Maria do Carmo Vieira

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Sarah Adamopoulos entrevista a professora Maria do Carmo Vieira

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TodasAsPalavras»nm#851»entrevista

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A ler um livro do filósofo alemão Eugen Herrigelsobre o Zen e o ensino das artes tradicionaisno Japão, encontrei uma frase que poderá ser-vir de pontapé de partida para a conversa:«Desde tempos imemoriais a relação profes-sor/aluno pertence aos laços fundamentaisda vida e implica uma grande responsabilida-de para o professor – a qual ultrapassa gran-demente o âmbito da sua matéria de ensino.»É professora há 33 anos, o que lhe apraz dizersobre isto?

A relação entre um professor e um alunoconstrói-se na plenitude de dois verbos:ensinar e aprender, gestos que traduzem,respectivamente, o gosto de despertar al-guém para o mistério que é a vida, o conhe-cimento ou a arte; e o prazer de descobrir ecompreender, alertando-se para o mundoe deixando-se emocionar. Um professornão espera que um aluno lhe agradeça por-que o acto de ensinar é pertença da huma-nidade, insere-se na própria vida. Os pais

Ensino Diz que a escola tem o poder de for-mar para a vida e que um professor é antes de mais uma cons-ciência.Docente do secundário há três décadas,Maria do CarmoVieira é uma das vozes mais discordantes das reformas em cursona escola pública.A professora quer continuar a ensinar,exigeque os alunos possam aprender e não se conforma com o apaga-mento da literatura e dos clássicos do ensino do Português.ENTREVISTASarah Adamopoulos ¬ FOTOGRAFIAClara Azevedo

ensinam os filhos e passam uma mensa-gem, o professor ensina os alunos e estes,por sua vez, ensinarão também, indepen-dentemente da sua profissão. Lamentavel-mente, o Ministério da Educação [ME] es-vaziou o significado desta relação, esque-cendo que ensinar significa «pôr umamarca, assinalar» e que aprender é «pren-der, agarrar a si próprio». Todos nós noslembramos dos professores que nos mar-caram, que se tornaram exemplo. Daí a im-

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Só a resignação explica que se obedeça aoteor dos novos programas, que privilegiam(refiro-me ainda e sempre à disciplina dePortuguês) o novo, ou seja, os autores con-temporâneos, no quase completo apaga-mento do que é velho, ou seja, os autoresclássicos, a fonte. Este discurso oficial deci-diu que os interesses dos alunos se centramno presente, liberto de influências, e no ex-cesso de imagens que humanamente é im-possível reter e que se dispersam sem qual-quer significado. Talvez o objectivo primei-ro (estou cada vez mais convicta disso) sejatreinar os alunos a não pensar. Não é poracaso que se descura a língua e a sua gramá-tica, num mau-trato oficializado, manifestona indiferença perante o erro ortográfico, apobreza de vocabulário, a incorrecção ver-bal, a falta de rigor. É triste, mas creio queneste momento a escola perdeu a sua fun-ção milenar de preparar para a vida, e porisso os alunos quando dela saírem encon-trarão um mundo totalmente diferente da-quele que lhes foi mostrado por um ensinoque se centra apenas nos seus interessesimediatos, fomentando o narcisismo e oegoísmo. Sabemos, por experiência, que osinteresses dos alunos estão em geral muitoafastados da cultura.E compete precisamente ao professor mos-trar novos caminhos, outros mundos para alémdo deles. Ou não será o maior interesse dos alu-nos justamente aprender? É óbvio, mas não para o ME. Aliás, chama-ram-me elitista quando dei a conhecer, deforma crítica, a presença do Big Brother edas telenovelas nos manuais, e quando de-fendi a importância da arte, nela incluindonaturalmente a literatura, na sala de aula.Elitistas são as pessoas que estão por detrásdestes programas e das suas metodologias.Com efeito, se não for a escola a preenchero vazio cultural que resulta de uma situaçãofamiliar fragilizada, quem o fará? Pelo con-trário, os que têm a possibilidade de con-viver, em suas casas, com um discurso decultura não terão qualquer problema se aescola falhar nessa sua missão. A esta desi-gualdade de oportunidades, que a escolapromove, chama-se cavar o fosso entre ri-cos e pobres, para mais tarde, como diriaVieira no seu Sermão de Santo António aosPeixes, os maiores comerem os mais peque-

nos. Expressiva é também a frase de umadas canções de Schumann: «Aqueles quesão ignorantes são fáceis de conduzir.» Naverdade, quem não pensa acaba por baixaros olhos, caminhar em grupo, seguindo ospassos de quem o conduz, esquecendo-sede si próprio. Mas isto é um crime, fazercom que os alunos se esqueçam de si pró-prios, se anulem enquanto seres humanos,nunca reflictam sobre o que quer que seja.E depois admiramo-nos com o facto de osjovens não irem votar.Escreveu no jornal Expressoa esse propósito,dizendo que «assim se educa a obediência e apassividade». No seu entender, desde quandoestamos nessa via?Comecei a ensinar com 23 anos, em 1974--75, logo após o 25 de Abril, no Liceu D.João de Castro. No primeiro dia em quecheguei à sala de aula, os alunos, alguns de-les com idade próxima da minha, estavamtodos sentados com os pés em cima da car-teira a ler o jornal. Esta situação durou trêssemanas. Em casa pus mesmo a possibili-dade de desistir do ensino, porque achavaque não conseguiria resolver a situação. O programa iniciava-se com Os Maias, deEça de Queiroz, e até aí não houvera possi-bilidade de avançar com o estudo. Lem-brei-me então de Walt Whitman e, umamanhã, pegando no livro de Eça, pedi-lhesapenas que ouvissem os versos de um poe-ta americano: «Camarada, isto não é um li-vro. Quem isto toca, toca um homem.» Umdos alunos baixou o jornal e perguntou: «O que é que o gajo quer dizer com isso?» O certo é que de gajo passou a poeta, o diá-logo inicialmente ténue foi-se avoluman-do em troca de ideias e, como num acto demagia, os jornais foram-se baixando. De-pois desta introdução, que os alertou e sur-preendeu para a literatura e para o diálogoque poderiam manter com o escritor, ini-ciámos o estudo da obra queiroziana. E conseguiu resultados?Apesar da extrema indelicadeza dos alunosno início, pude no entanto constatar que sa-biam ler, escrever, com o mínimo de correc-ção, e interpretar. Nas décadas de oitenta enoventa, a situação foi-se gradualmente al-terando, e cada professor, na sua área de en-sino, ia sentindo as dificuldades na leitura,na escrita, na interpretação, na memoriza-

ção – tudo fruto do envolvimento do facili-tismo com o lúdico, cujo resultado era visí-vel na infantilização dos alunos e na sua qua-se incapacidade para pensar e esforçar-se noestudo. Finalmente, com a implementaçãodesta nova reforma em 2003, oficializou-sea mediocridade na escola, numa atitude dearrogância nunca experimentada, queanunciava o acto de pensar e de reagir, emesmo de desobedecer, como algo intolerá-vel. Por alguma razão se decidiu retirar dosprogramas Gil Vicente e o seu Auto da Índia,bem como o episódio do Velho do Restelo deOs Lusíadas. Uma outra forma de impedirque se pense é preencher todo o tempo dosalunos, num leque inqualificável de discipli-nas (15, no ensino básico), com horários demanhã à noite, na escola, sem tempo para sipróprios e para o estudo. Demagogicamen-te apresenta-se como modelo quem tenhauma vida cheia de acção, com uma agendacheia de coisas para fazer, logo, sem tempopara pensar.

Professores resignados e com medoO que se passa na escola pública é evidente-mente o reflexo do que se passa na socieda-de. Mas então e a responsabilidade dos profes-sores, de que falávamos no início? Acho que o problema número um se rela-ciona com a sua formação. Creio que mui-tos dos meus colegas se deixaram seduzirpelo discurso do «mundo real» e daí a ne-cessidade que sentiram de ver, por exem-plo, com regularidade o Big Brother para seenquadrarem bem no discurso e nos inte-resses dos seus alunos e discutir com eles oque iam vendo. A resignação é tambémuma atitude que impera. Na verdade, não

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prescindibilidade de um professor amar oque ensina, no meu caso, a Literatura, numambiente de afectividade e, simultanea-mente, de exigência. Só assim se consegui-rá motivar e interessar os alunos, seja qualfor o seu estatuto social, por autores que sepoderão tornar companheiros de caminhoe com os quais poderão dialogar, no silên-cio da leitura. Banido o verbo ensinar, osalunos só têm actualmente de adquiriraprendizagens e competências, tendo em vis-ta o mercado de trabalho. Daí a subestima-ção da Literatura, ignorada enquanto artee apresentada como um mero tipo de texto– em pé de igualdade com o texto pragmá-tico, informativo ou publicitário.

Quando diz que o verbo ensinar foi banido, es-tá a referir-se ao facto de ele ter sido banidodo discurso oficial?Sim, e também dos programas. Segundo es-se discurso, um professor não ensina, deveapenas «respeitar o discurso que os alunostrazem de casa», estar atento aos seus inte-resses, deixando-se estimular por eles. Estanova estratégia pedagógica foi apresentadacomo incontornável numa acção promovi-da pelo ME, em que estive presente enquan-to formadora, e que incidia sobre os objecti-vos da nova disciplina de Português, masca-rada sob o nome de Língua Portuguesa para,de forma, aparentemente natural, dissociarliteratura e língua, como se fosse possível.

Como interpreta isso?Como estratégia para obter um êxito rápidoe cumprir metas estatísticas. Com efeito, asnovas teorias pedagógicas (uma ofensa à no-breza da pedagogia) viciam os alunos no fa-cilitismo, cultivando a preguiça e a ignorân-cia e afastando-os do convívio consequentecom os textos literários (no caso do Portu-guês), cuja leitura agora se denomina recrea-tiva. Por outro, pretendem demonstrar aosprofessores que a situação se inverteu, ago-ra são os alunos que ensinam e definem asregras do jogo. Posso dar um exemplo: escre-vi, recentemente, um artigo no qual davaconta de uma experiência com alunos tra-balhadores-estudantes, do ensino nocturno,a propósito do estudo da poesia de Fernan-do Pessoa e heteronímia, em que associei,como me é habitual, a literatura, a pintura ea música. E a propósito da música (precisa-mente para mostrar que cada geração inovaem relação à anterior, mas dela também her-da ensinamentos), levei para a sala de aulaProkofiev e Shostakovich. Num comentário(que se pretendia elogioso) a esse artigo, sa-lientou-se a minha preparação para respon-der aos estímulos dos alunos, como se tives-sem sido eles a sugerir a inclusão da músicaclássica no estudo da poesia de FernandoPessoa. É evidente que os alunos, com assuas intervenções (uma regra que fica insti-tuída no primeiro dia de aulas), me fazem re-flectir sobre o modo de ensinar e sobre asmelhores estratégias a utilizar, mas não in-vertamos os papéis porque é um absurdo.

Treinar a não pensarO discurso oficial sobre a escola, embora apa-rente estar centrado nas necessidades domomento, dos alunos, é marcado pela urgên-cia política. Será que este discurso, sustenta-do na necessidade de novos programas eabordagens ao ensino, nomeadamente do Por-tuguês, corresponde às necessidades reaisdos alunos?

Exames«Não compreendocomo é que os professores dePortuguês aceitamcritérios de correc-ção em que os errosortográficos não são penalizados.»

Maus-tratos «Apagar aliteratura é viciar os alunos no facilitis-mo,cultivar a preguiça e a ignorância.É um atentado à pedagogia.»

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compreendo bem como é que os professo-res de Português aceitam critérios de cor-recção, de provas ou exames, em que os er-ros ortográficos, por exemplo, não são pe-nalizados. Ou em que a interpretação deum texto é desenvolvida com cruzes, ouverdadeiros e falsos. Ou em que a TLEBS[Terminologia Linguística para os EnsinosBásico e Secundário] continua a substituira gramática, complicando em vez de escla-recer. Sei que devo agradecer a compreen-são dos meus colegas de grupo, pois houveum ano em que pedi para me sobrecarre-garem com vigilâncias de exames porque,por uma questão de coerência, eu não acei-taria corrigir os exames do 12.º ano de Por-tuguês. E assim aconteceu. A par da resig-nação, existe o medo, agora agravado coma avaliação, nos moldes em que foi imposta(apesar das alterações), infelizmente com aanuência dos sindicatos.Sei que tem um conflito pendente com o presi-dente da Associação de Professores de Por-tuguês [APP].Saí da associação por discordar da formacomo foi gerido o seu papel de interlocuto-ra privilegiada do ME, juntamente com aAssociação de Professores de Linguística(APL) relativamente à elaboração dos no-

vos programas de Português. Não esquece-rei que o seu presidente defendeu que a Li-teratura deveria ser completamente reti-rada dos conteúdos programáticos. Porquea polémica foi muita, ficaram-se pelo apa-gamento dos autores clássicos, tendo Cesá-rio Verde reintegrado a lista de autores aestudar, depois de ter sido consideradotambém desnecessário. Ele, o anunciadorda modernidade e mestre de Pessoa e hete-rónimos!Considera que essas associações não são representativas da generalidade dos profes-sores?Exacto. Nem a APL é dona da língua portu-guesa nem a APP representa os professo-res de Português. Desconheço quantosprofessores estão inscritos na APP e a pa-gar quotas, mas certamente um milhar. Em2002, houve uma reunião para debater osnovos programas do secundário e a altera-ção do nome da disciplina de Português pa-ra «Língua Portuguesa», e a maioria dos as-sociados, presentes na sala, foi claramentecontra a subestimação da Literatura, o es-vaziamento dos conteúdos, o apagamentodos clássicos e a substituição do nome dadisciplina. Na base do relatório elaboradopor elementos da direcção da APP, O Ensi-

no e a Aprendizagem do Português na Transi-ção do Milénio, o padre António Vieira foiconsiderado um «chato» – mas chatos sãoos professores que não sabem falar de Viei-ra, porque nunca amaram a leitura dos seustextos.Acho extraordinário tal emanar de uma Asso-ciação de Professores de Português. Isso foi dito. Agora, Vieira, «o imperador dalíngua portuguesa», que interveio activa-mente em quase todo um século XVII, comodiplomata, orador, missionário e visionário,foi arrumado no texto argumentativo, jun-tamente com o discurso político. Não sendo essas associações representati-vas da maioria, como explica a passividade dosprofessores? O que se passa afinal nas esco-las?Os professores obedecem porque têm me-do. Houve colegas que não assinaram aspetições que elaborei em defesa do ensinoe da sua dignidade, confessando-me teremmedo das consequências. Outra situação éa que se prende com o exercício do poder,nomeadamente através do cargo de «pro-fessor titular», que só pode ter sido criadopara dividir os professores. Poderia terconcorrido a professora titular, e certa-mente que obteria a pomposa designação,

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porém, não aceitei fazê-lo. No entanto,quando fui ao sindicato pedir uma opinião,aconselharam-me a concorrer. Optei pelaminha consciência, mais importante doque o ME ou do que o sindicato, e deixei--me ficar como professora, ainda que metenham tentado assustar com possíveisconsequências. Seria negar-me, tanto maisque deveria zelar pelo cumprimento deprogramas que eu própria decidira não lec-cionar. Como é possível avaliar o desempe-nho de um professor com base em critériospouco objectivos e discricionários? Há játambém quem, para validar a sua compe-tência, acrescente ao nome a designaçãode «professor titular».Que ideias poderíamos lançar para um (imagi-nário) Plano Nacional de Salvação da EscolaPública? Por onde poderíamos começar?

Antes de mais, pelos conteúdos dos progra-mas, o que exigiria um debate sério, sem aarrogância que temos vindo a conhecer, umtrabalho rigoroso na sua planificação e deredacção límpida. É inadmissível que nãoexista um fio condutor na elaboração dosnovos programas ou que tenhamos de lerduas e três vezes o que está escrito, sem quecompreendamos o que se pretende. A sen-satez é outra atitude imprescindível na fei-tura dos programas, pois há sempre a ten-dência para os alongar em demasia e, no ca-so do Português, é preciso tempo paratrabalhar com os alunos a língua, a análisedo texto, a contextualização de um autor,implicando, a par da literatura, a pintura e amúsica, ou outras artes. Dever-se-ia tam-bém regressar ao estudo da gramática, ver-dadeira reflexão sobre a língua, e ao uso do

dicionário. Privilegiar, de novo, a literatura,enquanto arte da palavra e «mestra da vi-da», voltando a valorizar a contextualiza-ção no estudo de um autor e da sua obra. Pa-ra além da reavaliação dos programas, esva-ziados drasticamente dos seus conteúdospela Reforma de 2003, era necessário que aescola voltasse a ser um espaço de qualida-de, valorizando as capacidades dos alunos(curiosidade, desejo de saber, o pensar, oimaginar, entre outras) exaltando valoresque têm vindo a ser silenciados, como o es-forço, a força de vontade, o rigor, o trabalho,o brio e a alegria de vencer as dificuldadespara atingir um objectivo. Relevante seriaigualmente a escola voltar a privilegiar a re-lação ensinar-aprender, que em si contémdesafio, partilha, solidariedade, dádiva eamizade.

Fingimento «Quem acredita na qualidade do ensinodas Novas Oportunidades quando em três meses se conclui o 9.º anoe em seis meses o ensino secundário,10.º,11.º e 12.º anos?»

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nistros da Educação são professores univer-sitários que se limitam ao seu gabinete e aosinterlocutores que privilegiam, neste mo-mento e com relevância para as escolas supe-riores de educação, sociólogos e psicólogos.Não lhe parece que o que está a acontecer extravasa o país?Claro que sim. As ordens vêm de Bruxelas enós obedecemos acriticamente. Tenho lido

textos da OCDE sobre o ensino e o conteú-do de algumas disciplinas que se assemelhaao que aconteceu em Portugal. É nítido queo objectivo é anular nas pessoas a sua capa-cidade de pensar, daí o pouco interesse pe-las matérias de Humanidades ou o aligeirardos conteúdos das disciplinas de Ciências.Conduzidos, deixar-nos-emos seduzir peloconsumismo e pela ideia de um progressoprofundamente destruidor. O que se suge-riu para contornar o sentido da votação dopovo irlandês em relação ao Tratado de Lis-boa é o espelho da democracia na UE. Pen-sar está a tornar-se uma ousadia.Na sua opinião, em que ponto da decadênciaestamos?Penso que em matéria de educação já bate-mos no fundo, e teremos de responder pe-rante gerações de alunos (sobretudo osmais fragilizados pela sua própria situaçãofamiliar) vítimas de experiências, de teo-rias e de incompetências. Com efeito, «ofuturo não pode ser reservado só a alguns».Citaria também uma frase de Séneca, queme parece bem oportuna: «Errar é própriodos homens. Persistir no erro é próprio dosloucos.» Retomando o início da nossa conversa e to-mando como exemplo as culturas orientais

– muito baseadas na repetição paciente dosmodelos até ao momento em que os alunos setransformam na própria coisa que estão aaprender, precisamente porque se libertam de-les próprios –, não acha que poderíamos inspi-rar-nos, professores e educadores, nessesbons modelos de outras culturas?Há aspectos das culturas orientais que meseduzem, nomeadamente o culto da pa-ciência, essencial para se atingir a perfei-ção. Mas à paciência junta-se também ogosto pela contemplação, pelo silêncio e anecessidade de reflectir. Ora, na escola, porexemplo, a biblioteca passou a ser um espa-ço «multiusos», o que significa uma ausên-cia de silêncio, que é imprescindível na lei-tura ou no estudo. Acharia pois muito salu-tar que retirássemos ensinamentos deoutras culturas, nomeadamente das orien-tais. Na Europa, por exemplo, os velhos sãoprofundamente desrespeitados, aliás, amaioria das pessoas, actualmente, quer sereternamente jovem, mas um provérbio ára-be, largamente usado, diz: «Por cada velhoque morre, arde uma biblioteca.» Tambémé muito ocidental esta euforia de ter umaagenda sobrecarregada, uma estratégiabem trabalhada para impedir o acto de pen-sar, que exige tempo.«

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Estamos a destruir o futuro dos alunosLer é um processo encantatório que, se forcumprido com honestidade, com tempo, trans-forma a vida, precisamente porque toca o es-pírito das pessoas. Falo do texto literário, claro.O prazer da leitura nasceu em mim com odeslumbramento de ouvir contar as histó-rias de fadas na infância. A musicalidade dapalavra, o colorido das descrições, as emo-ções várias no acompanhar das aventurasdas personagens, de quem não conseguía-mos despegar-nos, porque com elas nosidentificávamos ou delas nos distanciáva-mos, tudo isso é eco da infância, que soa ho-je com a mesma nitidez e a mesma afeição.É esse prazer que a leitura sempre me pro-porcionou que procuro transmitir aos alu-nos, desafiando-os também a descobrir e asentir a companhia que é um livro e a ami-zade que criamos com o autor, ou com aspersonagens, e as transformações que emnós se podem dar, porque uma determina-da situação nos marcou profundamente.Daí defender que a literatura deve ser cen-tral no ensino do Português, porque um alu-no que leia Camões, Vieira, Garrett, Pessoa,Sophia, Vergílio Ferreira ou Saramago, nãoterá dificuldade alguma em ler e compreen-der um qualquer texto informativo ou prag-mático, ao contrário do que dizem os men-tores dos novos programas.Os alunos são evidentemente vítimas desteestado de coisas. Basta ver os que não conse-guem entrar nas universidades, que são cada

vez mais, e também aqueles que entram masque desistem ao fim do primeiro ano...Em nome da pedagogia, em nome dos inte-resses dos alunos e da utilização de estraté-gias que menorizam as suas capacidades,estamos a destruir o futuro dos alunos e apromover a desistência. Quem acreditarána qualidade do ensino das Novas Oportu-nidades, quando em três meses se conclui oterceiro ciclo do ensino básico (7.º, 8.º e 9.ºanos) ou em seis meses o ensino secundário(10.º, 11.º e 12º anos)? Uma inovação a traba-lhar para as estatísticas e a demonstrar umaprofunda falta de respeito pelos candidatosa esses novos cursos. Creio igualmente queos exames são necessários, e uma forma deexigência, semelhante a tantas outras que avida nos apresenta. E, neste campo, maisuma vez o ME quer facilitar, porque confor-me afirmou, muito convicto, o coordenadordo GAVE [Gabinete de Avaliação Educacio-nal], «os alunos têm direito ao êxito», igno-rando que o êxito se conquista, não se ofe-rece. Um exemplo flagrante da mediocrida-de que norteia o ME, não preocupado comos alunos, mas com a sua saída da escola,com o respectivo diploma e a avalancha denúmeros a melhorar as estatísticas.Os exames são tanto mais importantes quan-to são a única coisa que em termos de avalia-ção se pode opor à relação afectiva estabe-lecida entre os professores e os alunos. Osalunos têm de poder submeter-se a ser ava-liados também por professores que não os co-nhecem.

Assim acontecia anteriormente, no final dosvários ciclos de estudo. Eu tive essa expe-riência e ela constituiu uma aprendizageme um desafio benéficos. Actualmente a exi-gência é equiparada a traumatismo, e à par-tida os alunos são considerados uns incapa-zes. O que se pode esperar quando se racio-cina assim?No que respeita à avaliação dos professores,faz sentido ela ser assegurada pelos pares?Há muitas vozes discordantes...Sou a favor de uma avaliação, mas não nes-ta situação de promiscuidade. Não pode-mos ser avaliados por colegas, mas por al-guém exterior à escola, dentro da nossaárea de ensino. Porventura professoresuniversitários, conhecedores atentos dosprogramas escolares. Ser avaliados por co-legas, e ainda por cima da mesma escola, éinaceitável, mas há sempre quem aceite re-presentar estes papéis. Infelizmente, o en-sino tem vindo a ser deteriorado por polí-ticas inadequadas e insensatas, que têmdestruído o ensino público, transformadonuma manta de retalhos, desbotada, des-cuidada na combinação de cores e muitomal cosida. Quem, em abstracto, poderia ser um ministro daEducação capaz de inverter este ciclo de me-diocridade? Existe essa pessoa?Um ministro da Educação deveria ser umapessoa íntegra, culta, com experiência de en-sino e visão para lá da estatística. Deveriatambém saber ouvir, no caso, os professoresdo básico e secundário. Normalmente, os mi-

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Maria do Carmo Vieira (Lisboa,1952) licenciou-se em FilologiaRomânica pela Faculdade deLetras da Universidade deLisboa com média de 15 valores.Tem um mestrado em Literatu-ras Brasileira e Africana deLíngua Portuguesa (temáticade Literatura de Viagens) pelaFaculdade de Letras da Univer-sidade de Lisboa (com o qualobteve em 1996 a classificaçãode Muito Bom). Professora dePortuguês e de Francês há 33 anos, ensinou em váriasescolas secundárias, tendotambém sido assistente deLiteratura Africana de Expres-são Portuguesa na Faculdadede Letras da Universidade de Lisboa. Formadora deprofessores de Português,com um vasto currículo emmatéria de intervenção cultural

e cívica na comunidade, Carmo Vieira assinou inúmerosartigos de opinião na imprensaportuguesa, alguns polémicos,sobre as sucessivas reformascurriculares, sendo actual-mente uma das vozes maisdiscordantes relativamente às mais recentes reformasencetadas pelo Ministério daEducação, com especialenfoque para a crescentesubestimação da Literatura no ensino do Português e paraas novas metodologias deavaliação, tanto de alunoscomo de professores. Estemês, Carmo Vieira lança, com achancela da Quimera Editores,o livro Arte, Mestra da Vida(reflexão sobre a escolaactual). Possui uma página na internet no endereçohttp://ensino.paginas.sapo.pt.

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Medo«Os professores que não assinaramas petições em defesa da dignidadedo ensino confes-saram não o terfeito por recearem as consequências.»