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série Princípios

Maria José Palo

Doutora em Comunicação e Semiótica e mestre em Teoria Literária pela Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo Professora Associada do Programa de Pós

Graduação em Literatura e Crítica Literária

Maria Rosa D. Oliveira

Doutora em Comunicação e Semiótica e mestre em Teoria Literária pela Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo

Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária

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Voz de criança

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Maria José Palo e Maria Rosa D. Oliveira Diretor editorial adjunto Fernando Paixão Coordenadora editorial Gabriela Dias Editor adjunto Carlos S. Mendes Rosa Editora assistente Tatiana Corrêa Pimenta Revisão Ivany Picasso Batista (coord.) Estagiárias Aline Rezende Mota e Bianca Santana Arte Edição Antonio Paulos Assistente Claudemir Camargo Capa e projeto gráfico Homem de Mello & Tróia Design Editoração eletrônica Moacir K. Matsusaki EDIÇÃO ORIGINAL Direção Samira Youssef Campedelli e Benjamin Abdala Jr. Preparação de texto Edison Mendes de Rosa Arte c projeto gráfico/miolo Antônio do Amaral Rocha Arte-final René Etiene Ardanuy

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

________________________________________________________ P211L 4.ed. Paio, Maria José, 1932- Literatura infantil : voz de criança / Maria José Paio, Maria Rosa D. Oliveira. – 4ª.ed. - São Paulo : Ática, 2006 80p. - (Princípios : 86) Inclui bibliografia comentada ISBN 85-08-10305-0 1. Literatura infanto-juvenil - História e crítica. I. Oliveira. Maria Rosa Duarte de 1946- II. Título. III. Serie. CDD 809.89282 CDU 82-93.09 ISBN 85 08 10305-0 (aluno) ISBN 85 O8 10306-9 (professor) 2006 4ª. edição - 1ª. Impressão ________________________________________________________

Impressão e acabamento: Gráfica Santa Maria IMPORTANTE: Ao comprar um livro, você remunera e reconhece o trabalho do autor

e o de muitos outros profissionais envolvidos na produção editorial e na comercialização das obras: editores, revisores, diagramadores, ilustradores, gráficos, divulgadores, distribuidores, livreiros, entre outros. Ajude-nos a combater a cópia ilegal! Ela gera desemprego, prejudica a difusão da cultura e encarece os livros que você compra.

Todos os direitos reservados pela Editora Ática, 2006

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Sumário

1. A literatura e o literário infantil 5 O ser "infantil" da literatura 5 A literatura infantil 9 A função utilitário-pedagógica 13

2. "... E de que serve um livro sem figuras nem diálogos?" 15 Figuras — diálogos c função pedagógica 15 Figuras — diálogos e função estética 17 Três espécies de figuras 19 3. A personagem e seu duplo — a criança 21 A estrutura da personagem-padrão 21 A transformação do estatuto da personagem na literatura infantil 22

A personagem caracterizada pela esfera de ação 22 Inversões nas funções tradicionais da personagem 25 O universo da consciência e a personagem 34 Da verossimilhança ao texto 37 4. Discursos e vozes narrativas 43 O processo comunicativo 43 A oralidade como padrão narrativo 44 Modos de incorporação do padrão de oralidade 45 O léxico oral na sintaxe da escrita 45 Jogos sonoros, visuais e a prontidão para o desempenho oral e escrito 48 O narrador e a escritura da fala 51 O riso e o universo do avesso 55 No limite da narrativa, a poesia 62 Leitura e oralidade 66 5. Cosmovagar. Revendo o rio. A literatura infantil em videotexto 69 6. Vocabulário crítico 72 7. Bibliografia comentada 76

Nota do revisor: os números que aparecem entre [ ] referem-se a numeração original das páginas do livro impresso.

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1 A literatura e o literário infantil _____________________________

O ser "infantil" da literatura O tema literatura infantil leva-nos de imediato à reflexão acerca do

que seja esse "infantil" como qualificativo especificador de determinada espécie dentro de uma categoria mais ampla e geral do fenômeno literário.

Falar à criança, no Ocidente, pelo menos, é dirigir-se não a uma classe, já que não detém poder algum, mas a uma minoria que, como outras, não tem direito a voz, não dita seus valores, mas, ao contrário, deve ser conduzida pelos valores daqueles que têm autoridade para tal: os adultos. São esses que possuem saber e experiência suficientes para que a sociedade lhes outorgue a função de condutores daqueles seres que nada sabem e, por isso, devem ser-lhes submissos: as crianças.

Estabelece-se, assim, de forma inquestionável e extremamente natural, um vínculo entre dominador e dominado, que, na verdade, reproduz, o modelo capitalista de organização social.

Corroborando esse quadro, vem a própria Psicologia da Aprendizagem, que, ao evidenciar as fases para a [6]completa maturação das estruturas de pensamento e de todo o conjunto biopsíquico da criança, acaba por colaborar com a visão de "natural" domínio do adulto, na medida em que o pensamento infantil ainda não está apto para inferências, abstratas e generalizadoras, de uma mente logicamente controlada. É justamente essa carência da lógica racional, esteio para as estruturas do pensamento ocidental, que faz da criança um ser dependente para a nossa cultura.

Convém salientar, ainda, que a essa não-competência para a esfera analítico-conceitual acrescenta-se uma outra: a do domínio do código verbal assentado na capacidade de simbolização para a qual o pensamento infantil ainda não tem a competência suficiente, já que lhe falta a posse das convenções e das regras gerais que lhe dão acesso à significação global.

No entanto, a ausência da abstração é compensada pela presença da

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concretitude. É preciso lançar mão de estratégias concretas e próximas à vivência cotidiana da criança, para que, por contigüidade, se possa fazer a transferência e a aprendizagem do conceito.

Essa é a operação mais simples de pensamento, que vai da concretitude e do imediatismo das partes para a generalidade e a globalização do todo. É esse, também, o caminho da Pedagogia, que se assenta em fases seqüenciais evolutivas, prevendo uma aprendizagem gradual, linear e contínua.

Colocar a arte literária nesse contexto implica, por sua vez, vê-la como uma atividade complexa e, por isso, não-natural ao universo da infância. Traduzi-la para esse nível significa facilitá-la, criar estratégias para concretizar, ao nível da compreensão infantil, um alto repertório, como o estético.

É aí que entram a Pedagogia, como meio de adequar o literário às fases do raciocínio infantil, e o livro, como [7] mais um produto através do qual os valores sociais passam a ser veiculados, de modo a criar para a mente da criança hábitos associativos que aproximam as situações imaginárias vividas na ficção a conceitos, comportamentos e crenças desejados na vida prática, com base na verossimilhança que os vincula. O literário reduz-se a simples meio para atingir uma finalidade educativa extrínseca ao texto propriamente dito, reafirmando um conceito, já do século XVIII, de A. C. Baumgartner de que "literatura infantil é primeiramente um problema pedagógico, e não literário".

Essa função utilitário-pedagógica é a grande dominante da produção literária destinada à infância, e isso desde as primeiras obras surgidas entre nós. Nada mais do que atender a uma exigência da própria estrutura da cultura ocidental em relação a seu tradicional conceito do ser infantil.

Mas a arte tem outros desígnios e desejos. A criança também. Se lhe falta a completa capacidade abstrativa que a capacite para as

complexas redes analítico-conceituais, sobra-lhe espaço para a vasta mente instintiva, pré-lógica, inclusiva, integral e instantânea que só opera por semelhanças, correspondências entre formas, descobrindo vínculos de similitude entre elementos que a lógica racional condicionou a separar e a excluir. Correspondências, sinestesias. Todos os sentidos incluídos.

O signo é a coisa de que fala; não há mais vínculo indireto entre eles (tal qual na construção simbólica), de maneira que, ao invés de representar, ele, agora, presenta diretamente o próprio objeto de

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representação. Aqui e agora concretamente à nossa frente. Não há descrição mais fiel do modo como opera o pensamento

infantil; o mais distante possível de hábitos associativos convencionais, geral, imotivados e o mais [8] próximo possível de um pensamento concreto, inclusivo e motivado, em que a nomeação é análoga à coisa nomeada.

Ser integralmente. Sem separação alguma entre o pensamento e o objeto de pensar. Atento à qualidade, mesma, daquilo que se observa. Como a criança ao ver uma pedrinha. Toda ela, ali, sendo pedra com a pedra. No coração da realidade. Sem a mediação de camadas e camadas de idéias, conceitos e interpretações.

Para pintar o bambu, é preciso ser o bambu, diria o mestre Zen. E João Cabral: flor é a palavra flor. E Décio Pignatari: mostrar um sentimento e não dizer o que ele é —

isto é poesia. Um signo icônico. Concreto. Análogo ao objeto da representação.

Como no princípio da linguagem. Por isso que toda arte, literária ou não, é desde sempre concreta.

Exige um pensamento que vá às raízes da realidade e seja, também ele, concreto. Nesse momento instantâneo de inclusão e de síntese atinge-se, por analogia, o conceito. Conceito feito figura, imagem, numa relação direta com a mente que o opera.

Tal como o conceito ancestral de medo associado à imagem do lobo, que se vê desestruturado por uma simples inversão da própria palavra: lobo-bolo, em Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque.

Ora, sendo assim, o pensamento infantil está apto para responder à motivação do signo artístico, e uma literatura que se esteie sobre esse modo de ver a criança torna-a indivíduo com desejos e pensamentos próprios, agente de seu próprio aprendizado. A criança, sob esse ponto de vista, não é nem um ser dependente, nem um "adulto em miniatura", mas é o que é, na especificidade de sua linguagem que privilegia o lado espontâneo, intuitivo, analógico e concreto da natureza humana.

[9]

A literatura infantil

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Desde os primórdios, a literatura infantil surge como uma forma literária menor, atrelada à função utilitário-pedagógica que a faz ser mais pedagogia do que literatura.

Contar histórias para crianças sempre expressou um ato de linguagem de representação simbólica do real direcionado para a aquisição de modelos lingüísticos. O trabalho com tais signos remete o texto para alguma coisa fora dele, de modo a resgatar dados de um real verossímil para o leitor infantil. Este, tratado fisionomicamente sob o "modo de ser" do adulto, reflete-se para a produção infantil como um receptor engajado nas propostas da escola e da sociedade de consumo. Deverá, sobretudo, apreender, via texto literário infantil, a verdade social.

Nesse universo, opera-se por associações mais simples de pensamento, as de contigüidade, feitas com base na proximidade explícita e compulsória entre os elementos da cadeia significativa: texto-contexto. Lógica comandada pelos princípios de sucessividade e de linearidade, o que corresponde ao resgate do tempo real com base na verossimilhança pretendida como uma lei absoluta da linguagem discursiva.

Portanto, se considerarmos o arranjo do discurso literário sob a operação da contigüidade dos signos, em convenção simbólica, mais nos aproximamos do uso social desse discurso, reforçando as estruturas do pensamento vigente em educação. Isso, sem discutir o tratamento apontado pela escola ao decidir as respostas da criança na leitura do texto literário: passividade e persuasão acompanham a recepção dos modelos da verdade verossímil; ainda a voz da lei pedagógica em exercício literário.

Os "bastidores" da produção do livro estão ocultos, e à leitura só resta seguir índices, rastros que desembocam, [10] inevitavelmente, num ponto terminal: o hábito comportamental que se quer ensinar.

Esse é o caso de todo um tipo de produção para a infância tida por nova para enfrentar o cotidiano; a chamada literatura "realista" para o público infantil.

O que se nomeia por realista, aí, outra coisa não é senão trazer para o texto um conjunto de temáticas — pobreza, menor abandonado, pais separados, sexo etc. — vinculadas, por contigüidade, ao contexto social no qual se pretende inserir a criança. Construção plana, previsível, sem surpresas, numa linguagem que tem por tarefa, apenas, ser canal expressivo de valores e de conceitos fundados sobre a realidade social.

Linguagem carregada de ideologia que permeia cada fala do narrador, cada diálogo das personagens, e tem um destinatário certo: o

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leitor infantil, cujo pensamento se pretende capturar. Não há possibilidade de respostas alternativas nesse processo educativo autoritário que só admite à criança a função de aprendiz passivo frente à voz todo-poderosa do narrador e de seu enfoque da realidade social.

Seguindo essa trilha, não é preciso dizer, estão os produtos com menor grau de invenção e de liberdade criativa; perdem em poeticidade o que ganham em imediatismo e em praticidade.

Temos aqui descrita uma frente literária comum não apenas à grande parte da produção infantil contemporânea, mas também àquela não-infantil. Desnecessário se torna falar dessa qualidade literária à margem de um contexto de produção que se nega a especular sobre a natureza sensível da linguagem infantil; ao contrário, troca o inventar poético pelo modelo consumista do discurso literário.

Pound consideraria essa classe da produção literária como sendo a dos diluidores, "homens que trabalham [11] mais ou menos bem, dentro do estilo mais ou menos bom de um período. Desses estão cheias as deleitosas antologias, assim como os livros de canções e a escolha entre eles é uma questão de gosto".

Tomando-se literário no sentido estrito que lhe dá Jakobson, isto é, enquanto função poética (projeção do eixo da similaridade sobre o da contigüidade), assumir a dominante poética nos textos da literatura infantil é configurar um espaço onde equivalências e paralelismos dominam, regidos por um princípio de organização basicamente analógico, que opera por semelhanças entre os elementos. Espaço no qual a linguagem informa, antes de tudo, sobre si mesma. Linguagem-coisa com carnadura concreta, desvencilhando-se dos desígnios utilitários de mero instrumental.

Palavra, som e imagem constroem, simultaneamente, uma mensagem icônica que se faz por inclusão e síntese, sugerindo sentidos apenas possíveis. É a informação lançada no horizonte precário da arte feito de "um retalho de impalpável, outro de improvável, cosidos todos com a agulha da imaginação" (Machado de Assis). Cada coisa, cada ser pode ter similaridade com outros, redescobrindo o princípio da correspondência que os integra no todo universal; nesse fugaz instante entre o dito e o não-dito.

O pensamento infantil é aquele que está sintonizado com esse pulsar pelas vias do imaginário. E é justamente nisso que os projetos mais arrojados de literatura infantil investem, não escamoteando o literário, nem o facilitando, mas enfrentando sua qualidade artística e oferecendo os melhores produtos possíveis ao repertório infantil, que tem a competência

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necessária para traduzi-lo pelo desempenho de uma leitura múltipla e diversificada.

Leitura que segue trilhas, lança hipóteses, experimenta, duvida, num exercício contínuo de experimentação e descoberta. Como a vida.

[12] A Pedagogia, por sua vez, sob a égide da função poética seria algo

semelhante à descoberta de Oswald de Andrade: Aprendi com meu filho de 10 anos que a poesia é a descoberta das

coisas que nunca vi. Pedagogia que brota do próprio texto que a si ensina, como o sino

de Paulo Leminski:

de som a som ensino o silêncio

a ser sibilino de sino em sino

o silêncio ao som ensino

Investe-se na inteligência e na sensibilidade da criança, agora

sujeito de sua própria aprendizagem e capaz de aprender do e com o texto. Educação simultânea do par texto-leitor, ambos repertorialmente acrescidos e modificados no momento da leitura. É por isso que, ao se falar dos textos de literatura infantil sob a dominante estética, põe-se em risco a própria categorização de infantil e, mais ainda, do possível gênero de literatura infantil, já que não se trata mais de falar a esta ou àquela faixa etária de público, mas assim de operar com determinadas estruturas de pensamento — as associações por semelhança — comuns a todo ser humano.

É por isso, também, que obras não-elaboradas com a intenção de falar ao público infantil acabaram por atingi-lo. É o caso de Lewis Carroll e suas Alices, de Guimarães Rosa em muitos de seus contos, de poemas concretistas e oswaldianos. E de Leminski, no poema citado.

[13] Nada mais do que a conscientização da natureza universal da arte

literária, que a liberta desse ou daquele público específico, para propor-se como generalizadora e regeneradora de sentimentos, conforme diria

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Charles S. Peirce.

A função utilitário-pedagógica Dentro do contexto da literatura infantil, a função pedagógica

implica a ação educativa do livro sobre a criança. De um lado, relação comunicativa leitor—obra, tendo por intermediário o pedagógico, que dirige e orienta o uso da informação; de outro, a cadeia de mediadores que interceptam a relação livro—criança: família, escola, biblioteca e o próprio mercado editorial, agentes controladores de usos que dificultam à criança a decisão e a escolha do que e como ler.

Extremamente pragmática, essa função pedagógica tem em vista uma interferência sobre o universo do usuário através do livro infantil, da ação de sua linguagem, servindo-se da força material que palavras e imagens possuem, como signos que são, de atuar sobre a mente daquele que as usa; no caso, a criança.

Esse uso, por sua vez, também se manifesta por uma ação — a atividade de leitura —, responsável pela decodificação da mensagem, traduzindo-a em novos signos portadores de sentidos que a mente apreendeu e, agora, transfere à experiência do usuário, incorporando-os ao seu modo de pensar, sentir e agir.

Estar sob a dominante utilitário-pedagógica ou poética traz, por decorrência, duas espécies de uso da informação: do mais unificado ao mais diversificado. Se o primeiro é possível de ser controlado pela função pedagógica, o segundo é um desafio a essa função, já que [14] põe em crise qualquer previsibilidade de uso frente à alta taxa de imprevisibilidade da mensagem.

Ao uso passivo e consumista se sobrepõe um uso que implica atividade efetiva da mente receptora, sujeito das conexões que cria, das sugestões de sentidos que capta e reconstrói em cumplicidade com seu outro — o livro —, também ele renascendo a cada instante em que se vê em processo de leitura.

Na história do livro, a história do leitor e de sua leitura, ambas em permanente processo de reciclagem da informação, marcada de geração em geração.

Privilegiar o uso poético da informação é também pôr em uso uma nova forma de pedagogia que mais aprende do que ensina, atenta a cada

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modulação que a leitura pode descobrir por entre o traçado do texto. Ensinar breve e fugaz que se concretiza no fluir e refluir do texto, sem pretensões de ter a palavra final, o sentido, a chave que soluciona o mistério. Mais do que falar e preencher, o texto ouve e silencia, para que a voz do seu parceiro, o leitor, possa ocupar espaços e ensinar também. Redescobre-se, então, o verdadeiro sentido de uma ação pedagógica que é mais do que ensinar o pouco que se sabe, estar de prontidão para aprender a vastidão daquilo que não se sabe. A arte literária é um dos caminhos para esse aprendizado.

À função utilitário-pedagógica só resta um caminho, que a leve ao verdadeiro diálogo com o ser literário infantil: propor-se enquanto protopedagogia ou quase-pedagogia, primeira e nascente, capaz de rever-se em sua estratificação de código dominador do ser literário infantil, para, ao recebê-lo em seu corpo, banhar-se também na qualidade sensível desse ser com o qual deve estar em harmônica convivência.

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[15]

2 ".. .E de que serve um livro sem

figuras nem diálogos?" ____________________________

Figuras — diálogos e função pedagógica A frase é de Carroll, numa de suas Alices. O livro infantil, desde seus primórdios, tem procurado responder à

questão, promovendo formas de diálogos entre a imagem — a ilustração — e o texto verbal. Diálogos nem sempre dialógicos, isto é. dando lugar ao cruzamento de vozes diversas em sintonia no espaço textual. O mais comum é o aparente diálogo que, no fundo, esconde um tom único, monológico, privilegiando a informação construída pelo texto verbal em detrimento daquela oriunda tio visual. A imagem transforma-se num simples apêndice ilustrativo da mensagem lingüística.

Entra em cena a função pedagógica, que se utiliza da imagem como uma estratégia para materializar, determinar e preencher aquilo que poderia se transformar, pela imaginação do leitor-criança, num campo vago e impreciso de possíveis construções imagéticas.

Para fazer frente a esse risco, a ilustração surge em momentos decisivos da estória, ou para mostrar como são as personagens centrais ........- heróis e vilões — em termos [16] de atributos físicos e psicológicos, ou para concretizar certas cenas, pontos de tensão da intriga, que se deseja gravar na memória do receptor.

Não resta dúvida de que é uma forma de dar veracidade à narração, conferindo à palavra-geral e simbólica um caráter de índice, de existente real e individualizado. É a conexão, por contigüidade e subordinativa, texto-ilustração que permite maior eficácia do processo comunicativo, garantindo que as informações nucleares da narrativa, graças ao estímulo

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da imagem, criem hábitos associativos tais que sejam inscritos diretamente no pensamento da criança com o mínimo de esforço e com o menor dispêndio de energia possível. É esse o caso de uma série de livros infantis, entre eles o célebre Emília, de Monteiro Lobato, os álbuns de imagens (Coleção Recreio, Melhoramentos) e os textos da Coleção do Pinto, da Editora Comunicação.

Emília, por exemplo, já está preenchida imediatamente em nossa imaginação, assim como todos os demais moradores do sítio do Pica-Pau Amarelo, pela automatização de um hábito que nos leva a aproximar a já convencional imagem de Emília — boneca de pano/tranças/olhos de botões/pintas no rosto/esperta/curiosa e questionadora das normas sociais — à simples emissão de seu nome.

Quanto aos álbuns de imagens, à semelhança das cartilhas, a vinculação imagem-palavra permite, também, que se estabeleçam hábitos associativos que aliam a figura à palavra, cujo significado se pretende ensinar, na tentativa de introduzir a criança no domínio do código lingüístico, a fim de cumprir uma finalidade de alfabetização da qual a representação visual é mero suporte.

Já na Coleção do Pinto, a construção imagética assume, como a proposta da série, um caráter realista, isto é, de uma representação que tenta ser mimética à realidade visível, reproduzindo-a em seus atributos físicos. Mesmo naqueles livros da série que tentam captar o mundo [17] interior das personagens (Eu vi mamãe nascer e O primeiro canto do galo), o aparente rompimento com a continuidade do traçado da figura pela técnica do pontilhamento acaba por se desfazer, na medida em que a simples união dos pontos recupera a linha. Em todos esses casos exemplares, avulta como constante a alta definição da imagem, de modo a não deixar espaço para que outras possibilidades de preenchimento possam ser feitas pelo olho do leitor-criança.

"De que serve um livro sem figuras nem diálogos?" Responderia esse conjunto de textos da literatura infantil pelo uso pedagógico de figuras e de diálogos, atendendo a uma finalidade educativa de formação de hábitos lingüísticos e comportamentais.

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Figuras — diálogos e função estética Mas a frase de Carroll tem outra significação. Decifrá-la é

promover uma espécie de diálogo diverso entre ilustração e texto. Poucos livros infantis entenderam isso, aliás, como não poderia deixar de ser, e os raros que o fizeram, não há dúvida, investiram num verdadeiro projeto artístico, simultaneamente gráfico, plástico e literário. Esse é o real caminho dos inventores no campo da literatura infantil.

Figura passa a designar, agora, um tipo de construção icônica, seja ela visual, sonora ou verbal, estruturada com base em alguma semelhança que une a forma qualitativa do signo àquela do objeto que representa. Figuras que, mais do que representar, desejam ser, presentar os objetos pertencentes a realidades de outra ordem: aquelas das formas possíveis, cuja existência se deve ao fato de poderem ser imagináveis, independente da conformação da experiência e da razão.

[18] Alice no país das maravilhas é o melhor exemplo disso. Uma figura: a história que o rato conta a Alice, trazendo nela

inscrita o rabo dos protagonistas, gato-rato, e da ação de perseguição entre eles que termina na palavra PRATO, em cujo interior é devorado o rato.

E outra, ainda: a professora da falsa Tartaruga, a TORTURUGA, que já traz incrustada em seu nome a qualidade torturante.

Alice, o Grifo, o Rei e a Rainha de Copas. Figuras, apenas. Não há modo de vê-los como réplicas do ser humano. Não há como provar sua existência no contexto extratextual. Simples formas de pensamento feitas da analogia palavra-som-imagem. Seres de papel que habitam o imaginário do livro e se transformam em lances vivos para outras formas de pensamento no instante mágico da leitura.

De Alice, não se tem a definição de uma representação visual, mas, ao contrário, a baixa definição de uma figura, que é ao mesmo tempo bruxa, fada, serpente, anã e monstro. Tudo isso e nada disso. Alice é um poder ser. Sonho dentro de um sonho. Formas de metamorfose tal qual o diagrama de uma cadeia de pensamentos, na qual ela própria se vê inscrita como signo. "Quando eu lia contos de fadas, pensava que essas coisas jamais aconteciam, e cá estou eu metida numa dessas estórias! Deve haver algum livro escrito sobre mim, deve haver! E quando eu crescer, escreverei um. . . mas eu já cresci" — e acrescentou, cheia de tristeza: "pelo menos

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aqui não existe mais espaço para crescer". Aqui, não há como falar em uso pedagógico de figuras e diálogos,

já que não subsiste um fim utilitário de ensinamento, que faz de ambos meios expressivos para um objetivo que os ultrapassa. Figuras e diálogos, aqui, acabam por apontar para si mesmos, para a própria materialidade [19] do texto como informação. Informação poética em primeiro plano: a projeção da similaridade sobre a contigüidade; o icônico sobre o simbólico.

Três espécies de figuras Quanto às figuras, há que dividi-las em três espécies: sonoras,

visuais e verbais. O livro infantil é o espaço para a ocorrência desses três tipos, cuja sintaxe estrutura a informação artística do texto infantil.

As figuras sonoras constroem-se pela pulsação rítmica das frases ou, ainda, pela cadência dos acentos fracos--fortes, longos-breves, agrupando sons tendo por base as semelhanças e as dessemelhanças entre eles. Trata-se de um ritmo capaz de criar seu próprio objeto, através das semelhanças e dos contrastes sonoros, ao invés da mera sucessividade de sons, suportes para a informação lingüística.

A rima (semelhança sonora no início, no meio ou no fim dos versos), as aliterações (repetições de um mesmo som), os paralelismos (ritmos que se repetem), as dissonâncias (ritmos dessemelhantes inclusos num só tempo) são algumas dessas figuras sonoras.

As figuras visuais, por sua vez, terão por objeto a construção de formas analógicas através da semelhança e do contraste entre linhas, figuras, planos, cores, espaços. Aí, no universo das próprias possibilidades de formas visuais, reside a informação que não tem nenhum compromisso de fidelidade à reprodução dos objetos existentes na realidade visível; ao contrário, opõe-se a qualquer representação verossímil que tente dar a ilusão de realidade através da perspectiva e da centralização na linha do horizonte, que divide o quadro em dois planos básicos: o primeiro, frontal (figura), e o segundo, secundário e mais distante (fundo).

[20] Quanto às figuras verbais, centralizam-se, basicamente, em duas:

metáfora e paronomasia. Em ambas, a construção faz-se por relações de semelhança. Na metáfora a semelhança é auxiliada pelo significado dos

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termos em conexão, enquanto na paronomasia a semelhança faz-se com base na materialidade gráfica, sonora e de sentido entre as palavras envolvidas.

É o caso do nome da personagem RAUL DA FERRUGEM AZUL, cuja conexão Raul-Ferrugem faz-se tendo por suporte o significado comum entre ambos — a falta de uso, a inação —, que, afinal, acaba por identificar o atributo básico da personagem Raul.

Já no nome da professora da falsa tartaruga, a Torturuga, ocorre a paronomasia, desde que seu atributo já está inscrito na própria materialidade de seu nome, fundindo-se, assim, nessa "palavra-valise" duas informações simultâneas: TARTARUGA (que) TORTURA.

Outro momento inventivo de fusão entre os três tipos de construções figurativas aparece em Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, nesta etapa da narrativa.

Ilustração 1 -LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO- -LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO- BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO... Em alternâncias e paralelismos rítmicos, módulos móveis LO-BO,

em múltiplas posições no espaço-página, constroem por analogia a imagem da devoração do LOBO metamorfoseado na própria palavra BOLO, a ser "comida" pelo olho, ouvido, boca, pensamento do leitor, integrando sonoridade, visualidade e sentido. Devoração que leva consigo a associação simbólica LOBO-MEDO pela construção de um totem desmistificador do tabu.

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[21]

3 A personagem e seu duplo — a criança

_____________________________

A estrutura da personagem-padrão Desde as ancestrais narrativas de magia, a personagem avulta em

sua forma mais simples, preenchendo algumas funções básicas determinadas pela intriga.

Essa estrutura das formas narrativas mais rudimentares é o objeto da primeira grande obra dedicada ao tema; trata-se de Morfologia do conto maravilhoso, de Vladimir Propp, cuja primeira edição é de 1928, em pleno formalismo russo,

Propp, estudando os contos de magia oriundos do folclore russo, determina-lhes os elementos invariantes — as sete funções nucleares que englobam as esferas de ação das personagens — e os elementos variantes — os atributos dos seres narrativos.

Traça-se, assim, o estatuto da personagem (agente da narrativa), que cumpre funções específicas na intriga a partir de um conjunto de ações que a qualifica como herói, falso herói, agressor, doador, mandante, auxiliar, pessoa procurada — as sete funções caracterizadas por Propp.

[22] Modelo que privilegia personagens que cumprem papéis fixos numa

intriga linear, em que a sucessividade domina. Preenche esse padrão narrativo tradicional grande parte dos textos

da literatura infantil, embora a produção contemporânea, que será o nosso corpus de análise daqui para a frente, caracterize-se mais por violações a esse estatuto-base, seguindo a trilha das novas experimentações narrativas da modernidade literária.

Tomando-se por princípio o coração da narrativa — a personagem, que se caracteriza por sua esfera de ação, cuja correlação com outras

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constituirá a intriga — cabe à imagem a função atributiva dos seres narrativos. Qualificadores mais ou menos determinados e que, praticamente, seguem duas alternativas: a de composição de uma representação verossímil correspondente a um ser humano, de sorte a estimular a projeção e a catarse da criança, ou a de composição de um perfil, que vá se afastando gradativamente da fidelidade a um modelo preexistente e fincado na realidade extratexto para se constituir, tal como Alice, num signo, numa forma de representação, numa imagem cuja vida brota do texto em sua relação de leitura.

A transformação do estatuto da personagem na literatura infantil A personagem caracterizada pela esfera de ação Centrando-nos na produção literária infantil contemporânea,

podemos acompanhar a metamorfose da construção das personagens, tomando como ponto de partida aquelas que cumprem o modelo proppiano, isto é, que se caracterizam pela esfera de ação. É o caso de A ilha perdida, de M. José Dupré, e de O gênio do crime, de João Carlos Marinho. Em ambos, a heroicidade é dada a um grupo de [23] crianças, de modo que temos uma mesma esfera de ação — a do Herói — distribuída entre diferentes personagens, o que já constituiria uma pequena transformação do modelo proppiano.

De resto, a intriga desenvolve-se linearmente numa sucessão funcional, que, no caso de A ilha perdida, vai desde o desejo de deslindar o mistério pelas crianças até o momento de clímax: a descoberta do enigma-Simão, o único habitante da ilha que lá vive, envolto num ambiente paradisíaco e mágico.

Esse é o verdadeiro herói da história, cujos atributos — coragem, autodeterminação, liberdade, amor à natureza — passam a ser admirados e copiados por Henrique, a única das crianças a quem o segredo é revelado.

Nesse momento, a atuação da função pedagógica é marcante, já que através da personagem envia-se à criança, especialmente àquela que, tal qual Henrique, vive na cidade distanciada do ambiente natural, uma mensagem que a compele a admirar a natureza e a respeitar os animais.

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No caso de O gênio do crime, temos uma história estruturada pela lógica da causalidade, que monta, pista por pista, o referente da heroicidade de um grupo de meninos detetives em competição com um detetive invicto, Mr. John Peter Tony, na descoberta de uma fábrica clandestina. As personagens, numa intrincada perseguição ao vilão, desenvolvem uma ação narrativa sucessivo-temporal, remetendo o leitor ao referente humano exemplar: o confronto entre dois gênios — Bolachão (o herói) e o Anão (falso herói); a inteligência a serviço do Bem X a inteligência a serviço do Mal.

O ponto de maior tensão da intriga é o momento da luta, a grande prova da heroicidade (Bolachão X Anão). Dessa prova, Bolachão sai vitorioso, de modo a ser confirmado como herói, o gênio do crime. Vitória que se [24] deve não à atuação de algum poder mágico, mas à força da razão e da inteligência das crianças, que conseguem ludibriar tanto o gênio da criminalidade como o do desvendamento dos crimes: o detetive americano.

Uma mensagem que aponta diretamente para a ação da função pedagógica, ao sobrepor a criança ao adulto que deseja dominá-la.

Nesses dois textos, é mínima a atenção dada à ilustração, que se restringe a imagens sem nenhuma expressão, limitando-se a reproduzir convenções de personagens-tipos.

Já em O gato que pulava em sapato, de Fernanda Lopes de Almeida/Cecília, o trabalho da imagem adquire um valor funcional maior ao assumir a função narrativa junto ao verbal, de modo a construir a sucessividade das esferas de ações da personagem — O Gato MIMI - desde a sua dominação pela dona até a sua libertação, assumindo o código da espécie dos gatos: subir em telhados, e não em sapatos.

Para a ação da função pedagógica, a mensagem traduz-se em termos de uma analogia gato-criança, dona-adulto transferindo à dona, através do comportamento exemplar de seu gato, uma nova qualificação frente ao social: "— Aquele é o meu gato. É um ótimo subidor de telhados".

Tal qual muitos pais em relação a seus filhos. . . A imagem cumpre a função narrativa, apoiando-se na representação

metonímica da parte pelo todo. É preciso combinar os índices visuais para se compor o conjunto, quer em termos da caracterização da personagem:

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afagado pelas mãos da dona laço cor-de-rosa

MIMI + toucas cor-de-rosa = NÃO-GATO pires cor-de-rosa para tomar leite pular em sapato ao invés de subir em telhado

[25] quer em termos da representação visual das ações do gato Mimi,

como a subida ao telhado e a queda, por exemplo, construídas pela repetição da imagem do gatinho em diferentes posições de saltos, de modo que unindo esses fragmentos o olho do leitor recompõe o pulo e a queda.

O momento decisivo do confronto gato X dona, por exemplo, é bastante interessante: enquanto no verbal é o diálogo que constrói essa luta, que é também de dois tons — afirmativo do gato e interrogativo-exclamativo da dona:

— Aprendi que não sou um verdadeiro gato. — O quê? — Onde já se viu gato que sobe em telhado de dois em dois meses? — Mimi! Que idéias são essas?!!! — Agora vou subir todos os dias. — Meu Deus! no visual constrói-se, por contigüidade, a ação do gato de retirada

do laço cor-de-rosa, que o caracterizava como não-gato, frente ao sapato e às pernas que apontam para a antagonista-dona.

Cabe à atividade de leitura integrar esses fragmentos verbais-visuais para reconstruir no conjunto as esferas de ação do herói e de seu oponente.

Inversões nas funções tradicionais da personagem É na ruptura com as funções tradicionais da personagem

caracterizada pelo modelo proppiano que se esteia a parte mais significativa da produção literária contemporânea destinada à infância.

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[26] Em simples narrativas como O gato do mato e o cachorro do morro

(Ana Maria Machado/Janine Decot), já se percebe o questionamento aos hábitos rotineiros desde a capa, na qual imagens do morro e olhos de gato indiciam a história, entre rabos e folhagens que mantêm entre si analogias visuais; rabos e olhos encaram o leitor já desejoso de decifrá-los no encadeamento da narrativa ou no jogo sonoro da rima dominante: mato-gato, cachorro-morro.

Novos imprevistos ocorrem: dois inimigos ancestrais — gato e cachorro — são propostos simultaneamente como possíveis heróis da narrativa:

Era uma vez um mato. Onde morava um gato. E era outra vez um morro. Onde morava um cachorro. No entanto, uma pseudo-heroicidade que só se faz no horizonte do

desejo de ambos, esvaziando-se num mero contar vantagem. Quando o momento decisivo surge — o confronto com o leão — o

combate dá-se com a distribuição dessa função por muitos animais além dos dois implicados — cão e gato. Uma mesma esfera de ação, a do herói, é, portanto, partilhada por muitos, enfraquecendo o individual na medida, mesma, em que fortalece o grupai.

Assim, simultaneamente à função de herói em dispersão, ocorre a dupla visão de um herói que é o anti-herói; fusão de contrastes.

Em termos de ilustração, dispersão e fusão dos elementos visuais são as constantes atributivas da imagem, traduzindo por similaridade aquilo que a esfera funcional das personagens construiu. O melhor exemplo disso é a própria capa do livro.

[27] Ilustração 2

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fusão folhas-mato-olhos gato (forma) cachorro DISPERSÃO leão etc fusão mato-rabos gato (forma) cachorro leão etc No fascinante jogo, imagem e personagem ora se contêm, ora se

dissociam, apontando novos contextos verbovisuais imprevisíveis ao leitor. O elemento lúdico subjaz no sintagma como um jogo de possíveis combinatórias entre o olho que vê e o que lê.

A ação imaginária persegue o verbal ao criar signos em diálogo, embora o discurso pedagógico ainda insista sobre o narrativo, informando sobre a moral da convivência entre gato e cachorro em sua tradicional rivalidade:

[28]

Num grande abraço, o gato do mato e o cachorro do morro descobriram uma coisa boa: brigar pode ser útil, mas para que brigar à toa?

— Quem está na mesma tem que ser amigo. — E deixar para brigar junto quando vem o inimigo. Mas a inversão pode se fazer, ainda, numa narrativa apenas visual,

como Filo e Marieta (Eva Furnari). Agora, é pela contigüidade entre um quadro e outro que a ação de

Filo e Marieta, duas bruxas-fadas, se desenvolve. O estatuto tradicional das fadas e sua esfera de ação de mandantes ou doadoras do objeto mágico ao herói são questionados, quer pela imagem das fadas — feias e velhas — quer pelo uso da vara de condão que, ao invés de as confirmar como fadas, volta-se contra elas. Fadas que não sabem fazer uso do código das fadas. Perdem em heroicidade e magia o que ganham em falsa heroicidade e proximidade às pessoas comuns. Sem auréola, desmistificadas, heroínas decaídas, pondo em crise, num passe de mágica, a estrutura dos velhos contos de fadas que povoaram o imaginário das crianças desde tempos imemoriais.

E é exatamente aí, isto é, o final feliz convencionado pelos

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tradicionais contos de fadas, que História meio ao contrário (Ana Maria Machado/Humberto Guimarães) começa. Fim que é começo, ou melhor, meio para uma história que não sabe bem definir onde é o seu começo, pondo em crise a causalidade e a sucessividade temporal.

Personagens-padrão — rei, rainha, princesa, príncipe — com atributos padronizados — casamento e felicidade eterna, desconhecimento da realidade, construção de aventuras para entreter o tédio e a inação.

No entanto, o estranhamento surge neste modelo por vários caminhos:

[29] a) o enigma que ronda o rei durante toda a narrativa — o

responsável pelo roubo do dia — revela-se um pseudo-enigma, fruto da extrema cegueira da "real visão" tão enclausurada em si a ponto de desconhecer o mais comum fenômeno da natureza — o ciclo dia-e-noite;

b) "o monstro terrível" — o Dragão Negro e seu olho de luar —, contra quem o príncipe encantador (e não encantado) deve lutar para livrar o reino da ameaça eterna do roubo do dia, revela-se mera construção imaginária, uma figura metafórica elaborada pelo Primeiro Ministro para ludibriar o rei e entretê-lo na sua pseudo-função de rei;

c) o confronto herói—monstro terrível, que não ocorre, na medida em que o príncipe, fascinado pelo olho de luar do Dragão, se esquece da luta e do casamento com a princesa (o eterno prêmio para aquele que vencesse o dragão) e se apaixona pela Pastora;

d) o casamento príncipe—princesa coroando a esfera de ação do herói não ocorre e, ao invés disso, a princesa rebela-se contra um casamento que não deseja e parte para conhecer o mundo para além do castelo, enquanto o príncipe encantador casa-se com a pastora e transforma-se num simples vaqueiro.

Em tudo o avesso, contrariando as funções pré-estabelecidas pelas esferas de ação das personagens dos contos de magia.

Na ilustração, predomina a simultaneidade dos espaços exteriores e interiores, planos que se distanciam e se fundem, negando a perspectiva única e convencional, ao mesmo tempo que transporta todo um cenário histórico medieval para o presente do narrar, recuperando o traçado primitivo da figura humana miniaturizada em seus detalhes.

[30] Todavia, o sentido satírico atravessa o visual simbólico, na mesma

proporção em que o narrador nega o valor hierárquico da palavra da

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autoridade real por meio da palavra de ordem do discurso: tanto a palavra sofre a inversão, quanto a imagem figurativa que a representa; uma remete-se contra a outra, gerando o desfazimento do sentido atribuído pela causalidade histórica — o da heroicidade produzida pelo lendário das narrativas medievais. O contrário revela-se entre os choques do sintagma narrativo do passado e do presente — inversão de histórias de reis, rainhas, príncipes e princesas. Desconstrução de

Ilustração 3

[31] hierarquias funcionais de personagens cedendo às leis do espaço

textual o direito de gerar suas próprias causas e efeitos. Na narrativa O rei que não sabia de nada (Ruth Rocha/José Carlos

de Brito), outro exemplo: em abertura, a página clássica do conto maravilhoso, sob a superfície lúdica do xadrez, colocando em jogo os valores entre dois tempos e lugares — passado e presente: "Era uma vez um lugar muito longe daqui". O espaço crítico que se abre entre aquele que narra e a história levanta-nos, sobretudo, a questão da representação do modo de ver o objeto e de significá-lo na pessoa do rei. Essa personagem

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[32]

de representação do poder é ludibriada pelos ministros que fingem trabalhar, fazendo-se substituir por uma máquina.

Esta, frente à ausência do comando humano, desorganiza-se e o reino entra em crise. Tal situação, até então desconhecida do rei, vem a lhe ser revelada quando, em visita ao reino, os cenários artificiais construídos para enganá-lo caem, sob a ação de uma bola lançada por uma criança: Cecília; imprevisto que leva à fuga do rei e à conseqüente perda da coroa, o que o torna um anônimo, desfuncionalizado em sua pseudo-heroicidade.

Apenas como anônimo é que vem a saber do ludibrio até então vivido, através da personagem-criança Cecília. Esta encarrega-se da transformação do reino em um parque de diversões, onde a máquina teria a função adequada.

Cecília e o povo passam a ser os heróis a decidir a vida no reino do Rei que não sabia de nada. Conseqüentemente, forma-se outro modo de representar a realidade, agora sob o ponto de vista do povo liderado por Cecília.

Substituição de poder: das mãos de um grupo dominante para as do povo, que emerge de sua tradicional posição de dominado. Luta de classes em ação e a função pedagógica em curso, trazendo de um passado lendário uma mensagem para o presente: "E o reino foi consertando, consertando, e até hoje o povo de lá lembra desta história e trabalha contente (. . .)".

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Quanto à imagem, distorcida pela proporção e pelo humor do seu traço, revela a representação do "popular", parodiando a nobreza, e, entre modos de ver o real, executa o jogo da realidade enganosa: o poder e o não-poder.

Já Raul da Ferrugem Azul (Ana Maria Machado e Patrícia Gwinner), centra-se na metamorfose da personagem: do enferrujamento ao desenferrujamento; da esfera do desejo para a do agir. Por isso, Raul da Ferrugem Azul [33] fecha um ciclo — o da personagem que se caracteriza por sua esfera de ação — e abre outro — o da personagem que passa a se caracterizar, também, pelo que deseja, sonha, lembra, imagina, pensa, ou, ainda, pela esfera atributiva de seu mundo interior. Na medida em que o espaço da narração abrange a consciência — universo da representação, das formas de pensamento que são signos, isto é, modos de cifrar e significar o universo —, a personagem passa a se perceber como representação, signo, a um passo para ser também o narrador construtor de sua própria história a um possível leitor. Assim é Raul. Personagem apenas atributiva na primeira etapa, que tudo podia mas nada fazia, desfuncionalizada em sua esfera de ação de herói; daí o enferrujamento.

A grande prova do herói: superar o estágio de enferrujamento, colocando em ação a esfera atributiva de seus desejos e intenções. Tal vem a ocorrer no final da narrativa, quando Raul confirma sua heroicidade, de um lado, por sua interferência na intriga em defesa do mais fraco; de outro, por assumir, agora como narrador, a reconstrução de sua própria história, feita narrativa nas asas de sua imaginação:

Era uma vez um menino que quando nasceu recebeu de umas

fadas invisíveis uma porção de dons especiais. Tinha voz para cantar e falar. Tinha mãos para pegar e fazer. Tinha pernas para andar e correr. Tinha cabeça para inventar e pensar. Mas como ele morava num lugar onde as pessoas faziam quase tudo para ele, muitas vezes não era preciso usar esses dons. E alguns deles foram enferrujando. Na ilustração, genericamente, ocorre a amplificação, por acréscimo

de atributos, da história narrada pelo verbal. É o caso da representação visual do enunciado verbal "Raul dorme"; na cena, não apenas Raul dorme, mas tudo [34] ao seu redor: a lua no céu, o ratinho, os objetos deixados a um canto, o livro (Isolda, a baleia) a revista (Play Baby — réplica infantil

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do adulto Play Boy). Integração da personagem ao ambiente. Interior e exterior organicamente vinculados à semelhança do pensamento infantil, para o qual tudo pulsa cheio de vida, até mesmo os objetos inanimados.

Raul da Ferrugem Azul, embora ainda mantenha vínculos de verossimilhança com a imagem da criança-leitora da história, já aponta para a grande transformação da personagem em direção a seu atributo básico: o texto.

O universo da consciência e a personagem A personagem-criança no espaço-tempo de sua consciência não

mais se caracteriza pelo que faz exteriormente, mas pelo que imagina, deseja, sonha, lembra atributos de seu mundo interior; não uma coisa depois da outra, mas tudo ao mesmo tempo, nas dimensões de um espaço-tempo dinâmico e relativo. O que seria disfunção — personagens que não se definem pela esfera de ação, mas pelos atributos —, aqui, ao contrário, é função. São os atributos, as qualidades, que passam a funcionalizar as personagens numa intriga que se rarefaz em termos de acontecimentos em cadeia para ganhar uma dimensão vertical enquanto qualificação de cada instante de consciência, justapondo sensações, sentimentos e idéias.

É o caso de narrativas como: O barril (Mirna Pinsky e Rogério Borges) e O menino que espiava pra dentro (Ana Maria Machado e Flávia Savary). Na primeira, o contexto verbal constrói atributos em oposição para as personagens André e sua irmã Júlia, a saber: André — grande, forte, bonito e inteligente; Júlia — pequenininha, dorminhoquinha, choroninha e inventiva; ambos desejam marcar sua heroicidade por meio de aventuras feitas com [35] a imaginação dentro de um barril marrom, grandão e mágico. Alternadamente, as histórias se sucedem, tal como histórias mágicas que o gato (que não era galo, mas MUI uma gata criadeira) da imaginação trazia na cabeça, a partir dos telhados mágicos conhecidos. O elemento maravilhoso da magia fabular passa a escrever a história vivida pelas personagens André/Júlia, indiciando para o visual os quadros-cenas dos eventos heróicos evocados pelo verbal.

Destaca-se uma imagem de cunho simbólico-metafórico, figurando os eventos: o barril circular, oco e volumoso à semelhança da consciência, espaço onde interagem formas de pensamento feitas imagens. Entre as

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imagens criadas, as histórias acontecem também para o leitor-criança, sob o olhar da gata.

Em O menino que espiava pra dentro, a personagem Lucas tem como atributo principal e gerador de toda a narrativa a observação, mediadora entre o ver dentro e fora, entre a consciência e a realidade. A ação transcorre num constante paralelismo entre imagens reais c imaginárias, de forma a romper a sucessividade temporal vinculada à reprodução de um passado lendário — a Bela Adormecida, bruxas, duendes, gnomos, ladrões — pela incorporação e transformação dessas imagens na simultaneidade da consciência de Lucas, que funde passado-presente numa figura que a ilustração capta.

Paralelismos, contrastes, semelhanças. Diagramas começam a ser traçados dentro do texto; cada vez mais, o que se diz é substituído pelo modo de dizer, o que implica na escritura, no texto daquele que narra, seleciona e combina os signos verbais-visuais a partir de um ponto de vista móvel e relativo.

A personagem vai-se desfazendo enquanto imagem estática, perdendo contornos de superfície e de linha para penetrar nos meandros atributivos das formas analógicas de [36] sentimentos, sensações e emoções. Personagem que é isso e aquilo. Múltiplas facetas, tal qual um prisma, um caleidoscópio.

Ilustração 4

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Consciência. Formas de pensamento e de representação. Signos. Escritura. Texto.

E eis aí como chegamos, sem esforço, ao momento da grande transformação da personagem e da narrativa, que se vêem na sua materialidade textual. Essa é a sua natureza. De uma matéria feita de signos: palavra impressa, som, traço, cor, planos, figuras. Sua vida é a da escritura-leitura. À semelhança de Virgília machadiana que brota de um exercício com a palavra.

[37]

Da verossimilhança ao texto Maneco Caneco Chapéu de Funil (Luís Camargo) inaugura uma

nova linha de construção da personagem. Peça por peça, tal qual a linha de montagem da indústria, a personagem vai-se estruturando aos olhos do leitor pela combinação inusitada de objetos de cozinha. Do velho, o novo uso. Uma personagem — sucata que nos remete à famosa imagem, de Baudelaire, do artista "coletor de lixo" e da Arte alimentando-se daquilo que a sociedade de consumo lançou fora; restos recolhidos e pacientemente recuperados, renovados e transformados em produtos artísticos. 1

Assim também é Maneco Caneco: Cabeça de caneco. Ombro de cabide. Um braço de escumadeira, outro de concha. Uma mão de escumadeira, outra de concha. Uma perna de cabo de vassoura, outra de cabo de pá. "Coroado" por um chapéu. Chapéu de funil.

Os bastidores da construção da personagem são desvendados aos

olhos da criança, que vê à sua frente "um boneco engraçado"; não uma réplica sua, mas um brinquedo que foi montado, sem segredos, à sua frente e que ela pode desmontar e remontar, de agora em diante, na medida em

1 BENJAMIN, Walter. A modernidade. In: A modernidade e os modernos. Rio de

Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975.

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que também entrar na brincadeira, pondo em ação a sua imaginação criadora (como a Gata criadeira de O barril). 2

[38] Ilustração 5

Travestido em leitão-leitor, o público infantil também entra na

história e segue junto à personagem. Cumplicidade geradora de possíveis aventuras que só ocorrerão nos próximos livros do autor: Panela de arroz e Bule de café.

Neste, não houve acontecimentos a serem narrados, apenas deu-se espaço para a construção da personagem — seleção e combinação de atributos que vão sendo associados por contigüidade na relação verbal—visual para gerar no conjunto um anti-herói feito de restos de uma heroicidade perdida.

[39] A bela borboleta (Ziraldo/Zélio) e Pequeni-ninha (Mirna

Pinsky/Denise Fraifeld) são dois exemplos de textos que, gradativamente, e cada vez com mais radicalidade, fazem a personagem surgir da própria materialidade da mensagem.

2 Walter Benjamin percebe argutamente essa fascinação que a criança tem por restos

de objetos, com os quais pode articular brinquedos novos ao invés do brinquedo pronto, que só

lhe propicia a imitação passiva do mundo adulto. Veja-se o próprio texto de W. Benjamin: Rua

de mão única — extratos. In: —. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo,

Summus, 1984.

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Em A bela borboleta, o estranhamento é gerado desde a leitura da frase introdutória: "Era uma vez um livro", livro que é personagem de cujo centro emerge a "bela borboleta" com suas duas asas-folhas multicoloridas. Esse paralelismo — folhear do livro = vôo da borboleta — é que prende toda a ação narrativa, que, se de um lado é dada pela convocação de heróis de antigas estórias infantis para, sob a liderança do Gato-de-Botas, libertarem a Bela Borboleta presa no meio do livro, de outro é construída pelo corte cinematográfico das cenas, o que obriga o leitor a combinar "fotogramas" página a página, reconstituindo, assim, o movimento narrativo ou, ainda, libertando a bela borboleta através de seu vôo, livre, por entre o folhear das páginas-asas. O leitor, em substituição ao Gato-de-Botas na tarefa de libertação da borboleta, tem, repentinamente, a consciência de que: "— Eu não estou presa, porque cada vez que uma menina, que gosta do Gato-de-Botas, por exemplo, abre este livro e move as suas páginas, eu bato as minhas asas!".

Do mesmo modo, as demais personagens convocadas pelo Gato-de-Botas vêem a borboleta e recebem seu recado funcional de leitura, para a qual não tinham valor as suas armas obsoletas e anacrônicas (alicates, puas, tesouras etc), tendo a verossimilhança por suporte. Há que se fazer uso de uma única arma para se libertar um ser de papel: o toque do olho que o observa, das mãos que o folheiam, dos pensamentos que o sentem e dos sentimentos que o pensam no ato da leitura. Aí está a vida do livro, o que nos faz lembrar das fascinantes palavras de Jorge Luís Borges, que lembra Emerson:

[40]

Recordo aqui, com prazer, Emerson que disse: uma biblioteca é um gabinete mágico. Penso que em toda biblioteca há espíritos. E esses são os espíritos dos mortos que só despertam quando o leitor os busca. Assim o ato estético não corresponde a um livro. Um livro é um cubo de papel, uma coisa entre as coisas (...)

(BORGES, Jorge Luís. Camões. O Estado de S. Paulo, 19/abr./1981.)

Estamos assistindo ao nascer do texto. Deixando a verossimilhança

pela consciência de linguagem construtora da personagem. Assim é em Pequeni-ninha: Maia, a personagem, transforma-se do traçado a lápis, em letra cursiva de criança, para o traçado da máquina de escrever. Maia aí

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nasce. Ilustração 6

[41]

Entre a mão e a máquina, o artesanal e o técnico--industrial, do produto único à multiplicidade da reprodução técnica.

Emerge da superfície plana do tipo cursivo do lápis e/ou do tipo regular e homogêneo da máquina de escrever na bidimensionalidade do papel, para a projeção tridimensional da figura de uma menina pequenininha que passa a atuar como heroína da estória.

Lado a lado, dois projetos se delineiam: o do Narrador construtor de Maia — a personagem — e o da própria Maia. O primeiro tentando capturar Maia, controlá-la, ao repetir continuamente: "Estou com vontade doida de botar a Maia na palma da minha mão". O segundo, o de Maia, que escapa por entre os dedos--traços-teclas para assumir seu próprio fazer — a aventura de heroína vestida com saia, chapéu de plumas, sapatos altos, espada e capa de chuva roxa, no castelo da avó (como uma protagonista de Os três mosqueteiros).

Planos interdependentes, mas diferenciados. A criação e o objeto criado: dois em um, dois e um.

Pelo caminho mágico da imaginação (que é o do Narrador), Pequenininha vivência seu texto livremente, no mesmo ritmo e tempo de

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quem a escreve, por meio de uma máquina de escrever, retroalimentando sua história em feedback recriador, de sorte a mantê-la junto a si sempre "matutando na minha vontade de botar Maia na palma da minha mão. Eu sei que ela cabe debaixo do meu braço. Cabe direitinho no meu colo. . . Acho que ela até cabe dentro da minha mão".

Maia constrói e é sua escritora, dando ao leitor a chave de seu deciframento: a "chave está no seu bolso", também (no desenho feito por um lápis verde).

Pequeni-ninha (palavra que não cabe inteira em seu nome) é uma produção que resgata um repertório diversicado [42] do leitor-criança, dele exigindo a dinamização da imaginação: brincar com Maia, com as coisas do baú e, principalmente, com o ato de escrever.

Uma questão de tempo e lugar, ali ou aqui, a equacionar fórmulas imaginárias encadeadoras de fatos, que deixam distante a representação verossímil para se aproximarem da verdade ficcional.

Caso contrário, como Maia, "nunca que ia brincar com as coisas do baú". Nem a criança, o leitor.

Referências das ilustrações utilizadas Ilustração 1, p. 20: planejamento gráfico de Donatella Berlindis. Extraída de BUARQUE, Chico. Chapeuzinho amarelo. 2. ed. Rio de Janeiro, Berlendis & Vertecchia, 1980. p. 24-5. Ilustração 2, p. 27: de Janine Decot. Extraída de MACHADO, Ana Maria. O gato do mato e o cachorro do morro. 3. ed. São Paulo, Ática, 1983. capa. Ilustração 3, p. 30: de José Carlos de Brito. Extraída de ROCHA, Ruth. O rei que não sabia de nada. Rio de Janeiro, Salamandra, s.d. p. 28-9. Ilustração 4, p. 36: de Flávia Savary. Extraída de MACHADO, Ana Maria. O menino que espiava pra dentro. 3. ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985. p. 23.

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Ilustração 5, p. 38: de Luís Camargo. Extraída de CAMARGO, LUÍS. Maneco Caneco Chapéu de Funil. 3. ed. São Paulo, Ática, 1985. p. 13. Ilustração 6, p. 40: de Denise Fraifeld. Extraída de PINSKY, Mirna. Pequini-ninha. Belo Horizonte, Miguilin; Brasília, INL, 1984. p. 3.

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[43]

4 Discursos e vozes narrativas _____________________________

O processo comunicativo A forma narrativa instaura um processo de comunicação mínimo de

alguém que narra (o Narrador) algo (a Intriga) para alguém (Leitor). É o modo como se estrutura essa relação significativa Narrador—Mensagem— —Destinatário que determina o eixo significativo da narrativa. Tudo depende do foco narrativo ou, ainda, do ponto de vista que o Narrador assume frente àquilo que narra.

Assim, assumir um ponto de vista mais ou menos próximo do objeto da narração determinará, necessariamente, diferentes modos de vê-lo, cifrá-lo, significá-lo. Significação que não está no fato em si, mas no modo como é preenchido, modulado e comunicado ao Receptor.

No caso da literatura infantil, o foco narrativo participa de duas naturezas — a verbal e a visual —, ambas tentando uma comunicação, a mais próxima c direta possível, com a criança, recuperando a tradição de oralidade do "Era uma vez" dos contos de fada; aquele momento único de transferência da experiência do Narrador àqueles [44] que o ouvem de modo a "imprimir na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso" 3.

A oralidade como padrão narrativo

3 BENJAMIN, W. O Narrador. In: —. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e

política. São Paulo, Brasiliense, 1985. v. 1.

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Os textos da literatura infantil pautam-se pelo resgate da oralidade

na escritura, bebendo na fonte originária do ato de narrar. Mas o que significa, exatamente, um padrão narrativo fundado na

oralidade? O ato de fala é algo visceral ao ser humano. Anterior à escrita,

guarda muito do "mimetismo": aquele que fala tenta mostrar de forma imediata ao interlocutor o objeto de sua fala, através de vários canais simultâneos: palavra, entoação (ritmo), expressão corporal. Essa imagem inclusiva que a mensagem oral cria atua instantaneamente, de modo a proporcionar a troca direta de experiências entre os interlocutores.

Por isso, o discurso oral cria uma cena múltipla (verbal e não-verbal) e inclusiva, na qual o que menos conta é o que se diz, já que tudo está no modo como se diz e, mais ainda, na tensão dialética entre o dito e o calado; entre aquilo que a fala articula e a gestualidade desarticula e nega. Sua vida faz-se na fugacidade do presente, instante em que tudo está não estando. Discurso precário, um quase-discurso sempre em disponibilidade para incorporar um novo dado em risco com o acaso.

Decorre daí a pouca sistematização, que propicia, ao nível do desempenho oral de uma língua, os lances de criação de novas formas de dizer, experiências que o sistema lingüístico acaba por incorporar (dialética, língua e fala, ou, ainda, competência e desempenho). Por isso, [45] ao discurso oral permitem-se a redundância, os desvios das normas lingüísticas, a informalidade das expressões populares — gíria e trocadilho —, o paralelismo das estruturas sintáticas e a construção de enunciados sem ordem hierárquica, pondo em crise a linearidade de princípio, meio e fim. Afora isso, a marcação rítmica, o tom e a modulação da voz enunciam junto à palavra simbólica a não-palavra icônica.

No caso da literatura infantil, incorporar ao código escrito esse atributo de oralidade é, basicamente, substituir a sucessividade, a hierarquização, a contigüidade, a separação entre os elementos e o cunho analítico das sistematizações simbólicas pela simultaneidade, coordenação, similaridade, inclusão e síntese das formas analógicas do pensamento; formas que só permitem um controle precário por signos de ação (os índices) ou de semelhança (os ícones).

Enfrentar a oralidade é pôr em crise os tradicionais discursos literários, tal como o Modernismo e, em certa medida, o próprio Romantismo já o fizeram. É inaugurar um novo modo de narrar e de

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escrever. Narrar no mesmo tom e compasso do viver — escreviver —, de tal forma que não haja mais distância entre quem narra, o que narra e quem lê. Esse momento de sintonia é o que buscam os textos da literatura infantil, de modo a construir uma cena inclusiva a pelo menos três vozes — Narrador, Mensagem e Receptor — que interagem simultaneamente num intercâmbio de contínuas experiências em reciclagem.

Modos de incorporação do padrão de oralidade O léxico oral na sintaxe da escrita A incorporação da matriz da Oralidade na escritura literária infantil

segue por vários caminhos. O primeiro dele [46] é aquele que se faz ao nível lexical de uso de termos ou de expressões coloquiais em registros clássicos de oralidade — diálogo direto/indireto —, muito embora a sintaxe permaneça vinculada à hierarquização e à linearidade do código escrito. Um bom exemplo é a produção de Monteiro Lobato, em especial A chave do tamanho, alegoria construída para analisar as estruturas de poder numa de suas ocorrências: a guerra (a Primeira Guerra Mundial de 1914). Hitler, o Governo Americano e o Russo, o Coronelismo brasileiro são desarticulados por uma mera redução de tamanho; reversão que dá aos grandes e poderosos a pequenez dos dominados e a estes, subitamente, se acena com a possibilidade de domínio.

É o discurso alegórico que fornece a chave para o modo como o Narrador articula a narrativa, lançando mão de esquemas de oralidade — diminutivos, aumentativos, interjeições, onomatopéias, repetições de certas expressões, comparações com termos comuns ao universo infantil — para, sob a forma de diálogos diretos e indiretos, colocar em discussão um conceito mais geral e abstrato: a simbologia do poder.

Rastreando o texto, alguns fragmentos de oralidade a nível lexical: "Fiunnn!! Quando Emília abriu os olhos e foi lentamente voltando

da tonteira, deu consigo num lugar nebuloso, assim com ar de madrugada."

"...Emília, já quase sem fôlego, lavada em suor, saiu do labirinto e caiu exausta no chão, com um Uf!"

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"A chuva chegou — chuáááá..." "O algodão está encimíssimo." "Emília sentiu um friozinho no coração. Começou a desconfiar que

havia feito uma coisa tremenda, a coisa mais tremenda jamais acontecida no mundo."

[47] "Pensou, pensou, pensou. Depois resolveu calcular que tamanho

teria." "E o Visconde cada vez mais longe, com aquelas passadas

gigantescas! Parece que calçou as botas de 7 léguas do pequeno polegar." "Aquele filósofo ou poeta chinês, já não me lembro, que passou a

noite sonhando que era borboleta, e durante todo o sonho viveu a vida das borboletas, com idéiazinhas de borboleta, comidinhas de borboleta, tudo de borboleta, com a maior clareza e perfeição."

"Claro que ele estava entendendo. Quem não entenderia uma linguagem tão pão-pão-queijo-queijo como aquela?"

"Aquela história de andar com Emília em cima da cabeça estava 'emiliando' o Visconde."

A sintaxe, porém, permanece subordinativa, já que o discurso

narrativo usa a proximidade entre a fala de Emília e a linguagem infantil como estratégia para capturar o leitor-criança para uma outra significação, mais ampla e implícita: a crítica a uma ideologia de poder; pedaços do falar infantil no entremeio de um discurso ideológico.

Por isso, através de Emília, é o Narrador quem denuncia a sua própria fala:

Pensou, pensou. — Se todas as criaturas ficaram pequeninas como

eu fiquei, então o mundo inteiro deve estar na maior atrapalhação e com as cabeças tão transformadas quanto a minha. Mas a guerra acabou! Ah, isso acabou! Pequeninos como eu, os homens não podem mais matar-se uns aos outros, nem lidar com aquelas terríveis armas de aço. O mais que poderão fazer é cutucar-se com alfinetes ou espinhos. Já é uma grande coisa... Pensou, pensou, pensou.

[48] Entre Emilia e seu discurso, entrelaçam-se estruturas de oralidade

com força simbólica organizada sob a lógica da causalidade. A idéia central, o Poder e os Poderosos, dimensiona-se pelo conceito de Tamanho, que aponta para um diálogo com a Alice de Carroll:

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Aconteceu-me o que às vezes acontecia à Alice no País das Maravilhas. Ora ficava enorme a ponto de não caber em casas, ora ficava do tamanho de um mosquito. Eu fiquei pequenininha. Por quê?

Diálogo de superfície a nível de algumas inserções temáticas e

lexicais (certas expressões que Alice construía — "muito estranhíssimo" — e que Emília reproduz sem o mesmo estranhamento).

Jogos sonoros, visuais e a prontidão para o desempenho oral e escrito Outro modo de a escritura da literatura infantil incorporar a matriz

de oralidade na enunciação faz-se na Coleção gato e rato. Aí é o ritmo recorrente, em enunciados simples e repetitivos, um dos condutores da mensagem, que visa não só o desempenho oral, mas também o escrito, pelo domínio de estruturas frasais simples e preparatórias da Alfabetização. A função pedagógica cumprindo seu papel.

A imagem, por sua vez, funde-se à cena, completando a narração ao oferecer novos elementos para o olho que vê, mas não lê.

Um exemplo: O trem (Mary e Eliardo França). O narrador-criança que também é personagem, tal como o leitor, da viagem pelo trem-livro.

Vovô e eu vamos passear de trem (...) — Chi! chi! chi! ... chu! chu! chu! ... chi! chi! chi! ...

O trem sai devagarinho: Choque! Choque! [49]

A roda rodando, rodando sem parar, vai correndo pelo campo: choque-choque! Choque-choque!

O trem construído concretamente na fusão olho-ouvido-mão

cumpre seu caminho, na medida em que as cenas verbo-visuais se sucedem e o leitor, virando as páginas, também vai, por etapas contíguas, fazendo a viagem do princípio ("o trem chega apitando") ao fim ("o trem pára na estação. Como foi gostoso passear de trem!").

Treinamento da seqüência, da conexão contígua das partes que conduzem ao todo, operação essencial para o domínio do código

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lingüístico, em que é a combinação dos fonemas em sílabas, destas em palavras e das palavras em frases que gera o enunciado, à semelhança do caminho que o trem percorre:

/chi/chu/choque/ /roda/rodando /trem/ /parar/

Nesse sentido, a função narrativa serve-se de elementos da matriz

oral para efetivar um desempenho lingüístico no presente de leitura. Cabem, ainda, nessa modalidade produções como: Um tigre, dois

tigres, três tigres (Neusa Pinsard Caccese e Eva Furnari) e Estória em 3 atos (Bartolomeu Campos Queirós e Igor Balbachevsky).

A primeira já traz no título a ênfase à oralidade, num jogo sonoro que exercita o desempenho da vibrante /re/. O livro compõe-se de uma sucessão de parlendas selecionadas do folclore popular; ditos já convencionais cuja significação brota no momento em que são oralizados como jogos sonoros nas brincadeiras infantis.

É a ilustração, porém, que tendo a parlenda por objeto vai enunciá-la sob outro ponto de vista.

[50]

Ilustração 7

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No fragmento selecionado, o já tradicional:

Rei Capitão Soldado Ladrão Moça bonita Do meu coração

numa cadência rítmica bem marcada e previsível, é "oralizado" pela imagem, de modo a fundir numa peça de [51] roupa — símbolo do poder militar — a hierarquia social prevista na seqüência. O ladrão, como um botão a mais previsto na substituição do paradigma do poder, mesmo ausente (pela concretização do roubo que funcionaliza o ladrão), deixa a marca de sua presença transgressora da norma social, à semelhança da imagem que concretiza visualmente a transgressão a uma forma de discurso tão cristalizada quanto a parlenda.

Em Estória em 3 atos, no jogo entre palavras que se desenham e desenhos que se escrevem, o ensino, em três atos, dos procedimentos de comutação, supressão e acréscimo de sílabas dentro de três palavras-chave: GATO, PATO, RATO. Operações geradoras de frases narrativas simples, as quais se pretendem alvos do desempenho oral e escrito do receptor-criança.

O narrador e a escritura da fala

Escrever como se fala; eis aí a tarefa a que se coloca o narrador do texto literário-infantil para captar o repertório do seu público numa comunicação direta e envolvente.

Obras como O que os olhos não vêem e O rei que não sabia de nada (Ruth Rocha e José Carlos de Brito) operam nesse sentido:

Havia uma vez um rei ele gostava bastante, num reino muito distante Mas um dia, coisa estranha! que vivia em seu palácio Como foi que aconteceu? com toda a corte reinante. Com tristeza do seu povo Reinar pra ele era fácil Nosso rei adoeceu (...)

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(O que os olhos não vêem)

A cadência rítmica, o encadeamento por frases de estruturação simples e repetitiva, as modulações exclamativo-interrogativas, a integração na mensagem (nosso rei) são marcas que concretizam a captura de traços de [52] oralidade no corpo da escritura que muito se aproxima das formas populares do Cordel.

No espaço-tempo narrativo ouve-se, apenas, uma voz — a do Narrador — que fala pelas personagens em diálogos indiretos ou, até mesmo, pelo Leitor, enunciando possíveis interferências que faria. Ponto de vista fixo, de sorte a orientar toda a escritura para o Remetente-Narrador em relação direta à sua proposta ideológica de crítica ao Poder.

Comportamento similar ocorre em O rei que não sabia de nada, em que os conectores — aí, então, e, mas — vão modulando o falar do narrador e o atento ouvir do leitor. Isso apoiado por expressões do universo popular. Vocativos (Meu Deus!), negações que afirmam e afirmações que negam (Não é?, Mas sabe?, Pois bem!, E agora?, Essa não!), que vão construindo o fio narrativo por contigüidade.

Novamente, a repetição do esquema: a personagem Cecília fala em nome do Rei e ambos em nome do Narrador, que fala em nome de uma crítica ao Poder.

Em A casa da madrinha (Lygia Bojunga e Regina Yolanda), a oralidade desempenha uma função matricial, servindo de apoio sintático à história de Alexandre. O desenvolvimento dessa matriz de construção narrativa, por sua vez, é retroalimentada permanentemente pelo ritmo sonoro, que, de pausa em pausa, atinge as fronteiras do trabalho poético da linguagem:

Atenção! Atenção! Vocês já viram um pavão? Aposto que não.

Ainda mais um pavão como o meu: ele fala, ele dança, ele sabe fazer mágica, ele é genial! Observa-se a construção recorrente da sonoridade e seus efeitos

resgatados pela frase narrativa em verso falseado na contigüidade: "O pessoal olhou o chapéu. De lona. Bem velho. No chão".

[53] A construção arquitetônica da narrativa, à semelhança da casa da

madrinha, oferece o espaço para um processo de geração de histórias que se

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imbricam em novas histórias num processo de narrar sem fim, que se prolifera por múltiplos narradores: Alexandre, o Pavão, Augusto, Vera. Por isso, a casa não está nem aqui, nem ali, mas na suporposição de narrações cosidas pelo elemento mágico de A casa da madrinha: "pequena, branca, com quatro janelas no alto do morro, pequeno, bem redondo, bem no fim da estrada, todo tapado de flor". Imagens que se auto-encobrem, de sorte a desfazer qualquer referência determinada por verossimilhança externa.

Por entre a multiplicidade de vozes narrativas, no entanto, uma constante emerge do modo de narrar: a proliferação da imaginação criadora em diálogo constante com a do leitor, aquele que sabe ampliar seu sentido, apreender a qualidade da forma e acabá-la, para logo desmanchá-la ante a chegada de novas possibilidades de imagens.

Nessa fluidez da matéria imaginativa, tudo — personagens e histórias — tende a desaparecer:

— Tô indo m'embora. Vou mesmo pela estrada. Se eu for seguindo

toda a vida eu acabo chegando lá na casa de minha madrinha. — É que ... sei lá, toda a vida é tão comprido. — Eu te escrevo assim que chegar. Se abraçaram. Forte,

depressa. Alexandre pendurou a mala no ombro e foi andando; o Pavão

emparelhou com ele. Foram sumindo e sumindo! e aí sumiram de vez numa dobra do caminho.

Na dobra da própria página, por entre as pausas do olhar, o leitor

vai construindo a seqüência da narrativa em sua imaginação, "seguindo sua estrada, comprida, comprida" [54] , até fazer sumir a última frase da história, na sua mágica casa da madrinha.

Em Raul da Ferrugem Azul (Ana Maria Machado e Patrícia Gwinner), a incorporação da oralidade se faz via monólogo direto e indireto, no reduto da consciência da personagem. D.ois discursos se entrecruzam e se refletem — o do Narrador e o da Personagem:

E se despediu. Mas a idéia de um mais velho era boa. Só que ele

não tinha irmão. E não ia conversar um negócio desses com o irmão dos outros. Pai? Mãe? Professor? Se ninguém tinha reparado nada, não valia a pena perder tempo com eles. Também, ele sempre tinha conversado muito com gente grande. E agora também estava crescendo e descobrindo

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que isso nem sempre valia a pena. Ou valia? Quem sabe? Raul nunca conseguia encontrar direito as respostas. Quanto mais pensava mais achava era pergunta.

A constante tensão gerada pelo discurso do Narrador entre o ouvir e

o pensar sobre o problema constrói o monólogo-diálogo de Raul, fundindo as duas modalidades, direta e indireta. O narrador ora permite que Raul fale de si próprio, ora fala por ele em terceira pessoa; um disfarce para a apresentação do conflito de consciência da personagem.

Essa técnica do fluxo da consciência dá ao Narrador a função de articular a linguagem-conflito diretamente das formas de pensamento da personagem Raul, incapaz de organizá-las. Na busca de seu sentido de tempo ou de sua finalidade comunicativa, Raul deixa a livre associação por aquela regrada pelo encadeamento da sua história:

— Fui ver o Preto Velho. — Como é que foi? Ele te ajudou? — Ajudou. Aí ela não agüentou mais e perguntou: — Que é que era, Raul?

[55] E ele: — Era uma estória que eu não entendia e não sabia como

continuava. Mas agora eu já sei. Toda a vida me contou estórias. Hoje quem conta sou eu.

A habilidade de enunciar sua própria consciência através da

estrutura narrativa lendária revela a passagem do nível inconsciente e pré-verbal para o consciente presentificado no ato narrativo e transferido ao leitor, num convite para prosseguir o ciclo confirmador da raiz de oralidade:

Entrou pelo pé do pato, saiu pelo pé do pinto. Quem quiser que

conte cinco. Mas se você contar uma, pelo menos, eu já fico satisfeito. E você

mais ainda.

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O riso e o universo do avesso O riso é uma forma popular de subverter padrões; os chistes e as

piadas confirmam isso. Daí o vínculo de oralidade que carregam gêneros como a sátira e a comédia. É de Mikhail Bakhtin, em sua obra de 1929 — Problemas da poética de Dostoiévski —, a percepção de que o riso, numa festa popular como o carnaval, tem uma significação ambivalente de morte e nascimento; negação de alguns aspectos de uma verdade e afirmação de outros. Inscrito na Literatura, o riso carnavalesco instaura um tipo de construção chamada "paródia", essencialmente dialógica por operar no mínimo com duas vozes ou duas matrizes textuais simultaneamente: aquela que é objeto da ação de inversão paródica e aquela que realiza propriamente essa reversão. Não se trata de anular uma pela outra, mas de mantê-las vivas simultaneamente no mesmo espaço narrativo, no diálogo conflitante e tenso dos contrastes. Diálogo no qual a voz do leitor é essencial para atualizar [56] essa operação paródica na relação opositiva entre o modelo passado e a nova versão presente.

Algumas produções literárias infantis acenam nessa direção, como é o caso de História meio ao contrário (Ana Maria Machado e Humberto Guimarães) e Chapéuzinho Amarelo (Chico Buarque e Donatella Berlendis).

Eles eram um rei e uma rainha de um reino muito distante e

encantado. Para casar com ela, ele tinha enfrentado mil perigos, derrotado monstros, sido ajudado por uma fada, tudo aquilo que a gente conhece das histórias antigas que as avós contavam e que os livros trazem cheios de figuras bonitas e coloridas. Depois viveram felizes para sempre.

Isso era o mais difícil de tudo. Viver feliz para sempre não é fácil, não.

Duas matrizes textuais em diálogo: aquela do passado dos contos de

fada e esta, que o leitor tem presente em suas mãos, pondo em risco a estabilidade da "felicidade eterna" numa preparação para o grande momento de subversão do modelo institucionalizado.

Essa inversão dá-se na relação entre dois tons de discurso — o do narrador e o das personagens "reais" —, em passagens como esta:

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Daí a pouco, um criado veio lá de dentro: — Majestade, Dona Rainha está chamando. Disse para Vossa

Majestade vir logo tomar seu real banho, que a real banheira já está cheia e a real água vai acabar esfriando.

O Rei olhou para ele, olhou para o sol tão bonito se pondo no céu, sentiu a brisa gostosa do fim da tarde e descobriu que estava com preguiça de tomar banho. Deu suas ordens ao criado:

— Diga à Rainha que não estou com vontade de tomar [57] banho agora. Pode jogar a água fora. Vou ficar aqui fora mais um pouquinho olhando a tarde.

(...) Lá dentro, com o recado do Rei, a Rainha chamou a princesinha, e as duas trataram de ir começando a jantar, sentadas à real mesa, no real salão de banquetes, todo iluminado com dezenas de reais lustres de cristal, enquanto os reais músicos tocavam belas melodias.

O tom de falsete dado ao diálogo pela tensão entre as falas do

criado, do Rei e do Narrador vai destronizando a figura real, a exemplo de uma "coroação" bufa, concretizando-se no próprio discurso do Narrador pela repetição do qualificativo "real", que acaba por esvaziá-lo e invertê-lo. Ambivalência que se recupera em outras situações discursivas, tais como a descrição do enigma (o mito lendário do Dragão Negro, ladrão do Dia) que não é enigma (a simples sucessão Dia-Noite); ou, ainda, a força da velha imagem do gigante das histórias de Magia, aqui invertida e transformada em gigante adormecido, sutil sugestão a um Brasil convocado também a acordar de seu "sono eterno em berço esplêndido", de modo a saltar da forma envelhecida e emblemática do Hino Nacional para a ação transformadora da realidade. Sentidos paralelos que a sagacidade de uma leitura atenta e não-adormecida é capaz de apreender, no diálogo com o texto; subjacente ao dito, o entredito.

O riso, embora reduzido, começa a se esboçar para se fazer sonoro e claro no auge tragicômico do desespero real:

— Fechem todas as saídas! Ponham barreira em todas as estradas!

Cerquem o reino inteiro! Revistem todas as casas, vasculhem todos os cantos! Exijo que os ladrões sejam presos!

Aí foi uma correria. Uns saíam para um lado, outros se despencavam pelas escadas. Ouviam-se toques de clarim convocando soldados, barulho de passos de gente correndo [58] , relinchos de cavalos

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no pátio. E no meio de tudo, a voz calma da Rainha, tentando entender exatamente qual era o problema do seu adorado Rei.

— Majestadinha do meu coração, conta para mim, conta... Que foi que aconteceu, meu real amor?

Tanto ela insistiu que o Rei, finalmente, conseguiu urrar: — Uma coisa horrível! Roubaram o dia! "Carnavalização" dialógica que acaba por aproximar os contrastes,

tornando familiar e próximo o distante, de modo a fundir num elo envolvente as múltiplas vozes da mensagem do passado lendário ao presente do ato de narrar e ler. Uma cena que propõe a raiz oral pela inversão paródica da forma narrativa.

Similar procedimento ocorre em Chapeuzinho Amarelo (Chico Buarque e Donatella Berlendis). Também aqui, uma matriz vinculada ao passado literário-infantil — Chapeuzinho Vermelho-Lobo-Medo —, é invertida no jogo trocadilhesco, com a palavra-chave Lobo revertida em Bolo, num autêntico destronamento bufo que atinge a um só tempo tanto a imagem lendária do lobo, "que nunca se via, que morava lá para longe, do outro lado da montanha num buraco da Alemanha, cheio de teia de aranha numa terra estranha, que vai ver que o tal do Lobo nem existia", quanto o valor simbólico-convencional da palavra que expressa essa imagem conceituai, também ela destronizada pela não-palavra icônica e motivada.

É pelo trocadilho que se incorporam à escritura os jogos orais dos "códigos secretos", tão ao gosto da infância, que se amplificam ao final, na brincadeira de Chapeuzinho:

Mesmo quando está sozinha, inventa uma brincadeira. E transforma em companheiro cada medo que ela tinha:

[59] o raio virou orrái, barata é tabará, a bruxa virou xabru e o diabo é bodiá. Lição aprendida da transformação do velho em novo. Chapeuzinho,

ao invés de ser devorada, devora, antropofagicamente, seu outro — o lobo

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— transformando o tabu em totem. Assim como a inversão trocadilhesca que invade, também, a imagem.

Ilustração 8

[60] No jogo contrastivo figura-fundo, a sombra projetada pela silhueta

de Chapeuzinho também sugere seu opositor —• o lobo — com a boca aberta pronta para abocanhá-la.

A paródia, porém, tem outros caminhos que não apenas a via do avesso. Num sentido lato, paródia (do grego "pára" = junto e "odé" = ode, canto) pode ser entendida como "canto paralelo" (essa é a interpretação que Haroldo de Campos dá ao termo), envolvendo qualquer espécie de multiplicação de vozes. Nesse caso, além do procedimento da inversão, apontado por Bakhtin, ocorre também o da amplificação (detectado por Lucrécia Ferrara em A estratégia dos signos), que implica desfazer/ refazer um modelo instituído por acréscimos de novos atributos em irradiações que o presente ao passado envia, amplificando-lhe o espaço-tempo de sua ocorrência.

Esse é o caso de produções como A bela borboleta (Ziraldo/Zélio) e o Pequeno planeta perdido (Ziraldo/ Mino). Na primeira, os modelos comunicacionais — o par escritura-leitura — do passado narrativo de O

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Gato--de-Botas, Branca de Neve e os sete anões, Peter Pan e O patinho feio são refuncionalizados, na medida em que o procedimento da linguagem técnica do cinema interfere no ato narrativo. Suprimem-se os conectores próprios da matriz artesanal da oralidade (daí, então, nisso, aí, depois, . . .), garantidores da continuidade do fio narrativo e da captura da atenção do leitor àquilo que lhe é narrado. Ao invés disso, o "corte" a cada virar de página propõe ao olho-mão-sentimento-pensamento-ação do leitor infantil a remontagem do movimento narrativo pelo encadeamento das cenas-fotogramas.

Dois modelos narrativos em confronto: o artesanal, de raiz fincada na oralidade, e o técnico, fruto da civilização industrial.

O narrador reduz sua fala, economiza palavras e usa da linguagem imagética e do movimento para traduzir seus [61] pontos de vista de forma inclusiva e instantânea. Assim:

Proximidade ao objeto narrado = close ou 1.° plano da imagem Distanciamento do objeto narrado = panorâmica ou plano geral Poderio de uma personagem como o Gato-de-Botas = foco

narrativo da camera ao nível do "chão" da página, em movimento para cima, em direção à parte superior do corpo da personagem.

A projeção do código cinematográfico sobre o literário-infantil é uma forma de a gestualidade, a fusão e a simultaneidade das formas orais penetrarem no espaço narrativo, porém agora amplificadas pelo atributo tecnológico que, do presente, reverbera ao artesanal do passado e o transforma, revitalizando-o.

Já em O pequeno planeta perdido, ao traçado tradicional do "era uma vez" (apenas uma variante confirmadora: "certa vez enviaram um homem ao espaço em direção a um planeta perdido") acoplam-se termos (o léxico) do universo das comunicações interplanetárias (combustível, foguete, galáxia, astronauta, astronave, freqüência, computadores, videoclipes, cassetes, headphone, escritório espacial). Ainda a contigüidade operando e a fascinação da linha narrativa, que visa recuperar a emotividade de uma estória de amor num contexto de tecnologia espacial.

O que interessa nesse livro, porém, é um procedimento que atinge a dialogia paródica pela bricolagem, uma espécie de amplificação de certos usos habituais de objetos utilitários do cotidiano (a laranja e o pão, nesse livro; os utensílios de cozinha, em Maneco Caneco) que, ao serem retirados do seu contexto original para uma inserção em outro (laranja-planeta perdido; pão-foguete), passam a emitir novas freqüências significativas,

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graças à combinatoria com os demais elementos do espaço no qual [62] irão conviver. Não se trata de anular o uso primeiro, mas, ao contrário, de acrescentar-lhe outro, de modo que à leitura se oferecem ambos fundidos num produto disforme e estranho, capaz de cumprir funções díspares.

No projeto gráfico-visual, a combinatória de diversos materiais e procedimentos técnicos de reprodução, tais como fotografia, tomadas cinematográficas de camera, desenho-caricatura e balões de estórias em quadrinhos, compõe uma nova cena a partir de velhos materiais.

No texto verbal, a bricolagem manifesta-se num fragmento como o que segue:

Mandem livros para ele! disseram os intelectuais. O livro caindo n'alma é germe que faz a palma, é chuva que faz o mar (...) Uma noite, porém, a Terra acordou com a voz do astronauta falando pro Mundo: "Potius male sectus quam solus!" (Silvius) ou "Na solidão é que estamos mais sós." (Byron) ou "Serás triste se fores só!" (Ovídio) ou "Ó solidão! Onde estão os teus encantos?" (Cowper) ou "Socorro!!!" (Robinson Crusoe) A partir da superposição de citações, apropriação da fala de outrem,

amplifica-se a carga significativa de um discurso que, pela bricolagem, acena com a crítica à erudição emblemática e vazia.

No limite da narrativa, a poesia Na produção literária infantil salta um texto — O gato (Norma

Freire e Cláudio Zirotti) — que, pela sua elaboração [63] de linguagem, põe em questão os limites do par narrativa-poesia. Ruptura própria da modernidade literária, em que há muito a prosa poética é uma realidade. Enredo não há. A não ser modulações de saltos a intervalos mais ou menos altos, mais ou menos profundos, de um gato no mundo:

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O gato saiu de casa. (O gato caiu no mundo) Ele subiu lá no alto. Ele desceu mais profundo.

Alternâncias do foco narrativo, fora e dentro dos parênteses,

cruzando duas perspectivas: uma visível e constatável à distância (o gato saiu — subiu e desceu), outra mais próxima e semi-revelada pela fresta parentética ("O gato caiu no mundo"). Contrastes e semelhanças intensificados pelos verbos (subiu-desceu), pelos atributos (alto-profundo) e pelo paralelismo sintático-rítmico.

Na alternância das diferenças e das similitudes, o livro vai projetando formas simultâneas a nível de som, imagem e sentido, traçando uma figuração icônica que tem seu momento de maior síntese na cena que antecede o salto final (ou inicial) do gato (ou do leitor, ou do narrador) para fora (ou para dentro) do livro (ou do mundo).

Ilustração 9

Sou um gato e seu amigo (o mundo ensina a pensar) menor que eu é a rua maior que eu é o luar.

Projeções de similaridades no sintagma tornado poético, oferecendo à leitura significações múltiplas:

[64]

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[65]

—"Luar", que é também "rua" (embora maior), numa leitura às avessas da própria palavra;

—fusão imagética gato-rua-lua traduzida, a nível verbal, na fusão gato-narrador-leitor (seu amigo), e o mundo feito pensamento e experimentação sensível na imagem que liga o alto e o baixo (lua-rua), o maior e o menor, atravessados pelo corpo do gato no intervalo de seu salto.

Por entre saltos calculados pelo olho do leitor, o gato reconstrói um duplo movimento ler-ver, visitando o [66] texto-mundo de forma breve, numa situação perceptiva híbrida de imagem e palavra, linha e forma, cor e luz. Num salto para fora do símbolo e do código alfabético.

Leitura e oralidade Em todas as modalidades de projeção da oralidade sobre a escritura

literária infantil, o pólo do leitor foi sempre de grande importância, seja

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como aquele que o narrador queria conquistar pela proximidade de sua fala para, passivamente, seguir a linha dada à estória, seja como aquele de quem era exigida uma atuação maior a nível de co-autoria: uma voz cuja presença compartilhada era necessária para a presentificação da cena narrativa.

Se a escritura tenta inscrever a fala por diferentes procedimentos já vistos anteriormente, a questão, agora, é como a leitura pode acoplar a oralidade em sua ação.

Habitualmente, leitura implica uma operação sobre o código escrito: ler a sucessividade esquerda-direita de linhas que a alfabetização determina para apreender a convenção simbólica, numa tentativa de controle da informação.

Ora, escrever como se fala implica, também, ler como se fala, e então não é mais possível seguir uma regra imposta pelo código alfabético; é preciso estar atento para captar realidades que escapam ao controle da sucessividade linear do dito pelo entredito das pausas, do gesto, das modulações sonoras, numa orquestração de ritmos que desenham figuras conceituais, imagéticas, táteis e sonoras num espaço-tempo, também linear, mas simultâneo, inclusivo e múltiplo.

Essa oralidade instaurada na leitura pode ser captada, a título de exemplificação, no projeto produtivo de Estória sem fimmm (Edith Derdick).

[67] Como unidade, surge o plano da página tornada múltipla pelo

recorte de suas partes, as quais o leitor deve articular para construir seqüências narrativas sem fim.

Ilustração 10

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Um conjunto de elementos dialogam entre si: passarinhos com bicos-tesoura que cortam os planos; um gato que salta; linhas num emaranhado de novelo (a bola do gato) em preto e branco. Daí nasce uma trama básica, marcada pelo ciclo dia-noite, sol-lua, gato-bola, pássaro--gato, cujo espaço é o movimento que se estabelece entre as partes desse sistema integrado.

[68] Substituindo, suprimindo, acrescentando, intercalando, revertendo e

superpondo, a leitura segue, atualizando possibilidades de estórias sugeridas pelo enovelar da linha, até uma possível, embora não necessária, oralização das cenas que manipulou.

Ora a unidade, ora o conjunto entram em correlações com outros segmentos, numa descontinuidade irredutível ao contínuo e linear; a imagem apenas dura enquanto o olho persegue as equivalências entre forma e sentido. E não pára de mudar a cada reorganização de novos conjuntos-quadros-estórias-tomadas de cena que têm o tempo por intervalo.

Literariamente, é o eixo da seleção que é oferecido à leitura pelo grafismo, pela textura e pela fala, integrando os sentidos às personagens das estórias, que buscam encontrar um fimmm sempre adiado.

A oralidade subjaz à duração da percepção do leitor, que agora a projeta a cada movimento desse livro-móbile--brinquedo no ritmo de lembranças e de experiências vividas e transformadas em fala. Fala que se transfere a um ouvinte; quem sabe, ele mesmo. . .

Referências das ilustrações utilizadas

Ilustração 7, p. 50: de Eva Furnari. Extraída de CACCESE, Neusa

Pinsard, sei. Um tigre, dois tigres, três tigres. São Paulo, Edições Paulinas, 1984. p. 6.

Ilustração 8, p. 59: Planejamento gráfico de Donatella Berlindis. Extraída de BUARQUE, Chico. Chapeuzinho amarelo. 2. ed. Rio de Janeiro, Berlendis & Vertecchia, 1980. p. 13.

Ilustração 9, p. 64: de Cláudio Jirot. Extraída de FREIRE, Norma. O gato. Rio de Janeiro, Berlendis & Vertecchia, 1982. p. 18-9.

Ilustração 10, p. 67: de Edith Derdik. Extraída de DERDIK, Edith.

Estória sem fimmm. São Paulo, Sumnius, 1980. p. 14-5.

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[69]

5 Cosmovagar. Revendo o rio. A literatura infantil em videotexto _____________________________

Qualquer reflexão sobre a literatura infantil não poderia deixar de

lado todo um conjunto de linguagens técnicas que passam a interferir no código literário, obrigan-do-o a novas transformações.

Do diálogo com a Informática surgem narrativas infanto-juvenis cm videotexto, duas cm especial: Cosmovagar (M. José Paio e Júlio Plaza) e Revendo o rio (M. Rosa D. Oliveira e outros/Júlio Plaza), uma videotradução de Além do rio (Ziraldo).

O videotexto é uma linguagem relativamente nova (surgiu há mais ou menos uma década) que se constrói pelo acoplamento entre computador, telefone e televisão, além de um teclado, que é o decodificador dos sinais acústicos em visuais. Veículo híbrido que se nutre de outros, num diálogo integrador de meios de comunicação.

Linguagem gráfico-eletrônica que se inscreve na tela (página), tendo por suporte uma superfície reticulada (grade), espécie de malha ou trançado de cestaria, que é, tal qual a formação da imagem da TV, varrida horizontal e verticalmente pelo feixe eletrônico dos raios catódicos, capazes de traduzir impulsos eletromagnéticos em signos [70] verbovisuais através da escrita automática do cursor em substituição à mão e à máquina.

De um lado a velocidade do ritmo eletrônico exigirá da palavra redução, síntese e instantaneidade; de outro, o reticulado-suporte da grafia do cursor exigirá da imagem o achatamento, a planificação e a bidimensionalidade de uma composição reticulada, cuja unidade mínima é o quadrado, que só conhece verticalidade e horizontalidade. Em suma, exige-se a transformação dos símbolos em formas integra-tivas e analógicas, vale dizer, icônicas. Ou, ainda, a tradução de relações de volume (a representação realista da perspectiva) em relações de superfície,

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próprias do abstracionismo de Mondrian. 4 Para a literatura infantil, está aí a oportunidade de criação de

programas que integrem a arte da palavra à geometrização do reticulado do vídeo, transformando conceitos habituais de narrativa, ilustração e livro, além de instaurar uma relação comunicativa nova entre emissor--mensagem-usuário pela mediação do aparelho.

Em Cosmovagar, por exemplo, a partir de uma forma nuclear — o quadrado —, que coincidentemente é a unidade mínima de composição da malha da página-vídeo, desdobram-se novas formas geométricas compondo o enredo mínimo: uma nave a se deslocar pelo espaço. Ao final, a fusão da nave ao cosmos. A tela negra. E surge uma outra possibilidade de vida, recuperando a lei da contínua transformação das formas.

[71] Revendo o rio, por sua vez, inscreve-se no campo da videotradução

de um texto literário infantil — Além do rio —, narrativa que por sua particular composição gráfica, dominantemente bidimensional, já permitia uma tradução pela linguagem do vídeo.

Trata-se do caminho de um fio-narrativo-rio cujo curso delongado na narrativa em vídeo reduz-se a:

Montanhas. Planície. Fio de águas pardas. Um grande rio. No meio do caminho, um rio e outro. Qual rio engolirá o outro? Perto o rio. Longe margem e céu. No horizonte o sol. No rio a vitória-régia. Na margem árvores, reflexos. Mar e rio. Mar e céu.

No fundo de um rio conhecido — o Amazonas —, redescobre-se outro feito de instantâneos de formas que ora se aproximam, ora se distanciam, pulsando a cada toque do olhar, da mão e do pensamento do receptor, que deverá justapor as cenas verbo-visuais-táteis e recompor o percurso do rio da nascente à foz.

Sob o pulsar eletrônico do videotexto, já não há mais lugar para velhos conceitos de personagem, intriga, narrador, narrativa. Mais do que nunca, o cursor, em sua corrida pela tela-texto, assume a ação de feitura da

4 "Ver plasticamente é contemplar em consciência. Melhor ainda: é ver através. É

distinguir, é ver verdadeiramente. Ver plasticamente conduz a comparar, a ver relações. (...) é

ver as coisas o mais objetivamente possível (...). Destruímos a aparição natural e reconstruímos

a aparição abstrata das coisas. Mediante a visão plástica corrigimos, de certo modo, nossa visão

natural habitual e é assim que reduzimos o individual ao universal." MONDRIAN, P. Realidad

natural y abstracta. Barcelona, 1973.

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mensagem, pondo a nu, de forma simples e imediata, o processo de composição. A um só tempo, emissão-mensagem-recep-ção, irmanados pelo vídeo, recuperam pela instantaneidade eletrônica uma nova forma de oralidade.

Do convívio leitor-aparelho nasce uma cumplicidade, um jogo dialogico que leva o usuário a seguir pistas e a unir fragmentos, que no vídeo estão indiciados, respondendo às ordens de comando por meio de novos comandos, agora seus, ao teclar e digitar um código do conhecimento de ambos. Diálogo homem-máquina desafiando a criatividade de programas que unam arte e tecnologia, numa educação integradora.

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[72]

6 Vocabulário crítico _____________________________

Alegoria: construção metafórica de cunho simbólico. Consiste em substituir um conceito por um conjunto de imagens capazes de personificá-lo.

Analogia: organização por similaridade e coordenação entre os elementos.

Antropofagia: a devoração do guerreiro mais forte, para que suas qualidades pudessem ser transferidas àqueles que o devorassem. Associada à Literatura, refere-se à proposta oswaldiana de devoração dos mitos, tabus e convenções — a tradição —, de sorte a gerar um novo produto a partir do resgate daquilo que foi produtivo no passado.

Artesanal: refere-se ao modelo artesanal de produção: corporativo, manufatureiro e agrário.

Bricolagem: montagem em que a contigüidade invade o pólo da similaridade, com tendência à saturação e à superação do código.

Carnavalização: incorporação, na Literatura, da cosmo-visão do ritual carnavalesco com sua ambivalência de morte-nascimento, coroação-destronamento. A paródia [73] é uma dessas formas literárias — carnavalizada e dialógica.

Catarse: conceito aristotélico que consiste na capacidade de sublimar, purificar ou exaltar emoções no espectador através da tragédia.

Diagrama: signo icônico que implica a relação analógica entre as suas próprias partes e aquelas do objeto representado. Por exemplo: um mapa.

Dialogia: termo usado por Bakhtin para se referir a um procedimento do discurso literário, que consiste numa disseminação de vozes múltiplas intra e intertextuais.

Discurso: modo de organização da linguagem que põe em diálogo emissor e receptor (ver escritura).

Dominante: elemento determinante na estruturação da obra literária.

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Especifica a obra, criando entre as diferentes funções da linguagem uma hierarquia organizacional.

Enunciação: ato de seleção, organização e atualização do enunciado, a partir do ponto de vista do narrador a um possível receptor. Não apenas aquilo que é dito, mas também o modo de dizê-lo.

Enunciado ou sintagma: combinatório de elementos selecionados de um paradigma gerando frases ou unidades mínimas de significação. Aquilo que efetivamente é dito.

Escritura: termo criado por Roland Barthes que significa, originariamente, uma organização de linguagem que, em seus níveis mais radicais, a si própria informa em modulações poéticas (ver discurso).

Foco narrativo: ponto de vista de quem narra por angulações diversas em relação ao objeto da narração.

Fotograma: unidade mínima da montagem cinematográfica cristalizada em celulóide.

[74] ícone: signo que mantém uma relação de semelhança com a coisa

significada. Imaginário: conjunto de imagens que são signos icônicos; implica

em associações por similaridade (ver ícone). índice: signo que mantém uma relação binaria, de ação-reação, com

o objeto de representação. Lúdico: jogo com o acaso em que o imaginário entra para criar

soluções novas e imprevistas. Material: conceito vindo do Formalismo Russo que implica a

matéria bruta, factual, objeto de possíveis organizações a nível literário. Um exemplo: material — a fábula que será objeto da organização de uma trama narrativa (ver procedimento).

Mimese: termo empregado, aqui, no sentido de uma representação que guarda uma semelhança, e não cópia, em relação a seu objeto (ver analogia e ícone).

Padrão: matriz, conjunto de elementos que guardam algo em comum, constituindo um paradigma.

Paralelismo: correspondências eqüidistantes entre formas sintáticas, rítmicas, gráficas e semânticas

Paródia: forma literária que consiste em inverter ou amplificar o sentido de um texto-matriz numa nova combitória textual. (Ver carnavalização e dialogia).

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Perspectiva: em Literatura: ponto de vista ou foco narrativo do Narrador frente ao objeto de narração; em Artes Plásticas: representação "realista" de cenas visíveis através de regras convencionais de construção da ilusão do volume.

Plano: nas Artes Plásticas, é a superfície bidimensional. No cinema, cada corte determina um plano no qual o movimento se faz.

Presentação: ser de tal forma aquilo que se fala, a ponto de tornar presente o objeto sem a mediação da representação [75]. É o que o signo icônico pretende (ver ícone e analogia).

Pré-verbal: anterior à articulação da fala; primeiro, originário, não-verbal e icônico (ver ícone).

Procedimento: modo como se organiza o material selecionado. Em Arte, é a relação procedimento—material que determina as diferenças qualitativas da informação (ver material).

Repertório: memória, competência, conjunto de experiências programadas e programáveis (ver competência e desempenho).

Representação: simulacro, substituinte da realidade que, no entanto, está no lugar dela para algum pensamento que assim o significa (ver signo).

Signo: representante de algo — objeto da representação — para algum pensamento, que dê sentido a essa relação de substituição; sentido esse expresso em um novo signo — o Interpretante (ver representação).

Símbolo: signo que representa seu objeto com base em algum hábito, lei ou convenção.

Sintaxe: relações de similitude entre as partes de um enunciado verbal ou não-verbal, construindo um diagrama (ver ícone e diagrama).

Tabu: forma cristalizada, fixa e convencional (ver totem). Totem: desconstrução do tabu, abstrato e distante, através de sua

concretização num corpo totêmico passível de manipulação (ver tabu). Verossímil: pode referir-se a dois tipos de verossimilhança: a

interna, construída nas relações que o próprio texto instaura, e a externa, que se pauta pela fidelidade reprodutiva do texto em relação ao contexto exterior.

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[76]

7 Bibliografia comentada _____________________________

BAKHTIN , Mikhail. 'Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1981.

Tomando por corpus a produção poética de Dostoiévski, Bakhtin analisa a configuração do romance polifônico em seus diferentes matizes dialógicos, desde o cruzamento (intratextual) de vozes do narrador e das personagens no discurso até o caráter paródico (intertextual) que inscreve na Literatura o sincretismo da cosmovisão carnavalesca.

BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação.

Trad. Marcus V. Mazzari. São Paulo, Summus, 1984. Leitura fundamental que traz novos enfoques para o enfrentamento

da relação da criança com o livro infantil, o brinquedo, o jogo e a pedagogia, aliada à família e à escola. — . Obras escolhidas; magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo, Brasiliense, 1985. Leitura obrigatória de pelo menos três ensaios:

[77] • "A doutrina das semelhanças": o mimetismo dos jogos infantis e

a gênese mimética da linguagem através da forma onomatopaica. • "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica": estudo

sobre a interferência das técnicas de reprodução, como a fotografia e o cinema, sobre as formas tradicionais de arte, pondo em crise o valor de autenticidade e a aura do objeto único.

• "O narrador": reflexões sobre o narrador em sua função originária de transmitir suas experiências ao ouvinte na oralidade de um modelo artesanal de narrativa.

CAMPOS, Haroldo de. Da razão antropofagica: a Europa sob o signo

da devoração. Revista Colóquio / Letras, Lisboa, Fundação Gulbenkian, n. 62, jul. 1981. A partir do modelo antropofágico de devoração da tradição, o

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autor faz uma revisão da produção literária brasileira, lançando luzes sobre uma das constantes da modernidade literária contemporânea.

FERRARA, Lucrecia d'Alessio. A estratégia dos signos. São Paulo,

Perspectiva, 1981. A autora reflete sobre questões essenciais da modernidade literária,

como estranhamento, distanciamento, recepção, dialogismo e a paródia, nos seus dois procedimentos básicos — inversão e amplificação —, em dois capítulos fundamentais: "A obra de arte difícil" e "A dupla escritura/leitura: uma dialética".

JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. Trad. Isidoro

Blikstein e José P. Paes. São Paulo, Cultrix, 1970. Em torno do tema nuclear da obra — o estudo da estrutura verbal

—, a valiosa contribuição da Lingüística para a Literatura. [78]

No capítulo “Lingüística e poética", o autor trata das diferentes funções de linguagem, entre elas a poética, marca diferencial do discurso literário. Leitura obrigatória para qualquer estudo que tenha a natureza literária por objeto. — . O dominante. In: LIMA , Luiz Costa. org. Teoria da literatura em suas fontes. 2. ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983.

O autor, novamente preocupado com a relação da função poética e as demais funções na hierarquização dos discursos, cria a noção de dominante.

LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil

brasileira — história & histórias. São Paulo, Ática, 1984. Perspectiva histórica da literatura infantil brasileira, em conexão

com a realidade político-econômico-social: causas e efeitos, permitindo reconhecer os traços estruturais de obras que assumem um papel confir-mador ou transgressor da tradição.

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Trad. J. Teixeira Coelho. São

Paulo, Perspectiva, 1977. Coletânea de escritos diversos do autor, reunindo alguns aspectos de seu pensamento sobre a Lógica, um outro nome para a Semiótica, ou a doutrina dos Signos. É de fundamental importância a leitura de "Questões referentes a certas faculdades reivindicadas pelo homem", "Signos-pensamento", "Consciência e linguagem" e "ícone,

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índice, símbolo", em que Peirce desenvolve questões como: • a concepção de consciência como lugar onde interagem formas

de pensamentos, dos mais instintivos até os logicamente controlados; • pensamento como representação/signo, desde os sentimentos,

sensações, desejos e lembranças até as formas da síntese intelectual e do conceito;

[79] • a noção de signo como uma cena dialógica entre a representação,

o objeto representado e a mente daquele que deve interpretar essa relação, produzindo um novo signo;

• os três tipos fundamentais de construção sígnica — simbólica, indiciai e icônica — a partir da relação convencional de ação-reação ou de semelhança entre signo e objeto de representação.

PIGNATARI, Décio. Semiótica e literatura. 2. ed. São Paulo, Cortez

& Moraes, 1979. O autor, por meio de um estudo dos códigos gerados pelas técnicas

de reprodução industrial, demonstra sua interferência na Literatura, em especial no capítulo "Revolução Industrial: a multiplicação dos códigos". — . Comunicação poética. São Paulo, Cortez & Moraes, 1977.

Instigante "cartilha poética", traduzindo de modo simples e direto o que é a arte de fazer poesia. Conceitos como sintagma, paradigma, similaridade, contigüidade, função poética ou a projeção do icônico e do não-verbal sobre o verbal simbólico, ritmo, rima, métrica, metonímia, metáfora e paronomasia são discutidos em linguagem acessível a todos aqueles que desejam conhecer a arte poética.

PROPP, Vladimir I. Morjologia do conto maravilhoso. Trad. Jasna P.

Sarhan. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1984. Leitura obrigatória para se conhecer a estrutura-padrão das formas

narrativas mais primitivas. Questões como funções invariantes e variantes, esferas de ação das personagens e atributos são aí descritas e analisadas, com a finalidade de se construir uma tipologia estrutural do conto maravilhoso.

[80] SEGOLIN, Fernando. Personagem e anti-personagem. São Paulo,

Cortez & Moraes, 1978. Estudo sistemático sobre a personagem, na tentativa de estabelecer uma categorização de suas variantes

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transformacionais a partir do modelo-base proppiano. ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo,

Global, 1982. A obra expõe um diálogo entre a escola, a criança e a Literatura,

tendo a pragmática como fim e a possível dimensão artística como uma problemática de superação dos fatores históricos que intervieram nas gerações. — & MAGALHÃES, Lígia C. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. São Paulo, Ática, 1982. O enfoque dado à obra informa-nos sobre o lugar da literatura infantil na vida da criança e seu vínculo ideológico com a escola e com a família. Revisão do conceito histórico da Literatura junto à tradição pedagógica e à criança, deixando entrever as características do ato de leitura nos tempos modernos.

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