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34 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL SERTÃO, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES NO CENTRO-OESTE Maria Geralda de Almeida Discute-se o imaginário e as representações presentes na construção dos sertões, ilus- trando com uma trajetória das diversas representações que foram feitas sobre o Centro-Oeste. As identidades sertanejas emergem com a relação com o outro e com a natureza diversa. Po- rém, ressalta-se que aquelas esboçadas sobre os sertanejos são dinâmicas e podem se mesclar. São múltiplas. I A etnoterritorialidade do sertanejo do Centro-Oeste é o cerne para compreen- der o sertão a partir de suas representa- ções associadas ao bioma Cerrado. Para tanto, serão evidenciadas as concepções de sertão e as dimensões culturais cons- truídas “no mundo rústico, sertão, onde estariam nossas raízes e nossa autentici- dade”, conforme nos lembra Martins (2000, p. 28), para entender esse sertanejo e, sob essa perspectiva, compreender a nossa essência brasileira. Claval (1995) clareia essa discussão ao afirmar que é pela cultura que homens e mulheres fazem a sua mediação com o mun- do, constroem um modo de vida particular e se “enraízam” no território. Há, assim, uma herança cultural que permeia a relação com o território. E a identidade territorial do ser- tanejo aparece como indispensável para a existência e a manutenção da biodiversidade e do horizonte de vida do sertão brasileiro. No século XVIII, surgiu um interesse pelo sertão a fim de descobrir o que a ter- ra incógnita ainda poderia oferecer como recursos. Naquele período, havia um ca- minho que cruzava o Planalto Central até Mato Grosso – era o mais extenso da época colonial, conhecido como a Estrada Geral do Sertão, e confundia-se com o Caminho de Goiás ou Picada de Goiás. No total, o chamado Caminho de Goiás estendia-se por 266 léguas (cerca de 1.500 km), sepa- rando Vila Boa de Goiás do Rio de Janeiro, e consumia cerca de três meses de viagem (ROCHA JR. et al., 2006).

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    SERTÃO, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES NO CENTRO-OESTE

    Maria Geralda de Almeida

    Discute-se o imaginário e as representações presentes na construção dos sertões, ilus-trando com uma trajetória das diversas representações que foram feitas sobre o Centro-Oeste. As identidades sertanejas emergem com a relação com o outro e com a natureza diversa. Po-rém, ressalta-se que aquelas esboçadas sobre os sertanejos são dinâmicas e podem se mesclar. São múltiplas.

    IA etnoterritorialidade do sertanejo do Centro-Oeste é o cerne para compreen-der o sertão a partir de suas representa-ções associadas ao bioma Cerrado. Para tanto, serão evidenciadas as concepções de sertão e as dimensões culturais cons-truídas “no mundo rústico, sertão, onde estariam nossas raízes e nossa autentici-dade”, conforme nos lembra Martins (2000, p. 28), para entender esse sertanejo e, sob essa perspectiva, compreender a nossa essência brasileira.

    Claval (1995) clareia essa discussão ao afirmar que é pela cultura que homens e mulheres fazem a sua mediação com o mun-do, constroem um modo de vida particular e se “enraízam” no território. Há, assim, uma herança cultural que permeia a relação com

    o território. E a identidade territorial do ser-tanejo aparece como indispensável para a existência e a manutenção da biodiversidade e do horizonte de vida do sertão brasileiro.

    No século XVIII, surgiu um interesse pelo sertão a fim de descobrir o que a ter-ra incógnita ainda poderia oferecer como recursos. Naquele período, havia um ca-minho que cruzava o Planalto Central até Mato Grosso – era o mais extenso da época colonial, conhecido como a Estrada Geral do Sertão, e confundia-se com o Caminho de Goiás ou Picada de Goiás. No total, o chamado Caminho de Goiás estendia-se por 266 léguas (cerca de 1.500 km), sepa-rando Vila Boa de Goiás do Rio de Janeiro, e consumia cerca de três meses de viagem (ROCHA JR. et al., 2006).

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    Por essa estrada, estrangeiros chegaram ao Brasil central e registraram seus olhares em relatos. Penetrando nessas terras longín-quas no ano de 1819, o naturalista Auguste de Saint-Hilaire assim as descreveu:

    [...] aqueles que falam do sertão garan-tem que ele se parece a um jardim e essa comparação tornou-se uma espécie de provérbio. Eu admito, com efeito, que esta região possa ter o aspecto que lhe atribuem quando os campos possuem todo verdor e que estas árvores e arbustos tão numero-sos, tão variados, estão cobertos de flores tão brilhantes (1975, p. 53).

    Apresentando o sertão com uma ca-racterística próxima àquela predominante na Europa civilizada, Auguste de Saint--Hilaire se empenha para fazer o europeu imaginar o sertão apoiando-se em uma imagem conhecida.

    No sertão, onde o ritmo de vida era mais lento, a percepção do tempo também o era. E a cultura que surgia absorveu essa característica no estilo de vida próprio do sertanejo. O escritor lusitano Oscar Leal, no século passado, observou espantado:

    [...] se tendes percorrido os nossos sertões, os lugares onde a vida é fácil por causa da caça e da pesca, deveis saber que essa gente caminha para o entorpecimento, para o túmulo. Esta gente não fala – boceja, não anda –, arrasta-se, não vive – vegeta. Para ela não há ambição, nem luxo, nem dinheiro, nem conforto: não há nada e que corra a vida como o barco à mercê da cor-rente (apud CHAUL, 1995, p. 19).

    Criava-se, assim, uma ideia da letargia social, de dias iguais a todos os dias, de solidão que tinha no sertão o ce-nário ideal.

    No século XXI, embora os caminhos, as redes e o meio técnico-científico-tec-nológico tornem os sertões tão familiares, estes permanecem ainda misteriosos. E o que então pode ser chamado de sertão e de sertões? Acredita-se que o termo ser-tão seria uma corruptela de grande deser-to, deserto sertão.

    No período colonial, “o Brasil litorâ-neo, o interior era o lugar deserto, a so-lidão, o vazio que não faz sentido senão como lugar de frequentação, passagem” (STURM, 1995, p. 94). O sertão trazia consigo as marcas do processo colo-nizador, refletia a linguagem do outro, do civilizado.

    Leonardi (1996) defende que o con-ceito de sertão tem algo a ver com a ideia de fronteira do período colonial, quando eram imprecisos os limites entre o mundo português e o mundo espanhol na Améri-ca. O sertão referido aqui se materializa nos limites dos estados de Goiás, de Mato Grosso do Sul e de parte de Mato Grosso. Contudo, esses estados englobam vários sertões. Ab’Sáber (1999, p. 95), por exem-plo, distingue outras tipologias, como “sertão bravo” (áreas mais secas), “altos sertões” (áreas semiáridas rústicas e típi-cas existentes nas depressões colinosas) ou “agrestes regionais”. Assim, o uso esta-beleceu que o sertão são as terras ásperas do interior, o que culminou por histórica e socialmente aproximar-se aos biomas do Cerrado e da Caatinga.

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    IIAs representações são fundadas sobre a aparência dos objetos e não sobre o objeto em si. São criadas para expressão do real no bojo de uma ideologia. As representações so-ciais também regem nossas relações com o mundo e os outros, orientam e organizam os comportamentos e as comunicações sociais (BAILLY, 1992).

    Jodelet (1991) é mais enfática ao afir-mar que a representação corresponde a um ato do pensamento pelo qual o indivíduo se relaciona com um objeto. Isso pode ser uma pessoa, um objeto, um evento material físico ou social, um fenômeno natural, uma ideia, uma teoria; pode ser real, imaginário ou mítico.

    Representação, para Chartier (1990, p. 20), é uma forma de discurso que permite “ver uma coisa ausente”, ou também que se manifesta como a “exibição de uma presença [...] de algo ou de alguém”; processo de articu-lações simbólicas por meio do qual se estabe-lece uma acepção do real, uma significação da realidade. Pesavento, complementando esse entendimento, afirma:

    As representações construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua exis-tência. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade (2005, p. 39).

    O Centro-Oeste era representado como um lugar distante e de difícil acesso, povoado por uma esparsa população, violenta e pou-co civilizada, sendo, por vezes, exibido como

    mero coadjuvante do processo de construção da unidade nacional e da formação do sen-timento patriótico. Eram representações que faziam parte do imaginário social das populações que habitavam o exterior ou o litoral brasileiro.

    Este olhar negativo e preconceituoso sobre o oeste brasileiro pelos habitantes mais próximos à costa não é recente, como foi vis-to. O “sertão”, como por vezes Goiás e Mato Grosso foram denominados, seria o oposto do que existia no litoral – considerado como um espaço de progresso e desenvolvimento.

    O resultado foi a construção de uma imagem negativa dos sertões e dos costu-mes e tradições das suas populações. Em resposta, ocorreu também a construção de representações locais, que buscaram se con-trapor às primeiras e negá-las, originando, assim, uma verdadeira luta de representa-ções. Embora identificado como sertão, o Centro-Oeste negava a originalidade da cul-tura sertaneja, a sertanidade que refletiria o Brasil autêntico (LIMA, 1999; SENA, 2003).

    O olhar dos estrangeiros aqui chegados, de um continente que conhecia já os benefí-cios da industrialização, ressentiu as marcas materiais do progresso lá visto. Contudo, es-ses sertões goianos tiveram vários olhares. O conceito de sertão da decadência e do atraso que perpassa a reconstituição feita por Luis Palacín do passado dessa sociedade difere do sertão de abastança e de paraíso caboclo que se encontra em Paulo Bertran (1994). Já sob a visão artística de Hugo de Carvalho Ramos, na obra Tropas e Boiadas (1917), surge um sertão poético, de horror e beleza, sertão ao mesmo tempo dramático e belo.

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    IIIOs homens não agem em função do real, mas em função da imagem que fazem dele, já bem nos disse Claval (1992). Contudo, se uma imagem presente não faz pensar em uma imagem ausente, se uma imagem casual não determina uma explosão de imagens, não há imaginação. Bailly (1990) e Carlos (1994) nos chamam a atenção para os lugares vividos que são também espaços imaginários. En-tre os espaços da vida próximos ao distante e apenas imaginado, todos os territórios vi-vidos e/ou pensados o são por meio de cate-gorias que refletem situações da experiência relacional de vida.

    Uma definição inspirada em Casto-riadis, e também expressiva, considera o imaginário como “um sistema de ideias e ima-gens de representações cole-tivas que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo” (PESAVENTO, 2005, p. 43).

    Uma crítica às interpreta-ções de sertão é feita por Mo-raes (2002-2003). Para ele, o sertão não é um lugar, mas uma condição atribuída a variados e diferenciados lugares – ideia com a qual con-cordo e busco abordar nesta discussão.

    Espindola (2004, p. 3) destaca que o “sertão foi um discurso sobre espaços e pessoas, uma construção simbólica com fins determinados”. Esse argumento enfa-tizei anteriormente, quando afirmei que: “a construção discursiva sobre o sertão espelha a maneira como ele é pensado e uma manei-ra específica de ‘ver’ o mundo” (ALMEIDA, 2003a, p. 71).

    Entendo que o sertão, território em questão, também se define e se singulariza por características simbólicas e culturais e destaca-se por ser uma construção social. Por isso, considero que tais aspectos devem ser levados em conta na compreensão de processos históricos mais amplos, os quais trazem em seu bojo as marcas do vínculo com o lugar em que se originaram.

    IVO sertão resulta como produto da cultura ecológica e os sertanejos ilustram essa cul-tura. A sociedade localizada em um ambien-te de sertões, apesar de constituir-se uma

    unidade totalizada, é múlti-pla. Uma sociedade – convém destacar – resultante de im-bricações de diversos povos associados aos cerradeiros geraizeiros, aos chapadeiros, aos negros aquilombados, aos indígenas, aos barran-queiros/ribeirinhos dos rios Araguaia, Paranaíba, Para-

    guai, Paraná, Teles e Cuiabá, entre tantos outros, e aos vazanteiros e pantaneiros ou de outros alagados e, ocasionalmente, áreas inundadas dos sertões.

    Esses signos identitários que infor-mam as especificidades das populações locais vinculam-se a algumas das diversas ecologias que compõem os sertões. Os cer-radeiros e chapadeiros encontram-se nas faixas de cerrado e chapadas. Os vazanteiros e pantaneiros estão situados nas áreas de vazantes dos rios e lagoas existentes no ter-ritório regional; os habitantes das margens

    Essa paisagem resulta em alterações substanciaisno próprio entendimento do rural, fazendo emergir, além do agronegócio, novas ruralidades no cenário do Centro-Oeste, como turismo rural, pesque-pague e spas.

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    dos rios são associados ao gênero de vida que ali estabelecem.

    Desde os anos 1950, o vasto território do Centro-Oeste passou a se constituir em uma extensa fronteira agrícola propiciada pela sua capacidade de receber população e seu potencial econômico a ser explorado. Atentos a essas características, os inves-tidores governamentais e multinacionais procuraram transformar aquele território em um grande produtor, principalmente de gado e de grãos, para o abastecimento do mercado mundial. Eles historicamente fizeram a ocupação dos sertões, bem como a mineração e a silvicultura foram selecio-nadas como os principais produtos de des-taque regional.

    Para o ideário desenvolvimentista que caracterizou as principais políticas governamentais desde a década de 1950, as vastas terras do cerrado significavam, e ainda significam, um espaço com viabilida-de econômica, dessa forma obscurecendo seu potencial enquanto biodiversidade. A expansão da monocultura da soja, embora venha favorecendo a balança comercial bra-sileira, também está afetando sensivelmen-te o ecossistema e as populações sertanejas.

    No caso da biodiversidade, posta como território culturalizado (ALMEIDA, 2003b), há a perda de habitat de inúmeras espécies animais e vegetais, o que reflete sobre aque-las populações gradualmente privadas de sua base de recursos, comprometendo, as-sim, sua identidade cultural enquanto ser sertanejo. Também deve-se considerar que a devastação da vegetação natural significa a perda do conhecimento acumulado ao longo dos tempos sobre o uso medicinal e o uso

    do alimento tradicional das plantas pelas populações a elas associadas.

    Somente 1,5% do território do Centro--Oeste encontra-se protegido na forma de Unidades de Conservação. Com a destrui-ção sistemática a que o bioma é submetido, o país perde um potencial biológico e uma im-portante alternativa socioeconômica basea-da na utilização sustentável da diversidade biológica do Cerrado. Os sertões transmu-dam-se na paisagem e no imaginário.

    VSe a identidade é “a fonte de significado e experiência de um povo”, como nos afirma Castells (2006, p. 22), um primeiro elemen-to que materializa a identidade dos serta-nejos, sua sertanidade, é a existência de uma natureza sertaneja, rural, e se sentir pertencente ao sertão. É o caso da socieda-de goiana, que está impregnada de valores e traços rurais, afirma Nogueira (2009). Ela está, assim, prenhe de sertanidade.

    Sertanidade implica ser parte da natu-reza do sertão, estar nas redes de sociabili-dade e solidariedade que permitem ampliar os vínculos de amizade e parentesco, que se tornam cada vez mais sólidos e presentes no imaginário construído em torno do lugar.

    Le Bossé (2004) nos auxilia a com-preender a identidade apresentando refe-renciais que são estabelecidos a partir de subjetividades individuais e coletivas. O autor destaca o aspecto dinâmico e variável que a entidade adota e assume.

    Na visão de Castells (2006), a identi-dade é uma forma de distinção entre o eu e o outro. Segundo ele, os atores sociais dão significado às suas ações a partir de um ou

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    mais atributos culturais que prevalecem no processo de construção das identida-des. Ele também adota a premissa de que toda identidade é uma construção social que se serve de conhecimentos provindos de instituições, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e de religião. Porém, homens, grupos sociais e sociedade reorganizam seu significado em função de projetos culturais enraizados e sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo/espaço.

    Tais argumentos reforçam ser o ser-tão e os sertões um espaço vivo e dinâmico, que comunica e traz consigo uma forte carga simbólica transmitida por valores e práti-cas por todos que partilham o espaço. Não importa qual signo identitário ele comunga dessa natureza sertaneja.

    A paisagem que compõe esse território está vinculada àquela formação denomina-da os gerais, ou seja, os planaltos, as encos-tas e os vales das regiões de cerrados, com suas vastidões que dominam as paisagens dos sertões. A denominação geraizeiro é usada mais em Minas Gerais, e cerradei-ros é o termo defendido por Bertran (1994), referindo-se às populações do cerrado de modo geral.

    Os sertões, com seus tabuleiros, espi-gões e chapadas, fazem parte da estratégia produtiva e garantem suas reproduções com diversos produtos do extrativismo. Este desempenha, cada vez mais, um papel importante na geração de renda pela comer-cialização de frutos, óleos, plantas medici-nais e artesanatos.

    Conforme já mencionado, os cerradei-ros reconhecem inúmeras zonas ecológicas

    com qualidades específicas, pela combina-ção de fatores que se interagem diferen-ciando a qualidade de solos, a vegetação, as influências sutis deixadas pela rede de drenagem do presente e do passado. Os cer-radeiros constroem um mosaico de atribu-tos ecológicos e culturais que se realiza pela sua interação, conformando uma unidade da paisagem, fato já relatado nos estudos de Rigonato (2005).

    Conforme Costa (2005), na década de 1970, o Governo Federal, principal interven-tor com seus financiamentos subsidiados e seus incentivos fiscais, deu início à mo-dernização dos sertões. Sertanejos foram desprezados, privilegiando-se as oligarquias tradicionais, o agronegócio e as agroindús-trias da sociedade dominante.

    Desde então, ocorre a constituição de uma nova paisagem, que afetou as bases de sustentação da agricultura familiar tradi-cional, com impactos nos recursos natu-rais cerradeiros, acelerando seu processo de deterioração. Essa paisagem resulta em alterações substanciais no próprio enten-dimento do rural, fazendo emergir, além do agronegócio, novas ruralidades no cenário do Centro-Oeste, como turismo rural, pes-que-pague e spas.

    A partir dessas significações do rural tradicional, Pereira (2002) traça o novo imaginário em construção em Goiás, no processo de superação de uma cultura rural, apontando para o quadro dos novos tempos de Goiás. Processo semelhante existe na zona rural de todo o Centro-Oeste.

    Atualmente, os horizontes dos sertões do Centro-Oeste têm outros protagonis-tas. Em Goiás, as usinas canavieiras, com

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    produção de açúcar, etanol e energia, têm sua produção ampliada sobremaneira nos últimos anos. Em 2017, eram 38 usinas em funcionamento no estado de Goiás, o que nos coloca na segunda posição nacional, liderada pelo estado de São Paulo. Em Mato Grosso, soja, milho, algodão e cana-de-açúcar res-pondem a incríveis 94,7% de todo o valor da produção da agricultura do estado. Em Mato Grosso do Sul, Rio Brilhante é o município do país com maior quantidade produzida de cana-de-açúcar; e o estado lidera o cresci-mento da produção de soja no país.

    Na contramão, os diversos movimentos sociais dos sertões demonstram experiên-cias de luta para a conservação dos cerra-dos e pelo seu uso não destrutivo. Esses sertanejos veem a necessidade de incorpo-rar técnicas que causem menos impactos nos cultivos – agora mais intensivos, com restrição das terras, restrição da oferta de água e perda da biodiversidade. Também a percepção de que sertanejos têm uma convi-vência estreita com a natureza nessas áreas, e eles dispõem de saberes e interesses da manutenção da biodiversidade, da qual de-pende a sua sobrevivência, tem fortalecido a compreensão de que eles são sujeitos so-ciais importantes nas discussões e políticas que envolvem os cerrados.

    Uma tipologia identitária do sertanejo, embora grosseira, foi esboçada. Porém, re-conheço a natureza dinâmica presente na identidade. Há, além disso, a possibilidade de mesclar tipos identitários. Portanto, as identidades sertanejas são traços gerais, e somente singularizam a diversidade dos sertanejos, conforme já referi. Reconhe-cê-los em sua diversidade evita o risco de

    empobrecer os sertões vendo-os como uma sociedade e um território únicos. Pode-se, pois, afirmar que a identidade cultural dá sentido ao território e delineia as territo-rialidades que se apoiam sobre as paisa-gens sertanejas.

    Maria Geralda de Almeida É sertaneja de Brasília de Minas, no Vale do

    São Francisco. Já morou em Rio Branco (AC), Ara-

    caju (SE), Fortaleza (CE) e atualmente vive em

    Goiânia (GO), sempre trabalhando em universi-

    dades federais. É professora titular no curso de

    geografia no Instituto de Estudos Socioambientais

    da Universidade Federal de Goiás (Iesa/UFG). Tem

    diversos artigos publicados e organizou os seguin-

    tes livros: Geografia: Leituras Culturais (2003),

    com A. Ratts; Tantos Cerrados (2005); Geografia

    e Cultura: Lugares de Vida e a Vida nos Lugares

    (2008), com E. Chaveiro e H. Braga; Território e

    Cultura (2009), com B. A. Nates; Territorialidades

    na América Latina (2009); É Geografia, É Paul

    Claval (2013), com Arrais; Território e Comunida-

    de Kalunga (2015); Paisagem e Desenvolvimento

    Chibuto (Moçambique) (2015); Atlas de Festas

    Populares de Goiás (2015); Atlas de Celebrações

    (2016), com M. A. Vargas; e Territórios de Tradições

    e Festas (2018).

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