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MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICA

MECENAS ORQUESTRA SINFÓNICADO PORTO CASA DA MÚSICA

APOIO INSTITUCIONAL

Maria João & GuingaDino Saluzzi

18 Out 201621:00 Sala Suggia –OUTONO EM JAZZ

CICLO JAZZ

Guinga voz e guitarraMaria João voz

Se a vida é a arte do encontro, como dizia Vinícius de Moraes, a música de Guinga é também ela recheada de encontros. Aquele que hoje aqui acontece junta ‑o a uma cantora bem conhecida do nosso público, Maria João, a voz mais sonante do jazz cantado em português. O disco que os dois gravaram chamou ‑se Mar Afora e está quase a fazer um ano, mas é hoje apresentado pela primeira vez num palco português.

Guinga nasceu no bairro da Madureira, Rio de Janeiro, em 1950. Estudou e exerceu odontologia antes de poder dedicar ‑se por inteiro à música. Mas a música já estava por inteiro em Guinga, sempre esteve, desde que o dedo circulava pelo botão do rádio e lhe fazia chegar um pouco de Ernesto Nazareth, de Pixinguinha, Jacob do Bandolim ou Garoto, de Baden Powell, das serestas anti‑gas, obviamente de Villa‑Lobos, e também das canções de Tom Jobim...; e desde que as primeiras melodias lhe foram ensinadas pelo tio Marco Aurélio, exímio ‘violonista’ famoso apenas entre as paredes do seu quarto de Jacarepaguá. Também Guinga já foi considerado – por um amigo gozão – o mais famoso dos músi‑cos desconhecidos. A verdade é que a enorme riqueza das suas composições é um foco de atracção para todos aqueles que procu‑ram algo completamente novo na música popular.

A identificação do repertório de Guinga com as vozes femininas é algo que vem de há muito tempo, desde a década de 70: primeiro com Clara Nunes e Elis Regina, depois com Elza Soares, Nana Caymmi, Alaíde Costa, Zezé Gonzaga, Miúcha e especialmente Leila Pinheiro, entre outras. O primeiro encontro de Maria João com Guinga aconteceu em 2012, no Rio de Janeiro, e no ano passado a cantora colaborou no disco Porto da Madama, em que Guinga faz arranjos e interpreta música de outros autores (pela primeira vez numa carreira de quatro décadas) para quatro cantoras.

Muitos dos encontros inspiradores de Guinga vieram cedo, contava ainda 16 anos, em consequência de uma bem ‑sucedida classificação de uma canção sua para o Festival Internacional da Canção de 1967, que seria interpretada no Maracanãzinho precisa‑mente no mesmo dia em que Milton Nascimento cantou “Travessia”. Os outros encontros que importa relatar são os que formam o repertório do disco em dueto e, certamente, de grande parte deste concerto. Faz sentido começar pelo encontro com Paulo César Pinheiro, letrista maior da música popular brasileira. Ambos se conheceram com 18, 19 anos, e foi este último que desafiou Guinga pela primeira vez a fazer canções para depois lhes colocar letras. A dupla criou ao longo dos anos pérolas como “Passarinhadeira”, “Senhorinha” e “Saci”. Talvez “Senhorinha” seja das canções mais conhecidas de Guinga, que a dedicou às suas filhas. Curiosamente será também uma das mais singelas no meio de um repertório onde

a sofisticação harmónica e a inventividade melódica convive perfei‑tamente com os ritmos tradicionais e a personalidade melódica das formas populares brasileiras, sejam elas o choro – um dos géneros mais presentes na sua obra –, o frevo, o baião, o samba ou tantas outras que passam por este violão impressionista.

O outro grande encontro que é narrado nas entrelinhas deste concerto foi com mais um enorme letrista, que ganhou notoriedade nos anos 70 em parcerias com João Bosco. Falamos de Aldir Blanc, um mestre das histórias que povoam canções como há poucos no mundo. São irresistíveis temas como “Chá de Panela”, “Catavento e Girassol” e “O coco do coco”, por exemplo. O primeiro é um baião em homenagem a Hermeto Pascoal que, como sabemos, tem o dom de fazer música com absolutamente tudo o que é objecto que se lhe atravesse. Todos eles foram incluídos no disco Catavento e Girassol de 1996, cantado por Leila Pinheiro, aquele que trouxe mais reconhecimento popular a um compositor já então com uma longa carreira e grande prestígio, mas ainda algo oculto entre o grande público. “Simples e Absurdo” e “Canibaile” são outros temas da dupla que vêm um pouco mais de trás, do disco editado em parce‑ria em 1991. O disco Mar Afora inclui ainda duas parcerias com os mais jovens Edu Kneip (“Via Crucis”) e Thiago Amud (“Contenda”).

Talvez o encontro simbólico que definiu todo o percurso de Guinga, no fim de contas, seja afinal com alguém que cunhou a iden‑tidade da música brasileira: o compositor Heitor Villa ‑Lobos. Diz Guinga em entrevista à revista Trópico: «Me considero um músico da rua, minha música vem da rua. Mas, quando eu ouvi Villa ‑Lobos, eu percebi que essa minha música, que é da rua, poderia também ser música de concerto. O Villa ‑Lobos foi um homem que levou a rua para dentro da sala de concerto. Ele foi um grande exemplo para mim. Na verdade, não só ele, mas tantos outros compositores da música erudita, que tiravam suas inspirações das coisas popu‑lares, das coisas que viam em suas aldeias, suas cantorias, seus bordões de rua.» É especialmente relevante pensar nesta simbiose entre o erudito e o popular na música de Guinga. Até porque a música brasileira, desde Villa ‑Lobos, desde Jobim e desde Rada‑més Gnattali, e sem dúvida até Guinga, ganhou essa capacidade impressionante de incorporar uma sofisticação que nos obriga a pensar a erudição e a tradição de um outro modo: «acho que essas linguagens, a do erudito e do popular, se aproximam de acordo com o tratamento que o compositor dá a elas. A diferença está basica‑mente naquele negócio do remédio e do veneno: dependendo da dosagem, o remédio vira veneno e o veneno vira remédio. E nada garante que disso vá sair música de qualidade.»

FERNANDO PIRES DE LIMA

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A CASA DA MÚSICA É MEMBRO DEMECENAS PROGRAMAS DE SALA

Dino Saluzzi bandoneónJosé María Saluzzi guitarra, guitarra requintaFélix “Cuchara” Saluzzi saxofone tenor, clarineteMatías Saluzzi baixo eléctrico, contrabaixoU. T. Gandhi bateria, percussão

Dino Saluzzi é uma figura ‑chave da música latino ‑americana con‑temporânea, com mais de 60 anos de carreira artística. Para além de algumas peças do repertório ainda inédito Mozart por Saluzzi, apresenta neste concerto essencialmente temas do seu álbum El Valle de la Infancia. Este é um regresso imaginário ao universo sonoro que povoou a sua infância na província de Salta, no Norte da Argentina, com encontros de danças e ritmos tradicionais com o estuário do Rio da Prata como fundo. Como escreve Leopoldo “Teuco” Castilla nas notas do disco, este é um regresso às origens, uma evocação das pessoas e dos lugares. Da Natureza, mas tam‑bém «das orações oferecidas às Virgens das montanhas – a Virgem de Urcupiña entre o fumo, tambores sonoridades moribundas dos erques [instrumento de sopro tradicional] por entre a “tempestade de pó”, como dizem os nativos, onde até o Diabo dança em segredo até ao amanhecer.» O disco aborda diferentes géneros: desde dan‑ças como a zamba (uma dança tradicional sem qualquer relação com o samba, dançada em pares que abanam os seus leques) até ao carnavalito (dança com origem no período pré ‑colonial) e à cha‑carera (dança rápida de métrica ternária); mas também a música de Buenos Aires, passando pelo tango e pela milonga. Todas estas referências se juntam num projecto intimista, privilegiando frequen‑temente uma organização do repertório por suites de miniaturas, como acontece em “La Fiesta Popular” (uma sequência de cinco fragmentos). O olhar espiritual de Saluzzi está presente, por exem‑plo, em “Ruego, Procesion y Entronación!”, da Suite “Urkupiña”, com um ambiente processional que vai da contemplação à revelação. Félix Saluzzi, irmão de Dino (saxofone e clarinete), acrescenta um colorido rítmico de blues e jazz às raízes tradicionais. O trabalho delicado do seu filho, o guitarrista José Maria Saluzzi, incorpora temas como “Sombras” ou “El Labrador”.

Timoteo “Dino” Saluzzi nasceu em 1935 em Campo Santo, uma pequena aldeia no distrito de Salta, no norte da Argentina, conhe‑cida essencialmente pela sua fábrica de refinação de cana‑de‑ ‑açúcar, à volta da qual se move a vida local. Apesar da ausência de discos, rádio e mesmo electricidade, sempre houve música na casa onde Dino Saluzzi cresceu. O seu pai tocava guitarra, bandolim e bandoneón e ensinou os rudimentos deste último a Dino quando este tinha sete anos. Começou por tocar música tradicional neste instrumento que é uma variante diatónica do acordeão (tal como a nossa concertina), desenvolvido pelo alemão Heinrich Band. Adquiriu mais alguns conhecimentos com um tio que viajara pela Europa e, aos 14 anos, formou a sua primeira banda: o Trio Carna‑val. Já em Buenos Aires, tornou ‑se membro da Orquesta Estable na Rádio El Mundo, a primeira estação de rádio argentina. Conheceu Ástor Piazolla quando começou a ser cunhada a expressão “tango nuevo”. Contudo, deixou o trabalho na rádio em 1956 para regres‑sar ao distrito de Salta e desenvolver as suas composições, incor‑porando agora conscientemente elementos da música tradicional.

Entretanto trabalhou com outros artistas que impregnaram as suas linguagens com as raízes tradicionais, tais como Gato Barbieri, Mariano Mores e a Sinfonica de Tango de Enrique Mario Francini. Em 1979 formou o primeiro Cuarteto Dino Saluzzi, que ganhou notoriedade na Europa, e foi co ‑fundador do ensemble experimental Música Creativa. A sua longa associação com a prestigiada editora ECM começou em 1983, com o álbum a solo Kultrum, criado espontaneamente no estúdio, e também ele um regresso imaginário às pequenas cidades e aldeias da sua infância. A partir da década de 1980, as colaborações com músicos de jazz americanos e europeus sucederam ‑se, entre os quais Charlie Haden, Enrico Rava, Louis Sclavis, Edward Vesala, Charlie Mariano, Al DiMeola, David Friedman, Anthony Cox e muitos outros.

À revista DownBeat, Dino Saluzzi afirmou: «Não receio nada daquilo que criei porque sei que tudo é um reflexo de mim próprio e da minha cultura. Se [estiver num contexto de] jazz, toco jazz. É apenas uma forma diferente de expressar os meus sentimentos.»