhei para trás e era possível ainda enxergar a estalagem, como que perdida entre névoas. Aproximamos-nos da construção e algumas mulheres adejavam seus véus, em busca de aromas de incensos e aromas de flores. - Serão as mulheres da Lua, como disse Alexandrino? - Olá! – disse uma delas – são amigos do outro? O bêbedo? - Não sabemos de quem está falando. - Hoje cedo mesmo esteve por aqui um rapaz... tinha bebido muito nas estalagens do interior e tomou mais de nossos líquidos... mas não agüentou... sua moral o repreendeu e ele se tornou alucinado... – ela nos olhou com olhos verdes e sorriu com dentes alvos... – Querem entrar? Meu nome é Virgínia. Eu e Lacordaire nos olhamos. - Para que entrar? – ele perguntou para mim. - Por que não? Quem sabe... a busca do gozo? - De onde vieram...? Ela desviou o olhar e fê-lo perder-se nas nuvens. - Eu vejo que a monarquia da mulher deve se reconduzir a seu fundamento. Manter o poder dentro da casa, do castelo... mesmo que para isso seja preciso enfiar uma faca em seu próprio corpo. Ela não percebeu o jogo de olhares entre LaCordaire e eu, tentando entender do que ela falava... Uma outra mulher se aproxima. - Essa é Constância. - Recebe visitas, Virgínia? - E você? Já recebeu a visita de Julius? Do meu sacerdote? - Não... você está fora de si... - Para mim os dois passam noites e noites juntos, mas não sei explicar como é que o sacerdote nem chega a sair de casa. – Virgínia olha para nós dois e parece irritada, chegando a cuspir nervosamente, num rompante - Julius diz que é um homem completo, pois tem os dois sexos do espírito - mas a raiva em Virgínia permanecia. Imediatamente ela puxou meu braço e ganhamos a casa Ela, agora, parecia enfraquecida, muda, humilhada. Sentou-me em um tamborete de peles, perto de uma fonte que existia dentro da casa e disse: - Julius nem se dá conta dos meus problemas... dos meus azares... O homem Julius é oriundo de uma família de artesãos de Bruges. Uma parte dessa família era de farmacêuticos empiristas, quase alquímicos, fazendo as vezes de médicos, curandeiros, servidores das vilas, que só apareciam por ali a cada dois meses. Julius era artista plástico e construía estátuas, escultor, e tinha certo sucesso. Suas opiniões liberais fizeram com que encontrasse magos e feiticeiros, além de ter a capacidade de estar em três lugares ao mesmo tempo. Nunca sei como faz isso. Talvez nem o faça e eu é que invento. Eu sei que foi no Aereo Lachus que veio a conhecer Constância... ela... como ninfa... envolta em brumas e tintas amarelas, mergulhando seu pincel de pele de marta numa palheta pouco expressiva. Enquanto Virgínia devaneava, eu fui para a janela vi os dois. Contância e LaCordaire. Caminhavam pela beira de um passeio onde se espalhava água cintilante. Constância era muito jovem. - Constância colocou Julius na história depositando-o num tempo circular; ela sempre teve esse quê de eternidade e seriedade. Parece nunca se ofender. Vi-me envolvido pelos braços de Virgínia. Morena. Mais alta que eu. Cabelos negros que caiam sobre os ombros e olhos de amêndoa fresca. Ela sempre parecia num estado de ferocidade. E me abraçou. Mergulhava-me em seus pensamentos, ao mesmo tempo móveis e fixos, privados de todo o ritmo biológico consciente, deixando-me levar

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por atenções minuciosas. Virgínia ostentava nomes sobre-humanos transmutando-se em fada, sibila, feiticeira e, através dela, eu comecei a atingir as grandes fases da contemplação. O calor de sua pele excedia o que se podia agüentar... ela era religião... iniciação a ritos sagrados e últimos. Fui obrigado a me safar daquele abraço e daquela boca, correndo novamente para a imensa janela de vitrais. Lá embaixo, a menina Constância tinha um desejo inenarrável de molhar seus pés no pequeno lago. LaCordaire mantinha-se em pé. Constância olhou para o alto e abanou a mão. LaCordaire fez o mesmo. - Agora ela está atacando o seu amigo. - E você está me atacando – só pude ouvir, atrás de mim, um riso forçado. O fato é que Virgínia tinha razão, quanto às atenções de LaCordaire por Constância e vice-versa, mas não conseguia prova consistente alguma. Da mesma forma que as relações de Constância com Julius. - Somente os mais velhos e maduros têm acesso à mulher e a mulher tem de ser jovem, obrigatoriamente – ela disse, como quem toma ciência definitiva de uma coisa - Se não for jovem, tem de ser mulher, na acepção da liberdade. - Onde está esse Julius, afinal?– perguntei em meio a certo temor e curiosidade, sem tirar os olhos da janela. Eu poderia fugir por ali. - Dorme. O marido dorme. Às vezes sorri enquanto dorme. E eu me solidarizo com outras mulheres humilhadas e me transformo em diva como Joana do Arco, ou como as mulheres do Banho. A vontade de morrer me dá uma fome animal de provar que a vida está em mim... nem quero esse certo ar intelectual e por pouco não me decido em substituir a mater dolorosa da Igreja mais próxima. Ela não para de falar. Ligava um assunto ao outro e eu me perdia nos nexos. O leve ar suicida lhe dava um espasmo rápido entre os olhos. - As minhas carícias serão todas suas – ela falou. Estaria eu vagueando pelo espaço em devaneio? Esses milhares de incensos espalhado pala sala me entorpeciam a cabeça, era verdade. Virgínia se aproximou, pálida e suando como sempre. Das mãos pingavam gotas quase febris. Ela deitou sua mão na minha barriga e, acredito, pensou em beijar minha face mas, sem intenção premeditada, virei para outro lado. - Você é uma chave que se manifesta inconclusa - eu disse. Mas aquela noite não parecia um momento certo nem completo para amar a mulher Virgínia. Eu a desejava, mas a raiva que se estampava em seu rosto era demais. - Não antes de saber a verdade – ela disse, enquanto deslizava as mãos para baixo do meu corpo. Arfei. Desejo, o cansaço do dia e da noite de estudos, a preocupação com Alexandrino, e eu parecia vaguear pela cidade dos homens, a cidade diabólica como se fosse um dos templários, na mão da profetisa. - Eu me sinto agora como uma vespa, uma formiga, uma abelha rainha, investindo na minha monarquia particular, formando a mais indiscutível das aristocracias, extirpando a cabeça do rei e mastigando cuidadosamente sua semente – e Virgìnia tomou do meu sexo. - O que é isso? – gritei, notando que Virgínia me apertava. - Quero você. Quero agora! - Claro. Mas precisa me machucar assim? - Quero mostrar o poder mátrio. Quero determinar o poder fecundante. - Espera! - Cale-se! Eu sei que você ocupa vários espaços ao mesmo tempo. Igual a Julius. São da mesma estirpe? - Eu nem sei quem é esse Julius. - Não levante a sobrancelha assim para mim, já disse! O fato de ser fecundável não me dá virtudes. Não quero ser virtuosa. Eu quero que você me torne a sacerdotisa dessa cama – Virgínia massageou-me com mais vigor. - Tem coisas que não sei se você pode ou evita fazer e... - Não importa mais... você abusará de mim... fará tudo o que deve para transformar a mulher em puta... é difícil? – ela perguntou, ácida. - Não... basta existir um útero e a loucura aparecerá... – falei, ao mesmo tempo em que derramei semente sobre a mão da mulher. Ela olhou e disse: - Quero mais... ou você não sairá vivo desse templo... - Ah! Que será de mim, estando a tal ponto em suas mãos?

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- Que suas fodas me sejam boas e doces, caso contrário eu morro - E arrancou a roupa inteiramente, deitando-se com as nádegas viradas para mim e as pernas abertas - Vem, me completa, cospe em mim, crava seus dentes na minha bunda... tudo aqui é seu... - Acredita em mim... ainda assim posso ver a beleza de seu espírito... – Claro que era delírio. Ela, desdenhosa, sussurrou com o rosto enfiado no travesseiro, revendo os seios: - e... pode ver através de qual orifício? - avancei com a boca escancarada para dentro da caverna. Repentinamente me vi junto de LaCordaire e de Constância, mas em nenhum momento deixei a cama/altar onde submetia o corpo de Virgínia aos mais variados modos de culto e adoração. Constância e LaCordaire se encontravam, ainda, no jardim, lá em baixo, entre árvores frutíferas e uma e outra borboleta notívaga. Tomaram das mãos e vagaram, mergulhando os pés pelo pequeno lago, gélido lago, onde o sereno caía suave. LaCordaire beijou o rosto de Constância. Constância deitou seus lábios sobre a testa de LaCordaire, aí ela voltou-se para mim e disse: - Está molhado de suor. - Tive que correr para vê-los. Mas nem sabia como fazer. Foi repentino. - Você é um mistério que me fascina, Constância. O que será mais? A cor ou o brilho? – perguntou um ardoroso LaCordaire. - Sou como as mulheres do Oriente – ela respondeu – Uso somente a cachemira por cima e, em baixo, como você pode ver, uma túnica de seda. Na verdade, não são vestimentas, mas amigas. Minhas amigas... – e virando-se para mim, com certa atenção desprovida de profundo interesse - Mas você continua com esse suor intenso... diz a verdade...!” - É que nesse momento estou cavalgando o corpo de Virgínia e a penetro com violência... - Ela sempre negou e desejou isso. - Isso é bom ou é mal? – eu e LaCordaire perguntamos ao mesmo tempo. - É gostoso... muitas vezes... – respondeu sorrindo. - Espero que ela seja feliz, finalmente – foi o que me veio - Ela não fará nada contra nós... seu problema é Julius – eu disse. - Lembra que seu pensamento é pensamento de homem... nós quem? - Constância perguntou e passou a dobrar uma parte da roupa num gesto vago. - Ela pensa, fala, age de outro modo. Tem gostos diferentes. Repentinamente precipita-se como um aguaceiro de tempestade. Ela é uma tempestade. De repente se faz de santa, vítima e virgem... – eu me calei um instante olhando as pérolas das pedras que apareciam à superfície da água - Ela respira pelas quatro costelas superiores. Daí aquela ondulação dos seios numa eloqüência muda. Parece que estou com a boca neles, agora, e ela se contorce de prazer... parece. - Ela ama desde o fundo das entranhas, por isso não come como nós. - O que você deseja dizer com isso, Constância? – perguntou LaCordaire. - Ela é a profunda taça do amor. Virgínia tem uma linguagem à parte que muitas vezes ela mesma nem entende... - Explique melhor, Constância, pois sinto que minhas forças estão desaparecendo – falei num arroubo. - A mulher, acima do verbo do homem e do canto do pássaro, possui uma linguagem inteiramente mágica... daí o suspiro, o sopro apaixonado... o desespero... a vontade de morrer . - Morrer? – perguntei atônito. - Morrer, sim... ela se entregou para ser morta por você, com seu membro. O sexo será a morte dela... ela deve desfalecer, desintegrar-se, fendida por sua espada... assim ela estará morta... Ela precisa dessa violência... e você está sutil e carinhoso demais com ela... - Sei...- - A Natureza nos faz feiticeiras. Nascemos fadas. Pelo retorno da exaltação, nasce a sibila. Pela sagacidade e malícia seremos feiticeiras de sortilégios, enganando os males. – Nesse momento, Constância se prepara para entrar nas águas do lago - Sempre quisemos as fogueiras... o fogo máximo que nos consumisse - Ela afunda um bocado.

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Sua roupa se arrasta para as profundezas... lentamente as águas a envolvem e Constância desaparece como um perfume. Eu e LaCordaire observamos a noite e eu, da mesma maneira, voltei num vento, correndo para o quarto e me vejo penetrando inclemente o corpo de Virgínia que jaz com as pernas abertas e os pés alçados sobre meus ombros, em solavancos febris. A mulher se agitava com um sorriso nos lábios... um pouco de saliva veludosa descia e ela tentava distribuir um pouco dessa saliva para minha boca. A coreografia excitante acalentava os corpos que rodopiavam sobre o altar-cama. Eu não conseguia gozar. Virgínia soltava exclamações impiedosas e sagazes. Estava violenta e intrigante. A cada instante ela gritava para as paredes cobertas de veludo azul-marinho: “Fode! Fode!” e eu, mesmo perdido em névoas e alguma dor, recomeçava o embate para não deixar a mulher sem seu prazer. No entanto Virgínia não chegava a lugar algum, também. Mas, quem as castiga, se castiga. Quem as pune, se pune com todos os ordálios do planeta. Elas derrubam e destroem toda a idéia de justiça. Fazem isso para negar-se e maldizer-se. Por isso Virgínia se agita, segura meus cabelos, contorce o dorso e se oferece triunfante. - Virgínia, você está fervendo... não estará doente? - Continua e cala a boca!. - Você está lívida e assustadora. - Nada disso. Estou no pleno de mim! – ela se vira e se abre escancaradamente – Não perde o desejo. Entra agora nessa vulva vermelha. Essa cruel exibição eu queria para as rivais, percebendo meu completo estado de fêmea... – e grunhiu, rosnou, e trouxe-me para dentro de si. Assim foi o resto daquela noite. As estrelas mudaram de lugar. Ventos e brisas entraram e saíram do quarto. Acordei. Virgínia parecia admirável pela sua beleza na manhã. Tomava líquido e mastigava pequenos pães, com sorvos alternados de um suco de maçã. Eu tentava ler o seu rosto. - Mas, o perigo é menor sob o olhar de todos – ela disse, experimentando os lábios, num sorriso. - Somos hoje mais nervosos do que jamais o fomos. - Por que diz isso? – eu perguntei, sinceramente curioso. - É a impressão que me dá. É tão... fortemente revoltante e forte... refiro a certas pessoas que preferem sofrer... - Sofrer?... Mas, Virgínia... quantas vezes você não se precipitou em loucuras... você mesma disse... até perceber que bastava o sexo dos humanos para torná-la deusa, sacerdotisa, meretriz sagrada... sei lá o que mais...- falei asperamente. - Eu sei... mas aprendi... e quantas de nós não aprendem? Quantas de nós preferem tísicas e apoplexias e pestes... a morte em vida... em vez da noite cheia de gozos e tudo aquilo que achamos sujo e é na verdade a mais pura das delícias... um banho de salivas... um banho de beijos... um banho de esperma? – e ela toma da minha mão para completar – se sou morena é por que fui queimada pelo calor do seu abraço. - Pura pieguice – eu disse, sem qualquer educação ou cortesia – Tolice pura. No final, beijamo-nos. Havia uma névoa no jardim. Nem a sombra de LaCordaire. Havia luzes filtradas do sol da manhã entre as árvores. O lago estava calmo, o dia era tranqüilo e próspero. Ela pediu para que eu me retirasse. Eu me retirei. E nós nos retiramos, cada um para si mesmo, para permitirmos o idílio.

OPUS 30 Alexandrino escapara. Pietro estava cansado e dormiu profundamente. O outro estava insano e se aprovietou. Eu, LaCordaire e Pietro resolvemos sair para a estrada à procura de Alexandrino, o Menor. Falamos com Siger, se interessava ir junto, uma vez que haveria pausa nos estudos com os professores e todos sairiam para a Igreja do Burgo, para assistir missas e pregar. Siger de Brabant não ia para lugar algum e não quis, também, nos acompanhar. Disse que vaguearia solitário para conhecer melhor a região.

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Era madrugada ainda, em torno de quatro horas, com certas lufadas de vento e aromas florais nos cercando. Após quilômetros de caminhada, com o sol aparecendo lentamente, encontramos o lago onde Constância havia desaparecido. Um lago mudado, sem as belezas da noite anterior. A idéia era saber se Alexandrino havia tomado aquele caminho. Saber se a magia que dominara minha cabeça se apoderara também da do menor. Ali podia ser qualquer coisa. Um lago antigo onde as raízes da mitologia se perderiam. Podia ser mais espaço místico... Mas, então vi que ali se encontrava uma pequena ilha. Talvez Constância não houvesse desaparecido nas águas, mas apenas nadado até ali. LaCordaire se recordava bem da ilha... uma pequena ilha. Uma cordilheira, um esporão de rocha granítica onde o azul se mostrava eloqüente, pouca vegetação. - Esteve em poder dos ciganos durante vários séculos. Mas em 1221 os seus habitantes fizeram um levante armado, lutaram pela independência e ganharam – disse LaCordaire – foi o que Constância me disse. - Olhem! Ali existe um pequeno cemitério – alertou Pietro. Corremos até o local, onde encontramos sepulturas daqueles que tombaram pela liberdade. - Parece que estiveram recentemente por estas bandas – disse Pietro. - Tem que ter alguém morando nas casas e na casa de Virgínia e Julius, mas tudo me parece vazio... - Ainda hoje depositaram flores sobre os túmulos. - Lá na frente eu vejo mais tumbas. Um outro cemitério? Rapidamente percorremos o espaço entre os dois campos. Um pequeno terreno, atrás de rochas, onde os túmulos não têm nome nem cruz. - Há inscrições nas lápides – eu disse. - 1200-1202. Aqui jazem criaturas que não são deste mundo – falou LaCordaire, olhando para nós com certo movimento suspeito de boca. - Por três anos a ilhota viveu no terror. Nós três. Ao mesmo tempo nos viramos para ouvir de quem era a voz. E um velho caminhava em nossa direção, com um cajado, que o mantinha e sustinha, já que era cego. - Quem é o senhor? - Meu nome é Julius. Sorri para mim mesmo. Ressabiado e curioso. Um tremor atingiu a mim e a LaCordaire. Mesmo assim falei para o homem: - Estive aqui ontem, passando a noite por estas regiões e me falaram de um tal Julius. - Essa sua noite não foi tão há pouco tempo, posso dizer. O medo persiste... ainda persiste através dos anos... ninguém ousa arar o campo maldito. – o homem bateu o cajado e procurou lugar para andar e se sentou sobre uma das tumbas - Existe uma lenda segundo a qual aqui estão sepultados os gigantes, mortos por Hércules. – Ele tocou levemente no granito e afagou com um pouco de cuidado - Mas é apenas lenda... Prisão de ouvintes incautos... – ele fez uma pausa como se procurasse nos fundos da memória - Mas não era daqueles mortos que os habitantes tinham medo. Em 1201, o aventureiro Monsieur de Tournefort se encontrava nesta região e foi testemunha da "grande epidemia". Inexplicável epidemia. Ele disse, naquela ocasião: "A loucura parecia ter penetrado em todas as mentes. Era uma autêntica epidemia, como a raiva ou a peste. Famílias inteiras abandonavam suas casas e iam viver nos campos ou nos bosques. Todos se lamentavam do contato com... aquelas pessoas estranhas... Cada um ostentava, quase com orgulho, as marcas rubras das mordidas. Ao cair das trevas, todos se abandonavam aos lamentos, aterrorizados ante a idéia da noite que caía”. - Eu e LaCordaire não vimos nada disso quando aqui estivemos. - Naquela época... naquele momento... naquele desdobrar de tempo e espaço eles ainda não haviam avançado sobre a cidade... e a única coisa de que tínhamos de nos queixar era da ávida e dissoluta Virgínia – e eu vi que uma lágrima caia do rosto do velho Julius - O medo que se impunha sobre a ilha veio com a jovem Constância, que de louca se afogou...Quem conversou com ela sabe que ela já não falava coisa com coisa... sua fala era desnorteada e incompreensível... ela dizia ver pessoas de outras eras... se preocupava com suas roupas e tecidos... o jovem aqui ao meu lado sabe muito bem do que falo – e o jovem ao seu lado era LaCordaire que estava mudo e cabisbaixo.

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- Que mordidas? - Eram os sinais das mordidas que apareciam, realmente. Nos seios das mulheres, nas costas e ombros das crianças,... as crianças sumiam e depois eram encontradas sem gota de sangue em seus corpos... E todos os que sobreviviam experimentavam uma terrível exaustão. Muitos, depois de algum tempo – tidos como fortes e robustos –, morriam. - Tudo isso durante três anos? – perguntei. - Sim, em três anos houve centenas de mortos na ilha, se bem que combatemos a epidemia com todos os meios úteis. Pensávamos assim. - E o que eram tais "meios úteis"? – perguntou Pietro. - Úteis, mas inoperantes. A lança de madeira pontiaguda, fogo em tochas... A luz do sol destruía o seu simulacro humano, restituindo-os à poeira do tempo. Mas não existiam freixos na ilha e era necessário mandar os pescadores até as ilhas maiores... eu era um desses pescadores... dono de muitos barcos... saí em busca de freixos... para arranjar a madeira necessária a fabricação das lanças. Durante o dia, nas casas miseráveis, homens e mulheres preparavam as armas. Depois, quase no crepúsculo, antes que eles ressurgissem, os mais corajosos chegavam ao cemitério e escavavam sepulturas. Mais pausas. Significativas pausas. - Era fácil identificá-los... os seus lábios ainda úmidos de sangue. Então as lanças os traspassavam, aniquilando-os... era assim que se tratava para impedir que ressurgissem da tumba e viessem atormentar os vivos, exigindo o sangue que haviam perdido, ao chegar... sabe-se lá de onde! O homem parecia cansado, agora. - Nunca descobriram quem eram? – perguntei – Tinham desejo próprio? Estavam sob algum comando? Por que essa coisa de dormir em cemitérios? - Não sei – disse ele rispidamente – não sei! Collin de Planalt, um monge estudioso, veio aqui, depois e disse tratar-se de upires, também chamados brucolakhi ou katakhanes... pessoas mortas sem sepultura ... mas, eu não acredito nisso. - Acredita em quê, então? – falou LaCordaires – Viu tanta coisa e não acredita em nada, - já irritado com os modos bruiscos do velho que se chamava Julius. - Seres reerguidos da morte, goléns, escravos sem noção de coisas e falando, caminhando, amedrontando as vilas, tornando a todos fracos, bebendo o sangue de cada um... upires! - A morte, nesse caso, seria um prêmio ou um castigo? – perguntei. - Também não sei – e ele se apoiou em seu cajado, segurando-o com firmeza inaudita - A idéia da aniquilação total é pavorosa, assustadora. No caso dos upires tornou-se algo de feliz e tranqüilizador... Por que o desejo da imortalidade? - Essa tendência – falei – pode ser a chave do fenômeno desses upires... - Angústia de morrer e fascinação da morte... pode ser...; esperança de sobreviver e medo de que uma vida corpórea depois da morte signifique danação... pode ser... - Ajunte-se a isso – explicou LaCordaire - o instinto elementar da sobrevivência, com a sua agressividade e avidez cruéis. Deixamos o velho Julius a sós e passamos a abrir as sepulturas. Em toda parte eram descobertos corpos traspassados, semiqueimados, alguns... - Houve um – o velho disse – que depois de morto, reapareceu e mordeu oito pessoas, que morreram em seguida. Os habitantes da ilha o desenterraram e o atravessaram com uma lança, mas ele ria e escarnecia dos cidadãos. Mesmo morto. Como é que vou acreditar numa coisa dessas? Resolveram queimá-lo, e levaram-no até o local numa carreta. Durante o percurso, o cadáver urrou e se debateu. Novamente traspassado, esvaiu- se numa poça de sangue, antes que o fogo o queimasse totalmente. Olhamo-nos. E as mulheres? E Virgínia? Em uma das tumbas encontrei textos rasgados de um manuscrito, Saphos Galante, de Paris, e um resto de livro de autor alemão intitulado De Masticatione et Sanguine Mortuorum in Tumtllis. Depositei de volta. Deixamos o velho com seus davaneios e fomos para a residência de Virgínia. A casa estava limpa e asseada como se todos tivessem partido, de imediato, após eu e LaCordaire deixarmos o local na noite passada. Uma espécie de fuga orquestrada. - O que acha disso, LaCordaire?

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- Marcus, eu não sei, mas está tudo muito confuso. Sofremos, ontem, algum tipo de delírio? Vagamos à noite? As datas são de muito tempo atrás... E o velho? - Mas, é bom lembrar que outros grupos não-mortos já estiveram conosco... o pessoal de Bernard de Clairvaux, lembra? - Só de lembrar do cheiro...! - O que ocorreu por aqui pode ser algo parecido – falei. Descemos as escadas de trás e descobrimos outro caminho. Dessa vez ele invadia uma floresta e adentrava para o denso mato. Olhei para trás e vi o velho deitado sobre a lápide, abraçado a ela. Decidimos que seguiríamos aquele caminho. No entanto, alcançamos um vilarejo somente ao meio dia. Muita gente alvoroçada, caminhando alucinadamente, pareceu-nos. Os habitantes demonstravam um escasso contato com gente de outros burgos... as estradas eram precárias. Pareciam conservar hábitos, costumes, tradições e roupagens que falavam de uma época antiga. De repente, vi que traziam uma pessoa. Ela estava morta. Era o filho de uma mulher, que chorava amargamente, uma mulher que, soube depois, era moradora da ilha... Agonizou por uma noite inteira, sem que ninguém fosse socorrê-lo, pois estava em uma caverna perdida na serra. Morreu ao amanhecer, pouco depois de o encontrarem. Ela, a mãe, gritava desesperadamente: "Quero você vivo, meu filho! Vivo!". Enterraram-no numa colina arenosa. Isso nos cansou demais... Sugeri que fôssemos a um albergue e não posso dizer que fomos bem recebidos ou acomodados... Não podíamos ficar muito tempo naquele lugar, no entanto, o pouco tempo que ficamos foi definitivo para ver que o filho voltou, algumas horas depois. A sua vontade de existir era mais forte do que a própria morte. Eu, Pietro e LaCordaire corremos na direção do alvoroço. A mãe queria abraçar o filho, ele corria em sua direção, a face pálida, olhos perdido, a multidão seguiu a mulher, aos gritos e parecia que desejava apartá-la do abraço com o filho; e quando se abraçaram – mãe e filho – ela sorrindo feliz e embevecida pela volta, ele arrancou a cabeça da mãe e sorveu o sangue aos borbotões, rindo e gritando desbragadamente... saindo em seguida à procura de qualquer outro. As pessoas se horrorizaram e partiram para cima dele com paus e pedras... o filho não ligava e segurava braços e pernas e mordia a todos, arrancando pedaços e trazendo dor. Voltou para buscar o sangue que havia perdido, com um misto de agressão e amor. E voltou-se para quem amava mais: a mãe. No momento de sua reaparição, alguns habitantes daquele burgo, livres de seus delírios e cegueira tomaram consciência do que deveriam fazer. - Estrangeiro – seguraram meu braço – tem alguma opinião para dar? - Vocês têm que acabar com ele. - Com que? Pedradas? Quem sabe mordê-lo também? - Esse tipo de gente é sempre um ser infeliz, prisioneiro dessa maldição... um instinto de preservação da vida. - Até agora não me disse nada – o homem falou – e aquela coisa vai acabar com a vila. - Acredito que será necessário afastar os sentimentos, para o próprio bem do doente. Deve-se fazê-lo voltar ao seu estado normal, fazê-lo voltar à paz. A força que move aquele pobre corpo atormentado não é uma alma, mas uma mecânica de terror – aí eu vi que estava cercado de pessoas com olhos esbugalhados e aterrorizados, pois o upir havia tomado uma criança e estava sentado no chão da praça mastigando as entranhas da vítima, à cata de sangue – não se pode ter dúvida... é necessário destruir aquela coisa. O homem tomou o machado e dividiu o upir ao meio. Depois, cortou a cabeça e pediu para que levassem a cabeça para uma forja, onde a metalurgia aquecia metais e a jogasse ali. O resto foi picotado e lançado ao lago para que os peixes dessem cabo do resto. Então houve silêncio na vila. - O medo de morrer é, em todos os tempos, estímulo para a ressurreição – eu disse. Mas existe outro componente: o ódio. Partimos para a casa de Virgínia. As cortinas leves balançavam com o vento. Dessa vez tentamos ouvir e perceber qualquer sinal, principalmente o porquê de estarmos ali, presenciando aqueles acontecimentos e pareceu que mais uma vez estávamos em um vão de tempo e espaço, incompreensível para a maioria das pessoas. Se surpreende a nós três, imaginem aos menos versados no oculto! Teria algo a ver com os últimos acontecimentos por que passou Alexandrino, o menor? Os homens que tomam

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conta dos velhos castelos ingleses dizem que os fantasmas são sempre almas de defuntos que em vida odiaram e foram odiados. Talvez essa regra não seja diferente para aqueles... upires, como disse o velho Julius. - Ouvi histórias turcas, onde muitos casos de pessoas particularmente más reapareceram depois da morte para atormentar os vivos – disse Pietro de Ferrara, colocando de volta um vaso que estava no chão. - Falemos do ódio, falemos de amor – disse LaCordaire – lembrei de uma fábula britânica em que um cocheiro de nome Mattews se mata debaixo das rodas de um coche que ia para Londres. A investigação concluiu que o homem era atormentado por alucinações. Ele costumava afirmar que a noiva, morta em razão da anemia, vinha visitá-lo todas as noites, reclamando o sangue necessário "para voltar". Invadimos cômodos. Visitei o quarto em que fiquei com Virgínia. Os lençóis permaneciam no chão. Descemos escadas para porões e subimos para salões superiores tentando encontrar chaves que decifrariam os mistérios daquele dia. Pela janela observei que o velho Julius, alheio a todos, cavava. Tentamos uma apressada classificação mas na rápida procura não pudemos evitar o encontro com uma lápide no meio de uma quarto de pedra... Nela estava escrito Lesahor. - Lesahor sou eu – alguém disse da porta. Isso me fez gelar rapidamente. Depois de um longo e infrutífero silêncio eu me virei e olhei para Lesahor. - Mas não estou vivo... – levantou a mão como que me pedindo para me manter calmo. - ... não da forma como vocês vivem. Há muitas maneiras de se estar vivo. Continuo a fazer as visitas a essas câmaras, apesar do peso da minha lápide. Todas as noites... ando por aqui para encontrar Virgínia..., e cumprimentá-la. - O que você fazia? Ou faz! – quis saber Pietro. - Naquela noite eu vi que você – e apontou para mim – você se deitava com Virgínia, apesar da ausência de Julius. Eu o vi, no quarto dela... no quarto da senhora, na hora da minha visita, e tive o prazer... e ao mesmo tempo a angústia de ver que ela se dava para outros. Notei que Lesahor se movia sem dificuldade, conversando conosco. Parecia fluir. Quis dirigir-lhe a palavra, mas o homem se despediu, dizendo que tinha muita pressa. Descobrimos imediatamente a razão da pressa ao levantarmos a lápide e darmos uma olhada na sepultura de Lesahor. O morto estava em seu lugar e tinha um aspecto excepcionalmente bem conservado. - A tarde avança, Marcus. Não encontraremos nada por aqui a não ser esses mortos estranhos e nenhuma pista de Alexandrino. A intuição foi mal interpretada – disse LaCordaire. - Você tem razão. - E essas aparições, além de inúteis para nós, só nos trazem cansaço e dissabores. Descendo as escadas da casa de Virgínia encontramos o velho Julius que nos chamava, acenando levemente. Levou-nos a uma das sepulturas e fez sinal para que olhássemos. Era Constância. Da mesma forma que Lesahor, tinha o cadáver claro e límpido, como se tivesse baixado à tumba naquele momento. - Em 1203, ela foi trazida para cá – ele começou a falar, fazendo menção de perder o olhar opaco nos céus – O magistrado, de toga e capelo, foi até o lugar do delito... ou qualquer lugar. Lá, dirigiu-se à morta, perguntando-lhe três vezes: "Mulher, quem a matou? A Justiça exige". Depois o magistrado, balançando um sino, disse: "A morta não respondeu". – nisso, Julius, começou a gritar e brandir o cajado por todos os lados como se domasse ventos - Os juizes de Andorra esperam que pelo menos uma vez a morta responda à pergunta. Os corpos dos não-mortos não respeitam as leis do tempo e do espaço. Apausa que se fez determinou que partíssemos. - Julius. Nós vamos partir. - Acredito que interrompemos o seu sossego com nossa intromissão em suas terras, em sua ilha... – disse Pietro. - Cuidado com a estirpe de upires... Cuidado... Muito cuidado... eles se aliam às vorazes vozes do oculto – o velho disse - Eles formam uma cadeia de ressurreição. Eles vivem em todos os tempos e se confundem com as pessoas normais. - Quer vir conosco? – perguntei. - Não!... eu quero... mas não posso... a minha vida é manter a sentinela sobre esses corpos... e periodicamente verificar se as lanças continuam enfiadas em meio aos ossos.

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Essa mulher, Constância, uma mulher que foi sepultada com todos os sacramentos. Quatro dias depois, reapareceu sob a forma de um cão que atacava as pessoas e mordia-lhes o corpo à procura de sangue. O cadáver já foi desenterrado várias vezes e traspassado com a lança de freixo. Eu mesmo fiz isso! – e bateu várias vezes o cajado no chão -, mas cuidado, jovens, muito cuidado. Nem sempre os upires querem o sangue para eles. Basta-lhes que o sangue da vítima se perca ou seja explorado por trabalhos escravos. . Partimos, enfim. A tarde já se fazia pronta e a noite se apresentava. Tínhamos longa caminhada pela frente, mas não era a noite nem a floresta que nos amedrontava. Mas as lembranças confusas de Lesahor, Julius, Constância morta, o episódio da vila da mãe e do filho... traziam um travo de amargura aos nossos corações. Eram sinais. Eram manifestações cujo significado não alcançávamos. Metade de tudo aquilo podia ser delírio... alguma erva ou beberagem que prováramos... não sei. - Disso tudo eclode a lembrança de fatos – falou LaCordaire. A história de Kurtiss, conhecido como Nosferatu da Dinamarca,que cometeu 30 homicídios escandalosos. Na maior parte eram meninas, que ele seviciava horrivelmente. Kurtiss bebia o sangue de suas vitimas, em taças de cristal, enquanto o corpo jazia em seu colo para que ele espremesse o sangue para as jarras. Gostava de crianças. - Mas Kurtiss era órfão e tinha sido adotado por uma viúva rica e viciada, que o obrigava a beber sangue de ganso – explicou Pietro. - Sangue de ganso... – eu disse baixinho – Para tudo há uma desculpa. E rumamos para a estrada.

OPUS 31 - Vem. Quero falar com você. Levantei-me imediatamente e segui Alberto, pensando que ele fosse questionar sobre nossa ausência, mas nada disse. O assunto era outro. Fomos até uma árvore em frente à estalagem. O céu estava nublado. O calor diminuiu. Sem perda de tempo ou delongas ele me deu uma pequena caixa. - Isso é um presente. Uma pedra de ouro. Ouro transmutado. Será confiada a você. Pode ser uma missão ou não. Fica por tua conta como vai enteder a coisa. Mas assim será se for de teu interesse e for de tua vontade. Não há aqui imposições. - Assim você está me assustando. - Não é para tanto. Esta obra, a pedra, foi construída durante vinte anos. E agora eu vejo que há necessidade de guardar os mistérios em textos secretos e também junto a pessoas que os possam desenvolver. A nossa época trará muita tristeza para muita gente. As cabeças estão fechadas e defendem interesses mesquinhos. Toma. Guarda. Peguei a caixinha e a abri. Uma ficha de ouro brilhava em seu interior. Áspera. - O que devo fazer? - Por ora nada. Basta não perder a pedra. Mais tarde você perceberá o que lhe aconteceu. Será boa coisa, por um lado. Poderá ser triste e terrível por outro lado. Mas, bastará levar a pedra para a boca de algum vulcão ou jogá-la ao mar; qualquer coisa parecida para destruí-la e você ficará livre de sua influência. Uma dessas influências é a proteção completa contra males e doenças, conhecidas e desconhecidas. (Alberto sorriu) É o que todos procuram e não percebem que tais males são das coisas mais naturais de corpo desequilibrados com sua natureza. Não é disso que você morrerá. - E o que mais? - Não direi... não... não... nada demais... até poderia falar sobe isso, mas a idéia ficaria em sua cabeça durante toda a sua vida e eu quero que você perceba o que aconteceu com sua vida, e tomará, a partir daí, a decisão, só isso. Alberto Magnus, o Mestre da Alquimia. Líder dessa pseudociência onde se transmuta uma base de metais em ouro. Ouro Alquímico. Simbólico e vivificante. A Alquimia vem da China, mas também do Egito. Daí ele me carregou para andarmos em volta da horta que à estalagem pertencia e ficava na parte de trás da construção, entre o moinho e o gado. - Sempre cedo á tentação de parecer os peripatéticos. Gosto de caminhar e falar. Alberto suspirou, respirou fundo, olhou para a snuvens e sem que eu o pedisse voltou a falar sobre a sua arte: - Na China foi associada ao Taoísmo, portanto sugiro que estude essa doutrina, antes de qualquer coisa. Tomás de Aquino está instruído por mim

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para tomá-lo como aluno durante oito aulas – ele disse. - Em Egito se guardaram como assuntos confidenciais, por sacerdotes do templo, os métodos de transmutação de metais. - Sei disso. - Essas receitas se tornaram extensamente conhecidas na academia de Alexandria. - Segundo Tomás, a alquimia teve sua base nas habilidades de artesanato dos egípcios, misticismo Oriental, na teoria Aristotélica de composição de matéria. Aristóteles ensinou que toda a matéria estava composta de quatro elementos: água, terra, fogo, e ar. Mas é só isso? Novamente aquele sorriso que esocnde algo. Eu continuei com meu falatório: - Segundo sua teoria, materiais diferentes encontrados na natureza teriam proporções diferentes destes quatro elementos. Por isso, pelo tratamento apropriado, um metal de baixo valor poderia mudar-se em ouro...? - Vejo que você tem sido um bom aluno, caro Marcus, apesar dos seus mergulhos freqüentes no mundanismo. Bem... isso não atrapalha nem seus estudos nem o seu destino. Mas preocupe-se em saber sobre os Nestorianos. Vá mais fundo no estudo deles. Busque livros e obras do 5º século..., os Nestorianos romperam com a igreja Ortodoxa oficial no Bizâncio... a Igreja de Constantino... o braço de Roma em nova roupagem... e imigraram para o Ocidente longínquo. Eles traduziram os tratados gregos, principalmente incluindo aqueles de alquimia, em seu próprio idioma, o siríaco. Mais tarde entraram em contato com os árabes, particularmente os da corte do Califa de Bagdad. O resto da história você já sabe. Enquanto Alberto se retirava eu fui para meu quarto guardar a peça. Chamei Pietro e LaCordaire e lhes contei o que se passou. Pietro balançou a cabeça e LaCordaire ficou pensativo. Olharam a peça de ouro e não deram nada por ela. - Uma Pedra Filosofal! – disse enfim Pietro. – De verdade? Não sabia que era possível. - Transmutada em ouro! De que metal terá vindo? - Os alquimistas árabes modificaram o conceito Aristotélico de quatro elementos postulando que todos os metais estavam compostos por dois componentes: enxofre e mercúrio. - Sei disso – disse LaCordaire - Também adotaram o conceito dos alquimistas chineses: uma medicina que poderia fazer um "enfermo", a base, metal em ouro e que atua como uma espécie de elixir de vida. - E Gebber... Alberto não disse nada? O famoso ibn Jabir Hayyan, o primeiro? - Não, não disse nada – eu respondi. - É o alquimista árabe mais notável e um membro da seita de Ismailiya. Li vários de seus tratados... ele cita al-Razi, um notável médico Persa. - Os críticos acusam a todos de mistificarem seus tratados e pensamentos, insuflando aí uma acusação de que tudo era muito nebuloso e cheio de superstições... mesmo assim aceitam que a alquimia árabe descobriu os novos químicos como os álcalis e os processos de destilação. - Ouvi tudo. Parece que Alberto já lhe falou das aulas. Está pronto? – era Tomás de Aquino que se aproximava pelo corredor. Teria certamente ouvido nossa conversação de estudantes. - Claro que sim. - E os rapazes? Participarão? LaCordaire e Pietro confirmaram com a cabeça. Não perderaim por nada o privilégio. - Muito bem. Como trataremos de teoria e nenhuma prática não haverá problemas se o fizermos nas estradas... - Novamente os peripatéticos..., - falei. Tomás abriu a boca numa risada alegre e jovial: - Isso mesmo. Aristóteles conosco... longe de ouvidos impiedosos? O que acham? É preciso terminar estas lições. O tempo urge. - Faremos um farnel e aumentaremos nosso conforto. - Perfeito. Então vamos, enquanto ainda o clima é estável e não esfriou de uma vez. OPUS 32 A verdade exige que nos libertemos das aparências das coisas; exige, portanto, que nos libertemos das opiniões estabelecidas e das ilusões de nossos órgãos dos

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sentidos. Em outras palavras, a verdade sendo o conhecimento da essência real e profunda dos seres é sempre universal e necessária, enquanto as opiniões variam de lugar para lugar, de época para época, de sociedade para sociedade, de pessoa para pessoa. Essa variabilidade e inconstância das opiniões provam que a essência dos seres não está conhecida e, por isso, se nos mantivermos no plano das opiniões, nunca alcançaremos a verdade. Esse aspecto voluntário da verdade torna-se de grande importância com o surgimento da Filosofia cristã porque, com ela, é introduzida a idéia de vontade livre ou de livre-arbítrio, de modo que a verdade está na dependência não só da conformidade entre relato e fato, mas também da boa-vontade ou da vontade que deseja o verdadeiro. Com a queda de Roma, a ciência grega e a filosofia foram rechaçadas da Europa Ocidental. Houve, com árabes na Espanha e Sicília, um novo interesse nos filósofos árabes, nos médicos, e nos estudos científicos. Indiretamente, através do siríaco e árabe, se traduziram os manuscritos gregos e os latinos nos idiomas europeus. A explicação sobre Alquimia era incluída nos tratados de estudiosos como Arnold de Villanova, o nosso amigo e interessante Roger Bacon, sem falar no próprio Alberto. Era nossa responsabilidade, agora, saber dos sistemas secretos e ficava a cargo de Tomás a nossa inclusão em, pelo menos, mais um capítulo daquele saber. Tratáramos com Alberto sobre os trabalhos de vários alquimistas menores. Eles não só contiveram e preservaram discrição sobre a teoria mística como também sobre as receitas práticas mais importantes. Arnold de Villanova descreveu a destilação de vinho; Roger Bacon deu uma receita para a pólvora e ainda escreveu algumas direções para se construir o que ele chamou de telescópio, um objeto para ver coisas ao longe; portanto, o alquimista se tornou uma figura reconhecível na cena européia, e os reis e nobres e alguns clérigos apoiaram, mas não sempre, tais alquimistas na esperança de aumentar seus recursos. Frequentemente, sem dúvida, os que falharam em seu esforço por produzir o ouro prometido perdiam suas vidas. Mesmo porque dariam suspeita a que gente de alta estirpe estivesse metida com ações do oculto e do mistério. - Sente-se Marcus. Caros amigos. Vejam que há tocos de árvores que servirão de banquetas, se assim desejarem – disse Tomás de Aquino, encostando as palmas das mãos, juntando os dedos e se preparando para falar. Pietro tomou de papéis, como sempre fazia, para suas anotações e como secretário de todas as reuniões. O escriba Pietro de Ferrara. LaCordaire encostou-se num tronco abatido, sobre a relva verdejante. - Ante as assíduas petições do meu muito querido mestre Alberto, fui instado a ministrar essas bases e fundamentos das Alquimias e da Pedra Filosofal. Dessa forma, eu me proponho a descrever, em breve tratado que dividirei em oito capítulos, algumas regras simples e eficazes para nossas operações, assim como o segredo das verdadeiras tinturas; mas, previamente faço três recomendações: Em primeiro lugar, não preste m muita atenção às palavras dos Filósofos modernos ou antigos... - Mas estamos todos debatendo e discutindo nas reuniões na estalagem justamente para... - Sim... eu sei. Compreendo perfeitamente... porém, trata-se de outra coisa, o que aqui fazemos. Lá na estalagem a questão é mais procurar caminhos políticos e fraternais para nossos interesses... portanto... não se deve falar tudo o que se sabe... pode não parecer mas há espiões papais naquele meio... – e ante nossa atitude de espanto Tomás finalizou – depois de findar a reunião na estalagem cumpre que cuidemos muito bem de nosso futuro, pois os espiões levarão seus relatórios a quem interessar, lavando as mãos , após. Pilatos nos persegue. Houve uma pausa e ele nos olhava. - Continuemos. Esqueçam de tudo, porque a Alquimia consiste plenamente na capacidade de entendimento e na demonstração experimental. Os filósofos, ao quererem esconder a verdade das ciências, têm falado quase sempre figuradamente. Essa é minha primeira proposta. Usar as chaves, abrir as portas, decifrar os enigmas, revelar o críptico. Alguém gostaria de comentar algo? – Novamente seu olhar intenso nos atingiu – Não? Então eu falo sobre minha segunda proposta: Em segundo lugar, e essa proposição tem mais a ver com a técnica em si: não apreciem nunca, nem estimem a pluralidade das coisas nem das operações formadas por substâncias heterogêneas, já que a natureza não produz nada a não ser por seus análogos e, apesar de que cavalo e asno produzam

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o mulo, não é mais que uma geração imperfeita, como aquela que se pode produzir por azar, excepcionalmente, com várias substâncias. Ouvimos o cantarolar de regatos ao longe, ouvimos o farfalhar de folhas nas árvores e no chão, onde um vento singelo quase levou os papéis de Pietro - Em terceiro lugar. Um preceito muito importante nessa nossa vida e para preservação de nossas vidas: não sejam indiscretos. Vigiem suas bocas. Tomem conta de suas palavras, e como um filho prudente, não joguem pérolas aos porcos. Tenham sempre presente em seu espírito para que fim empreenderam na obra alquímica. Fiquem seguros de que se guardarem estas regras que me foram dadas por Alberto Magno, não terão nada que mendigar aos Reis e aos grandes. Na verdade, ocorrerá o contrário. Os Reis e os grandes cobrirão vocês de honras. Não somente Reis mas também Prelados. Mas atenção! Não socorrerão unicamente às necessidades de poderosos e mandatários; muitas vezes fugirão deles. Mas também socorrerão às necessidades de todos os indigentes, de todos os irmãos oprimidos, e o que fizerem desta maneira valerá na eternidade tanto como uma oração. Novamente ele fez uma pausa, olhou para o chão, depois se dirigiu às nuvens e aos céus, para continuar - Que estas regras sejam pois guardadas no fundo do coração de vocês, com um triplo e inviolável selo, porque em meu outro livro, já publicado e estudado pelas Igrejas e outros discípulos, dado ao vulgo, eu falei como filosofo, enquanto que aqui, confiado na discrição de vocês, revelo segredos escondidos.

OPUS 33 - São palavras de um homem santo para a concretização de homens santos pelo Universo – foi dito por Siger de Brabant. Nunca sabíamos se ele brincava ou falava sério. – Tais pessoas, eu e Marcus, encontramos na nossa empreitada atrás do cigano. No retorno nos perdemos, mas eu estive com um desses pensadores eruditos de origem hindu que parece proliferarem nas nossas terras... isso depois do encontro com a cavalaria de Bernard de Clairvaux. Ficou claro que os monges e estudiosos não gostaram da referência a Bernard. - O Santo Bernard... – desta vez com voz estentórea. - Bernard está morto – um deles disse. Siger sorriu com pesado ar de mofa e continuou. - Um homem santo nunca deve tocar uma jovem. De fato, não deve nem mesmo deixar seu pé tocar numa boneca de madeira que tenha a forma de uma mulher. Através do contato com o corpo de uma mulher, ele será capturado pela ilusão. - Capturam-se os elefantes nas selvas da seguinte maneira: – disse eu, aplicando um exemplo sabido por grandes caçadores, - Cava-se um grande buraco que depois é coberto com grama, folhas e terra. Exibe-se então uma elefanta diante do elefante que a procurará com desejos luxuriosos e cairá na armadilha. - Portanto – concluía Siger - o desejo de saborear a sensação tátil é certamente a causa de ruína em nossas vidas e esta é a lição que devemos aprender com essa história do elefante. - Por conseguinte, de uma forma ou de outra, não devemos nos deixar enganar pelo encanto da forma sensual do sexo oposto – opinou Bacon - Não devemos permitir que nossa mente se perca em sonhos luxuriosos de prazer sexual. - Você está certo, caro Roger – disse Siger - Há diversos tipos de gozo dos sentidos que um homem e uma mulher podem desfrutar entre si, incluindo o falar, o contemplar, o tocar, o intercurso sexual, mas todos eles constituem a rede de ilusão através da qual ficamos desamparadamente presos, como animais. - De alguma sorte, devemos nos manter afastados do gozo dos sentidos sob a forma de prazer sexual; senão, não será possível que compreendamos o mundo espiritual – concluiu Bacon – Mas tudo tem seu tempo e sua hora. - Esses hindus e árabes! Carregados de sabedoria, – disse com sábia entonação e austeridade o conselheiro Nervill – sempre eles! - Mas olha bem – torna Roger Bacon - O califado de Córdoba prosperou, tornando- se logo o principal centro cultural do mundo islâmico, contando com universidade e várias bibliotecas e isso não é motivo para não se dar atenção a todos eles. Córdoba foi a porta pela qual a ciência e a filosofia árabes ingressaram no Ocidente. Ali nasceu Ibn Ruchd... - Outra vez esse Averrois... – comentou o monsieur de Vermont. - Sim, afinal seu pensamento e influência de certo modo simbolizam a passagem do Oriente ao Ocidente. Enquanto os filósofos árabes do Oriente produzem, com certa

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originalidade, uma mescla do aristotelismo e do neoplatonismo, Averróis – que também foi cadi... - Cadi? – perguntou Otto, levantando as sobrancelhas. - ... juíz – explicou Siger. - ...e médico – esforça-se Bacon para ser claro – Averróis deseja restaurar o pensamento do fundador do Liceu. Escreve numerosos comentários sobre a obra de Aristóteles... - mas, Bacon, eu mesmo já li trabalhos seus criticando esses árabes ou seus seguidores, como é que agora me vem fazer a apologia dessa gente? – perguntou de Vermont. - Por que Averrois também retoma alguns aspectos do pensamento de Avicena e de outros pensadores árabes. Como eles, estabelece uma sucessão de Inteligências, que são atos puros, motores imóveis e causas do movimento em cada esfera do universo. Cada um desses motores é, a um só tempo, conhecimento e conteúdo desse conhecimento, os quais constituem as formas ou as essências das coisas. Cairemos aí numa reflexão sobre a criação do Universo se substituirmos essa Inteligência por Deus. Se essas formas provêm da Inteligência, é apenas no sentido de que esta é a causa que faz a matéria passar da potência ao ato, e que torna inteligíveis as coisas sensíveis assim formadas pela atualização da matéria. Estou citando Aristóteles, literalmente. - Gostaria que fosse mais claro. – pede Otto. - Isso significa, a rigor, que as formas não têm existência separada: os universais só existem nos individuais e só se destacam como resultado da abstração feita pelo intelecto. Assim pensam eles – explica Alberto. - Sendo assim, a forma, ou a essência, é própria das coisas individuais existentes, não há sentido em separar a essência e a existência. A coisa é, porque existe: para Averróis, as coisas do mundo sensível, inclusive o homem... - ... e a mulher – falou Siger. - ... e a mulher, têm pleno direito à existência. - A Igreja não esconde seu desagrado – falou bem claro Otto, pedindo apoio a Vermont com o olhar severo - Ao universo letrado e cristão isso se apresenta como uma concepção divergente e sólida da teologia que elaboramos até então. - Evidentemente, a Igreja apressa-se a condenar trechos dos textos aristotélicos. – levantou a voz Siger de Brabant. - Mas, no âmbito universitário, houve um acordo, entretanto, e a acolhida é boa – eu disse. - Mas você e seus colegas estudantes fazem parte da casta de místicos ocultistas que não pode mais proliferar – vociferou de Nervill que era um resumido pedante. - O desenvolvimento das universidades – eu continuei, sem dar muita atenção ao comentário áspero - acompanha o crescimento das nossas cidades. E de todo o conhecimento que dela pode emergir. Não se pode mais negar que nas cidades, vilas e burgos, a camada ascendente de mercadores e artesãos agrupa-se, agora, em corporações de ofício para defender os interesses de cada profissão. Tudo mudou. O conhecimento deve acompanhar e se ampliar. - Para mim é mais uma blasfêmia contra o poder de organização que a Igreja deve manter sobre todos os fiéis. - Infelizmente, para o senhor, caro Otto, as universidades seguem o mesmo modelo: mestres e estudantes cuidam da administração, cuja autonomia é assegurada por uma hábil política que neutraliza as interferências do poder local, temporal ou... eclesiástico. - Aleivosias e destemperos! – ele gritou. - Isso se faz por meio de direitos especiais conseguidos diretamente do papa... forças políticas... forças de pressão... - Por isso o Papa foi obrigado a instituir também a Inquisição, para reprimir as doutrinas heréticas – Otto firmou sua opinião com o dedo em riste. - Instrumento dessa política do papado, que a todo custo quer assegurar supremacia diante dos poderes locais, as universidades representam a liberdade de pensamento – disse Alberto Magno - E, por isso mesmo, também se tornam objeto de suspeitas. Mas, – ele levanta os olhos para o teto e eleva seus braços parecendo pedir apoio celestial – e, devo dar graças a isso, entre liberdade e desconfiança, a universidade que mais retirou forças dessa ambigüidade foi a de Paris, porque lá estava uma figura central que é o nosso Tomás. O grupo prestou mais atenção, porém, antes projetou burburinho espantoso.

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- Quem analisa as provas da existência de Deus elaboradas por Tomás de Aquino – Mestre Alberto continuou, explorando o ambiente e as mentes. Enquanto fala não permanece no mesmo lugar. Perambula pela sala estalando o soalho com passadas largas e decididas – quem analisa essas obras tem a impressão de estar diante de um pensador extremamente racionalista. Mas, acreditem, é um engano... um engano. Tomás é, acima de tudo, teólogo e religioso, para quem a filosofia deve servir à fé. Não no sentido de auxiliá-la, mas de submeter-se a ela. Para Tomás, quando a fé e a razão entram em desacordo, é sempre esta que se equivoca. - A Igreja precisa de conselheiros, auxiliares, professores e estudiosos... nós enfim... que a façamos compreender essa defesa. - Mas o próprio Tomás deve esclarecer seus pontos – pediu Alberto, dando-lhe a palavra. Tomás levantou-se e segurou as mãos em seu movimento carcterístico. O perfil recortou-se contra a janela: - Para mim não há conflito entre fé e razão, a tal ponto que é possível demonstrar a existência de Deus. O grupo relutante se moveu nas cadeiras, como se elas estivessem a queimar. - Recuso – ele continuava, - a solução apressada de Anselmo, para quem Deus, sendo perfeito, deveria ter como um de seus atributos perfeitos o da existência. Eu acredito e defendo a idéia de que definir Deus como ser perfeito ainda não implica sua existência. A definição é uma idéia, e nada garante que uma idéia possa existir na realidade. - O senhor está blasfemando também – disse desdenhoso, Nervill. A impressão que nos dava Nervill era a de que se preparava para partir. Como se se levantasse e arrumasse suas coisas, livros, réguas e objetos de anotações, essa impresão foi confirmada. Então, com a mão espalmada, Siger de Brabant, eclodiu sobre a mesa e um silêncio se fez, vagabundo. - Senhor de Nervill... ouçamos o que o senhor de Aquino tem a dizer, - disse Siger com lentidão e calma. Tomás deu continuidade ao ver que Nervill, baixando a cabeça, sentava-se pesadamente, com vermelhidão estampada no rosto. Cruzava os braços e olhava para o lado. - Não, não estou blasfemando, senhor... - Sim, está sim... em momento algum se pode pensar na não existência de Deus... em momento algum. – Nervill estava nervoso, irritado. - Homens livres pensam o que quiserem e se forem procurar algo, mais livres serão... a inteligência manda que busquemos no Universo as respostas e eu acredito que Deus ali colocou as perguntas e as respostas. A sua conduta, senhor de Nervill, serve apenas para explorar a carência do analfabeto que vai acreditar em tudo que disserem para ele. O meu ponto de partida, então, é o mundo sensível. Quero o mundo sensível, não como Platão. Quero partir daí, pois o vulgo, as pessoas comuns começarão a pensar naquilo que é fácil de entender... o sensual... o sensível... aquilo em que se pode tocar... o mundo percebido pelos sentidos. Todos esses sinais indicam que o mundo é dotado de movimento. Mas, segundo Aristóteles, nada se move por si... nada se move sozinho... A causa do movimento deve ser... causada, posso assim dizer e, se não se quiser estender a série das causas ao infinito, o que não explicaria o movimento presente, é preciso admitir uma causa absolutamente imóvel e primeira: - ...Deus! – foi a fala espontânea de Pietro que se desculpou imediatamente pela exaltada intromissão. - Isso mesmo caro Pietro. O mesmo raciocínio vale para a causa em geral. As coisas são ou causa ou efeito de outras. Não sendo possível ser causa e efeito ao mesmo tempo. Deve haver, então, ou uma sucessão infinita de causas, o que pode parecer absurdo, ou, enfim, uma causa absolutamente primeira e não causada. - Deus! – dissemos eu, Pietro e LaCordaire. Sorrimos um para o outro. - Os dados dos sentidos – Alberto tomou da palavra - também mostram que as coisas existem e perecem. Isso significa que a existência não lhes é necessária, ou essencial, mas apenas resta como uma possibilidade. Por isso, a existência depende de uma causa, exatamente aquela que tenha a existência como essência, uma existência necessária. - Além disso, o mundo apresenta uma série de seres menos ou mais perfeitos, – falou Tomás de Aquino. - Mas como saber o que é mais perfeito do que outro se não houver um padrão a partir do qual se possam medir os graus de perfeição? A hierarquia das coisas relativas depende então de um ser que seja a medida absoluta e eterna da perfeição. Por fim, essa hierarquia apresenta-se como uma ordem, em que cada ser

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cumpre sua finalidade: os seres vivos reproduzem-se constantemente, e os corpos sempre buscam o seu lugar natural, mesmo que disso não tenham conhecimento. Se a finalidade de cada ser é assim atingida, deve haver uma Inteligência que conheça e organize o mundo de acordo com sua finalidade. Não vejo nisso nada de blasfêmia ou negativa da nossa religião. Entendo a pesquisa e o pensamento como afirmativas da nossa fé, senhor Otto, senhor Nervill... - Desse modo, por favor, Tomás, para que complemente meu escrito – perguntou Pietro - a razão, por vários meios, se eu não estiver errado, atinge o conhecimento da existência de Deus? - A razão que demonstra e a fé que revela estão, por isso, em acordo, sem que entre elas haja contradição – disse Tomás. - Ambas são modos diferentes pelos quais se manifesta a mesma e única verdade – completou Alberto. – Não devemos nos deixar levar por preconceitos e intransigências, senhores, afinal, somos homens de fé... Tomás tem uma vida dedicada ao ensino e poderia fazer qualquer outra coisa, pois pertence a uma família nobre da cidade italiana de Aquino, mas resolveu ingressar na Ordem dos Dominicanos. No mesmo ano, tornou-se aluno na Universidade de Paris, e lá já fez sentir a carga de sua sabedoria... os estudos de ciência natural. A vasta obra de Tomás de Aquino é o resultado dessa vida dedicada ao ensino. Os senhores já estão cansados de saber pois a fama do mestre de Aquino corre pelos ventos. Muitos de seus textos são comentários de livros da própria Bíblia, dos santos padres, de Aristóteles, que estudamos juntos, e muitos outros autores. Por isso estamos aqui. Para aprender o novo e o novo, senhores, com esses jovens... Tomás, Pietro, Marcus... o nobre LaCordaire, que aqui estão... e eu achei que seria importante, tal tópico, nessa nossa reunião pois os tempos são confusos e muita coisa pode fazer com que não nos vejamos mais... – ele reforçou essa posição com um suspiro bem trabalhado – para tanto eu insisto que estudem... tratados e comentários, mesmo os textos ainda não terminados sobre assuntos mais específicos, que Tomás aborda sempre com precisão como O Ente e a Essência e Questões Discutidas sobre a Verdade. Por fim, as duas Sumas: a Sumula contra os Gentios é um manual de teologia destinado a converter os muçulmanos, e a Suma Teológica, embora ainda inacabada... Portanto, podemos sim beber em fontes de árabes e estrangeiros, mas sabemos nos posicionar... sabemos penetrar em caminhos outros e sair dali ilesos... - Tomás sempre levanta polêmicas... sempre – disse Monsier de Vermont. - É... Em todas essas obras predomina a intenção de polêmica contra aqueles que, no entender de Tomás, fazem mau uso da razão – falou o monge de Cister - seja extrapolando-lhe a competência, seja diminuindo seu valor. E isso me parece intolerável. Essa arrogância não há de levar a nada. - Em ambos os casos, a fé é a prejudicada, caro monge, - disse Tomás - a razão que se excede torna-se indiscreta e invade o terreno exclusivo da fé, que são os mistérios divinos; e a razão desconfiada de si recusa-se a tornar acessível a fé aos não-crentes, considerando impossível a demonstração da existência de Deus. E isso não podemos permitir. Devo ainda dizer que há um domínio comum à razão e à fé. É, ainda, preciso demarcar com precisão esse território, para impedir que a razão o ultrapasse e para que ela possa se desenvolver plenamente dentro desses limites. Tal domínio é o do ser, que é em primeiro lugar a realidade do mundo sensível. - A razão pode conhecê-la, como o prova Aristóteles, – reiterou Alberto. – Porém, acredito que por hoje, precisamos descansar. E refletir. São nossos últimos dias na estalagem, intercambiando conhecimentos, por isso é preciso cuidado e descanso... OPUS 34 Pela manhã recebemos um recado de que deveríamos voltar à cidade dos upires. Um bando de ciganos que dali fugiam trouxera pedaços de pedra e madeira; diziam que Alexandrino estava preso na cidadela e tal não havíamos percebido por causa de nossa cegueira e luxúria. Após a noite de sono, os três partimos para o mesmo local, mas ele estava diferente outra vez. Era como se a cada vez chegássemos na cidade em uma época completamente diferente da anterior. Muita gente entrava e saía pela porta principal. Nada de Julius ou qualquer outro ser. Os visitantes pareciam felizes e a impressão que dava é que uma festa ou festival se desenvolvia. Vasto aroma de café se espalhava pelo ambiente. Queimava-se mais um produto dos árabes.

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Penetramos na praça. Saímos por ruas enxovalhadas; a multidão era um tapete. Mas a dúvida de que caminho tomar e por onde ir para encontrar Alexandrino nos deixava irritados. Decidimos que o certo seria ir para a já conhecida casa de Virgínia, novamente, afinal tudo acontecera por aquelas cercanias. E ela estava lá. Casa e Virgínia. Parecia que nos esperavam. - Vocês estão atrasados. O amigo de vocês está insuportável. Não pára de pedir que mandemos mensagens. Mas a hora é imprópria... Cada um de vocês entre em cada um desses quartos... você, Marcus, vem comigo. Novamente estava no interior da casa, mas a mulher desaparecera. Outras portas se abriram e eu me vi no meio de um salão com um taco de madeira na mão. Era sonho ou delírio, difícil de afirmar, como sempre o foi naquelas circunstâncias. O taco era liso, madeira bem lisa, parecia com as lanças de caçar upires, sendo que o manípulo fincava-se em um punho de metal que eu sabia só produzirem nas florestas de Grunewald, na Alsácia. Nisso, enquanto música de trombetas estridulava no ambiente, uma bola passou raspando pela minha cabeça. Eu me vi preocupado em rebater a bola para bem longe. Do outro lado da sala alguém atirava a pelota, que era uma esfera de chumbo não tratado, de 7 cm de diâmetro, extremamente polida, de modo que a minha obrigação era desviar o objeto esférico para os cantos do salão forrado de espelhos. A bola deveria penetrar em sua própria imagem... num dos tais espelhos. Dependendo do tipo de espelho – quadrado, ovalado, elipsóide, mercurado, argentado, – eu via que uma caixa calculadora como um ábaco ia dando pontos e selecionando números... Se o espelho se quebrasse, os pontos reverteriam para o adversário, que eu não enxergava quem era, por causa da névoa. Aliás, aí é que entrava a perícia dos jogadores. Fazer com que a bola se mesclasse à sua própria imagem e se fundisse em um abraço platinado. E pontuar. Havia uma platéia que gritava. Eram uivos. Dei, a meu ver, uma excelente tacada e os aplausos desceram da platéia em forma de cascata, alguns, e como granizo em campos de milho, outros. Parece que eu vencera. O adversário veio me cumprimentar . Um sujeito alto, com roupa de corte grego. Fui levado, sem controle, para outro vasto salão repleto de alimentos e bebidas. Auxiliares me tomavam pelos braços. Todos riam. As pessoas se refestelavam e durante horas Virgínia me abraçou e beijou sobre a mesa. O tempo corria de imenso e eu me vi num alvoroço de sensações. Virgínia me falava da resolução dos contrários. Falava como podia, pois minha língua se enfiava em sua boca macia. E todos sabemos que essa resolução é a atração máxima de todos os gnósticos. Eu nem queria mais saber dessa conversa... não era o momento. Místico, esotérico e loquaz eu me preocupava com o gozo dos sentido e da carne. Lembrei-me de Siger. A cor do ambiente mudou três vezes. Azul, opalino, lilás. - Me larga. É hora. Estamos já atrasados e você não me larga. - Atrasados para quê? - O quê? – ela perguntou, enquanto abaixava a túnica de linho marroquino. - Nada... nada. Vamos. Alguma coisa sobre Alexandrino, ao menos? A manhã prometia delícias, mas ela não me quis mais dar as mãos. Fiz de tudo para não irmos ao templo. Queria ficar em seu quarto... Eu mesmo tinha mais o que fazer, mas preferia ficar com Virgínia. Mas, no templo, que nos esperava, o povo se alvoroçava para ver sacerdotisas semi-nuas e uma delas era Virgínia. O povo. Os moradores do burgo, das vilas, das cavernas... Besta colossal. Substância-chave, substância-vida em que se permitia superar as contradições da natureza humana. Mas pensar naquilo não ficava bem com tanta estrela para ouvir segredos. E no meu caso, o povo era a chave enigmática para a chama da liberdade. - Como é que você pode ser assim? Ativo e contemplativo ao mesmo tempo ?– Virgínia perguntou e me pareceu levemente zangada. - É que sou poeta e filósofo. E depois, essa mudança de tempo e espaço... esse escorregar para dimensão desconhecida tira minha sensação de segurança... Tenho minha linha de atuação, mas raciocino livremente.

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- É difícil ser sábio e criança, não é? – perguntou – o responsável por essas... escorregadas, como você disse... é Bernard... e você muito bem o conhece. - Fiquei quieto por alguns instantes. Bernard e seu exército podre. - Bernard, o morto. - A última ambição. Ser jovem e velho ao mesmo tempo. Você não passa de um adolescente, Marcus – ela riu, sem marca alguma que lembrasse atrasos e esperas, – inda mais quando o vejo com meu seio em sua boca. O jardim do templo se abriu aos nossos olhos. Olhei para os arbustos circunvizinhos e tudo me pareceu calmo. Estátuas colossais, várias fontes de água, árvores frondosas tremulavam ao sabor do clarão das tochas. - Aqui está muito escuro – eu disse. - São as nuvens... e os gases... as fumaças... as trevas... Venha. Vamos para os aposentos, rapidamente – ela me disse. Entramos passando por algumas pessoas curiosas que nos olhavam e rumamos para os corredores do palacete procurando camareiros e auxiliares. De longe eu mergulhava nos cabelos de Virgínia e lembrava de seus aromas. Uma dúvida me alcançava. Por certo nesse momento eram banhados com mirra e óleos aromáticos recém chegados da Cachemira. O povo, o filtro dos místicos. O povo, a pedra filosofal dos hermetistas se aglomerava nos degraus ocres que se faziam de arquibancadas. O povo, a vida reduzida a seu princípio. O momento esperado tinha data marcada. Sem a túnica, recebi banhos de óleos também, mas a meu lado outros homens recebiam atenção diferenciada. Eunucos masturbavam aqueles senhores, lentamente, estimulando-lhes desejos e facilitando o culto futuro. - Nem todos podem atravessar a porta. Imediatamente me virei e um daqueles homens que arfavam e resfolegavam chamou minha atenção.

- Como? Desculpe, mas eu pensava em outra coisa – estremeci, pois ele se parecia com Lesahor. Era Lesahor. - Desde Moisés, todos os magos que viram a Terra prometida não podem atravessar a porta – ele disse. - O quê? - Moisés não teve permissão para entrar na Terra Prometida – repetiu. - Provavelmente foi desta para melhor – eu falei, e ele me olhou com ar estranho, daí resolvi completar – Em um bom sentido, é claro. Lembra de Elias...? o mesmo como um carro de fogo... Hélios... Elias... - É...talvez... talvez... É um dos nossos mais rasos problemas, – disse com algum interesse - Mas o povo tem uma resposta mais flagrante para isso – falou, retirando o suor. - Que eu saiba, sim. Estamos sempre à porta desse povo. Olhando para ele. Dando exemplos. Enfeitando algumas de suas noites com dramas místicos importantes. - É possível. Não acredito muito nisso. Mas é possível, – Lesahor como que segredava. - Não acredita...? - Não. Eu vim do povo. E posso dizer que o povo é meu pai. Há muito obstáculo para essa..., como direi,... incorporação mágica... a tal da tomada de consciência do povo, se é que me entende... - Mas você é um dos sacerdotes(!)... o oráculo... - Sim, sou sacerdote... uma profissão como outra qualquer... às vezes uma profissão de fé... se é que me entende, mas cá entre nós... tirando essa parte da preparação que os eunucos nos concedem... o bom mesmo é estar com as mulheres, quando roubamos o corpo das... castas divas... – ele riu para si mesmo e mostrou dentes amarelos, se bem que iguais - ... muito castas!... Eu nasci povo e trago o povo no coração e o povo quer comer as sacerdotisas... eu faço isso por eles...- riu novamente, – meu sacrifício pessoal... minha missão especial... derramar esperma nas taças sagradas... - Comer! – Eu me lembrei da inacessível língua de Virgínia antes de sairmos de casa. E me lembrei das reuniões anteriores. - É. Essa cosmologia da redenção acaba em infortúnio, acredite. Tudo isso aqui não passa de espetáculo para o povo gozar. Enquanto ritualizamos, cá entre nós, as sacerdotisas com nossos pênis sagrados, preste atenção, como o povo, também cá entre nós, se masturba e faz sexo por todo lado..., o tal do povo. O universo triunfante do liso

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e do quente, nada mais do que isso – ele me falou enquanto se limpava do óleo em excesso. Um sinal de badalo ecoou pelos aposentos e eu estava atônito. - Vamos. Pega a túnica. O farto aroma de café se esparramava pela nave. Todos bebiam o líquido escuro, bem quente, distribuído à grande por torneiras douradas que saiam das paredes marmóreas. Por efeito do líquido muitos gritavam e batiam contra o peito. Muita gente não tinha estofo para beber aquele elixir de potência e vigor. - Durante as semanas que antecedem o drama no templo – Lesahor explicava - era comum a venda de café pelas irmãs-sacerdotisas, às portas da cidade. As crianças não saiam às ruas, pois se tratava da preparação para a semana da fertilidade... a tônica da nossa cultura. O espírito brota espontâneo como ele realmente é. Nem todos gostam disso. No entanto, um leve amargor me tomou. Um sintoma diferente e novo me atingia. Meu coração batia como se se precipitasse para explodir. Enquanto cantavam hinos eu corri dali e cheguei numa espécie de sala para receber água de chuvas, uma sala que se abria para os aposentos das mulheres. Nem sei o que é que faria, ainda, mas a hora chegava. Os corredores eram sinuosos e as tochas de pouco valiam. De sala em sala eu tentava vê-las. Em uma sala os embrutecidos pelo tabaco se pegavam em tapas no rosto. Noutra sala os idosos se banhavam em rapé – na verdade uma mistura de ópio e gergelim, – indefesos em relação ao ridículo. Mais além, barris de vinho e raparigas conturbavam o ambiente com gritos e danças. Alguns padres vinham se deliciar entre coxas jovens, pagas a preço de turmalinas. De repente, eu me vi em uma sala abobadada e, ao entrar, estava ao lado de Virgínia que achou tudo aquilo muito estranho, mas sorriu. - Você perdeu alguma coisa? Encontrou-se com os outros dois? Ou perdeu a si mesmo, que é o mais comum? – e riu com as outras. - Não quero perder você. Vamos embora daqui. - O que foi? Está diferente. Nunca vi essa dobra em sua testa. Você exagerou no café? Está mais sóbrio. - Meu discernimento está mais amplo. Mas não quero perder você. A história vai mudar seus caminhos.

- Tolice, meu querido. Tolice. Estamos prestes a aumentar, a ampliar a consciência local com a exposição do nosso drama. - Esqueça isso. - Nem me fale uma coisa dessas... é algum enigma?. - Não há enigmas!! O que há é a prática!! Tudo mentira! – as mulheres que nos escutavam começaram a rir outra vez, mas eu continuei a puxar Virgínia. Tentei tomar da sua mão para sairmos, trazendo-a para fora do templo. Ela não queria. Fez força contrária e escapuliu com certa violência. - Ouça como a turba urra, – Virgínia falava tranqüilamente. - Eles nos esperam – o badalo soou novamente e a gritaria ficou maior. Eu suava. Faltava-me a liberdade de argumentar adequadamente. As mulheres retiravam suas roupas e passavam para outro aposento, em direção à nave central do templo. - Vem comigo, Virgínia, fica comigo somente. A coisa vai esquentar por aqui. – Mas, ela se limitou a passar o dorso da mão entre as suas próprias pernas e levantar, na minha direção, dedos molhados, quase os esfregando no meu rosto - Vai esquentar mesmo. Egoísta. Não vê que somos belas damas, hoje representando meretrizes sagradas?... a mais subida honra! e você quer que eu vá com você. Ficar somente com você? - Sim. Mas não é só isso. - Louco! Lá estaremos embebidas em café Árabe... o líquido morno das bacias douradas nos banhando, – Virgínia descalçou as sandálias – discursaremos sobre o Serralho, o penteado à sultana que levamos para ser desfeito nas orgias – ela, negligentemente, deixou cair uma das alças, que escorregou sobre o ombro. – Quem sabe não falaremos sobre as Mil e Uma Noites? Nós, as huris modernas, que daremos seios fartos aos nossos irmãos sacerdotes e depois nos fartaremos com a platéia enlouquecida. Você está é muito louco!!

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Vi que meus esforços seriam vãos. O badalo novamente tocou e a última imagem que vi foi Virgínia se afastando, deixando resvalar para o chão a túnica de seda... suas ancas ondeavam... ela transpirava... Inexplicavelmente eu me encontrei em meio a uma luta aguerrida. Estava no centro da nave, os sacerdotes e sacerdotisas copulavam, mas uma batalha se desenrolava nas arquibancadas. Um grupo armado havia penetrado no templo. Era o exército de Bernard de Clairvaux e o podre de suas entranhas se misturava com o aroma de café. Pelo que sei eu estava do lado deste grupo. Desfechei muitos murros e parti uma série de queixos. Não sei como, mas uma espada se ergueu entre minhas mãos. Eu mal podia erguê-la, de tão pesada. Fiz apenas uma investida e derrubei três pessoas, mas a espada escorregou de minhas mãos. Os revoltosos não eram maioria numérica, mas tinham cavalos, arremedos de corcéis grosseiros que cavalgavam aos pedaços, carregando pedaços de seres, e tinham a vontade inumana de vencer... a vontade de vencer, para além da morte... Os guardas do templo, armados de lanças e elmos e bestas, eram quebrados ao meio. Os casais ritualísticos foram cortados com largas facas. Rebeldes, com marretas, destruíam altares e ídolos, derrubavam os vasos e turíbulos das aras, pisoteavam as oferendas. A batalha. Os rebeldes entravam no templo, de surpresa, e venciam a contenda, pondo, por fim, fogo nas dependências. Todos partiram, em grande arruaça, da mesma forma que chegaram. Não soube mais de Virgínia. Batedores que encontrei e depois, conversando com Pietro e LaCordaire, disseram que algumas irmãs-sacerdotisas sobreviventes, desfiguradas umas, queimadas outras, trôpegas enfim, se prostituíam pelos lados das terras do leste. Pietro contou que soube que os reis gnósticos, percebendo que os rebeldes se fortaleciam a cada momento, inventaram de fugir, sem defender ninguém. O responsável por esse traslado de mudas de plantas cafeeiras foi o cavaleiro de Clieux, hipócrita religioso, que conseguiu transformar as terras papais em campos exportadores de presos para as Cruzadas, chegando a 50 mil, o número de escravos e escravas, lutadores do Bem. Um século atrás, segundo LaCordaire, Clairvaux, ainda vivo, chegara a esse templo para destruí-lo. Os rebeldes retornaram ao templo, mas já não existia o ritual e nem mais se ouvia falar naquelas histórias de putas e eunucos e banhos de óleo. Os rebeldes venceram. Estávamos na estrada e encontramos Julius, o velho, que nos observava, fazendo sinais no ar..., mas não demos muita atenção, então ele gritou: - O oráculo!, o oráculo não mais se deu à mostra e as pitonisas vendiam seus corpos para os upires... jurando que era muito bom para afastar formigas de plantas tenras, protegendo os jardins, suas flores e seus frutos. E saibam todos que o chefe dos Upires não é outro senão Calatin, o Cão Raivoso. OPUS 35 - Sobre a operação! – falou Pietro, revendo anotações. Sentávamos em nossas camas, cobertos e protegidos do frio, apesar da pequena lareira. Cada um de nós carregava sua terrina de sopa de ervas. Deixamos Tomás a escrever, após a aula que nos dera e corremos para o quarto a fim de rever apontamentos. - Como ensinou Avicena em sua carta ao rei Assa – relatava Pietro - buscamos obter uma substância verdadeira por meio de várias outras intimamente fixadas, substância que ao ser colocada no fogo, o mantenha e o alimente. E, que seja, ademais, penetrante e invasora, que receba o mercúrio e os demais corpos. – Pietro sorveu um bocado de líquido quente e continuou – uma tintura muito verdadeira, que tenha o peso requerido e que sobrepasse por sua excelência a todos os tesouros do mundo. - Mas, foi também dito que para fazer esta substância – explicava LaCordaire - é preciso ter paciência, tempo e os instrumentos necessários. - Paciência – eu dizia – eis aí um exercício e tanto para nós três... a nossa impulsividade é nossa mestra e nossa punitiva... basta o exemplo de ontem... - Sim... mas, segundo Geber, o primeiro, - dizia LaCordaire, novamente - a precipitação não é obra divina...é obra do diabo, assim aquele que não tiver paciência terá de suspender todo o trabalho. Suspiramos enquanto meditávamos sobre tempo, trabalho e a paciência que não tínhamos.

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- Tempo, porque em toda ação natural que resulte de nossa arte, o meio e o tempo estão rigorosamente determinados – leu Pietro, levantando algumas folhas. - Instrumentos, somente os necessários, mas não em grande quantidade, como veremos mais tarde, já que nossa obra se realiza por meio de alguma coisa... de um vaso, por exemplo - eu disse, repetindo a Hermes, o três vezes Grande. - Para mim ficou um pouco obscura a frase seguinte, prestem atenção – pediu Pietro de Ferrara – “Está permitido se fazer a medicina de vários princípios aglomerados; sem qualquer erro, não se necessita se não de uma matéria, nem nenhuma coisa estranha exceto fermento branco ou roxo”. - Levaremos isso como ponto para discutir com Tomás – eu falei – Afinal, toda a Obra é puramente natural...- Pietro seguiu no texto, esfregando u’a mão conta a outra. - Basta observar as diferentes cores, seguindo o tempo em que aparecem. Isso tudo está em simbolismos e mistérios. Tomás deverá nos passar as chaves disso. Por enquanto, acredito, será para simples leitura. Ouçam essa! “ No primeiro dia é preciso levantar-se bem cedo para ver se a vinha está em flor e se transforma em cabeça de corvo; depois passa por diversas cores, entre as quais devemos destacar o branco intenso, porque justo este é o que esperamos e que nos revela o nosso rei, ou seja, o elixir, o pó simples, que tem tantos nomes quanto coisas existem no mundo”. Lá fora pássaros noturnos entoavam suas cantigas fúnebres. Muita vez um grito ou suspiro se fazia ouvir entre litanias de monges longínquos. - Para terminar nossa matéria, magnésia é o mercúrio preparado com a urina de crianças de doze anos, desde o mesmo momento de ser emitida e que nunca tenha sido usada para a Grande Obra. Esta se chama vulgarmente de Terra de Espanha, ou Antimônio, mas, presta atenção no que vou dizer – e nos lembramos das palavras de Tomás de Aquino – não quero dizer aqui o mercúrio comum que usam alguns sofistas e que dá resultados medíocres apesar dos grandes gastos que ocasiona e, se quiser trabalhar com ele, até poderia chegar à verdade, mas gastaria muito mais tempo de cocção e digestão. Mas é melhor seguir ao bem aventurado e Grande Alberto, meu mestre, e trabalhar com a prata viva mineral, já que somente nela está o segredo da Obra. Depois trabalhar a conjunção de tinturas, brancas e roxas, que vêm dos metais perfeitos que, sozinhos, dão uma tintura perfeita; o mercúrio não comunica esta tintura se não depois de a haver recebido; por esse motivo, misturando as duas, se mesclarão melhor com ele, com o mercúrio, e o penetrarão mais intimamente. - É! Muita paciência para entender tudo isso! – eu falei. Opus 36 Novamente, quem é Alberto, o Grande, em verdade? Nunca sabemos?! Ele mesmo transmuta como as pedras. Por várias vezes, durante as viagens tive oportunidade de falar sobre o robusto Alberto Magno, príncipe dos filósofos. Algumas platéias muito atentas. Outras muito desdenhosas e cépticas, principalmente pelo fato de que Alberto, mestre, líder de papas, se imiscuía no ocultismo ou na produção da Grande Obra. Dizem que escrevia muito e ocultava muito, também. Entretanto, foi espantosa a difusão de Alberto, das suas obras mais secretas e difíceis de compreender, uma vez que está cercada de simbolismos e rodeios para complicar o entendimento, mas para facilitar a compreensão dos iniciados, como eu Pietro e LaCordaire, se bem que precisássemos de Tomás como preceptor. É claro que essa difusão de obras se deveu, em grande parte, à auréola de lenda e de autoridade que rodeou, mesmo ainda em vida, Alberto de Lauingen, honrado por todos os intelectuais da sua época com o título de O Grande. Autoridade que se firmou em todos os domínios da atividade humana, religiosa, intelectual, científica, política, diplomática, econômica e mesmo mágica. Repito: Alberto nasceu em 1193, em Lauingen, repito, e que isso não se afaste nunca de nossas mentes febris... se fosse por mim eu repetiria a biografia de Alberto dez vezes seguidas nesses escritos, como um mantra, mas isso não seria de bom resultado para ninguém. Bem, enfim, ele nasceu às margens do Danúbio, do filho mais velho de uma família de altos funcionários imperiais, opulentos, mas sem pertencerem à nobreza. Em 29, Alberto reside com o seu tio, em Pádua, onde termina os estudos na Universidade, fundada em 1222. Com 37 anos de idade, Alberto toma o hábito. Nesta época, não era considerado um estudante brilhante, nem sequer dotado. Alberto teve

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dificuldades em acompanhar o curso de Teologia e esteve prestes a abandonar o convento. Mas durante um sonho, como ele mesmo precisou, os anjos e a Virgem ter-lhe-iam aparecido. Acredito que já falei sobre tudo isso. A memória me falha, como se quisesse reprisar os fatos. Meus dedos grossos escrevem mal. Mas, continuo: Brotam daí as faculdades intelectuais de que se julgava insuficientemente dotado. Desde então, Alberto vai impor-se e mesmo espantar quem o ouvisse pela sua memória e habilidade dialética. Quem o conheceu não o reconhecia. Sócrates já dizia que o filósofo tem que ter memória. É necessário ter memória. Mais tarde Alberto é enviado, na qualidade de lector, a diversos conventos da ordem, a Hildesheim, Fribourg, depois Regensburg (Ratisbona), onde permanece dois anos. Após a morte do prior de sua ordem, Alberto é lembrado para postos e encabeçar capítulos. É tornado lector em Estrasburgo. Depois é enviado a Paris, quando ministra aulas para os jovens que ali ingressam e é onde começa a nossa história propriamente dita. Paris é a capital intelectual do Ocidente. Também já me reportei a este assunto, acredito. Uma multidão não habitual de auditores assistia aos seus cursos, obrigando-o a lecionar fora dos edifícios, na praça Maubert, por exemplo. Este sucesso é devido em parte ao seu prestígio pessoal, em parte ao assunto escolhido : a explicação de Aristóteles, no comentário de Pedro Lombard. É fato que ainda em 31 a Igreja proibia a explicação pública de Aristóteles, porque os postulados do seu sistema do mundo são contrários ao dogma cristão. Muita gente acha isso. A grande obra de Alberto foi a adaptação a este dogma das obras de Aristóteles, que, de resto, só eram conhecidas através de traduções latinas, realizadas segundo as cópias árabes fortemente influenciadas por Avicena e Averróis, dois filósofos neo-platônicos, como não canso de dizer nestes textos. Alberto regressa a Colônia. Organiza o Studium Generale, instituto de estudos superiores. Entre os seus alunos o nosso segundo mestre, Tomás de Aquino e, com ele, Ulrich Engerbert de Estrasburgo. O primeiro, vindo do sul da Itália, vai tornar-se o seu discípulo preferido, seu amigo e continuador da obra filosófica, cujos materiais vai organizar num sistema coerente, que será a principal forma de filosofia cristã daí em diante ; Ulrich de Estrasburgo, amigo muito íntimo também, dedica-se mais ao estudo das ciências. Para essa reunião na estalagem Ulrich não compareceu, pois substituía Alberto na direção da ordem e nas conversações iniciais para a construção da catedral de Estrasburgo. OPUS 37 - A minha família queria que eu me tornasse um estadista, um militar... nunca pensaram que eu viesse a ser um frade, muito menos Dominicano. Tive que fugir de casa para poder seguir o que meu coração mandava – e rimos bastante junto às declarações de Tomás. - Meu pai ficou furioso. Mandou seus mais fiéis servidores a Nápoles, para trazer-me de volta. Como o superior do convento sabia do plano, nem sei como, ele me enviou a Paris. Inútil: os emissários de meu pai me alcançaram e me trouxeram prisioneiro. Tomás pareceu mergulhar na febre daquela época e uma névoa de lembranças passou por sua cabeça. Ele reprisava momentos em que estava calmamente instalado em Roccasseca. - Escolhi a Ordem dos Dominicanos, pois eu não queria ficar trancado numa cela e afastar-me do mundo. Ao contrário!, o que eu mais desejava era difundir a fé cristã. E os dominicanos eram os grandes pregadores daquele tempo – Tomás andou pela sala, como sempre, pousando a mão sobre os móveis negros, sobre o espelho, sobre os pequenos frascos, como se cada objeto o levasse a uma época ou carregasse sua memória para as estradas corretas. Muita vez pousou a mão sobre nossas cabeças, sem emitir qualquer som, como se nos abençoasse. - Para difundir uma fé, e combater os que não a aceitam ou dela duvidam, os heréticos; o primeiro passo é conhecer os fundamentos dessa fé. Nada pode ficar de fora, mesmo que você não concorde com outros estudiosos, da mesma forma que eu luto contra Averroistas , por exemplo, sem no entanto me transformar em guerreiro alucinado. Eu estudo Averróis para combatê-lo. A silhueta de Tomás desenhou-se contra a janela aberta, por onde fina brisa

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trazia aromas campestres. Ele continuou. - Estudei em Paris, com os grandes teólogos; me tornei professor. Dediquei-me a provar que Aristóteles não negava a Revelação, tão claramente assim. Em primeiro lugar, a filosofia de Aristóteles não é necessariamente pagã pelo fato dele ter nascido antes de Cristo, afinal, os gregos, e principalmente Aristóteles, tinham também uma concepção de Deus, ou de uma divindade. Em segundo: a razão, dada ao ser humano por Deus, não se choca necessariamente com a fé; se bem utilizada, a razão só pode conduzir à verdade. E em terceiro lugar: a revelação divina orienta a razão e a complementa. São minhas conclusões. – Ele nos olhou com um leve sorriso e passou a abrir seus livros – Mas, vamos seguir nossas aulas e retirar as dúvidas. Vamos lá! Sobre o branco, o roxo e outros termos da aula anterior. Muito bem. Olha Marcus! Os alquimistas estão de acordo sobre o seguinte, dito por Hermes: ”A Alquimia é uma ciência corporal, de um e por um simplesmente composta, conjugando as coisas mais preciosas para conhecimento e efeito e transmutando em um gênero melhor. Tanto serve o exemplo para a mudança dos corpos e da matéria, como para a transmutação do seu estado espiritual. A maior das transmutações é a da alma, caros amigos. Em suma. Ninguém, nem um animal, nada pode entender sua espécie se não for por meio de algo similar, de coisas parecidas e da mesma natureza. Certo? Concordamos com a cabeça. - Bom. Nesse caso, procuraremos a Pedra Filosofal em nenhuma outra parte a não ser entre as sementes de sua natureza. Vale para valores espirituais. É preciso pensar para que fim e para que uso se quer a Pedra Filosofal. - E sobre o parágrafo dos Reis? – perguntou LaCordaire. - Bem. Ricardo, o Inglês, colocou seu segredo nas mãos do Rei da Inglaterra, que o fez morrer na torre de Londres. Eduardo da Inglaterra não cumpriu a promessa que fez a Raimundo Lúlio. Outro exemplo, Jacques Coeur apesar de ter comunicado o segredo a Carlos IV não teve mais do que a morte como prêmio e recompensa. Portanto, cuidado com os Reis. Enfim. São traiçoeiros. Uma pausa reflexiva nos orientou. - Cuidado com os poderosos. Sempre. Eles olharão além de seu corpo. - Mestre – chamei sua atenção – sobre a obra em branco e roxo... - Nesse ponto, caro Marcus, vale dizer que não se tem prestado suficiente atenção à concordância astrológica do tempo necessário para a Grande Obra e isso finda em nulo o esforço de muitos alquimistas, que acabam desistindo. Os tempos, a pedra, são precisas em função da Água Filosófica e Astronômica, disse d’Espagnet, se quiserem anotar. – Tomás deu-nos uma pausa. - A primeira obra ao Branco deve terminar na casa da Lua; a segunda, na segunda casa de Mercúrio; agora, a obra em Roxo, a primeira em Roxo, deve estar na segunda casa de Vênus e a segunda ou última em Roxo deve terminar na casa de exaltação de Júpiter. Por analogia se termina a obra inteira na Páscoa... - Por analogia de quê? – perguntou Pietro. - Por analogia da ressurreição. Lembrem sempre do significado espiritual da busca da Pedra Filosofal. Nesse caso o alquimista pode usar a imensa energia espiritual que há na Terra por momentos e tempos da Quaresma. Principalmente na Semana Santa. Uma quantidade imensa de energia potencial. Estão seguindo? O alquimista que também espera ressurreição do Rei Filosófico dirigirá ou usará essa corrente para sua Obra. Ou seja, o Universo conspira a favor, durante esses tempos. Nesse ponto Tomás de Aquino parou de falar e ficou a nos olhar. Olhou para cada um de nós. Sorriu e saiu. OPUS 38 - Nós chamamos a isso tudo de “O Santo Massacre”, - disse Alberto, ponderando com vigor e certa raiva interpolando suas frases. Ele continuava, como se projetasse no futuro sua visão arrancando dali profecias: - Os papas de todos os tempos farão visitas à Terra Santa em celebração pela passagem dos Milênios, das Festas, das Celebrações do Cristianismo, e serão obrigados a pedir perdão aos judeus e muçulmanos pela Igreja Católica ter instigado Cruzadas que terminaram por produzir um terrível massacre da população civil judaica e árabe de Jerusalém, por parte dos cavaleiros cristãos. Templários ou não. Hospitalários ou não. Papistas ou pobres mercenários, o que dará no mesmo. Terão de lembrar os lotes de crianças que enviaram para lutar contra operosos soldados, em nome do Cristo. Lotes de crianças pobres, claro. Filhos de vassalos.

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- Como se davam esses assaltos à Cidade Santa? Alberto parecia ler nas paredes da estalagem. Virava páginas invisíveis. Misturava línguas. Soletrava sentenças inteiras. Traduzia. Seus olhos coruscavam harmoniosamente enquanto ele viajava em seu tempo pessoal, perdendo-se e encontrando-se nas maravilhosas volutas da tempestade onírica em que se achava: - "Pelas muralhas e portas, derrubando, destruindo, ou prendendo fogo no que se lhe opunha, o exército vencedor penetra então na cidade. O ferro semeia por todas as partes a desolação e a morte, o luto e o horror, suas companheiras. O sangue forma lagos ou corre em arroios que arrastam no seu curso cadáveres e moribundos.", dirá o poeta Torquato Tasso em sua Jerusalém Libertada. Nesse ponto Alberto sai, caminha como que em visão, igual a João em Patmos. O temperado frio nos pegou, mas o sábio carregava em seus movimentos, inventando ações e jogos como se estivesse em uma batalha. O desengonçado de seu jeito professoral nos fez pensar em loucura, no entanto mantinha a serenidade que nos amainava os rigores do coração. Alberto Magno grita na estrada: - "Insondáveis são os desígnios do Senhor!" Assim meditavam os cavaleiros cruzados na sua marcha pela Palestina em junho de 1099. Tropel de milhares de animais desciam os vales. Algures pássaros entoavam hinos famélicos. O pó do deserto secava a pele dos soldados e irritava os olhos. Desde que saíram de Alepo, na Síria, em direção à Cidade Santa, só encontravam pelo caminho, areia, pedra, e chão árido, esturricado. O caminho coberto por calvas e ossos demonstrava a intemperança da ação. O deserto parecia inclemente e grotesco. As montanhas pareciam longínquas e inatingíveis. “Desventurados e tristes, estávamos todos!”, bradava Alberto na estrada, como a rememorar antigas viagens e imagens “O Jordão foi-lhes outra decepção. Tudo que se sonhava com a leitura do livro Santo desaparecia na miragem daquelas poucas águas. Cavaleiros viajados como Godofredo, Tancredo e Boemondo, não podiam acreditar que o mais santo dos homens tinha por ali deixado suas marcas. Eles que conheciam os rios europeus, o Pó e o Danúbio, largos, fluentes, desiludiram-se ao verem a modéstia daquelas lodosas águas beatas. Paramos, bafejados pelas ondas de calor. A quentura do ar nos pegava pelas costas e lanhava o flanco dos animais como vergastas de fogo. No entanto, fora naquelas águas, dizia a Santa Escritura, que João Batista ungira Nosso Senhor Jesus Cristo. Todo se olhavam. Os chefes lançaram espadas e capacetes em terra. Muita gente se sentou em pedras e na areia. Choravam. Na expedição vinham ainda, sob o comando dos barões, uns dez mil homens, tendo a fome e a sede como irmãs e excelentes companheiras. Seria mesmo ali, intrigavam-se, que se dera a Encarnação? Tudo mentira e desconsolo! A fé devia perdurar quando a geografia não acrescentava nada ao ânimo? Confirmava, porém, ser aquele um lugar milagroso, a existência de inúmeras capelinhas erguidas pelos peregrinos que, em devoção, homenageavam ali antiqüíssimas relíquias. Olhando para a esquerda era possível divisar uma linha de gentes que caminhavam idôneas e ordeiras. Pareciam penitentes. Pareciam nômades de outras terras, perdidos em ventre de barro sujo. Os pobres passavam e estavam aptos a comprar de tudo. Numa das capelas, pasmem, encontramos até uma lasca da Arca de Noé! Toda a feira que se ampliava ao nosso olhar fascinava nossas cabeças doentes de febre e sequidão. Mais espantados ficamos quando nos mostraram onde forjaram os cravos que prenderam o Salvador na cruz! Todo artefato tinha seu valor para prender o visitante. Era por tais coisas que vínhamos lutar? Cada uma daquelas pedras em seu caminho, asseguravam os vendilhões, testemunhara uma profecia, cada nesga de ar quente ouviu um salmo e um cantar de salmo dos antigos profetas, cada entranha na rocha acolhera um Malaquias ou um Isaias, cada pedaço de pano pode ter coberto o corpo do Homem-Deus. Não duvidavam mais, a terra dos Philistins – a Palestina - era o berçário dos iluminados de Deus, aquela era sim a Terra Santa”. “Foi então que se assistiu a uma das mais ímpares revoluções. Incapacitados de enfrentamento numa guerra justa e cansados das esperas, à nossa frente, todos exasperados pela incompetência e paralisia da elite abácida, que se mostrava incapaz em fazer frente aos mongóis e aos cristãos, provocaram um movimento ingente. Mal acreditávamos no que víamos e venderíamos a alma por água. Os chefes mamelucos deram um golpe de Estado, no Cairo, removendo o califa. Caíra uma cabeça para subir outra com desdém e lamúrias. Os mamelucos eram soldados-escravos de origem turca, eram estranhos trazidos à força, importados pelos governos árabes para conduzir as tropas e formar ‘guardas de confiança’. Tamanha tolice entre gente tão esclarecida pôs

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em derrocada as dinastias reinantes. Nunca lhes havia sido dado qualquer papel político, a não ser o de obedecer servilmente às ordens. E agora eu vejo, pois agora tudo isso acontece, o tempo é real, as mortes se sucedem, e apoiado pela vitória sobre os mongóis em Ain Jalut, o emir Baibars fundou o sultanato mameluco, injetando ânimo na população conclamada à jihad, a uma guerra santa contra os infiéis”. Era uma visão e cessava nesse ponto. Cessava aí a visão de Alberto. Ele largou-se por terra, cansado. Resfolegava. OPUS 39 Enquanto as nuvens caiam no horizonte, uma larga faixa azulada de tonalidades escuras crescia do outro lado; vimos que vinham galope, trazidos pelo vento ou por golfadas do Inferno, os soldados de Clairvaux; manifestaram-se abertamente na noite, carregando suas almas fétidas. Bernard vinha à frente. Parou a nos olhar. Falou bem alto: - Eu não estava lá, mas as muitas bocas de contar ecoam toda a história, - ele desceu do cavalo pútrido e se aproximou movendo um leve bafio de entranhas e sepulcro. - Finalmente, ao avistarem Jerusalém, um êxtase místico acometeu a todos. Ele contava enquanto prendia o seu cavalo morto/vivo nos galhos das pequenas árvores. - O céu parecia desabar em torrentes de areia em torvelinho . De joelhos, o povo, os soldados e os barões, prostraram-se na frente dos seus muros. Jerusalém se manifestava. Séculos chamavam aos homens e uma grita imensa fez levantar essas almas que aqui estão. Nesse momento Bernard apontou para os soldados podres que o acompanhavam. - Lá dentro, alarmado com a chegada daqueles belicosos, o governador egípcio reforçou as defesas. Mas, era pouco o que podia fazer, contam os relatos. Cidade escolada em assaltos e sítios, as muralhas de Jerusalém eram impressionantes, mas desta vez não deteriam a força da fé dos famintos de Deus. Todos esses famintos defendendo suas vidas, suas mortes e seus tesouros, que já estavam se amontoando em mãos alheias, banqueiros do novo século. Pedro Eremita, líder da chusma cristã, sugeriu repetir o exemplo de Josué em Jericó. De repente, um amontoado de vozes desgovernadas se fez ouvir. Ajudantes do profeta gritavam mais alto ainda, tentando conter os incautos e destemidos soldados. Tocavam trombetas. Batiam nos rostos dos entusiasmados para se organizarem. Os cruzados queriam derrubar as muralhas a toques de corneta, enquanto evocavam o céu em piedosa procissão, batendo os pés, fazendo a terra tremer. Descalços, em trajes de penitentes, com rosários e ladainhas, os cristãos fizeram várias voltas ao redor da cidade, cravando no chão olhares ímpares de fé ardorosa e fome aguerrida, salmodiando, cantando, dançando como David o teria feito, acreditavam, sob as vistas zombeteiras dos guardas muçulmanos que, do alto das seteiras, assistiam espantados àquela inútil rezaria. Não era uma zombaria de desmerecimento, mas os muçulmanos tinham ciência de que as muralhas eram intransponíveis. Nenhuma pedra rolou das muralhas, nem um tijolo gemeu. Bernard de Clairvaux veio até nós, retirando as luvas e deixando à mostra as mãos descarnadas. Olhou para Alberto, que estava desmaiado, como se lesse nele outras visões. Voltou-se para nós. - Deram-se conta então, os comandantes surpresos, que lhes faltava madeira para o assédio. Estavam despreparados. Sonharam com a facilidade da guerra por se sentirem os defensores da verdade cristã contra o infiel muçulmano. Tiveram a oportunidade de esperar os navio. Alguém dissera que o papa enviara de Nápoles um carregamento de homens e armas e alimentos. Um grupamento destacado e menos tangido pela inércia da fé desceu ao litoral, mas nada havia ali. Então, tomaram de um navio qualquer. Conseguiram, graças à presteza de alguns marinheiros genoveses. Príncipes de várias partes da Itália atracavam na praia e com eles os mastros e o madeirame de navios que se tornariam em peças de guerra. Construíram então aríetes e torres. Rezando e praguejando arrastaram-nas para as beiradas dos muros. Houve estremecimento por parte dos muslins. O assalto final a Jerusalém deu-se no dia 15 de julho de 1099. Muita cabeça rolou, de muito peito jorrou sangue negro, muita alma se perdeu na luta. Pretende-se que foi Boemondo o primeiro cristão a pôr os pés no alto do fortim. Levava uma bandeira. Estava imbuído de uma fé tenaz. A guarda muçulmana, assustada,

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recuou. Na verdade, debandou. Conforme a soldadesca cristã se enfiava pelas vielas que cercavam a Mesquita de Omar e a Sinagoga, os homens foram tomados por um furor homicida e a pior das mortes alcançou muita gente naquele momento terrível. Bernard fez um sinal para um de seus chefes e eles se afastaram para os campos. - Os pacíficos habitantes da cidade, judeus e muçulmanos, representavam para eles o demônio, a impureza, a profanação dos lugares santos. Não houve perdão. Misture o fanatismo à fé, à fome e à areia do deserto e será possível ter uma idéia do que se passava Os árabes que encontraram no pátio da Grande Mesquita foram exterminados e caíram sob a espada e as lançadas. A correria era imensa, todos aturdidos e em situação limite, apesar de saberem que do lado de fora das muralhas uma horda de cristãos famintos de fé, mas exaltados pela loucura, esperava sua vez. Confiavam todos na muralha milenar. Aos judeus coube um destino pior. Encerrados no Templo de Salomão, foram queimados vivos. Não haveria ali compaixão alguma, e eram cristãos. Por isso que durante milênios a situação dos cristãos foi se tornando pior... Pouparam apenas a vida do governador egípcio Iftikhar ad-Dawl e dos seus guardas. Lembro que me disseram isso ter sido idéia de Raymond de Saint-Gilles, um cavaleiro de cãs brancas, que desdenhava ser cruel com os fracos. Jurara proteção ao mandatário. Os cristãos fizeram em Jerusalém coisa que oscila por volta de 40 mil mortos! E nem se pôde responsabilizar os chefes pela matança, disseram muitos que encontrei pelo caminho, enquanto fundava minhas igrejas. Estes tentavam resguardar uma moral depreciada e traumática. Os barões bem que tentaram conter a soldadesca, mas ela escapou-lhes ao controle, dizem, mas vai saber se é verdade. A fúria estava no domínio. As almas que habitaram os desertos e passaram privações queriam recompor-se a todo custo. Fanatizado, o cristão comum, considerando-se um vingador celestial, coisa que lhe foi imputada pelos chefes das Igrejas, virara um animal feroz a quem um estripamento, uma carótida esguichando, ou a degola dos gentios, parecia a justa revanche dos tormentos de Cristo. Era mister vingar a morte de Jesus, principalmente acabando com os judeus. Quem respirasse era morto. Mataram inclusive os animais domésticos. Criança era o que havia de mais fácil de se matar. E, olha que todos eram cristãos. - Uns anos antes da catástrofe, - eu disse para Bernard, repetindo o que ouvira falar e o que lera em fragmentos abundantes encontrados em Paris, - o poeta árabe al-Maari, que morrera em 1057, tivera a seguinte percepção sobre os homens: separara-os em dois grupos: "os que têm cérebro mas não têm religião/ E aqueles que têm religião mas não têm cérebro". - O Grande Massacre, - dissera Pietro, - além de ter azedado para sempre a relação entre os cristãos e os muçulmanos, permaneceu como um desses estúpidos altares sacrificais erguidos pelos homens que têm religião mas não têm cérebro. - Os cavaleiros cristãos, - eu dava nova contribuição aos pensamentos que trocávamos naquele momento, - na época da primeira cruzada, depois de terem conquistado Jerusalém no ano 1099, dividiram a região da Terra Santa em diversos reinos e, explorando a fraqueza e os desacertos entre os maometanos, conseguiram firmar-se lá por algum tempo. - Mas essa situação só durou até que Saladin, um chefe curdo, - completava Bernard, - conseguiu liderar o povo do Crescente. Em 1174, as forças do Islã passaram a contar com a extraordinária energia do sultão, de origem curda, Saladin. Novamente Bernard prestou atenção em Alberto que se recompunha após a visão. - Saladin pôs fim ao inoperante califado fatímida do Egito, passou a coordenar uma campanha sistemática contra as bases dos infiéis. A partir dele, os dias de posse da cristandade de um pedaço da terra sagrada se encerraram. Não era fácil manter guarnição, nem ajuda de príncipes cujo dinheiro mudava de mão constante ou passavam definitivamente para as mãos dos Templários, que tinham suas próprias missões. - E hoje, Monsieur Bernard, - perguntei, - o que acontece hoje? Ele virou-se para mim como se nunca me tivesse visto e percebi que seu olhar passava por mim perdendo-se alhures. Era um olhar morto, se bem que cinzento. Um leve brilho perdido, o embaçado tomava lugar concreto. - As tropas do sultão Qalaum mal haviam saído do Cairo quando ele começou a sentir-se mal. Resolveram acampar em Marjat-al-Tin, onde o seu filho al-Asrhraf Khalil, foi

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chamado às pressas à tenda do pai. Ali, ele jurou dar continuidade à campanha militar contra o que restava dos cruzados que ainda ocupavam um pedaço da Terra Santa. Acredito que sejam estes os derradeiros movimentos dos cristãos naquelas terras... derradeiros movimentos de uma longa e dolorosa guerra que, apesar de seguidas tréguas, envolvem muçulmanos e cristãos há quase dois séculos. - Em 1099, conseguiram tomar Jerusalém, massacrando quase toda a infeliz população muçulmana lá capturada. Se houvesse um mínimo de justiça divina e essas atrocidades não teriam lugar, - falei nervoso, com a frase engatilhada e pronta para descerrar o tiro, - e , não pára por aí. Em 1100, Balduíno, conde de Edessa, resolveu proclamar-se rei de Jerusalém e os cruzados formaram o Reino Latino, composto por quatro estados nas regiões ocidentais da Síria, Líbano e Palestina. Poder e terras. Honrarias e força. Nada mais que vaidade. - Aproximadamente nesta época eu me aliei a Cister, - disse Clairvaux. Por isso o monge que vocês agüentam nestas reuniões me odeia tanto... descende do antigo aliado senhor de Cister. Apesar de sua escassez em homens, conseguiram se impor aos nativos graças às poderosas armaduras, determinação fanática, e a série de fortes e castelos que construíram na área. O aparato de força tinha que ser engrandecido a todo momento. Rios de moedas de ouro, prata e riquezas tinham que ser transportadas e guardadas para preservar o poder alcançado pelas armas. Naquele momento Alberto já estava de pé, limpava a roupa, tentava alguns passos ainda titubeantes. - Para assegurar ainda mais o domínio sobre uma população hostil, permitiram que mercadores das cidades comerciais italianas lá se instalassem, bem como criaram as ordens monacais dos templários e dos hospitalários, para dar apoio logístico às romarias incessantes vindas da Europa. Divididos entre si, os muçulmanos demoraram quase meio século para reagir ao torpor provocado pela invasão dos odiados franjs, como eram chamados por eles os cruzados. A cada sucesso dos árabes, mais cristãos desembarcavam nos portos para assegurar a posse dos lugares sagrados. Depois de vitorioso na batalha de Hattin, Saladin teve a honra de ser o primeiro líder islâmico a retomar a cidade sagrada de Jerusalém ao expulsar os cruzados de lá. A noite desabava fria e grave. Bernard bateu uma luva contra a mão. Bernard saiu de nossa presença para o encontro dos soldados. Alberto, recuperado, tremia um pouco. Esperamos, de encontro à parede de árvores, que os soldados se afastassem e retornamos para a estalagem. OPUS 40 Nos livros V e XXI de A República dos Upires, manuscrito no fim do século 11, Bramilius assume um grande papel na Teoria dos Upires. Entre estas histórias e o estudo da pedra, eu e os rapazes nos perdíamos em sonhos e visões pouco claras. Enquanto isso Tomás pedia uma pausa nos estudos da Pedra Filosofal, para cuidar de Alberto e debater com ele os últimos eventos, eu, Pietro e LaCordaire, revimos profundamente o fundamental das doutrinas platônicas. - Não podemos dissociar os aspectos da religiosidade possível de Platão e seu estudo sobre sensações e comportamento, - falou Pietro de Ferrara. - Dentro desse contexto, digo que o bem é, no mundo inteligível, em relação à inteligência e ao inteligível, "o mesmo que o Sol no mundo visível em relação à vista e o visível", - completou LaCordaire. - Para mim é só poesia... Assim, revendo nossa experiência com os upires e as aventuras com Calatin, o Cão raivoso, líder da horda de ciganos assassinos ligados a Andréa, há certa dificuldade na pesquisa da verdade inerente ao ser humano e à natureza notívaga do morcego; tudo se confunde; pois "assim como os olhos dos morcegos reagem diante da luz do dia, assim também a inteligência que está em nossa alma se comporta diante das coisas que, por sua natureza, são as mais evidentes". São conjecturas, eu sei... pura poesia. Terá tudo isso algum valor? LaCordaire disse: - ... mas tais premissas tornaram-se a base da equação lógica que desembocou na associação dualista bem-luz-dia/mal-trevas-noite. Isso deu asas de morcego ao Diabo. Em tempos recentes, condenou os upires a viverem numa noite eterna.

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- Contudo, - opinou Pietro -, estamos aqui conversando em termos de mitos ou em termos do que vivenciamos no episódio de noites atrás? Estamos aqui teorizando em geral ou vamos nos basear em relatos de experiências? Se for a última hipótese, eu prefiro sair a campo para obter mais dados. Em muita coisa que eu pus os olhos já (ou não?) creio mais. - É como se dissesse: “Nem se aparecer um fantasma aqui na minha frente eu acredito nele. Vou achar que estou louco e só!”, - brincou LaCordaire. - É isso. Vamos voltar à floresta, - propus. E saímos. Meia hora de caminhada. Duas horas de barco e alguns montes para alcançarmos uma clareira imensa, cercada por altas construções velhuscas e destruídas. Cheguei à conclusão de que o frio da madrugada poderia afetar nossa observação e fomos cobertos com muitas túnicas. - Não creio que a luz atue sobre as fibras da estrutura tanto quanto sobre a matéria intercalar que serve para enrijecer as estruturas corporais desses seres. Até agora só vimos exemplos fracos e pobres, exceto a lenda de Calatin que é na verdade a de um monstro e que ainda está vivo. Se é que aquilo é viver. - Vamos fazer o seguinte. Vamos buscar materializações de seres incorpóreos e provavelmente restabeleceremos contatos com os upires, que precisam de massa viva... e não podemos ser nós essa massa viva. Vamos interpor entre nós e os upires, se estiverem por aqui, é evidente, essa substância fria e viscosa. - Talvez seja um composto alquímico complexo, - falou LaCordaire, - e devemos ter cuidado extremo em manusear estas formas... você sabe. São pertencentes aos elementos nervosos do corpo... qualquer luz dissocia as ligações. Altera o tipo de substância, da mesma forma que o calor coagula as claras. - Tenho razões de sobra para crer que conseguiremos. Sei que a experiência demonstra que a luz vermelha, principalmente a vermelha, é a menos perturbadora. Então, na clareira, enquanto o bafio frio e resinoso das folhagens nos alcançava, LaCordaire, mais apto nas funções de captação da massa astral que há em nossos corpos, passou a fazer desenhos no chão, a se mostrar em transes leves e a vasculhar o ar com seus maneios e palavras de significados indecifráveis. Por fim, uma nuvem densa se fez e junto a ela alguns vultos se mostraram atarefados. Um dos vultos, rápido e quase disperso passou a vivenciar a nuvem muito rala que pairava a meia altura de nossos peitos. No início, o vulto conseguia assumir formas vagas, bem de acordo com a rarefação da nuvem e sua coloração clara, bem aveludada; mas, com o tempo, o vulto aprendeu a moldar um corpo. Com o passar do tempo as forças do vulto pareciam aumentar... gradativamente adensando as formas, que num primeiro olhar estavam plasmadas como que em algodão... aumentaram gradualmente enquanto que sabíamos que o suor gelado de nossas testas escorriam com um pouco de nossas forças. Pietro de Ferrara cabeceou de sono e eu o fiz entender que seria uma experiência frustrada, no meio da noite, se ele viesse a dormir. Pietro aprumou-se. Por fim, o vulto após horas de tentativas vãs, conseguiu articular um som, pois a nuvem tinha um formato de aparelho fonador humano. Já estávamos atingindo as três horas da manhã quando gemidos e tosses eclodiam na lareira provenientes do vulto e de seu aparelho vocal mal usado. - Não quero a luz!, - foi o que ouvimos pobremente. - Por quê?, - perguntou LaCordaire? - Não posso... não posso mostrar-me sob luz forte. - E qual a razão disso? - Isso me aborrece, - ouvimos tosse, como de alguém cansado e doente. A voz era fraca e perdida, na verdade. - Já disse que não me é possível suportar a claridade de uma luz intensa. - Você não sabe a razão disso? - Não sei porque me é impossível. - Você sabe qual seu nome? - Sei... e não interessa... só vim para relembrar os gozos do corpo... mas esse corpo é pobre... - São extratos de nossos corpos... - Entretanto, - e o vulto arfava como se tivesse asma, - se duvida de minhas palavras, acendam todas as luzes que tiverem..., - enquanto falava, do aparelho fonador inicial o vulto foi tomando forma de gente... um tipo estranho... face comprida, cabelos em

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desalinho, olhos amendoados e amplos... enfim, tinha um traço que nos fez lembrar dos antigos upires... mas, ele continuou: - Previno, porém, de que, se me submeterem a essa prova, não voltarei mais... Façam a escolha. Olhamo-nos. Decidimos tentar a experiência e ver o que sucederia. Percebemos que houve grande dor e sofrimento. O vulto, já completamente formado e disso nos arrependemos depois, se colocou de pé junto a uma pedra, abriu os braços como se pedisse clemência ou piedade e passou a aguardar o que ocorreria. Acendêramos fogueiras e tochas. Foi extraordinário o efeito produzido sobre o vulto já completamente pronto, alta estatura, que pobremente resistiu à claridade. Vimos, em seguida, que se fundia como um boneco de cera. Derreteu. Primeiro, os traços fisionômicos sumiram num redemoinho de massas monstruosas, que não mais se distinguiam. Os olhos enterraram-se nas órbitas, cavos negros reapareceram, o nariz desapareceu, a testa como que entrou pela cabeça formando um emaranhado de fios soltos. A nuvem voltava à sua rarefação e os vultos desapareciam. - Os upires retiram a energia dos nossos corpos? – perguntou Pietro. - Por mim, ainda bem que essa coisa dissolveu, pois me sentia a cada momento mais fraco e tonto, - falou LaCordaire. - Serão todos eles upires?, - disse eu. - Eles subtraem a essência do corpo das pessoas. - Mas foi com nosso consentimento. - O que teria dito Bramilius sobre isso, Pietro? - Provavelmente, Bramilius estava ciente das teses que giravam em torno das experiências, mas, pelo que posso enxergar aqui nos textos, ele escolheu não atribuir os mesmos ônus de um fantasma incorpóreo a um upir cujo corpo se mantém intacto. Parece que a experiência de Bramilius foi de menor monta que a nossa de hoje... ele apenas imaginou upires que levavam vida noturna por hábito, e lembrem-se que tivemos um contato terrível naquela cidadela... Mas, não poderia afirmar que se trata de maldade ou coisas dos mistérios satânicos... pode ser apenas necessidade de sobrevivência e, para que isso aconteça, a pessoa que sofre fará tudo... - Justamente naquilo em que você não acredita mais... - A partir de agora eu volto a acreditar no que vi... se bem que ainda ache tudo isso uma loucura...mas, dizia Bramilius, os upires não sofriam nenhuma reação extraordinária devido ao contato com a luz solar. A prova disso está numa passagem do capítulo III, da República dos Upires, Bramilius diz que passou muitas vezes por vilarejos onde residiam upires majestosos e ele os cumprimentava sem segundas intenções, com saudações e visitas matinais... Parece que espelhos são mais críticos, nesse ponto, provavelmente, diz Bramilius, por terem a raiz da palavra enfronhada nos meandros da alquimia mental, com feitiços e encantamentos... Há um capítulo especial sobre o poder do aço, do cobre laminado, e das superfícies aquáticas límpidas e brilhantes. - Então, - falei, - os espíritos malignos não são mais poderosos à noite, como querem alguns. La Cordaire, para não perder a oportunidade do humor, retrucou: - O papa anda muito bem durante o dia... - Contudo, aqui encontramos um vulto sendo destruído pelo luz das achas e da fogueira. Partindo daí, podemos pensar que a exposição ao sol ou à luz, pode provocar efeitos que vão desde queimaduras graves, combustão espontânea e até explosão; mais precisamente quando o upir estiver se envolvendo com a energia plástica dos seres vivos a sua volta. - Estou prestes a acreditar em coisa mais simples. Há anomalias claras, principalmente por tratarmos de seres que já não vivem e desejam expor-se ao mundo vivo, novamente. As almas desses seres, desses vultos, estão claramente doentes. - Bom. Acho que por hoje basta. Logo a floresta se iluminará, - declarei. Saímos, assim, para a estrada, de volta. Últimos lampejos de vaga-lumes brilhavam na semi-escuridão entre as árvores. Ou seriam olhos a nos espreitar? OPUS 41 Pela manhã, nem bem chegávamos à estalagem, um bando de trovadores apontou na estrada e veio se estabelecer na hospedaria. Estavam visivelmente cansados da viagem. Bebida e alimentação e um pouco de pousada. Em troca, cantariam e trariam as graças da arte e da diversão para todos. Não era sempre que especialistas se

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apresentavam em locais pequenos. Era mister aproveitar. O estalajadeiro concordou e naquela mesma tarde as primeiras funções se fizeram no estábulo, adaptado que foi para tanto. Vizinhos chegavam de todos os lados. Os trovadores vinham da Península Ibérica. De fato a poesia na Península Ibérica era composta e cantada por jograis que, nas ruas ou na corte, criavam uma arte fascinante. Notícias como estas correm pelos campos como geniais zéfiros. Estávamos cercados por trovadores, os jograis e as soldadeiras. Vinham de fuga, tentando escapar das hordas de Calatin que, dizia-se, não estava permitindo que as vilas permanecessem em pé. - Que felicidade a minha poder contar com gente como esta por aqui! - Tal é nossa a honra, senhor – disse o mais velho deles e provavelmente o Mestre-cantor. - Eu peço, - falava Alberto tomando-lhe do braço, - que nos dê com absoluta precisão os toques e cantos do Trovadorismo galaico-português. Isso nos trará boas lembranças e boa poesia. - Com prazer, senhor. O tempo em que se inscreve o Trovadorismo galaico-português me é muito bem gravado na memória e, em sua honra, tecerei trovas e melodias que o agradarão sumamente. Agradarão a todos, na verdade... O Trovadorismo galaico-português está situado em 1196, provável época em que surgiu a cantiga Ora faz ost' sob um certo senhor de Navarra, um sirventês político de Johan Soarez de Pávia, os anais bem o contam e muita gente grada também o faz e registra. - Mas agora não sei se é o caso desse seu benquisto grupo, - Alberto continuava com sua petição - há uma lírica galaico-portuguesa, não é Tomás(?), que cede lugar à chamada galaico-castelhana, e, porventura, teremos o prazer de ouvir também esta? - A nossa trupe de viajores, caro senhor, sem estar equivocado, e, digo isto por ter preservado no hoje o previamente conhecido Cancioneiro de Baena, tem em seu repertório lotes imensos de obras dessa riqueza... o senhor e nossos hospedeiros, tenho certeza, se regozijarão com as apresentações. Alberto pediu desculpas pela intromissão e dirigiu o grupo para o descanso na estalagem. Em seguida continuaram com a conversa. Concordaram numa cantoria noturna. Uma cantoria que ocupasse tudo aquilo que está contido no Cancioneiro de Baena como sendo o corpo da poesia galaico-castelhana, embora houvesse nele textos muito próximos aos cancioneiros galaico-portugueses. Tais delícias artísticas e intelectuais foram regadas a porco e vinho no almoço. Depois, à tardezinha, copázios de uvas esmagadas. Na entrada da noite os intrumentos retirados das carruagens, as saias e roupagens expostas, o encontro em si. Recebíamos com amizade aquele grupo alegre, porém assustado. De todo modo, à medida que os artistas apresentavam seus cantos e cantorias, suas poesias e trovas, Alberto nos ia explicando as origens desse ou daquele tema. Houveram improvisos, também. Louvou-se o estalajadeiro e sua família. Em meio a um não pequeno conjunto de dificuldades relacionadas a viagens e transporte, os trovadores declinavam a gratidão para com aquele homem que os vinha recebendo e alimentando. Os trovadores provençais se faziam notar com cantigas de amor, cantigas de amigo. No entanto, deixando de lado estas discussões complexas em detalhes e perdidas nas questões do tempo, o que importa ressaltar é que a passagem para a noite mais fechada nos pareceu favorável e feliz; foi um período de riqueza indiscutível, que não apenas nos legou algumas obras de beleza incomparável, momentos de felicidade intensa, livrando-nos um pouco das amargas vicissitudes de nossos trabalhos ocultos e das pesquisas agras que nos acompanhariam para sempre. Cantei com eles a conhecida cantiga de Martin Codax: "Ondas do mar de Vigo, / se vistes meu amigo? / E ay Deus, se verrá cedo!", cantiga que me fascina e que agradou a alguns dos visitantes daquela boa hora, graças a alguns dos maiores poetas de nosso tempo. Mas quem eram aqueles poetas, trovadores, saltimbancos desgarrados e desvalidos, viajores imersos nas estradas de qualquer país? Como viviam, como se formavam? - Durante muito tempo,- disse me um deles, quando o argui numa pausa da função, - acreditou-se que havia três tipos de poetas: os trovadores, concebidos como poetas e compositores de origem nobre; os segréis, também nobres, mas que dispunham de poucos recursos, sendo por isso obrigados a lançar mão da poesia e da música como meio de subsistência, - e nesse ponto ele se dobrou sobre si mesmo como que agradecendo os aplausos e se apresentando, - e os jograis, artistas de origem não

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nobre, que sobreviviam tocando e cantando as composições dos trovadores e, há aqui entre nós, vários deles. Enfim, agora somos todos irmãos e iguais, essa é a verdade. - E as dançarinas? – perguntei. - As soldadeiras, cantoras e dançarinas, nos acompanham solidárias. São fonte de inspiração, também, pois são vigorosas e amorosas, se você me entende. - As fontes para o estabelecimento dessas categorias eram as próprias composições dos cancioneiros e a Declaração de Afonso X, - veio explicar um trovador idoso, que parecia calejado nas lides de viajar e cantar. Essa declaração nada mais é do que uma composição criada com a finalidade de organizar, se podemos dizer assim, organizar a nós que somos alheios a esse negócio de guildas e invenções parecidas, enfim, organizar, já que querem dizer dessa forma, as diferentes categorias do mundo trovadoresco, de maneira a separar as camadas inferiores, como os cazurros, por exemplo. - Como assim, os cazurros? Quem são esses ? - Veja bem... eu explico, mas não concordo... cazurros são os jograis que fazem exibições nas ruas e praças... mas que mal há nisso...? todos fazemos o mesmo e nada há de ser menor ou pior, - disse o velho, - organizar! Bah! Quem quer organizar? Eu mesmo respondo: Quem quer organizar é quem quer controlar. E, o velho saiu, resmungando suas histórias e bebendo mais vinho. - Ocorre que, embora as cantigas identifiquem o segrel ao jogral, - retomava a conversa o primeiro dos trovadores, - a Declaração aparentemente o associa ao trovador, ao dizer que este era qualificado, nas cortes, como segrel. Desta forma, passou-se a considerar que o termo trovador não é um substantivo, mas um adjetivo que qualifica um tipo específico de jogral. Quanto ao termo segrel, aparentemente trata-se apenas de um sinônimo para jogral, durante um período de tempo específico, especialmente na região de Castela, mas eu não estou ligando para isso. Muito falatório e a nós interessa cantar e beber... cantar e amar... O fato, meu caro, é que podemos inferir a partir daí o termo jogral como referência a todos os que ganham a vida realizando espetáculos perante um público, como aqui neste estábulo alegre e feliz, utilizando os mais diversos recursos: a música, a literatura, a prestidigitação, as acrobacias... enfim... artistas completos... Somos os verdadeiros herdeiros dos grandes artistas que, na Antigüidade, apresentavam espetáculos de mímica e declamações, fosse nas ruas e praças, fosse nos palácios reais... sem escolha de público... agradando a todos com a sua arte e não por bajulações... ou jaculatória. A noite findou com uma enorme reunião onde se apresentaram assadas inúmeras aves saborosas e o mais encorpado dos vinhos do sul da Itália. OPUS 42 Na manhã seguinte, Tomás de Aquino nos fez cair nas mãos um texto sobre a Tábua de Esmeraldas. Hermes. Mercúrio. O Mensageiro. Ângelus? O livro nos pareceu um tanto confuso, em princípio, mas Tomás explicou que era um texto de iniciação. Algo sobre ele tinha um ar profético, outros momentos nos pareceu de imensa alucinação, falando sobre pessoas que ainda viriam a existir. - Da lama você colherá o lírio, - disse Tomás. O texto era pertencente a uma civilização desaparecida, segundo um certo URAM, relator das histórias. Tais civilizações teriam desencadeado forças fantásticas que perturbaram os gelos e destruíram aquele mundo altamente evoluído. - Altamente evoluído em comparação com quem ou com o quê? Será que o tal Uram quer dizer em relação às gentes do nosso tempo? Do tempo dele? De modo geral, como deveriam ser as evoluções? - Olha o que ele fala aqui em baixo, Marcus... Traços de cultura teriam, contudo, subsistido por muito tempo, explicando certa permanência de conhecimentos até nossa própria civilização. Ou seja, ele vem de falar de civilização muito antiga... Coisa perdida no tempo... Quem estuda isso? Assim, é quase certo que esse URAM teve contato com os últimos mantenedores dos grandes segredos. -Terá sido esse URAM o último mágico da antiguidade? O aspecto e as circunstâncias da vida do tal URAM, dizia Tomás, não era o principal do estudo, mas o que viria em seguida. URAM não foi o primeiro, nem o último mago racionalista. Mas foi o último mago de uma determinada época, o último sobrevivente da Suméria e da Babilônia, o último grande espírito que olhou o mundo e

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codificou sua sabedoria, deixando um lastro secreto nas pedras, nas areias, nas escrituras secretas, abordagens, enfim, que começaram a reunir nossa herança intelectual há pouco menos de 10 mil anos. - Por que chamei-o mago?, - perguntou Tomás de Aquino, cruzando os braços e lançando o rosto para o alto, como se lesse nas folhas do teto. - Porque ele via o universo inteiro como um enigma, como um segredo que pode ser compreendido, aplicando o pensamento puro a certas provas. Ele pensava que os indícios que podem conduzir à solução do enigma estavam parcialmente no céu e na constituição dos elementos. - Isso estaria Bacon fazendo hoje em dia... ou seja, URAM podia ser tomado por experimentador? - Não... não creio que o termo seja correto, Marcus, mas é correto que em certos documentos e certas tradições que percorreram os tempos, sem interrupção, há evidência bastante que demonstra preocupação na inter-relação entre o que ocorria em cima com o que ocorria em baixo. - Os dois triângulos de Salomão, relacionados – disse eu, porém Tomás pareceu não me dar ouvidos. - A base relacionada com as alturas, e as alturas se relacionando com o que está em baixo, como uma corrente desde as primeiras revelações enigmáticas feitas na Babilônia. Depois de URAM, houve uma espécie de brecha no conhecimento. Mas, nada pequena... algo como uma lacuna onde centenas de milhares de anos... Algo como um hiato da produção do conhecimento, porém não da aplicação do conhecimento. Hoje vemos que cada vez sabemos mais, e procuramos aplicar ao mesmo tempo em que se produz conhecimento. - Isso nos faz pensar que haverá uma época que se produzirá mais do que se poderá aplicar? – perguntou LaCordaire. - Acredito quem sim, mas não posso afirmar, - respondeu Tomás. - A orientação das nossas pesquisas muda muito e, em particular, todos nós temos experiência nisso. A idéia de que o conhecimento implica em perigo é uma norma seguida pelos clérigos papistas e por aqueles que querem manter o mando no mundo... e, como acreditavam fundamentalmente os alquimistas, está aí uma certeza completamente negligenciada. - É... Isso me parece claro, - eu disse, - Hoje retornamos a essa atitude. Inúmeros sábios acreditam que a difusão de certos conhecimentos pode pôr em perigo toda a humanidade. Guardam suas descobertas... apresentam para os poderosos... negociam liberdade por troca de informação somente entre duques e reis... - Assim, nas Universidades, principalmente, se espera um foco de resistência contra esse hábito. - falou Tomás, - No Magus Magister, um texto recente, dos mais fluentes de nossa época, disseminado e perseguido por toda parte, em dezembro do ano passado, o textualista que se assinava Professor Barbúlius, um nome falso, evidentemente, cita uma carta de Alberto Magno. Alberto diz que é uma carta real. Lemos um trecho que dizia: "A grande maioria da população da Terra considera a sabedoria, o modus fazendi, e a artefatologia como perigos mortais crescentes para sua vida. Sentem-se impotentes, à mercê de uma minoria – Reis, Papas, Padres - , como se, numa mesa de operações, estivessem entre as mãos, não de pessoas que curam, mas de irresponsáveis levados pela curiosidade ou, o que é ainda pior , pelo desejo de prestígio e promoção... Seria bom os sábios entenderem que estão em vias de dançar sobre um depósito de pólvora. Os chineses já sabem disso". E, acrescenta: "A desculpa habitual dos sábios, segundo a qual ninguém é obrigado a aplicar as descobertas alquímicas, principalmente, se não o desejar, não é mais válida... Os sábios chocam-se com responsabilidades inquietantes, que deverão enfrentar cada vez mais". - Por isso que vemos reaparecendo no mundo da sabedoria atual as velhas idéias dos alquimistas de todos os tempos: Conhecimento e moral são associadas e o segredo é às vezes uma necessidade – eu falei, olhando para os meus companheiros de estudo. - Sim. O que está em cima é como o que está em baixo. - Mas, no tempo de URAM, como os alquimistas sabiam que o conhecimento conduziria à ruína? - Não, não creio que soubessem; é muito comum acharmos que todos sempre têm certeza do que fazem e não é uma verdade... vai-se muito às apalpadelas, caro Pietro... age-se como um cego... contudo, o cego sempre tem cuidado... essa é a diferença... a idéia desse perigo parece ter sido uma incógnita. A alquimia é, em todo caso, muito antiga; já existia na China, 4500 anos antes de Cristo, por isso Alberto a cita claramente.

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A Mesa de Esmeralda retoma os grandes princípios dessa sabedoria e merece ser citado por extenso, o tempo todo, como venho fazendo. É verdade, sem mentira, certo e muito verdadeiro: o que está embaixo é como o que está em cima, e o que está em cima é como o que está embaixo, para realizar os milagres de uma só coisa. - E assim, - completava eu, - como todas as coisas provieram e provêm do Um, assim todas as coisas nasceram da coisa única, por adaptação. - O Sol é o pai, a Lua é a mãe, o vento a carregou em seu ventre, a Terra é a nutriz, - completou LaCordaire, com viva voz de entusiasmo poético. - O Thelema, a perfeição de todo um mundo está aí. Seu poder não tem limites sobre a Terra. Tu separarás a terra do fogo, o sutil do espesso, cuidadosamente, com grande habilidade. Ele sobe da terra para o céu, e torna a descer para a terra e reúne a força das coisas superiores, - finalizou Tomás de Aquino, fechando seu livro e pedindo para que, pelo menos naquela noite, não saíssemos, e, assim, completássemos o estudo.

OPUS 43 Dormir. Foi impossível. Acordei com uma pesada mão arrancando minhas cobertas. O frio cortante me pegou. Uma voz gritava na escuridão. - Venham. Quero mostrar uma coisa. E em troca disso vocês me ajudarão a pegar Calatin, o Cão Furioso. – Era Siger, com sua impetuosa audácia e arrivismo sem igual. Retirou-nos da cama e fez-nos na noite gélida tomar de cavalos e sairmos na direção que ele apontava. Olhando para trás vi que nos espreitavam de uma janela da estalagem. - Quem é Calatin, afinal? - eu gritava em meio ao tropel de cavalos. Siger me olhou e fez sinais como que querendo dizer que mais tarde eu saberia. O fato é que corremos muito e os cavalos já davam mostras de cansaço. Fomos em disparada pelas campinas até que uma construção magnífica nos apareceu. Siger pareceu contente. O cavalo trotava, então, bufando névoa. - A Igreja não está pronta... nem ficará... mas prestem atenção nesses traçados... nessas volutas... prestem atenção no que resta dos vitrais... por enquanto sob os archotes mas pela manhã, quando a luz entrar por eles nunca desejarão sair daqui... Em virtude da ousadia desses artistas perdidos no tempo, mortos talvez, é que estamos aqui, meus caros estudantes... estamos aqui para arrancar a cabeça de Calatin. - Que poder maravilhoso exerce esta construção, mesmo à noite. - Sim, - respondeu de Brabant, mas, as artes bizantina e românica são freqüentemente esquecidas, em razão da espetacularidade própria dessas obras. Durante os anos, sei disso, de desenvolvimento desse estilo arquitetônico e artístico, ainda assim nos chamarão de bárbaros... – Siger olhava para o chão e procurava passadas, pegadas, traçados e caminhos possíveis - ...provavelmente dirão que tais inspirações terão origem entre os godos... de onde vem Calatin... chefe de tribos... assassino e miserável... – Siger nos olhou e pôs a mão no próprio peito, a título de humildade. - Ele será feliz quando morrer... - Aqui não há nada de bárbaro, - eu disse, tentando amainar os ânimos de Siger, - os limites cronológicos da arte bárbara estão, provavelmente, perdidos entre os séculos V e VIII e entram nesse caso, como influências, a arte germânica da Idade do Bronze, a arte céltica da Idade de La Tène e a arte antiga dos cristãos. – Falei tudo isso e ele nem me pareceu ouvir. - Estou fortemente inclinado a achar que esse Calatin, animal pérfido, tem vínculos com os germanos antigos, e sua tribo vem dominando essas paragens desde o Bronze Médio, - gritou Siger, descendo de seu cavalo, amarrando-o a um arbusto e caminhando grado para os degraus da nave..., - belo... muito belo... a arte germânica apresenta características uniformes, basta ver a presença de instrumentos musicais, enfeites femininos, jóias, armas, vasos e sepulturas... Mas, o que me deixa terrivelmente irritado é essa sensação de que a obra destinada a Deus foi deturpada pelas hordas do abutre Calatin... Eu já não sabia se Siger de Brabant veio para os debates ou para caçar o infame. Havia uma predisposição em suas palavras. La Cordaire me lembra, naquele momento, que não havia, entre as tribos germânicas, artesãos especializados. - A maior parte destes ofícios era praticada como trabalho doméstico e não recorriam às representações da figura humana. A arquitetura também não era privilegiada pelos invasores, devido ao nomadismo destes povos. A arte bárbara é individualista.

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- Você tem razão, LaCordaire, mas o que Siger pretende aqui ainda é uma incógnita. Sei, por exemplo que os visigodos empregavam incrustações policrômicas em metais, sobretudo em produções ornamentais, - eu disse, - e nesse caso estabelece ligações entre a arte dos povos germânicos e a futura arte que viria dos godos, segundo os textos antigos. Parece que o autor do texto, tentando esconder alguma coisa, expõe outra para que se perca o fio da meada. - No que sai da boca de Siger há um goticismo secreto comum, que consiste na tensão de um jogo de forças. Os artistas visigodos, se é que podemos dizer dessa forma, trabalhavam o metal e a madeira com motivos geométricos. Os desenhos representavam triângulos e círculos trançados. - Triângulos e círculos me lembram formatos e códigos de um mistério. Podem ser outra linguagem e podem esconder qualquer outra coisa, inclusive manifestações mágicas, - completou Pietro, atento a tudo. - No entanto, a arte sofreu as conseqüências de uma série de invasões, sobretudo na França, onde houve grandes movimentos migratórios: visigodos, francos, celtas, normandos, árabes, invasões pacíficas dos comerciantes sírios, constituição do império carolíngio, dentre outros, - completou o homem de Ferrara, - e é certamente nessa linha que se esconde o pensamento de Siger. - Vocês estão lendo meus pensamentos, por acaso? – gritou Siger lá do fundo, sobre umas colunas derrubadas, fazendo sua voz ecoar no que restava da madrugada. - Os povos germânicos já traziam consigo técnicas dos povos nômades da Ásia oriental e central, como os citas, sármatas e hunos. - Calatin pode ser um huno, na verdade, e com ele virão os segredos de um ocultismo que visa destronar a nossa maneira papista, digamos assim, de ver as coisas... Destruir as igrejas e aniquilar seus artesãos é acabar com a exposição do poder da Igreja... - Muito bem, senhor Pietro de Ferrara, concluiu bem os seus pensamentos descobrindo o que vai pela minha cabeça..., - gritou Siger de dentro da nave e sua voz ecoou ao sabor de mil águas e ventos, - venham para cá. Venham se abençoar nos ares internos da catedral. Fomos. As dimensões gigantescas da construção inacabada nos tornaram maravilhados. Pássaros assustados revoaram com ecos de asas revelando desvãos escondidos e sombras centenárias. - Muito antes do aparecimento dessas catedrais, os primeiros templos cristãos, surgidos por volta do século 4, concorriam com as religiões pagãs, - explicava prontamente Siger, erguendo a tocha ora para ver nossos rostos, ora para abrir espaço nas trevas. - A antiga arte cristã, um misto das artes oriental e greco-romana, surgiu quando os cristãos ainda sofriam perseguições violentas. Parece que ainda sinto o aroma do incenso... a igreja foi usada para os cultos cristãos, mesmo antes de seu término, o que é comum... Mas, de onde vinham os fiéis? De onde chegavam as pessoas que ocupavam tais imensidões de salas? Nisso Siger levantou seu braço e a tocha clareou uma centena de pequenas figuras nos altares descascados... - Os ícones, por exemplo, que sempre ocuparam lugar de destaque na arte religiosa, derivam dos retratos funerários egípcios, provavelmente. - Carlos Magno preocupou-se com o desenvolvimento da arte sacra a fim de que esta, por meio do luxo, encantasse os povos pagãos, - explicou Pietro, versado nesses estudos, - Assim, a época carolíngia presenciou a multiplicação de altares e criptas para o culto de relíquias. Acredito que essa construção venha dessa época de amplo processo de cristianização... - Catolicização forçada, você quer dizer, - disse de Brabant. - Na base do ferro e dop fogo... Mas é isso mesmo... Carlos Magno, impulsionou um novo estilo arquitetônico, o românico, devido à semelhança com as construções da Roma Antiga... abóbadas... pilares maciços que as sustentam... paredes espessas com aberturas estreitas usadas como janelas... isso determina um estilo ou uma escola... – enquanto falava Siger passava a mão enluvada nas paredes. Inspirado pela ocasião, Siger propôs que orássemos e que LaCordaire fosse o mediador das orações. Nós não tínhamos essa manifestação espontânea para a religiosidade, apesar dos nossos mestres serem religiosos, em certo termo, e LaCordaire fê-lo entender isso... - Não interessa, - foi a resposta, - use o material que está em seu coração. Eu digo oração e você diz oratória e para mim tanto faz... Contanto que seja coisa na qual

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acreditemos... Vamos criar nesse espaço um clima de entusiasmo e de busca de perfeição... um ideal de perfeição... não sejamos religiosos... sejamos todos... platônicos... vamos em busca do ideal. Foi assim que durante umas cinco horas participamos de um culto para quatro pessoas em que todos contribuímos com nossas aspirações e tivemos a honra de receber de LaCordaire as singularidades de sua inteligência. As influências românicas fizeram-se presentes até mesmo na apropriação dos termos usados nas perorações de LaCordaire. Sua voz ressoava nas abóbadas, tímpanos, arcos, eclodia nas nossas almas e lentamente percebemos que a manhã se apresentava e que os desenhos dos inúmeros vitrais começavam por se delinear na penumbra. No entanto, foram combinadas em uma nova ordem, ou seja, em um proveito inédito do espaço para que as manifestações ocultistas se expandissem em catarses inéditas. A abóbada de nervuras sobressaia na penumbra com pequenas réstias de luz tremulando em sua superfície. Tal abóbada de arestas, românica, assim era chamada por deixar visíveis os arcos que compõem a estrutura. Isso provava que a influência de Carlos Magno passou longe por aqui ou teve alterações com os séculos. O arco ogival, diferente do arco pleno românico, permitia a construção desse novo tipo de abóbada e também de igrejas mais altas. Aquela construção gigantesca demonstrava claramente a que veio. Atingir os céus como uma nova Torre de Babel oficial. Agora se permitia tal atitude? As ogivas acentuam a impressão de altura e verticalidade. O cume se perde no escuro da madrugada. A abadia não almejou a obscuridade, na verdade. Há uma clara referência ao uso da luz e a relação entre estrutura e aparência: se, na igreja românica, a luz contrasta com aquilo que se pode tatear nas sombrias e pesadas paredes, nessa outra modalidade, a luz é filtrada através dela, permeando-a, absorvendo-a, transfigurando-a. Algo a ver com sublimação. Algo a ver com vivência da fé, para os cristãos... A verticalidade propicia sensações de ausência do peso e da sensação de estar colado ao chão. Transformamo-nos em anjos? Alamos para o céu em espírito livre? Agora que o sol subia em deslindada carreira, as amplas janelas mostravam mundos multicoloridos e equilibrados, apesar de rachaduras e têmperas vazadas. Acima dos frisos que emolduram o portal central há uma grande janela e, acima desta, outra, a rosácea que não é mais do que uma grande janela circular enfeitada por vitrais. Foi aí que nos elevamos e Siger bateu com a espada no chão da Igreja. Era já hora de partirmos. Saímos para a manhã límpida e não havia cansaço algum. A igreja se tornara nosso motor de recuperação de força. A cabeceira da abadia contava com pilares em sua construção... suportes de apoio dispostos. Por isso não eram mais necessárias as grossas paredes para sustentar a estrutura, o que garantiu maior leveza. Imbuídos por uma energia crescente saímos para os portais fronteiros e o sol nos pegou de chôfre transformando a calma em sublime confiança. A nave central era merecedora de grande atenção entre os planejadores destas construções, pois quanto maior a altura desta, mais intensa seria a luz interior que, combinada aos vitrais, conferia iluminação uniforme a todo o ambiente. Esse era o jogo visual que experimentamos no alvorecer. Os idealizadores das catedrais sabiam da luz como elemento místico. Talvez soubessem que a Luz Astral concorreria para o engrandecimento da obra. Radiante. Desejosos em propiciar caráter divino às construções, os mestres não tardaram em buscar a substituição das paredes por vitrais. Flamejante. Talvez fosse um sonho: Todas as paredes feitas de vidro. Na fachada os portais laterais eram continuados por torres. - Vamos! Temos o que fazer, - ordenou Siger, tomando de seu cavalo. Com entusiasmo juvenil Siger forçou sua montaria no direção do Oeste, para onde ele acreditava que encontraríamos Calatin, o Cão Raivoso. OPUS 44 Perdemos três dias em uma aventura que era para durar somente uma noite. A fome nos atingia de jeito, mas, para Siger não pareciater nenhum efeito, tamanha a desenvoltura sobre o cavalo, gritando ordens e controlando a carreira. Os repetidos retornos mudando bruscamente de direção, extenuaram as montarias que foram substituídos várias vezes. Minhas costas doíam. Dez quilômetros além encontramos batedores Templários que se dispuseram a lutar contra Calatin. Fragmentos de hostes de hospitalários se juntaram a Siger.

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Incomum mas verdadeiro. A cada local que aportávamos para descanso, uma vaga de interessados se apresentava. Todos desejavam a cabeça de Calatin e todos se juntavam com espadas ou foices ao pequeno exército de Siger de Brabant. Temíamos pelo pior. Brabant se divertia. Não éramos soldados e, em meio a experientes lutadores, os estudantes poderiam se fazer perder. Quatro cavaleiros da Ordem Teutônica se juntaram na altura do Paço de La Concorde. Meio dia mais e nos deparamos com as quatro torres centrais do Castelo Cinzento – la Tour Gris – que estava sob controle de Calatin, bafio do demônio, e seu irmão, enquanto nas muralhas do sul agrupavam-se os filhos dos reinos italianos e os soldados genoveses e pisanos. A balbúrdia crescente das línguas diferentes, em gritos e impropérios, trazia tensões constantes. - Babel, meu caro. Babel... – sussurrava Siger ao meu ouvido, sorria, enquanto segurava o cavalo. Eu acredito que já tenha falado sobre eles, mas o momento era propício para repetir e consolidar na história e nos séculos o que se passou. Nos cavaleiros incutia-se a idéia de que matar em nome de Deus era justificável e de que morrer por Ele, santificável. Parece que o Papa, para poder atingir mais facilmente seus ideais, usou a mesma filosofia islâmica da Jihad ou guerra santa, mas com uma roupagem de idéias cristãs. Na época orginal do abade de Clairvaux, apoiado pelo papa, desfilou um discurso acalorado em favor dos Cavaleiros Templários dando-lhes autoridade para matar em nome de Deus: - "Na verdade, os cavaleiros de Cristo travam as batalhas para seu Senhor com segurança, sem temor de ter pecado ao matar o inimigo, nem temendo o perigo da própria morte, visto que causando a morte, ou morrendo em nome de Cristo, nada praticam de criminoso, sendo antes merecedores de gloriosa recompensa... aquele que provoca livremente a morte de seu inimigo como um ato de vingança, mais prontamente encontra consolo em sua condição de soldado de Cristo. O soldado de Cristo mata com segurança e morre com mais segurança ainda... Não é sem razão que ele empunha a espada! É um instrumento de Deus para o castigo dos malfeitores... Não é sem razão que a espada tem o formato da cruz! Na verdade, quando mata um malfeitor, isso não é homicídio... e o cavaleiro é considerado um carrasco legal de Cristo contra os malfeitores". Eram também chamados de Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, se bem que de pobre nada tinham, donos de arrecadações em ouro e papéis, na proteção dos ricos peregrinos que iam a Jerusalém. Achei curioso o fato de nada terem negociado com Siger para ajudá-lo na busca de Calatin. A Ordem fora fundada em 12 de junho de 1118 em Jerusalém por Hugo de Payens, Cavaleiro de Burgúndia, e Godofredo de Saint Omer, parente de um dos monges debatedores na estalagem, ao lado de Aquino e Alberto. Balduíno II, então, era rei de Jerusalém, e alojou ambos e mais sete agregados seus, perto do Templo de Salomão, originando-se daí a denominação de Templários. Durante nove anos seus membros dedicaram-se somente a trabalhos sobre o plano metafísico, sem participar nos combates e na política. Seria infantil, para alguns, crer que a Ordem do Templo surgiu para defender Jerusalém, ou para guardar o Santo Sepulcro, ou para proteger os peregrinos. Muita gente que escreveu sobre isso não acredita nessa versão, mas são obrigados a se contentarem com as conjecturas, pois não puderam descobrir nenhum documento sobre a possível Missão Esotérica da Ordem. Atendendo às ordens de Siger, centenas de engenheiros e sapadores, protegidos por milhares de flechas e projéteis, começaram a minar as torres centrais. A luta árdua se estendeu por toda linha da dupla muralha. As tropas que Siger conseguiu arrebanhar corpos e cadáveres, apesar de em menor número do que as hostes de Calatin; eram reforçadas, segundo Siger, pelo poder do Espírito Santo, portanto, eram hostes ávidas de sangue, morte e destruição... Ao levantar a espada a atenção das tropas era todo Siger. De repente, às pressas, apresentaram-se emergindo do seio da floresta, rapidamente, em atropelos e poeira, para reforçar a guarnição de Siger de Brabant, mais de 15 mil cavaleiros e infantes. Ele, sempre aos cuidados conosco, pedia para tomarmos posição ao seu lado, defendendo-nos a todo custo. Não poucas vezes seu escudo nos protegeu da ira dos ciganos, revidando com a ira cristã. Para não parecermos peso morto éramos responsáveis pelos mantimentos e algum armamento de reposição.

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Uma semana depois, era maio, flores explodiam em cores nas encostas e nos planos, foi ordenado o assalto final, fazendo com que um verdadeiro mar humano, aos gritos, se jogasse contra as torres. Depois de intensa luta, os cristãos conseguiram derrubar parte dos muros e se apossaram da porta principal. Um caudal de soldados adentrou pelas ruelas e paços da cidade-fortaleza, dizimando quem encontrasse pela frente. Siger e alguns notáveis conseguiram atingir barcos de fuga e foram decepar cabeças de seguidores de Calatin, o Cão Furioso. Ao cair a noite daquele dia, os odiados ciganos tinham-se rendido, o fogo de seus barcos ardia na noite, clareando tudo com um vermelho sanguíneo bem propício ao momento; muitos haviam fugido ou estavam mortos. Cantos religiosos ornavam a nave noturna. Nos dias que se seguiram à batalha, as tropas de Siger percorreram a zona costeira pondo em fuga os ciganos de Calatin, remanescentes em outras cidades, destruindo cuidadosamente tudo aquilo que fosse utilizado pelos ciganos caso eles tentassem, algum dia, novamente desembarcar na região. Mas, de Calatin, nada! Nenhuma sombra. Pedaços do corpo de seu irmão foram jogados no centro do pátio, somado a outros tantos pedaços de corpos. Chegaram a revirar as hortas, decepar as árvores frutíferas e desmantelar o sistema de irrigação para tornar impossível a reconquista. Completavam assim, com tal gesto devastador, o que chamaram de De Expugatione Terrae Sanctae. - Escutem bem o que digo, rapazes – gritava Siger de Brabant, em meio a desabalada carreira, cortando mato e estradas, - não acredito piamente que esse Calatin seja o Cão em pessoa. Nem acredito que haja aqui a forja do Mal. Mas, neste momento, irmãos!, a cabeça desta fera tem que rolar para o bem das gentes crédulas! Entendem?! Eles representam seus papéis. E nós defenderemos os nossos. E olha que eles nos cedem muita deixa... Naquela mesma noite, sob o calor das tochas e fogueiras, falamos sobre Bernard. O fundador da Ordem Cisterciense... o patrono dos Templários, por assim dizer. Ele enviara, lá em sua época, uma carta a Hugo de Payens pedindo a cooperação da Ordem para reabilitar os ladrões e sacrílegos, assassinos, perjúrios e adúlteros, porém que estivessem dispostos a se alistar nas fileiras das Cruzadas pela liberação da Terra Santa. Alentado assim por um dos mais influentes de sua época, Hugo de Payens partiu em direção do Concílio de Troyes, na França, para assegurar o reconhecimento de sua Ordem na Europa. Ali, sob o patrocínio e proteção de Bernard, apresentou a regra da irmandade, que seguia até certo ponto a Regra da Ordem. Eram ordens irmãs, de certa forma, com auxílio mútuo e ação político-religiosa conjunta. Mas a carta constitutiva da Ordem só lhe foi outorgada em 1163 pelo Papa Alexandre III. - Há umas coisas que não me agradam entre esses Templários, e que eles não nos ouçam, caros jovens, pois são osso duro de roer - segredava Siger. - A seção mais importante foi a dos Cavaleiros, por sua feição militar. Até aí, tudo bem, e graças a eles houve uma luta generosa e impiedosa. Agora, eles afirmam que juram observar os preceitos de pobreza, castidade e obediência, tal qual os membros das demais Ordens da Igreja. - Siger deu uma risada. - E eu pergunto, para que? Em geral eram descendentes de alta estirpe, os Cavaleiros tinham direito a três cavalos, a um escudeiro e duas tendas. Na verdade denotavam nada que indicasse pobreza. Aceitavam a presença de homens casados, mas sob a condição de legarem à Ordem metade de suas propriedades, e não se admitiam mulheres. - O que é isso, meus amigos? Nada de mulheres? - bradava Siger, aproveitando para observar se não nos seguiam. Depois vinha um corpo de Clérigos, incluindo Bispos, Padres e Diáconos, sujeitos aos mesmos votos dos Cavaleiros, e que por especial dispensação não rendiam obediência a nenhum superior eclesiástico ou civil, a não ser o Grão-Mestre do Templo e ao Papa. As confissões dos irmãos da Ordem deviam ser ouvidas somente por clérigos especiais, e assim permaneciam invioláveis os seus segredos. Ou seja, um sociedade secretíssima, se bem que bem treinada. Os Irmãos Servidores, os criados e os artífices... o Grão-Mestre, o Senescal do Templo, o Marechal como autoridade suprema em assuntos militares... os Comendadores sob cuja direção estavam as Províncias. Eis aí o resumo desse corpo de soldados de Cristo. - Agora vejam, quanto sangue não derramaram por aqui? E nem pegamos o Cão Raivoso.

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A influência dos Templários cresceu rapidamente. Combateram valentemente em várias Cruzadas, e à mercê dos bens tomados de seus inimigos vencidos, ou doados à Ordem, chegaram a ser grandes financeiros e banqueiros internacionais, cujas riquezas tiveram o seu apogeu agora, enquanto roda o moinho das pessoas que é o tempo e nós estamos aqui, no centro da floresta, lutando ao lado de Siger. Os reis da Europa depositavam seus tesouros e riquezas nas arcas dos Templários e, no que não era incomum ocorrer, pediam até mesmo empréstimos à Ordem. - O papel dos Templários na Igreja se pode avaliar pelo fato de os membros da Ordem serem convocados para participar dos Grandes Concílios da Igreja, tal como o de Latrão em 15... - ... e esse grupo que esteve conosco se dirige a Lyon, para um novo Concílio. Dessa forma, meus caros, não há dúvida que essa Ordem é um dos repositórios da Sabedoria Oculta, meus jovens, e seus segredos são transmitidos tão-só a alguns de seus membros selecionados. Não é à toa que falam mal deles... de Jacques de Molay... ligações com espectros... magia... profanações... Siger fez sinal para um cavaleiro que se aproximou. – Estou contando histórias sobre vocês para estes jovens aprendizes... Como andam as coisas nos dias de hoje? - Eles são cristãos? – o outro foi ríspido. - Oh! Sim..., - declarou Siger e piscou para mim. – Do tipo que ajoelha reza e faz contribuições. O soldado hesitou um tanto e disse, mordendo as palavras: - Não estão nada boas. Ele fazia pausas frequentes, buscando as plavras. - Há pressões e perdemos terreno. Voltei de Jerusalém por que fomos derrotados. Depois da tomada de cidade santa pelos Sarracenos... os Muçulmanos que, inclusive, nos períodos de trégua, negociavam conosco, pois acreditavam ser prudente ter algum dinheiro para o caso de que os avatares da guerra pudessem terminar em alguma espécie de pacto com os europeus... temo que em breve o que chamamos de Reino Latino, caia... nesse caso, o que faremos é transferir o Quartel-General da Ordem da Cidade Santa para Chipre, e Paris passará à categoria de nosso principal centro na Europa. - Esses são os planos? Parece que se afigura certo. Você fala como se já soubesse. - Do jeito que está... Por certo que a derrota das Cruzadas, de modo geral e digo em função de todas elas, perdemos, novamente, o túmulo de Cristo para as mãos dos infiéis, e isto está abalando a nossa posição, a nossa moral e a nossa autoridade, bem assim como das demais ordens militares. Prevejo um fim brusco e trágico. Os lobos se aproximam e as hienas afiam seus dentes. O que nos preserva, ainda, é sermos poderosos e ricos, credores do Papa e da corte da França... - É... mas isso pode ser a perdição de vocês, também... o que acha? Sei que os hospitalários recebem preferências por parte do papado. O cavaleiro balançou a cabeça e alisou a cruz maltada do peito. - Pensamos nisso, você tem razão, Siger de Brabant, mas já não é assunto de sua alçada, se me entende e me preserva o respeito por essas palavras. Siger baixou a cabeça como que compreendendo. O soldado deu adeus a todos e se retirou num trote estudado. OPUS 45 - O que busca um Alquimista? – perguntava Tomás de Aquino. Sabíamos também, a partir daí, que os dias dos debates finalizavam. Alberto Magno já nos dissera, em surdina, que os ânimos estavam por demais exaltados e que os monges, professores e doutores já não se agüentavam mais naquela estalagem. Além do mais, havia o perigo da proximidade com a milícia papal. - Escrevi um opúsculo sobre os trabalhos da Obra. As obras de todas as cores. Relatamos, também, todo o percurso na alquimia até ao presente. Ficaram, no entanto, muitas coisas por dizer que não tinham contexto, tal como a razão de ser de um alquimista e o que ele procura. Muitos hão de pensar que um alquimista é um "fazedor" de ouro, se é que alguma vez o conseguirá fazer em toda a sua vida... para se conseguir isso deveria seguir a senda como os nossos grandes Mestres o fizeram com a chamada

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Pedra filosofal por transmutação direta sobre o mercúrio ou o chumbo, que testemunham e afirmam nos seus tratados. A estalagem estava pequena para todos. Sonhar que se mora numa cidade nova, numa estalagem maior, não responderia a todas as perguntas. O fato é que a alma de cada um estava maior que corpo. De fato os mortos habitam em algum lugar. Só não sabemos onde. - E são esses relatos, - continuava Tomás, - que nos parecem tão sinceros, que nos motivam a prosseguir sem desfalecimento o estudo e a prática da alquimia com vista a atingir os mesmos objetivos. Não falei sobre isso mas, a estalagem era uma estrutura de seis metros por andar, tendo dois deles. A sua parte central era um sala onde se descansava e se conversava animadamente e era também o refeitório. Não se admitia nesse lugar voz alteada nem violências. Mas o riso era permitido e bem vindo. A superfície da sala era coberta por mesas de boa madeira e muita poltrona de couro de vaca, obra de um artesão chamado Zamariann que não sabia se vinha da Itália ou de terras da antiga Fenícia. Um certo aroma de estábulo perdurava por ali, mas todo mundo admitia que era o olor de um estábulo limpo. Em cada face de parede se penduravam quadros e enfeites numa mistura de arte cristã e mourisca. Em breve daríamos adeus ao lugar e seus admiráveis proprietários. - Não só a transmutação, pois esta é apenas a "prova provada" da verdadeira Medicina universal, razão maior da nossa busca, pelos motivos que mais adiante veremos, - ratificou o senhor de Aquino, - por isso, o que buscamos, não é pois uma eventual transmutação do mercúrio ou do chumbo em ouro. Atualmente, fabricar ouro por transmutação só teria sentido se fosse em grande quantidade. A uma ordem, os doutos professores, monges e padres se sentavam nas poltronas e qualquer outro que estivesse no interior da estalagem era convidado a se retirar, pois a reunião teria início. Tal foi o acordo quando a estalagem foi alugada. Todos então tomavam de seus cadernos de anotações e estabeleciam linhas de conduta para o debate, determinante este que Siger pouco seguia. Alberto Magno ordenou, como diretor da reunião, que os vinte senhores lessem em voz baixa as orações do dia, dali retirassem inspiração e ânimo. - Assim, se pretendem fazer muito ouro, caros estudantes, o que nunca é aconselhável pelo que pode advir de inconveniência e prejuízo, mete cem mil onças de azougue num grande caldeirão de ferro, a fogo forte. Anotem rapidamente o que digo, pois não vou repetir... rápido Pietro, pois é hora de mostrar que é um excelente escriba... Quando estiver quente a fumegar, tem já preparada uma onça de pó escarlate da quarta embebeção; envolve-a, então, com cera como uma pequena bola e lança-a sobre o já citado azougue fumegante. O fumo desaparecerá rapidamente. Ativa o fogo e logo se transformará, parte em massa e parte em pó de ouro amarelo, que fundirá em cadinho. Vazarão em massa ou lingote e extrairão de todo este mercúrio cerca de 99.170 onças de ouro puro, de qualidade insuperável, que utilizarão como acharem melhor. Se nossa hipótese é correta, o encontro na estalagem em terras francas, além da maior parte de estudiosos francos naquele seminários, pois, por força de circunstâncias, os francos se diziam descendentes diretos do Sangue Real, ou seja, quando José de Arimatéia recolhe em uma taça o sangue de Cristo como um símbolo, dizem os Francos que o que José de Arimatéia recolhe é o próprio Cristo, trazido para o que seriam terras futuras de França e, é claro, nestas terras o sangue real de Cristo daria sua descendência... Por lambanças como esta é que os francos afirmam sempre que são os herdeiros diretos do Trono do Mundo. Tolices, pensava eu! - Eis, caros estudantes, muito mais ricos que todos os reis, pois possuirão mais do que eles e do que podem dispor em todo o seu reino mundano. Mas não produzam ouro senão pouco a pouco, com prudência, sem revelar nada a ninguém e sem confiar jamais nos outros, - arrematava Tomás. - Fazer uma transmutação com 100.000 onças de mercúrio!? Cuidado! Pois é nesse momento que a alma se perde. A temporada chegava ao fim. Algum sinal de chuva aparecia no horizonte e ventos ordinários regavam as campinas com polem. - Tal quantidade de ouro, em qualquer tempo, é muito difícil passar despercebida e, quem o fizesse e o desejasse vender, correria grandes perigos inclusive incorrendo em penas capitais, dependendo do povo e de suas leis, como nos relata Filoctetus de Alexandria na Entrada Aberta ao Palácio do Rei Cativo, Capítulo XV. Lerei para vocês:

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«Os mercadores, os padres de todas as horas, os reis e magos, não são tolos, mesmo se como crianças brincam contigo, debocham e fazem oblações ao seu lado, por isso, mantenha-se alerta dizendo que compram de olhos fechados, que nada vêem e que se pode vir com toda a confiança; se forem até eles, num piscar de olhos o denunciarão o bastante para lançá-lo em grande embaraço e na mais completa perseguição. Calabouços e sepulcros serão seu fim”. Vários viajantes diziam que uma quantidade imensa de cavalos e seus devidos cavaleiros rumavam para aquela estalagem. Os relatos variavam. Falavam de exército papal. Diziam de soldados a soldo do rei. Comentavam sobre mercenários. Nenhuma descrição correspondia as certezas. No entanto parecíamos vislumbrar, talvez por força da sugestão, que poeira vermelha se levantava no horizinte. - A prata que produzimos graças à nossa ciência é tão fina que não pode ser proveniente de nenhum país. Eis a razão por que clamamos o tempo todo para que liguem os valores da prata e o ouro com os valores da alma e da inteligência. A melhor, que vem de Espanha, não vale mais que a esterlina das ilhas britânicas e ainda se apresenta sob a forma de peças assaz grosseiras, grossos metais cobertos de impurezas, que são contrabandeadas, malgrado a interdição das leis dos reinados. Se puser à venda uma grande quantidade de prata pura, você mesmo se traiu; e se fizer uma liga não sendo ourives, merecerá a pena capital, segundo as leis de Inglaterra, Países Baixos, e de quase todos os estados que prevêem que toda a alteração de título do ouro e da prata que não seja para atender à balança do ourives... é passível de pena capital se não é exercida por profissional registrado. Da Rosa nada falaremos agora, digo eu, enquanto mergulho fundo numa sonhadora e triste lembrança de Sonja. Lembrança e saudade. Lembro de suas vestes cândidas. Nas noites ela acendia muitas luzes e tudo fulgurava insopitável. Falava bastante e recitava poemas, somava palavras e entoava cânticos... ela dançava... ria muito e nossos corações se aqueciam. E quando percebia que não nos agüentávamos mais em nós, ela juntava letras e números e transcendia o encontro. Ia além da tradição. Mantinha sua pureza. Numes e anjos se juntavam do lado de fora da residência e pareciam humanos. Estávamos felizes. - Hoje, - explicava calmamente Tomás de Aquino, - isto não teria sentido, porque se o ouro fosse vendido em pequenos lingotes devidamente analisados na sua pureza haveria sempre um comprador interessado. Digo tudo isso, caros jovens, para que não se percam em aventuras funestas. Aconteceu com um irmão, Reinaldo, se bem me lembro, quando quis vender mais de 250g de ouro em pepitas que trouxe da África. Reinaldo parecia mais velho do que aparentava. Cabeça toda branca. Chamava muita atenção pois tocava chalumeau, era exímio instrumentista, e tinha longas e hirsutas barbas brancas. Ele se dirigiu a uma casa que fora recomendada. Lá disseram que não podiam comprar o ouro nessas condições e que teria primeiro de ser analisado o seu grau de pureza, indicando para isso, uma firma que o poderia fazer. Dirigiu-se Reinaldo à dita firma e até ajudou o empregado a fundi-lo. Deitou o ouro em pepitas num pequeno cadinho usado pelos ourives e aplicou-se o fogo durante cerca de 20 minutos ou mais. Quando o ouro se fundiu completamente, emitia estalidos secos. Admirado o empregado perguntou porque o ouro fundido emitia esses estalidos. Respondeu o outro: é o cantar do ouro puro em fusão. Sempre foi bonito de ver e ouvir! Quando as persianas balançaram com as rajadas ficou patente que todos teriam de partir de imediato. - Recordemos bem, no entanto, as alusões secretas que Tomás nos dá no dia de hoje, LaCordaire, Pietro... pois nos próximos anos o mundo se tornará de cabeça para baixo e nós teremos responsabilidade nisso tudo, - falei. - Não sabemos tampouco, com certeza, se os irmãos da segunda linha tinham os mesmos conhecimentos que temos agora, nem que fossem admitidos em qualquer ordenação secreta... como Alberto quis que fôssemos... - Criptografar as mensagens será obrigatório, - disse Tomás, - e a divisão é clara. Se caírem tais palavras em mãos da milícia do Papa, ou de Reis e poderosos que fazem o serviço do Mal sobre a Terra, então estaremos todos em apuros... e a humanidade também. - Não por mim, - falei para o mestre, - pois, na minha maneira de ver, o conhecimento deve ser exposto para todos que quiserem usá-lo.

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- Poderá sofrer com isso, se não souberem a quem repassar as informações, disse Tomás e vi que ele estava apreensivo. - Isso é verdade. Mas deve haver a liberdade para fazê-lo. - Que assim seja, mas saibam que eu muito bem acredito que o Mal do mundo está nesse fato de que os governantes, orgulhosos e vaidosos, só o são pois sofrem da mais severa inveja: a inveja do mando, a inveja de serem respeitados, a inveja da sabedoria, a inveja da beleza e da fama. São pobres que sabem de suas limitações, mas não aceitam a situação e querem tomar um lugar no controle do mundo, à força. Fizemos uma pausa para refletir. Eu pensei sobre estas últimas palavras e tive que concordar com Tomás. Em seguida ele continuou com a lição, já refeito da veemência com que exortou nosso ânimo. Retornou à história de Reinaldo. - Depois de bem liquefeito, Reinaldo vazou-o com a devida precaução numa pequena lingoteira. Depois de arrefecido pesou-o minuciosamente e entregou um documento referindo sua posse do ouro para analisar. No outro dia Reinaldo, ingênuo, foi buscá-lo. A barra de ouro tinha sido perfurada dos dois lados, mas não completamente e as aparas retiradas com a broca vinham junto com o lingote num pequeno saquinho de pele de camelo. A pureza do ouro era 99,8%, apenas dois décimos aquém do ouro puro. Reinaldo dirigiu-se à casa anterior para vendê-lo. O proprietário, um judeu, segundo constou, disse que naquele momento não tinha muita precisão de ouro puro, mas que para não deixar Reinaldo sem nada nas mãos, compraria o tal ouro. Feitas as contas, verificou-se que havia enganos e enganações, e por isso Reinaldo disse-lhe que se quisesse fazer negócio era para se pagar o ouro ao preço de lei do ouro puro, descontados apenas os dois décimos. Reinaldo disse que o homem ficou a olhar com espanto porque viu que ele estava por dentro do assunto. O outro concordou e o caso foi encerrado. Trazia um grande maço de notas para pagar em dinheiro "vivo". Vendo isto, Reinaldo não aceitou: “- Dessa forma ainda sou assaltado! Passe uma letra assinada em seu nome”, disse Reinaldo. Então o judeu se admirou, por não querer aceitar o dinheiro "vivo" e isto me parece claro, pois, deve-se ao fato de que quem normalmente vende ouro é porque precisa de dinheiro o que, felizmente, não era o caso de Reinaldo. Ao sono eterno... não escapariam portanto senão aqueles que já em vida tinham sabido orientar sua consciência para um mundo superior, e os estudos da Pedra Filosofal queriam nos passar esta mensagem. Iniciados adeptos, estudiosos da obra secreta estão no limiar desse ponto. Caminham em tal via. Conseguida a recordação, o exame de memória, como diria Plutarco, os irmãos se tornam livres, seguem sem vínculos e isso correspondia ao passar por todas as cores da Obra. Coroados celebram os mistérios. Os que não seguem tal senda se lamentam na Terra, esmagados e se revolvem no lodo e nas trevas. - Enfim, relatei isto para que saibam, rapazes, que há sempre quem está interessado em comprar ouro desde que lhe traga vantagens e nem sequer procura a sua proveniência. Há apenas uma formalidade a cumprir: a completa identificação de quem o vende, nada mais. Tomás sentou-se e cruzou as mãos, como fizera repetidas vezes para dar continuidade ou findar sua aula. - No caso do Irmão Reinaldo, e de muitos outros alquimistas, fabricar ouro por transmutação não teria muito sentido porque a chamada Pedra filosofal tem outras características muito mais interessantes e bem mais valiosas que o ouro puro. Posso repetir o que Évola de La Lacrime escreveu: “Os mestres da arte ensinam que o objetivo dos trabalhos é tríplice. Em primo posto é a Medicina universal, ou pedra filosofal propriamente dita, sob forma salina, multiplicada ou não, só utilizável para a cura das doenças humanas, a conservação da saúde e o crescimento dos vegetais.” Houve pausa. E, enquanto escrevíamos meditávamos nas palavras do mestre. - Se estiver na forma solúvel, em qualquer licor espirituoso, a solução toma o nome de Ouro potável, embora não contenha o mínimo de ouro, porque apresenta uma magnífica cor amarela e o seu valor curativo e a diversidade do seu emprego em terapêutica fazem dela um auxiliar precioso no tratamento das afecções graves e incuráveis. Não tem ação sobre metais, salvo sobre o ouro e a prata, aos quais se fixa e dota das suas propriedades, mas não serve de nada para a transmutação. Pietro de Ferrara olhou para mim e com um sorriso levantou as sobrancelhas, armando um rosto maroto. Se bem entendo meu amigo se lembrou de um episódio em que mulheres várias corriam pelo campo carregando na mão a Arrancadiabo, raízes tais

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que, segundo elas, arrancavam o diabo do corpo das pessoas e afastavam as alucinações. Queriam, as tais senhoras, administrar a tal erva a uma jovem que se dizia atormentada à noite pelo diabo. Na verdade queriam dar fim à juventude da outra que namorava todos os homens – os tais diabos - da vila. - Finalmente, se fermenta a Medicina universal – parecia um cantar mas era apenas a voz de Tomás - sólida, com o ouro ou a prata muito puros. Por fusão direta, obtém-se o Pó de projeção, terceira forma da pedra. É uma massa translúcida, vermelha ou branca segundo o metal escolhido, pulverizável, própria para a transmutação metálica. Nova pausa. Tomás perambulou pelo aposento como a procurar na mente se algo fora esquecido ou olvidado. - Aqui têm, senhores, pois, a razão porque os alquimistas e os antigos Mestres não tiveram como principal objetivo o ouro, mas sim a chamada Medicina universal que, segundo a tradição, permitiria ao ser humano viver em perfeita saúde para além da idade normal. Nesse momento eu me lembrei de Alberto e do presente que ele me dera dias atrás. Ele me dava a saúde ou uma vida sem temores e doenças. V.I.T.R.I.O.L. – advertia ele: Visita Interiore Terrae Rectificandoque Invenies Ocultum Lapidem, ou seja, vá ao interior da terra e, seguindo em linha reta, em profundidade, encontrarás a pedra oculta, a qual, além de uma referência à Pedra Filosofal, é um convite à procura do "eu interior" de cada um. OPUS 46 Nesse tempo todo eu não mudava. Era o que me parecia. Enfim, temos boas ou más impressões de nós mesmos. Convivi com muito espelhos e a cada século cada espelho, um mais temível e acurado que o outro, dava-me a mesma face. Os amigos passavam por mim e envelheciam e eu não mudava. Semblantes atormentados me olhavam sem ousar qualquer pergunta. E as piores datas passaram a se avolumar. As datas em que os mestres deixaram nosso convívio para o outro lado do Véu. - A cultura é uma invenção da criatura humana, - eu falei e meus amigos concordaram. - Para curar o medo diante do aspecto primário da vida... inventam a cultura, plantam a civilização e lutam por domesticar a natureza. - ... A selva em que reina Pan, - completou Pietro de Ferrara. Eu sorri, ouvindo o comentário e lembrando de Alexandrino, o menor, que fora embora um dia sem que mais soubéssemos dele . - O “omnia in unum”... segundo Lúlio, que se deu muito bem na Inglaterra fabricando ouro para o Rei Eduardo. O curioso é que os dobrões que daí saíram receberam o nome de Raimundo em homenagem ao sábio, - explicou LaCordaire. - O ser humano inventou os seus mitos, - recomecei, tendo os olhos perdidos nos horizontes que se abriam à janela.- Tudo isso para preservar o seu mundo de formas e para tentar preservar a unidade do que está em baixo e do que está em cima, de acordo com Hermes. - Mas quem defenderá esses exercícios que pesam sobre a teologia que vem ligada a sistemas astronômicos e a doutrinas do movimento? - A demonstração da existência de Deus, - falou Pietro,- é um exercício da razão pura que pode e deve transformar-se em piedade, mas que, em si mesma, é da ordem da ciência e não da religião. E vinham lá as más notícias. Devo relatá-las, pois tudo é produto dessa lembrança que agride agora, após tanto tempo de imersão em meditações e solidão. No entanto, antes, passarei a rever meus escritos desde o começo e reanotá-los, principalmente no que tiverem de técnica e arte, para que esse conhecimento não se perca. Em outro momento abrirei novas brochuras que ainda trago guardadas... Os escritos alquímicos, por exemplo, são, ao começo, apenas receitas técnicas que passavam de pais a filhos, no Egito... Só aos “filhos legítimos” e aos “dignos” poderiam ser divulgados. Daí Hermes ou Agathodemon – os princípios da transmutação e o dogma da matéria primeira. Assim a palavra famosa, repetida pelos alquimistas e que simbolizava a imagem da serpente que se morde a cauda, o ouroboros . Quantos

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tratados não apareceram? E coleções sobre esta arte sagrada: fabricação do ouro, da prata, das pedras preciosas... Tudo é motivo de luta e sangrentas contendas... Busca da riqueza... Para Festugière a alquimia torna-se um verdadeiro mysterion, uma ascensão em que a alma sobe os degraus da escada mística, com batismo, morte e regeneração, queda e ressurreição do Primeiro Homem, “spellum”, the spell, dos ingleses, o feitiço... espelho celeste em que a alma se vê na sua natureza. Contudo, eu divago e faço isso para evitar falar das mortes. Das passagens. Das travessias. A ciência aparece como a antítese da magia. Na verdade é uma substituta onde até mesmo o incompetente pode se arrogar doutor. O combate contra a magia ou o pensamento mágico começa agora, e eu sei, atravessará séculos e abarcará campos tão diversos como a teologia, a filosofia, a medicina... Em 1267, Boaventura tomou a palavra na igreja franciscana de Paris, misturando o aristotelismo e um conjunto de doutrinas, de superstições ou de práticas mágicas. Grosseteste coloca a astrologia na primeira fila das ciências e acredita na transmutação dos metais. Depois, Dante junta no mesmo céu do Paraíso Tomás de Aquino, Siger de Brabant e Alberto Magno. Não há incompatibilidade entre a Grécia e a Revelação, o averroísmo latino e o intelectualismo integral entram no mesmo convívio de transmutação das idéias. A ciência experimental, que teve em Roger Bacon um dos seus maiores, tem uma dívida para com as ciências a que chama ocultas. O tempo abre duas grandes vias para pensar o projeto de uma união secreta do ser humano com a natureza, uma que passando pelo filtro de forças misteriosas, divinas ou demoníacas e de procedimentos iniciáticos, abarca a alquimia, a necromancia e a magia; outra que passa pela descrição rigorosa dos fenômenos, tendo em conta os progressos da técnica e que combate o recurso ao esoterismo. O corpo humano é um sistema alquímico – idéia revolucionária – e imediatamente toco na ficha pétrea que Alberto me dera de presente um dia e vejo que os fenômenos se multiplicam em mim, oitocentos anos após... Sumiram de mim as doenças, pois se chegou a bom termo a busca das múltiplas modalidades do desequilíbrio, aniquilando-o. Mas, até quando? Não são uma desarmonia dos humores, mas dos poderes exteriores que agiram sobre mim: o ens astrale, o ens veneni, o ens naturale, o ens spirituale e o ens Dei. O caminho se abriu para que o olhar mude de mão – uma mão que a Razão dirige e que, via ciência e técnica, manipula, utiliza, domina a natureza. - Acredita que o cristianismo possa dessacralizar o mundo? – lembro de uma noite em que Pietro de Ferrara, arrumando o fogo para a lareira perguntou, assim, de socapa. E eu disse que não sabia e só podia tirar conjecturas. - Sei que deu-nos o meio de transformar em técnica a imitação criadora que o rito só pode produzir uma vez. No universo das elites o experimental aparece sempre como impuro e popular. A alquimia, representa um esforço de sacralizar o mundo, sublimar a vida, talvez, buscar a transcendência, não de a reduzir a uma ficção. Todos eles hoje já desapareceram. Vivem na minha memória, mas isso não é muito. Aquino, em 1267, tinha ido para Viterbo e trabalhava com o Papa Clemente IV, recusando o posto de arcebispo de Nápoles. Dois anos mais tarde retornou a Paris e aceitou o posto de catedrático de teologia nos Dominicanos. Sua indicação foi, naqule momento, muito útil porque ele se forçou a devotar toda a sua energia para derrotar a oposição que havia emergido na universidade da Ordem dos Mendicantes, em particular dos Dominicanos, com os ensinamentos de Aristóteles e a assegurar, com ímpeto e força, a condenação das idéias controvertidas do teólogo Siger de Brabant, mesmo porque durante os debates na estalagem bem se viu que Siger era homem de extrema honestidade, mas muito versado nas coisa do mundo... um mundano... e ainda seguidor dos chamados Averroistas, que advogavam uma forma extrema de Aristotelismo, e com a qual Siger tinha ampla afeição, defendo-os sempre. Siger sempre foi polêmico. E não foi por pouca coisa que o assassinaram. Retornando ao mestre de Aquino, renomado, o Papa ordenou a ele que organizasse uma escola em Nápoles. Ali deu sermões, pregou perante grandes multidões e continuou o seu trabalho de pesquisa para terminar a Summa Theologiae. Muito doente e exausto do seus incessantes trabalhos, Tomás, assim mesmo, depois, obedeceu ao pedido do Papa Gregório X de participar no Concílio de Lyon. Na França, ele teve um

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colapso em janeiro de 1274 e morreu no Monastério Cisterciense de Fossanova em 7 de março. Siger de Brabant, por sua vez, já havia se projetado como o principal representante do averroismo latino, como tantas vezes já ficou aqui esclarecido, e Siger, a partir de 55, ganhou terreno na Universidade de Paris, especialmente na Faculdade das Artes, onde foi professor bem cotado por alunos ávidos de conhecimento e aventura. E, histórias, verdadeiras ou não era o que não faltava ao prolixo Siger. Outros partidários de destaque foram Boécio de Dácia e Bernier de Nivelles. Ele, Siger, veio de Cordova, da mesma cidade espanhola onde nascera Averróis, de onde emigrou para a Bélgica, daí o cognome Brabant. Foi cônego de Liége. Vimos que debateu com Tomás e Alberto. Coincidiram em alguns pontos. Foram díspares em outros. Mas permaneceu polêmico. E Siger de Brabant ousou muito. Extenuou a paciência de muita gente grada. Sistematicamente e mais enfaticamente Siger de Brabant expõe todo um sistema aristotélico interpretado segundo o espírito averroísta – o espírito de Ibn-Rush. A novidade produziu reação na Faculdade de Teologia, para a qual retornara Tomás de Aquino em 1269. Siger de Brabant reencontrou um adversário de valor. Os dois grandes homens do século ergueram ao máximo o esforço de inteligência da universidade de Paris. Siger de Brabant, depois de alvoroços e celeumas homéricas, pressões clericais e forças adversárias de calibre, cedeu nos extremismos iniciais e passou a uma posição moderada. Criticaram-no por isso , também. Siger fora um dessas pessoas que, não importa que posição tomam, sempre terão severos críticos prontos a diminuir seu valor. Quanta vez não lhe deram mérito por coisa que nunca fizera ou por livro que nunca escrevera ou oração que nunca proferira? A ação repressiva da Igreja contra o averroismo se manifestou primeiramente pelo decreto do bispo de Paris, Etienne Tempier, de 10 de dezembro de 1270, denunciando 13 proposições inovadoras. Continuaram as ações repressivas, até culminarem na condenação de Siger, em 7 de março de 1277. Para Siger, as pessoas se distinguem e se multiplicam apenas pela sua parte sensível. Propunha, também, a imortalidade pessoal, substituída por uma imortalidade da raça humana como tal, eterna como o próprio universo, em contraste com a doutrina cristã tradicional. Por inferência semelhante desaparecia também a liberdade individual. Diante do pan-psiquismo averroísta de Siger em Paris compreende-se a reação das instâncias oficiais. A reação contra Aristóteles já vinha desde 1210 quando o arcebispo de Senns o proibia na universidade de Paris. Agora, com a formulação sutil que Siger lhe deu, com base em Averróis, Aristóteles mereceu novo combate. Dos meios agostinianos investiu Boaventura, com sermões em 1267, em Paris, denunciando o lado herético do movimento. Do meio dominicano veio a reação contra Siger, de Alberto Magno e de Tomás de Aquino. Este, em 1269, estava de retorno da corte pontifícia, onde se inteirara de Aristóteles no original, assistido pelo helenista Moerbeke. Num sermão em julho de 1270 aos estudantes de Saint Jacques, insistiu Tomás no princípio teológico de que não podem ocorrer verdades opostas da razão e da fé. Seguidores de Siger arrulharam no plenário. Tomás sorriu, docemente, pois amava o irmão Brabant e sómente estava no lado oposto em termos de idéias, mas não nos interesses da alma. Reagiu Siger, reformulando em parte sua posição. Abandonando a interpretação averroísta de Aristóteles, no que se refere a inteligência, apresentou uma própria, oposta a de Tomás, achando-se mais fiel ao texto do De anima do Estagirita. Estabeleceu Siger que a alma universal se une ao indivíduo, não pela simples abstração do fantasma sensível conforme Averróis, nem como forma substancial, - que era o ponto de vista de Tomás, - mas como forma a operar de dentro ut forma intrinsecus operans. Por fim, numa terceira fase da discussão, Siger de Brabant concordou com a doutrina da alma como forma substancial do corpo, movido pelos argumentos teológicos e filosóficos dos seus contendores. O mesmo fez Siger com referência à doutrina da liberdade. Conservou, entretanto, sua visão averroísta do mundo, com as esferas celestes criadas ab aeterno e necessariamente. Nesta polêmica foi Siger um exemplo de como o pensador deve agir com plena liberdade de pensamento e que pode mudar sempre que achar novos caminhos. Mas com a condenação, ele não poderia mais ensinar. Nessa época, muita gente mandava recados anônimos aconselhando Siger a se calar, em troca de sua vida.

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As perturbações ainda continuaram. Seus partidários, no Natal de 1271, por ocasião da eleição do reitor Alberico, para a Faculdade das Artes, elegem-no como contra-reitor. Propunham um governo paralelo? Ocorrendo dificuldades entre a universidade e o bispo Tempier, elas ainda foram agravadas por uma greve escolar, e, é claro, por culpa e incitação do rebelde Siger de Brabant. Em 18 de janeiro de 77 uma admoestação é enviada de Roma a Paris por João XXI, o conhecido Pedro de Espanha, há pouco eleito Papa e logo falecido sob os escombros de um teto desabado. Ninguém cogitou numa possível punição divina. Nem na ação humana como facilitadora. A diretriz filosófica pessoal de Pedro de Espanha era agostiniana. O bispo de Paris, Étienne Tempier saiu-se, então, com nova condenação, datada de março de 1277, voltando ao que eu já disse, condenando 219 teses, atingindo também outros autores. As condenações favoreceram ao agostinianismo, não somente diante do averroísmo como também diante do tomismo aristotelizante. Desta vez foi incluída na condenação a tese da dupla verdade, verdadeira sob o ponto de vista da fé, falsa sob o da razão. Foram também condenadas como contrárias à ortodoxia teses que, através dos tempos, persistirão sutilmente entre exegetas, cientistas, filósofos: que há fábulas e coisas falsas na religião cristã; que a lei cristã impede a instrução ou cultura; que a verdadeira sabedoria é somente a dos filósofos; que não há nada superior do que o exercício da filosofia; que a felicidade se obtém nesta e não na outra vida; que a virtude não pode ser praticada pelos faltos de fortuna. Siger foi assassinado por um secretário de confiança. 1280 foi o ano de Alberto partir. Alemão, alquimista, conhecido como "Doctor Universalis". Repito sempre. Alberto teve um interesse, que durou toda a vida, pelas ciências naturais; foi importante cultor de Aristóteles cuja influência percorre tanto os seus escritos científicos como os seus escritos religiosos. Logo após a sua morte um número de escritos sobre magia começou a circular com o seu nome. Não há hermetista que não o conheça, e se você é uma pessoa que se acha muito culta em magia e não conhece Alberto, não passa de uma fraude para com você mesmo e para todos os outros. Magnus in magia, major in philosophia, maximus in theologia. Não há dúvida que foi a sua ligação à magia que o afastara dos altares. O seu Secretum Secretorum, que aparecerá mais tarde em Veneza, liga-o ao hermetismo. Circula a Les Admirables Secrets d'Albert le Grand que fala das virtudes das ervas, das pedras preciosas e animais, métodos contra as pragas, febres malignas. Talvez um modo de se fastar de perseguições outras. Na verdade, a prática em vez da teoria; a ação para auxiliar os pobres do mundo a resolver seus problemas. Há quem lhe atribua a criação de um andróide, um Golém, experimentos que resultaram das leituras Bíblicas mormente do episódio de Lázaro... um autômato dotado do poder de falar. Tais assuntos beiravam à magia da Ressurreição e por isso se contava com muitos inimigos. O milagre de transformar o inverno em primavera - o jardim de Alberto - aparece ligado ao poder de metamorfosear a natureza, não é menos comentado. Tomo as palavras de Ulrich Engelbert, contemporâneo de Alberto Magnus, que o chamava de o admirável milagre do seu tempo: - "Vir in omni scientia adeo divinus, ut in nostri temporis stupor et miraculum congrue vocari possit". Mas a sua vida passou para a história do comum dos mortais ligada à teologia, ao lado de Pedro Lombardo, o Mestre das Sentenças e Tomás de Aquino, seu discípulo, por quem ele chorou admiravelmente ao pressentir, enquanto rezava uma missa, que o aluno amigo falecera longe dali. Algumas flores de seu campanário deram o sinal. Na elevação da hóstia ele titubeara e algumas lágrimas desceram incontroláveis. Há quem diga que ouviu sons de flauta ruda e cantos suaves. Nas suas obras não se vê uma distinta separação entre ciências e filosofia. Não se consumava a separação entre a cabeça e as mãos, espírito contra matéria, cultura versus natura. A relação de conflito entre razão e fé nasce dessa má divisão, desse mal entendido. Mas, essa época ainda chegaria. Alberto compreendeu, como poucos, que a tarefa maior da cultura é a tradução, ou melhor, a inter-tradução. Por isso assumiu a tarefa de iniciar os seus contemporâneos na grande filosofia grega e árabe, tornando Aristóteles inteligível aos Latinos. Verdadeiro ato de bondade intelectual. O seu método é em tudo conforme aos usos universitários: construir a exposição do texto desenvolvendo o seu sentido literal; depois, tomando recuo, instituir questões dotadas de argumentos pró e contra a propósito de passagens

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mais difíceis. O anti-intelectualismo afirmava: o amor vai mais longe do que a intelecção: ubi deficit intellectus, ibi proficit affectus, dizia Boaventura. A dileção prima sobre o saber. Hugo de S. Victor dizia: amar é ver, o amor é um olho; o amor é conhecimento, falava S. Victor contra o método racional no domínio teológico. Alberto, no entanto, está ligado à noção litigiosa de teofania (censurada em 1241) que dizia: é Deus que vem ao encontro do ser humano segundo um modo a ele adaptado e para o encaminhar para o conhecimento feliz: "Deus comunica-se a si mesmo para a deificação daqueles que para ele se voltam". A noção de teofania deve entender-se no registro da iluminação intelectiva que é constitutiva da graça santificante: o Filho ilumina o intelecto e o Espírito abrasa o afeto. Nesta vida nós vemos Deus de costas, confusamente. Um excesso de crise também mata a crise. Quando se retira a liberdade da pessoa, que verdade pode esta pessoa pretender alguma vez atingir? A objeção contra a perda das harmonias do sentimento não é apenas uma reação esotérica. Alberto é um modelo de sábio. Sua maneira de agir e suas criações dentro dos processos das Obras – e quando falo de Obras com “O” maiúsculo me refiro à Alquimia - provam isso. O contrário da sabedoria é a multiplicação de idéias iguais. O sistema das escolas, da informação e da cultura que se espalha superficial para todos, sem questionamentos, permite fabricar seres que se tornam uma cópia conforme uns aos outros – mímesis grosseira. A sabedoria não se acomoda com a inspeção, o ofício normal do ver e do bem ver, que se esgota ao considerar o que existe. O acontecimento, reduzido a um simples traço, é um ruído, que é a exceção da monótona e tranqüilizante inspeção. O espírito desperta. O pensamento só é diurno e vigilante sob o efeito de um acontecimento. O Doutor universal é homem do seu tempo. Alberto nos dá otimismo e exemplos a seguir sobre os interesses que tinha acerca da natureza humana, respeitando a autonomia do mundo, do ser humano, do discurso moral e da Razão. Que ele nos conceda o Dom do questionamento e do rigor e a graça de não substituir a questão pela tese. Após essa época, 1280, Pietro de Ferrara fora acometido por doenças que não conseguimos debelar ao chegarmos a Jerusalém. Nem usando minha pedra. Emagrecera a olhos vistos. Estava fraco. Os sarracenos nos ofereceram seus médicos e métodos de cura, porém durante o retorno Pietro teve uma crise que o fez cair na estrada. Era olhar em torno e nada ver, sempre solitários que fomos. Distantes de todo lugar. Tivemos que esperar e orar. Em alguma das estradas poeirentas jaz, Pietro de Ferrara, sob um monte de pedras. LaCordaire, por sua vez, resolveu partir para as Ilhas Britânicas atrás de Duns Scotus e ampliar seus conhecimentos, mas somente após nos instalarmos em Paris para lecionar e pesquisar profundamente os caminhos esotéricos, com os quais ele não mais quis ter contato algum. Sei que se casou e teve oito filhos com uma herdeira de galeses. LaCordaire se limita a passeios em Stonehenge. Escreve para mim uma vez por ano. Aprendeu a tocar flauta. É isso. Os escritos finalizam por aqui. Não há nada mais para contar. Dou adeus agora a todos. Dou adeus ao caro Doctor Angélicus. Tomás de Aquino. Dou adeus ao insuperável Siger de Brabant, agradecendo por todos os medos e por toda a ousadia. Dou adeus a Alberto, o Grande. Doctor Universalis. O século 14 me espera e a fogueira de Jacques de Molay está aqui na minha frente, ardendo, crepitando, queimando o corpo do Templário traído, enquanto ele grita, de dentro da pira, impropérios e profecias que se concretizarão dentro de um ano. A morte do Rei e a morte do Papa. O povo que assiste ao Auto de Fé exulta e urra como animais em uma jaula.