Maria Emília C. C. Lima e Luciana C....

5
39 QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 21, MAIO 2005 Idéias estruturadoras do pensamento químico A seção “Pesquisa no Ensino de Química” inclui investigações sobre problemas no ensino de Química, com explicitação dos fundamentos teóricos e procedimentos metodológicos adotados na análise de resultados. PESQUISA NO ENSINO DE QUÍMICA Recebido em 24/8/04, aceito em 30/3/05 N este artigo, apresentamos uma contribuição ao debate no campo do currículo de Quí- mica, colocando em anexo algumas idéias estruturadoras do pensamento químico e seus respectivos níveis de complexidade tendo em vista sua abordagem em um curso introdutório de Química. As idéias que apresentaremos como estruturadoras da Química fa- zem parte do processo de amadure- cimento do grupo APEC – Ação e Pesquisa em Ensino de Ciências –, que vem propondo um conjunto de mudanças educacionais envolvendo metas curriculares, conteúdos e metodologias de ensino, avaliação dos impactos dessas inovações na formação dos estudantes e no desen- volvimento profissional docente. Nos- so esforço em compreender as idéias estruturadoras do pensamento cientí- fico vem sendo explicitado por meio de artigos (Lima e Aguiar Jr., 2000; APEC, 2003), comunicações em eventos (Lima et al., 1997), publica- ção de livros voltados para a forma- ção de professores (Lima et al., 2004) Maria Emília C. C. Lima e Luciana C. Barboza A necessidade de se definir algumas idéias estruturadoras de uma disciplina tem sido freqüentemente apresentada a nós formadores e plenamente justificada e compreendida. Mas o que se pretende com essas demandas? O que querem de nós formadores quando nos abordam sobre tais idéias e a partir de quais critérios podemos elegê-las? Supondo que saibamos apontar algumas delas, há ainda uma outra questão igualmente importante: como organizar essas idéias num currículo de Química? Essas são algumas questões discutidas neste artigo. idéias estruturadoras, currículo, ensino de Química e de materiais didáticos para alunos (APEC, 2004). Atualmente, o grupo APEC está envolvido num projeto jun- to à Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais, visando propor e fomentar a discussão junto aos docentes sobre conteúdos bá- sicos comuns. Em 1995, por ocasião do VII ECO- DEQC - Encontro Centro-Oeste de De- bates sobre o Ensino de Química e Ciências, realizado na Escola Técnica Federal de Goiás, a professora Roseli Pacheco Schnetzler proferiu uma palestra intitulada “A importância do estudo e da discussão dos conceitos fundamentais em Quí- mica e em Ciências”. Recorrendo à literatura, encontramos em diferentes autores a mesma preocupação de se eleger aspectos importantes para se- rem ensinados (Pozo et al., 1991; Mor- timer, 1995a; Amaral, 1997; Gomes, 1998; Machado, 1999). Portanto, trata-se de uma preocupação antiga que continua em pauta. O problema disso tudo é quando se atualizar nas modas torna-se mero exercício teórico com pouca ou ne- nhuma relação com a atividade do- cente. Contudo, há que se considerar que se essa preocu- pação continua atual é porque não a te- mos resolvida ou porque as soluções encontradas não se tornaram ainda de domínio comum. Alguns movimen- tos que estão ocorrendo são respon- sáveis pela atualização dessas inda- gações: as avaliações do SAEB – Sistema de Avaliação do Ensino Básico e do ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio; as revisões curri- culares promovidas pelas Secretarias de Governo dos Estados 1 e, atual- mente, os exames de certificação de professores 2 . Via de regra, as “grandes idéias” da Ciência continuam se perdendo na massa de detalhes, onde cada lição se desenvolve baseada na anterior, por acréscimo de informações. O atual ensino de Química trata de um número excessivo de informações justapostas. Como as escolas, os Há tempos, diferentes autores têm investigado conceitos fundamentais em Química e em Ciências, focando aspectos importantes para serem ensinados

Transcript of Maria Emília C. C. Lima e Luciana C....

Page 1: Maria Emília C. C. Lima e Luciana C. Barbozawebeduc.mec.gov.br/portaldoprofessor/quimica/sbq/... · exercício teórico com pouca ou ne-nhuma relação com a atividade do-cente.

39

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 21, MAIO 2005Idéias estruturadoras do pensamento químico

A seção “Pesquisa no Ensino de Química” inclui investigações sobre problemas no ensino de Química, com explicitaçãodos fundamentos teóricos e procedimentos metodológicos adotados na análise de resultados.

PESQUISA NO ENSINO DE QUÍMICA

Recebido em 24/8/04, aceito em 30/3/05

��

N este artigo, apresentamosuma contribuição ao debateno campo do currículo de Quí-

mica, colocando em anexo algumasidéias estruturadoras do pensamentoquímico e seus respectivos níveis decomplexidade tendo em vista suaabordagem em um curso introdutóriode Química.

As idéias que apresentaremoscomo estruturadoras da Química fa-zem parte do processo de amadure-cimento do grupo APEC – Ação ePesquisa em Ensino de Ciências –,que vem propondo um conjunto demudanças educacionais envolvendometas curriculares, conteúdos emetodologias de ensino, avaliaçãodos impactos dessas inovações naformação dos estudantes e no desen-volvimento profissional docente. Nos-so esforço em compreender as idéiasestruturadoras do pensamento cientí-fico vem sendo explicitado por meiode artigos (Lima e Aguiar Jr., 2000;APEC, 2003), comunicações emeventos (Lima et al., 1997), publica-ção de livros voltados para a forma-ção de professores (Lima et al., 2004)

Maria Emília C. C. Lima e Luciana C. Barboza

A necessidade de se definir algumas idéias estruturadoras de uma disciplina tem sido freqüentemente apresentadaa nós formadores e plenamente justificada e compreendida. Mas o que se pretende com essas demandas? O quequerem de nós formadores quando nos abordam sobre tais idéias e a partir de quais critérios podemos elegê-las?Supondo que saibamos apontar algumas delas, há ainda uma outra questão igualmente importante: como organizaressas idéias num currículo de Química? Essas são algumas questões discutidas neste artigo.

idéias estruturadoras, currículo, ensino de Química

e de materiais didáticos para alunos(APEC, 2004). Atualmente, o grupoAPEC está envolvido num projeto jun-to à Secretaria Estadual de Educaçãode Minas Gerais, visando propor efomentar a discussãojunto aos docentessobre conteúdos bá-sicos comuns.

Em 1995, porocasião do VII ECO-DEQC - EncontroCentro-Oeste de De-bates sobre o Ensinode Química e Ciências, realizado naEscola Técnica Federal de Goiás, aprofessora Roseli Pacheco Schnetzlerproferiu uma palestra intitulada “Aimportância do estudo e da discussãodos conceitos fundamentais em Quí-mica e em Ciências”. Recorrendo àliteratura, encontramos em diferentesautores a mesma preocupação de seeleger aspectos importantes para se-rem ensinados (Pozo et al., 1991; Mor-timer, 1995a; Amaral, 1997; Gomes,1998; Machado, 1999). Portanto,trata-se de uma preocupação antigaque continua em pauta.

O problema disso tudo é quandose atualizar nas modas torna-se meroexercício teórico com pouca ou ne-nhuma relação com a atividade do-cente. Contudo, há que se considerar

que se essa preocu-pação continua atualé porque não a te-mos resolvida ouporque as soluçõesencontradas não setornaram ainda dedomínio comum.

Alguns movimen-tos que estão ocorrendo são respon-sáveis pela atualização dessas inda-gações: as avaliações do SAEB –Sistema de Avaliação do EnsinoBásico e do ENEM – Exame Nacionaldo Ensino Médio; as revisões curri-culares promovidas pelas Secretariasde Governo dos Estados1 e, atual-mente, os exames de certificação deprofessores2.

Via de regra, as “grandes idéias”da Ciência continuam se perdendo namassa de detalhes, onde cada liçãose desenvolve baseada na anterior,por acréscimo de informações. Oatual ensino de Química trata de umnúmero excessivo de informaçõesjustapostas. Como as escolas, os

Há tempos, diferentesautores têm investigado

conceitos fundamentais emQuímica e em Ciências,

focando aspectosimportantes para serem

ensinados

Page 2: Maria Emília C. C. Lima e Luciana C. Barbozawebeduc.mec.gov.br/portaldoprofessor/quimica/sbq/... · exercício teórico com pouca ou ne-nhuma relação com a atividade do-cente.

40

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 21, MAIO 2005Idéias estruturadoras do pensamento químico

estudantes e os professores são mui-to diversos nos seus propósitos, po-demos compreender tanto as resis-tências contra uma clara redução doque se ensina quanto uma motivaçãopara se promover uma qualificaçãode idéias básicas e formadoras dopensamento científico (Millar, 1996;Lima e Aguiar Jr., 2000). Nesse últi-mo caso, entendemos que as idéiasestruturadoras são aquelas que po-tencializam nosso pensamento e nos-sa capacidade de relacionar, sinteti-zar, propor explicações a partirdaquilo que já se conhece.

Como se não bastassem as insis-tentes perguntas sobre os “concei-tos” estruturadores, para completarnossa inquietação passaram a inda-gar também sobre os “conceitos”estruturantes. Estão sendo chamadosestruturantes aquelas idéias que gra-vitam em torno das estruturadoras.Por exemplo: considerando que aidéia de reações é estruturadora dopensamento químico, a rapidez deuma reação, a extensão em que elaocorre, seus aspectos cinéticos etermodinâmicos são estruturantes daidéia de reações. Entendemos assim!

Mas antes de prosseguirmos nadiscussão do que ensinar, vamos re-tomar duas velhas e pertinentesquestões.

Por que ensinar Química? Para quemensinar?

Nas últimas décadas, posiçõessocioconstrutivistas têm se afirmadocomo perspectivas de ensino relevan-tes pelo discurso pedagógico. A es-cola está sendo chamada a respon-der de modo afirmativo pela sociali-zação dos estudantes no contextocultural de que fazem parte. Dessemodo, é razoável pensar em umensino de Química para todos os es-tudantes da Educação Básica, comoparte da educação geral de prepa-ração para a vida. A vida inclui, paramuitos, o acesso ao curso superior eàs carreiras ditas científicas, mas comcerteza é muito mais que isso.

Aprender Ciências está para alémdo aprendizado do que se consagrouchamar de conteúdos escolares: en-volve uma compreensão sobre aCiência como produto social, suas

formas de inquirir o mundo e de vali-dar os conhecimentos produzidos,bem como sobre os interesses envol-vidos (APEC, 2003).

Uma das dimensões formativas –todas igualmente importantes – a sercontemplada no ensino de Ciênciasé a da segurança, tanto pessoal e so-cial quanto emocional. A segundadimensão é a da autonomia, que visao desenvolvimento pessoal de todosos estudantes, provendo-os de ferra-mentas para o pensar e o agir de mo-do informado e responsável nummundo cada vez mais permeado pelaCiência e a tecnologia. Para isto, oensino de Ciências demanda umcompromisso com os aspectos cientí-ficos mais remotos e abstratos e,também, com a dimensão tecnoló-gica, mais prática e aplicável. Apesardas questões gerais, de ordem cien-tífica e filosófica, serem mais distantesdas vivências dos estudantes, a pre-sença delas no currículo justifica-sepela necessidade de promover umacompreensão do que é a Ciência ede como o conhecimento científico in-terfere em nossas relações com omundo natural, com o mundo cons-truído e com as outras pessoas.

Que idéias estruturam o pensamentoquímico?

É comum no ensino da Químicadarmos uma excessiva importância ànomenclatura das substâncias, àsrepresentações de suas estruturas eàs equações químicas. Fazemos issoem detrimento da compreensão dosignificado dos fenômenos. É comose os nomes das coisas antecedes-sem ou substituíssem sua compreen-são, opção que enfatiza as classifica-ções e a memorização de definiçõese processos. Sem muito sucesso,esperamos que assim os estudantesconsigam estabelecer relações entreas teorias da Química e o comporta-mento dos materiais.

Embora façamos a crítica à inver-são de prioridades quando se tomao nome das substâncias como condi-ção para se ensinar reações, isto nãosignifica desconsiderar o valor doaprendizado de nomes e fórmulas dealgumas substâncias. Aliás, associaro conceito de substância à existência

de uma fórmula representa uma pri-meira aquisição desse conceito. Aposse da representação dos fenôme-nos através do uso de fórmulas, no-mes e equações, na medida em quevai se dando ao longo de todo oaprendizado da Química, é mediaçãopara o pensamento e a comunicação.As fórmulas constituem um modo decomunicação universal e, além disso,permitem representar as substânciasde modo mais rápido e resumido.

Uma outra crítica que fazemos équanto ao estudo da classificaçãoperiódica dos elementos como tópicode conteúdo e objeto de memoriza-ção. Ao contrário disso, pensamos aclassificação periódica como ferra-menta de trabalho. Saber consultá-lasó se aprende consultando, o quenão impede que seu uso seja siste-matizado em determinados momen-tos do curso. Um contexto interessan-te para isto é o estudo dos nutrientese de alguns materiais bastante co-muns na vida dos estudantes, já nasprimeiras séries do segundo ciclo doEnsino Fundamental.

Mas como podemos identificaralgumas das idéias que estruturam opensamento químico e que devemser tomadas como metas de ensino?

Compreender o objeto de umadisciplina pode auxiliar na definiçãodaquilo que organiza o pensamentodela. Qual é o objeto de atenção daQuímica?

O objeto e meta principal da Quí-mica é separar as diferentes substân-cias que participam da composiçãodos corpos; examinar cada um deles,separadamente; descobrir suas pro-priedades e relações; decomportambém essas substâncias, se pos-sível; compará-las entre si e combiná-las com outras; reuni-las novamentenum só corpo, de forma a reproduzirnovamente o composto original comtodas as suas propriedades; ou mes-mo produzir novos compostos quenunca tenham existido entre as obrasda natureza, a partir de misturas deoutras substâncias diferentementecombinadas (Encyclopaedia Britanni-ca, 1768-1771).

A partir dessa definição é possívelinferir que, em linhas gerais, a Quími-ca se dedica ao estudo dos materiais,

Page 3: Maria Emília C. C. Lima e Luciana C. Barbozawebeduc.mec.gov.br/portaldoprofessor/quimica/sbq/... · exercício teórico com pouca ou ne-nhuma relação com a atividade do-cente.

41

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 21, MAIO 2005Idéias estruturadoras do pensamento químico

suas propriedades e transformações.Convivemos diariamente com mate-riais constituídos por substâncias,,,,,que são objeto de estudo da Química.Na natureza, os materiais se encon-tram misturados, como a água, o leite,o sangue e o solo. Daí a importânciapara a Química de se conhecer osprocessos de separação de compo-nentes de misturas, bem como aspropriedades das substâncias emisturas.

A relevância dese estudar os velhose os novos materiaispode ser justificadaconsiderando queuma série de subs-tâncias que existemnão são naturalmen-te encontradas. Alémdo mais, a escassezde recursos naturais,aliada às questõesecológicas e am-bientais, também justifica o investi-mento na produção de novos mate-riais.

Desde o primeiro ciclo do EnsinoFundamental é razoável introduzir umestudo da Química em circunstânciasconcretas da vida das crianças, for-mulado em termos descritivos e quali-tativos, de modo a prover exemplose evidências específicos sobre adiversidade dos materiais. Um estudoconcreto das substâncias e misturaspode ser feito a partir dos diferentessignificados atribuídos para a águapura, água potável e “água dos quí-micos” (H2O), como algumas pes-soas se referem (Lima et al., 2004).

O estudo inicial dos materiais po-de se dar por meio do reconheci-mento de que os materiais são diver-sos nas suas propriedades e usos.Progressivamente, a compreensãodas propriedades e do comporta-mento dos materiais se desloca paraa proposição de modelos represen-tativos da estrutura interna dos mes-mos. São os modelos de constituiçãoe de interação das partículas que per-mitem um entendimento das transfor-mações dos materiais. Conhecendoas propriedades dos materiais,podemos falar sobre as transforma-ções às que eles estão sujeitos,

culminando com a teoria de ligações,que aprofunda e amplia nossa capa-cidade de compreender um mundode materiais.

É importante eleger como meta deensino idéias que permitam aos estu-dantes estabelecerem maiores nexosentre outros conceitos ou idéias, porfuncionarem como “aglutinadores ló-gicos”, isto é, sintetizadores de outrossaberes (Pozo et al., 1991). Uma teo-

ria de ligações, porexemplo, é uma idéiapoderosa nesse sen-tido, pois permiteexplicar as diferentespropriedades dosmateriais, prever pro-dutos e estequiome-tria de reações. Mas,nem por isso consi-deramos que se de-va iniciar um cursode Química por aí.

As reações cons-tituem o centro da atenção dos quí-micos. Muitas delas são bastantefamiliares no nosso dia-a-dia, o quenão significa que sejam triviais de se-rem aprendidas. Algumas outraselaborações e aplicações do conhe-cimento químico em áreas afins sãotambém importantes, como é o casodas reações químicas envolvidas emprocessos biológicos, de modo queo estudante possa perceber que adigestão proporciona materiais paraa construção de novos tecidos, ouque plantas aumentam seu volumepor meio de reações químicas usan-do materiais naturais do seu ambien-te. O ciclo de alguns materiais – comooxigênio e carbono da atmosfera – étambém uma idéia importante, quepode ser abordada dentro de(eco)sistemas fechados (Millar, 1996).

O modelo atômico-molecular damatéria, com ênfase na compreensãode reações químicas como rearranjosda matéria, é, segundo diferentesautores, estruturador do pensamentoquímico (Nakhleh, 1992; Millar, 1996;Mortimer, 1995b).

Os conceitos [...] - átomo, molé-cula, reação química - devem ser par-te do instrumental mental de qualqueraluno(a) ao deixar a escola. Eles sãoconceitos chave que ajudam a cons-

truir um modelo grosseiro de váriassituações, por exemplo, o próprio am-biente de trabalho. Esses conceitosnos capacitam a formar um quadrogeral e proporcionam uma base parainvestigações posteriores (Anders-son, 1986).

Muitos profissionais não enten-dem a importância que conferimos àmodelagem, seja aos modelos domundo muito grande – objeto daAstronomia –, seja aos do muito pe-queno, aos quais a Química se atém.Acreditamos que o objetivo de se in-cluir um modelo científico no currículonão se restringe à utilidade dele, mastambém ao papel cultural que desem-penha, como é o caso das idéiasrelacionadas com o sistema solar.

...essas idéias são produtosculturais de beleza e signifi-cância e seu conhecimento ecompreensão é enriquecedorda vida. É parte da introduçãoao conhecimento sobre quemsomos e o tipo de universo quehabitamos. Assim também,embora de um modo diferente,é o conhecimento da genéticae hereditariedade e da evolu-ção. (Millar, 1996)

A construção de modelos peloestudante, embora seja raramenteutilizada em situações do cotidiano,é muito importante não só como re-curso para compreender e explicar osfenômenos estudados como, tam-bém, por corresponder a um determi-nado esforço intelectual que está nocerne do trabalho científico. Compre-ender, por exemplo, os efeitos dapoluição de automóveis, depende deuma compreensão de um modelocientífico de reações.

O estudante, de posse de expli-cações macroscópicas de váriosfenômenos, pode incrementar seuentendimento sobre a natureza inter-na dos materiais, relacionando-osinicialmente a um modelo de partícu-las. Outras aquisições importantes apartir da construção de modelos departículas estão relacionadas com aprópria gênese e desenvolvimento daQuímica enquanto ciência, bem comocom o desenvolvimento da criativi-dade dos estudantes.

A construção de modelospelo estudante, raramenteutilizada em situações do

cotidiano, é muitoimportante não só como

recurso para compreendere explicar os fenômenos

estudados como, também,por corresponder a umdeterminado esforço

intelectual que está nocerne do trabalho científico

Page 4: Maria Emília C. C. Lima e Luciana C. Barbozawebeduc.mec.gov.br/portaldoprofessor/quimica/sbq/... · exercício teórico com pouca ou ne-nhuma relação com a atividade do-cente.

42

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 21, MAIO 2005Idéias estruturadoras do pensamento químico

Ao se pensar o currículo de Quí-mica, é igualmente importante darênfase à produção científica comoempreendimento social e aos modosorientadores da investigação e davalidação do conhecimento produzi-do. Abordar a Ciência como empre-endimento social pode se dar peloestabelecimento de conexões entreCiência, tecnologia e sociedade. Otermo tecnologia é altamente polissê-mico: pode ser compreendido comoaplicação da Ciência; artefatos; pro-cessos e dispositivos humanos paraa produção de artefatos; processosou práticas humanas em que osartefatos são usados; domínio deuma técnica moderna; campo de tra-balho e campo de estudo (Santos,2001). O que nos interessa mesmo éque os estudantes compreendamque as tecnologias envolvem esco-lhas, disputas financeiras, opçõespessoais, valores estéticos, éticos,políticos, mercadológicos, ambien-tais, culturais etc. Que elas são açõeshumanas orientadas por diferentesfins. Desse modo, há uma relação ínti-ma e permanente entre a abordagemda Ciência e os modos de vida dasociedade nos seus diferentes tem-

pos e lugares. Podemos pensar, porexemplo, nos novos e velhos mate-riais, suas propriedades, origens eusos pela humanidade.

Aprender Ciências pressupõe co-nhecer, também, alguns processosde trabalho (a arte de se aproximarda produção do conhecimento cientí-fico), leis e princípios que regulam cer-tos fenômenos, modelos explicativosda realidade, ferramentas de trabalho(instrumentos de trabalho) etc.

Em sínteseEleger algumas idéias estrutura-

doras do pensamento é sem dúvidauma tarefa importante. Orienta cami-nhos, focaliza atenções e organizanosso trabalho docente. Mas isso épouco, pois ensinar Ciências é maisque ensinar conceitos, leis, teorias,modelos e princípios. Envolve, tam-bém, procedimentos da ordem do sa-ber fazer, atitudes da ordem do sa-ber ser e do conviver em cooperação,com tolerância, responsabilidade esolidariedade social. Envolve aindauma necessária compreensão decomo a Ciência é produzida, a quemela tem servido e de porque ela temsido tão valorizada em nossa socie-

dade.Para atingir essa meta, a Ciência

precisa ser caracterizada como umaatividade humana, histórica e social-mente construída. E, também, comoprática cultural, na medida em quebusca construir explicações confiá-veis sobre o mundo, a partir de proce-dimentos próprios, da argumentação,do debate e da divulgação de idéias.

Notas1. Ao longo do ano de 2004, o Pro-

jeto de Desenvolvimento Profissional(PDP) da SEE-MG discutiu uma pro-posta curricular de ConteúdosBásicos Comuns (CBC) para cadadisciplina dos ensinos Fundamentale Médio.

2. Sobre os exames de certifica-ção, ver, por exemplo, entrevista comMaria José Ferez, na Revista Presen-ça Pedagógica n. 55, jan/fev de 2004.

Maria Emília C.C. Lima ([email protected]),licenciada em Química e mestre em Educação pelaUFMG, doutora em Educação pela Unicamp, éprofessora de Didática de Ciências e de Química naFaE – UFMG. Luciana C. Barboza ([email protected]), licenciada em Química pela UFMG,é mestranda em Ensino de Ciências (Química) naUSP.

Referências bibliográficasAMARAL, L.O. Reações químicas, pro-

porções definidas & cálculo estequio-métrico: Uma discussão sobre ensino.Belo Horizonte: mimeografado, 1997.

ANDERSSON, B. Pupils’ explanationsof some aspects of chemical reactions.Studies in Science Education, v. 70, p.549-563, 1986.

APEC – AÇÃO E PESQUISA EM ENSI-NO DE CIÊNCIAS. Por um novo currículode Ciências voltado para as necessi-dades de nosso tempo. Presença Peda-gógica, v. 9, n. 51, p. 43-55, 2003.

APEC - AÇÃO E PESQUISA EM ENSI-NO DE CIÊNCIAS. Construindo cons-ciências. São Paulo: Scipione, 2004.

ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Edin-burgh: Society of Gentlemen in Scotland,publicada entre 1768 e 1771.

GOMES, L.A.K. Materiais: Foco dosestudos em Química. Química Nova naEscola, n. 8, p. 15-18, 1998.

LIMA, M.E.C.C.; AGUIAR Jr., O.G. eBRAGA, S.A.M. A construção de umcurrículo de Ciências para a 5a a 8a sériesdo Ensino Fundamental: Um trabalho deparceria FAE-Centro Pedagógico. Em:

MOREIRA, M.A. et al. (Orgs.). Atas do IEncontro Nacional de Pesquisa em Ensi-no de Ciências (Águas de Lindóia – SP).Porto Alegre: Instituto de Física daUFRGS, 1997. p. 357-365.

LIMA, M.E.C.C. e AGUIAR Jr., O. Ciên-cias: Física e Química no Ensino Funda-mental. Presença Pedagógica, v. 6, n. 31,p. 39-49, 2000.

LIMA, M.E.C.C.; BRAGA, S.A.M. eAGUIAR Jr., O. Aprender Ciências: Ummundo de materiais – Livro do aluno e livrodo professor. 2ª ed. Belo Horizonte: Edi-tora da UFMG, 2004.

MACHADO, A.H. Aula de Química: Dis-curso e conhecimento. Ijuí: Unijuí, 1999.

MILLAR, R. Towards a science curricu-lum for public understanding. School Sci-ence Review, v. 77, n. 280, p. 7-18, 1996.

MORTIMER, E.F. O ensino de Químicae Ciências e a problemática conceitual.Palestra de abertura do VII EncontroCentro-Oeste de Debates sobre Ensino deQuímica e Ciências (VII ECODEQC). Goiâ-nia: Escola Técnica Federal de Goiás (mi-meografado), 1995a.

MORTIMER, E.F. Concepções atomis-tas dos estudantes. Química Nova na Es-cola, n. 1, p. 23-26, 1995b.

NAKHLEH, M.B. Por que alguns estu-dantes não aprendem Química?Concepções alternativas em Química.Trad. L.O.F. Amaral. Publicadooriginalmente (em Inglês) em: Journalof Chemical Education, v. 69, p. 191-196, 1992.

POZO, J.I.; GÓMEZ, M.A.; LIMÓN, M.e SANZ, A. Procesos cognitivos en lacomprensión de la Ciencia. Las ideas delos adolescentes sobre la Química. Ma-drid: Centro de Publicaciones del Minis-terio de Educación y Ciencia, 1991.

SANTOS, M.E.V.M. Desafios pedagó-gicos para o século XXI. Lisboa: LivrosHorizonte, 2000.

Para saber maisLIMA, M.E.C.C. e AGUIAR Jr., O. Ensi-

nar ciências. Presença Pedagógica, v. 6,n. 33, p. 90-92, 2000.

MARTINS, C.M.; PAULA, H.F.; LIMA,M.E.C.C.; SILVA, N.S.; AGUIAR Jr., O. eBRAGA, S.M. Uma proposta de reformu-lação do currículo de Ciências para o 2ºciclo do Ensino Fundamental. Belo Hori-zonte: Secretaria de Estado de Educa-ção de MG, 1998.

Page 5: Maria Emília C. C. Lima e Luciana C. Barbozawebeduc.mec.gov.br/portaldoprofessor/quimica/sbq/... · exercício teórico com pouca ou ne-nhuma relação com a atividade do-cente.

43

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 21, MAIO 2005Idéias estruturadoras do pensamento químico

O mundo é diverso e se transforma.Nós construímos modelos para explicaressas transformações e diversidade.

Recursos cognitivos

A - Saber1. Constituição e organização dos

materiais• Misturas e substâncias• Substâncias simples e compostas• Estados físicos dos materiais e

suas mudanças• Modelo de partículas2. Propriedades específicas dos ma-

teriais• Processos de separação dos

componentes das misturas• Identificação e uso de materiais• Modelos explicativos das proprie-

dades dos materiais3.Transformações dos materiais• Evidências de reações• O que muda e o que se conserva• Aspectos cinéticos e termodinâ-

micos• Extensão de ocorrência• Compromisso entre produtos e

reagentes

B - Saber-fazer ou procedimentais• Identificação de materiais através

de testes simples• Realização de medidas de massa,

volume, densidade e de TF e TE• Construção e leitura de gráficos e

tabelas• Comunicação de idéias através de

diversos instrumentos• Extrapolação de dados, inferên-

cias e proposição de modelosexplicativos

• Descrição de eventos• Análise e sistematização de dados

e informações• Comparação de sistemas• Seleção de propriedades na iden-

tificação de materiais• Associação de propriedades dos

materiais com os seus usos• Controle de variáveis

C - Saber ser ou atitudinais• Cooperação com o outro, disponi-

bilidade e abertura para o debate• Respeito à vida, pelo outro e pelo

ambiente• Reflexão e criticidade frente ao mun-

do• Inventividade e tolerância com os

modos alheios de ver e de explicaro mundo

• Indagação frente ao inusitado• Estranheza e gosto pelo desconhe-

cido• Valorização estética da Ciência co-

mo um outro modo de ver e de serelacionar com o mundo

Níveis de entendimento de algumasidéias que fundamentam opensamento químico

A - Diversidade e propriedades dosmateriais

Compreender que:• O mundo é diverso nos seres vivos

e nos materiais que o compõem• Essa diversidade tem uma história

que resulta de processos comple-xos de transformações

• O homem promove modificaçõesno mundo

• O reconhecimento da diversidadede materiais passa pelo reconheci-mento da diversidade de suas pro-priedades

• Materiais diferentes possuem pro-priedades diferentes

• Materiais diferentes têm usos dife-rentes

• Os materiais se encontram mistu-rados na natureza

• Separar materiais envolve proces-sos diversos e leva a graus de pure-za diversos

• A pureza de um material é depen-dente dos fins a que se destinamtais materiais

• Os processos de separação decomponentes de misturas depen-dem das propriedades de seuscomponentes

• As propriedades das misturas de-pendem das proporções dos com-ponentes envolvidos

• As substâncias têm fórmulas e asmisturas não têm

B - Transformação dos materiais• Os materiais se transformam

• Essas transformações podem serpercebidas macroscopicamente

• As transformações envolvem ener-gia

• Os materiais formados numa rea-ção têm fórmulas diferentes, masos elementos se mantêm os mes-mos

• Materiais diferentes têm proprie-dades diferentes

• Ao pesarmos um sistema inicial efinal podemos constatar a lei daconservação da massa se a rea-ção não envolver componentesgasosos

• Em sistemas fechados, as mas-sas se conservam porque os ele-mentos são os mesmos

• A rapidez de uma reação dependede alguns fatores como: superfíciede contato, temperatura e adiçãoou não de substâncias catalisa-doras

• Existem catalisadores inorgânicose biológicos

C - Modelo corpuscular• Nas reações químicas há algo que

muda e algo que permanece• Todos os materiais são formados

de partículas muito pequenas• As partículas são demasiadamen-

te pequenas para serem vistas aomicroscópio

• Entre as partículas há espaços va-zios

• As partículas que constituem osmateriais sólidos apresentam ummovimento vibracional, enquantoque os líquidos e gases apresen-tam, também, movimentos de ro-tação e translação, isto é, se mo-vem em todas as direções

• Partículas diferentes se movimen-tam com velocidades diferentes

• Quanto mais elevada é a tempe-ratura de um sistema maior será avelocidade com que as partículasse movimentam

• As partículas de um sistema emequilíbrio térmico têm todas amesma energia cinética média

• As partículas interagem entre si• A formação de uma nova substân-

cia resulta da combinação de ti-pos distintos de partículas

Anexo: Idéias estruturadoras do pensamento químico

Abstract: Chemical Thinking Structuralizing Ideas: A Contribution to the Debate – The necessity of defining some structuralizing ideas of a subject has been frequently posed to us formers, beingplainly justified and understood. But what is looked for by such demands? What is wanted from us formers when we are approached on such ideas and based on what criteria can we elect them?Assuming that we can point some of them out, there is still another equally important question: how to organize these ideas into a chemistry curriculum? These are some of the questions discussedin this paper.Keywords: structuralizing ideas, curriculum, chemistry teaching