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MARIA LUIZA RODRIGUES VITOR
O ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA PORTUGUESA NUM
RECANTO AMAZÔNICO: COMPETÊNCIAS EM CONSTRUÇÃO
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
UNIVERSIDADA FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
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O ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA PORTUGUESA NUM RECANTO
AMAZÔNICO: COMPETÊNCIAS EM CONSTRUÇÃO
Por:
MARIA LUIZA RODRIGUES VITOR
Dissertação de Mestrado em Educação apresentada à
Coordenação de Cursos de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Orientadora: Professora Doutora Cristina Haguenauer
& Co-Orientador: Professor Doutor João Carlos de
Carvalho.
RIO DE JANEIRO, 1º SEMESTRE DE 2003.
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O ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA PORTUGUESA NUM RECANTO
AMAZÔNICO: COMPETÊNCIAS EM CONSTRUÇÃO
Por:
Maria Luiza Rodrigues Vitor
Dissertação submetida ao corpo docente da Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do grau de Mestre.
Aprovada por: ___________________________________ Professora Doutora Cristina Haguenauer
(Orientadora)
_____________________________________
Professor Doutor João Carlos de Carvalho.
(Co-Orientador)
____________________________________ Professor Doutor Francisco Cordeiro Filho
Rio de Janeiro, 1º semestre de 2003.
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Vitor, Maria Luiza Rodrigues.
O Ensino-Aprendizagem de Língua Portuguesa num Recanto
Amazônico: Competência em Construção / Maria Luiza Rodrigues
Vitor - Rio de Janeiro, 2003.
xi, 95? f.: il.
Dissertação de Mestrado em Educação - Universidade Federal do Rio
de Janeiro - UFRJ, Instituto de Pós-Graduação em Educação, 2003.
Orientadora: Professora Doutora Cristina Haguenauer
I. 1. Reflexões Introdutórias. 2. Fundamentação Teórica. 3.
Procedimentos Metodológicos. 4. Dados coletados e sua
Interpretação. 5. Reflexões Conclusivas. (Dissertação)
II. Haguenauer, Cristina. (Orientadora)
III. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pós-Graduação
em Educação.
IV. O Ensino-Aprendizagem de Língua Portuguesa num Recanto
Amazônico: Competências em Construção.
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A Deus, meu Pai especial, que me deixou ser.
À Hilda Averbek, minha Irmã, que me deixou crescer.
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AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Cristina Haguenauer, por sua imprescindível e competente orientação.
Ao Professor Doutor João Carlos de Carvalho, por sua imprescindível e competente co-
orientação.
Aos colegas do Curso de Mestrado, pela troca de idéias.
Ao Professor Mestre Cleidson de Jesus Rocha, pelo incentivo inicial.
À Professora Especialista Alexandrina Félix por sua colaboração fundamental em aplicar os
instrumentos de pesquisa.
Aos professores de Língua Portuguesa da Escola Flodoardo Cabral, os sujeitos professores
desta pesquisa.
Aos alunos das turmas 1º B, 2º C, e 3º G da escola Flodoardo Cabral, os sujeitos alunos desta
pesquisa.
À Mariliza Trelha, ao seu esposo Júlio César e ao seu filho Rafhael, por serem pessoas
maravilhosas comigo.
À Cristiane Souza e a seus pais, pela ajuda valiosa que me deram, mesmo à distância.
À Cida Victor, ao seu esposo Clínio e a sua filha Aline, pelo incentivo constante e valioso
durante minha estadia no Rio de Janeiro.
À Dolores e a sua família, pela carinhosa acolhida.
À Francila Alves, pelo abstract.
Obrigada!
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LÍNGUA
Caetano Veloso
Gosto de sentir a minha língua roçar
A língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar
A criar confusões de prosódias
E uma profusão de paródias
Que escutem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior
E deixa os portugais morrerem à míngua
“minha pátria é minha língua”.
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RESUMO
VITOR, Maria Luiza Rodrigues. O Ensino-Aprendizagem de Língua Portuguesa num Recanto
Amazônico: Competências em Construção. Orientadora: Cristina Haguenauer. Rio de Janeiro:
UFRJ, 2003. Dissertação (Mestrado em Educação).
Estudo interpretativo com o objetivo de identificar em que medida as
competências em Língua Portuguesa, estabelecidas pelos PCNEM, estão sendo construídas
pelos alunos do Ensino Médio da escola Flodoardo Cabral, o nosso Recanto Amazônico, em
Cruzeiro do Sul / Estado do Acre. Todo este trabalho foi realizado na perspectiva de
depararmo-nos intimamente com a existência de uma realidade particular, a construção de
competências.
A estrutura deste estudo deu-se assim: reflexões introdutórias; fundamentação
teórica; procedimentos metodológicos; dados coletados e sua interpretação; reflexões
conclusivas. E três etapas metodológicas orientaram-no. A primeira consistiu da pesquisa
teórica; a segunda, da construção e a aplicação dos instrumentos de pesquisa; e a terceira
constou da análise dos dados. Para a coleta de dados foram aplicados questionários para 3,2 %
dos alunos e para 43% dos professores de Língua Portuguesa da escola Flodoardo.
Os resultados obtidos identificaram que as competências em Língua
Portuguesa, estabelecidas pelos PCNEM de 1997, ainda não estão sendo construídas pelos
alunos do Ensino Médio da Escola Flodoardo Cabral. E os mesmos resultados indicaram
igualmente que é desejo dos sujeitos desta pesquisa que o ensino de Língua Portuguesa de sua
escola seja um Ensino-Baseado-em-Competência.
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ABSTRACT
VÍTOR, Maria Luiza Rodrigues. The teaching learning of Portuguese Language in a Retreat
of the Amazonian: Competences in Construction. Guiding: Cristina Haguenauer. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2003, Dissertation (Master’s degree in Education).
Interpretative study with the objective of identifying in what measured the
competences in Portuguese Language, established by PCNEM, are being built by the High
School students of the Flodoardo Cabral school, our Amazon Retreat, in Cruzeiro do Sul /
State of Acre. All this work was accomplished in the perspective of getting across intimately
with the existence of a particular reality, the construction of competences.
The structure of that study felt like this: introductory reflections; theoretical
foundation, methodological procedures; collected data and their interpretation; constructive
reflections. Three methodological stages guide it. The first consisted of the theoretical
research; second the construction and the application of the research instruments; and the third
consisted of the analysis of the data. For the collection of data there were applied
questionnaires for 3,2% of the students and for 43% of the teachers of Portuguese Language
of the Flodoardo school.
The obtained results identify that the competences in Portuguese Language,
established by PCNEM 1997, are not yet being built by the students of the Medium Teaching
of the Flodoardo Cabral school. And the same results indicate equally that it is a desire of the
subjects of this research that the teaching of Portuguese Language of their school be a
Teaching-based-in-competences.
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................................x
CAPÍTULO
I. REFLEXÕES INTRODUTÓRIAS .............................................................................01
1.1. Os Motivos do Estudo ...........................................................................................01
1.2. Definição do Problema, dos Objetivos e das Questões de Estudo ........................06
1.3. Importância do Estudo ..........................................................................................09
II. FUDAMENTAÇÃO TEÓRICA ................................................................................15
2.1. Concepções de Ensino-Aprendizagem ..................................................................15
2.2. Ensino-Baseado-em-Competência ........................................................................24
2.3. Competências em Construção - PCNEM ..............................................................34
III. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ..............................................................52
3.1. O Método Escolhido .............................................................................................52
3.2. Etapas do Estudo e Técnica de Coleta ..................................................................56
3.3. O Contexto da Pesquisa e seus Sujeitos ................................................................64
IV. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE DADOS .........................................................71
4.1. Apresentação e Análise de Dados .........................................................................72
4.2. Conclusões da Análise de Dados ..........................................................................98
V. REFLEXÕES CONCLUSIVAS ..............................................................................105 6.1. Considerações Finais ...........................................................................................105
6.2. Recomendações ...................................................................................................110
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APRESENTAÇÃO
O estudo que ora apresentamos postula tratar de O Ensino-Aprendizagem de
Língua Portuguesa num Recanto Amazônico: Competências em Construção. É uma
Dissertação de Mestrado em Educação pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro),
com o objetivo geral: identificar em que medida as competências em Língua Portuguesa,
estabelecidas pelos PCNEM, estão sendo construídas pelos alunos do Ensino Médio da escola
Flodoardo Cabral, o nosso Recanto Amazônico, em Cruzeiro do Sul / Estado do Acre.
Almejando contemplar este objetivo, foram aplicados questionários a alunos e a
professores de Língua Portuguesa do Ensino Médio da escola Flodoardo Cabral, avaliando a
práxis do ensino de língua materna neste Recanto Amazônico, considerando o grau de
atendimento às competências básicas em Língua Portuguesa estabelecidas pelos PCNEM
(Parâmetros Curriculares Nacionais - Ensino Médio) na área de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias e no que se refere à interpretação da mesma língua, e dos diferentes aspectos que
a envolvem. Para tal, embasamo-nos em uma fundamentação teórica adequada e nas
experiências da população de pesquisa.
Assim, a relevância desta pesquisa se assenta na necessidade de
compreendermos a natureza de certas situações com as quais nos deparamos ao trabalhar com
a Língua Portuguesa numa realidade especifica, Cruzeiro do Sul, e, deste modo,
identificarmos em que medida as competências em Língua Portuguesa estabelecidas pelos
PCNEN estão sendo construídas pelos alunos do Ensino Médio, a partir de uma coleta de
dados em contexto de uma das três escolas de Ensino Médio local, Flodoardo Cabral,
abrangendo uma amostra de 43 % dos professores de Língua Portuguesa (03) e uma amostra
de 3,2 % dos alunos (55).
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Na expectativa de proporcionarmos a esta investigação uma compreensão
adequada, estruturaremos a dissertação aqui apresentada em cinco capítulos. No Capítulo I,
apresentam-se as reflexões introdutórias: os motivos do estudo; a definição do problema, do
objetivo e das questões de estudo; a importância do estudo. O Capítulo II apresenta a
fundamentação teórica da investigação com uma discussão sobre concepções de ensino-
aprendizagem e sobre o Ensino-Baseado-em-Competência. E uma análise dos PCNEM na
área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, dando ênfase às competências a serem
desenvolvidas em Língua Portuguesa, finaliza este capítulo.
No Capítulo III, são estabelecidos os procedimentos metodológicos adotados
para a realização da investigação. No Capítulo IV, serão apresentados os dados coletados, a
sua análise à luz da fundamentação teórica e as conclusões deduzidas com tal análise. E o
Capítulo V conclui esta dissertação apresentando as reflexões conclusivas com as
considerações finais e as recomendações a que chegamos com a realização de toda a
investigação.
Todo este trabalho será realizado com o propósito de depararmo-nos mais
intimamente com a existência de uma realidade particular, o ensino-aprendizagem de Língua
Portuguesa na escola Flodoardo Cabral: competências em construção, uma realidade presente
num mundo criado e habitado por pessoas, professores e alunos, que sonham com um amanhã
bem melhor que o hoje presente para o ensino de sua língua mãe, um ensino comprometido
com a aprendizagem, pois enquanto houver gente falando e estudando uma determinada
língua, ela sofrerá variações, transformações, mudanças...
Deste modo, o processo ensino-aprendizagem de nossa língua vernáculo precisa
acontecer de uma maneira mais precisa e mais de acordo com as necessidades de educadores e
educandos, numa troca mútua de saberes e numa permanente construção de competências
básicas.
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CAPÍTULO I
REFLEXÕES INTRODUTÓRIAS
Este capítulo é a introdução de nossa investigação. Ele apresenta, numa ótica
reflexiva, as subdivisões: os motivos do estudo; a definição do problema, do objetivo e das
questões de estudo; a importância do estudo. Refletir sobre um determinado processo ensino-
aprendizagem é uma tentativa de aproveitar do passado para entender o presente e orientar o
futuro. A reflexão feita aqui será parte do conhecimento empírico e científico, de grande
relevância para nossa vida, tratando do ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa:
competências em construção e suas principais implicações na formação do falante crítico da
mesma língua em um Recanto Amazônico.
1.1. Os Motivos do Estudo
O ser humano é um ser capaz de tomar decisões, de formular julgamentos, de
comprometer-se com uma resposta, de refletir sobre sua vivencia de mundo. Por esta lógica,
queremos aqui refletir a respeito do que vivenciamos enquanto profissional das Letras, em um
certo lócus amazônico, pois refletir sobre uma determinada experiência, no nosso caso, o
ensino-aprendizagem de língua materna, pode ser uma excelente maneira para desviarmo-nos
de nossos erros e construirmos oportunidades mais amplas e, ao mesmo tempo, mais
direcionadas a questões essenciais que permitam o desenvolvimento do processo ensino-
13
aprendizagem de Língua Portuguesa em meio à selva amazônica.
Pois, no decorrer dos dezesseis anos de nossa vida profissional em Cruzeiro do
Sul (como professora do Ensino Infantil ao Ensino Superior, em todas as séries; como diretora
de escola e como supervisora educacional), tornamo-nos conhecedora das queixas sobre a
falta de estímulos dos alunos para lerem e escreverem, para aprenderem a Língua Portuguesa
ensinada na escola, e das dificuldades dos professores para trabalharem com a mesma língua
num mundo real de desinteresses, como se o processo ensino-aprendizagem de Língua
Portuguesa, na escola, fosse uma perturbação e não um auxílio para um uso lingüístico
adequado e consciente.
Assim, a identificação da língua materna com a nacionalidade e a visão do ler
e do escrever corretamente como um dever cívico, defendida por Almeida (1978), não é algo
comumente encontrado no dia-a-dia do mundo educacional do qual somos parte integrante,
Cruzeiro do Sul, município que aspira por desenvolvimento cultural, econômico, social e
político em plena selva amazônica, onde o homem e a natureza constroem um mundo a sua
maneira, numa tentativa de sobrevivência:
Conhecer a língua portuguesa não é privilégio de
gramáticos, senão dever do brasileiro que preza sua nacionalidade. É
erro de conseqüências imprevisíveis acreditar que só os escritores
profissionais têm a obrigação de saber escrever. Saber escrever a própria
língua faz parte dos deveres cívicos. A língua é a mais viva expressão de
nacionalidade (p. 07).
O comum é encontrarmos professores de Língua Portuguesa insatisfeitos com
seu trabalho, frustrados e tomados de sensação insuportável de derrota. Espalham-se as
queixas: os alunos, de um modo geral, caracterizam-se por baixo desempenho lingüístico,
desprezam a língua, não entendem o que lêem, abusam, na produção textual, de lugares-
comuns, são incapazes de pensar. O pior: costumamos responsabilizar os próprios alunos por
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esta situação caótica. E somente raras vezes nós, os professores, vemo-nos como peça desta
engrenagem, onde os sucessos e os fracassos do processo ensino-aprendizagem de nossa
língua mãe fazem parte de nossa história igualmente.
As conseqüências de tal quadro, certamente, não são as melhores: os estudantes
não gostam de estudar a própria língua; a gramática é desrespeitada por uma criança da 1ª
série do Ensino Fundamental da mesma forma que é por um universitário do Curso de Letras;
o ensino e o uso da Língua Portuguesa mostram-se como algo problemático; a escola parece
que não consegue lidar com os conflitos lingüísticos. E, em meio a tudo isso, o que ouvimos é
um grito de um novo ensino para a Língua Portuguesa pelo Brasil inteiro, inclusive no Acre,
pois o Estado se encontra abaixo da Média Nacional em todas as séries pesquisadas pelo
SAEB (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica) de 1999.
Neste contexto, vejamos o depoimento de uma professora de Língua
Portuguesa do Ensino Médio em Cruzeiro do Sul:
“Sou professora de Língua Portuguesa há cinco anos no
Ensino Médio e são muitas as inquietações que me afligem.
Recentemente, deparei-me com a prova do ENEM. Nela é patente a
distância que existe entre o que fazemos em sala de aula e o que o nosso
aluno precisa ter como competência. A avaliação do ENEM, parâmetro
para todo o Brasil, é feita para um aluno que além de estar em sala de aula
vivendo as atividades que nela se realizam, vivem constantemente
antenados com tudo que é informação. Esse não é o nosso aluno. Em
nossa realidade, eles não têm contato com tantos meios assim, eles não
têm perspectivas, falta-lhes alguma coisa de condições, de motivação
exterior à sala de aula. Por outro lado, ouve-se constantemente falar em
‘qualidade de ensino’ sem se oferecer mecanismos e infra-estrutura para
que isso ocorra. Por essas e por outras razões é que somos forçados a
avaliar o ensino da Língua Portuguesa como necessitado, ainda, de
mudanças que possam efetivar e evidenciar a interpretação de mundo, de
que você fala, em nossos educandos” (Maria José Costa).
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Envolvida por tal realidade e testemunha de tantos dissabores em relação à
nossa língua materna, fomos passando os nossos anos de Magistério aspirando pela
elaboração de um estudo que saciasse nossa sede de conhecer mais profundamente a situação
em que se insere o ensino de Língua Portuguesa no nosso campo de trabalho. Deste modo,
não foi difícil estabelecer, com clareza, o título para esta dissertação de mestrado: O Ensino-
Aprendizagem de Língua Portuguesa num Recanto Amazônico: Competências em
Construção.
Perrenoud (2002, p. 118), diz-nos: a primeira grande competência do professor
hoje é organizar e dirigir situações de aprendizagem. Sabemos que, diante disso, nós
professores podemos dizer que isso é o que sempre fizemos. Só que Perrenoud propõe como
nova competência ou desafio para nós, sabermos propor e gerir situações de ensino-
aprendizagem na perspectiva de uma escola diferenciada, ou seja, que leve em conta
características, ritmos, motivações dos alunos e não que apenas incite professores e alunos a
ficarem correndo atrás de problemas.
Assim, entendemos que ensinar a Língua Portuguesa é, fundamentalmente,
compreender como ela funciona e que usos tem e, ao mesmo tempo, refletir sobre o papel da
linguagem na nossa vida, como instrumento de libertação, como mediadora na construção do
conhecimento e do raciocínio. É missão para aqueles que desejam ser heróis e sujeitos no
despertar de uma sociedade onde todos tenhamos vez e voz, como apontam os Parâmetros
Curriculares Nacionais (1997):
O domínio da língua, oral e escrita, é fundamental para a
participação social e efetiva... Ao ensiná-la, a escola tem a
responsabilidade de garantir aos seus alunos o acesso aos sabores
lingüísticos, necessários para o exercício da cidadania, direito inalienável a
todos (volume 2, p. 15).
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Os PCNs até que apontam para uma direção libertadora do aluno mediante o
uso da língua, ou seja, a língua é vista como instrumento de libertação social do educando.
Porém, o que observamos, pelos caminhos da vida, é que a escola, muitas vezes, impõe um
modo de falar e conceber o mundo ao aluno, complicando e distanciando o mesmo do objeto
do conhecimento, dificultando assim o exercício da cidadania, através dos sabores
lingüísticos, de uma forma consciente.
Na prática, porém, tudo aparenta levar à reprodução: o aluno reproduz a fala
do professor, que reproduz a fala do livro didático, que reproduz um jeito de se interpretar a
vida de quem o escreve. A escola reproduz-se, certamente. Até porque, como o
conhecimento, na maioria das vezes, é visto/dado como algo acabado, resta a todos
apreendê-lo e reproduzi-lo, sem construí-lo. Tal perspectiva está claramente presente na
concepção de muitos escritores modernos. Lívia Suassuna (2000), por exemplo, afirma:
Qualquer professor de língua portuguesa é capaz de
lembrar a sua própria história escolar e admitir que ela foi quase que
uma mera repetição da imposição do “certo e do errado”. A tendência
natural, então, é que reproduza esse procedimento dogmático e prescrito
na escola, acreditando mesmo em seu funcionamento. (p. 32)
No entanto, precisamos mobilizar-nos no sentido de estruturarmos estratégias
metodológicas criativas para o ensino, pois o professor de Língua Portuguesa deverá ser
aquele que reúne condições para dirigir situações de ensino e aprendizagem da língua aos
alunos, com objetivos precisos, conforme recomenda Kock (1984): ”Ao professor cabe a
tarefa de despertar no educando uma atitude crítica diante da realidade em que se encontra
inserido, preparando-o para ‘ler o mundo’; a princípio o seu mundo, mas, daí em diante, e
paulatinamente, todos os mundos possíveis” (p.160).
Tamanha tarefa é reservada ao professor de Língua Portuguesa. Porém, na
maioria das vezes, o mesmo professor não é preparado para tal, ele que quase sempre recebe
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uma formação, em Língua Portuguesa, deficiente de uma escola também deficiente e, por sua
vez, estará igualmente incapacitado para trabalhar a língua de uma forma consciente e
libertadora, o que resultará em alunos não preparados para enfrentar o mundo lingüístico-
cultural-social que faz parte do seu dia-a-dia.
Foram situações deste nível que nos motivaram a entrarmos de corpo e alma
nesta investigação. Pois, para a nossa concepção de educadora, os maus hábitos como vem
sendo encarado o processo ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa são motivos mais que
suficientes para realizarmos um estudo de pesquisa como este, uma vez que tais problemas
requerem o enfrentamento. Macedo (2002), esclarece-nos:
Uma situação-problema, como situação de aprendizagem,
coloca um desafio intelectual, algo a ser superado. Ela pede antecipação
dos resultados, planejamento, correr riscos, portanto, reflexão,
tematização, disputa, enfrentamento de conflitos, tensões, paradoxos,
alternativas diversificadas ou argumentações (p.120).
É exatamente o que Macedo coloca aqui que aspiramos com esta investigação,
pois queremos, de certa forma, ser contribuinte numa grande história de amor à língua
materna, em um pequeno recanto em plena selva amazônica, onde homem e natureza ainda
formam um par quase perfeito...
1.2. Definição do Problema, do Objetivo e das Questões de Estudo
1.2.1. Definição do Problema do Estudo
A intermediação de um real externo, problemático, mescla-se às reflexões,
como que exigindo ser aberto primeiro para que possa clarear o objeto desta pesquisa. Na
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verdade, sentimo-nos motivados em construir o objeto com base nas teorizações que tentam
interpretar o contemporâneo, em especial a construção de competências que exigem um alto
nível de elaboração mental, e nas experiências de professores de Língua Portuguesa e alunos
do Ensino médio.
Pois a realidade a qual situamos o ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa
em Cruzeiro do Sul, escola de Ensino Médio Flodoardo Cabral, o Recanto Amazônico lócus
de nossa investigação, é uma realidade que merece de nós, profissionais do idioma, atenção
especial. Embasando-nos em Perrenoud (2000), vamos perceber que ele aponta as
competências básicas que cabem ao professor desenvolver como auxílio ao processo ensino-
aprendizagem, uma vez que elas estão ligadas à organização e à estimulação de situações de
aprendizagem. E, ao professor, cabe igualmente gerar e garantir a progressão da
aprendizagem e também pode refletir sobre como isso pode ser feito.
Logo, “a atuação do professor deve acontecer no sentido da construção de uma
nova consciência, consolidando uma cidadania ética e solidária” (Allessandrini, 2002, p.167).
Em meio a essa concepção, estamos nos propondo trabalhar com o seguinte problema de
estudo: em que medida as competências em Língua Portuguesa, estabelecidas pelos PCNEM,
estão sendo construídas pelos alunos do Ensino Médio da escola Flodoardo Cabral, o nosso
Recanto Amazônico, em Cruzeiro do Sul / Estado do Acre?
1.2.2. Definição do Objetivo do Estudo
Tendo em vista o problema de estudo acima mencionado, esta investigação tem
por objetivo geral: identificar em que medida as competências em Língua Portuguesa,
estabelecidas pelos PCNEM, estão sendo construídas pelos alunos do Ensino Médio da escola
Flodoardo Cabral, o nosso Recanto Amazônico, em Cruzeiro do Sul / Estado do Acre.
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Na tentativa de concretização deste objetivo, consideraremos o grau de
atendimento às competências básicas em Língua Portuguesa estabelecidas pelos PCNEM na
área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; e fundamentar-nos-e-mos em autores como
Perrenoud, Allessandrini, Macedo, Machado que acreditam que as competências são formadas
passo a passo, segundo um processo de construção contínuo, e que têm uma visão educacional
que compreende um aspecto transformador, uma vez que exigem uma postura crítica por parte
do professor, de forma a promover a reflexão. Allessandrini (2002), por exemplo, afirma:
Somos frutos de uma forma de se acreditar na educação.
Entretanto, recebemos a imensa tarefa de aprendermos a funcionar
internamente de um modo diferente daquele no qual fomos constituídos.
A cada dia, vivemos a necessidade de possuirmos uma consciência crítica
que participe efetivamente de nossas ações. Percebemos nossas amarras e
precisamos aprender a lidar com elas, em favor das crianças, dos
adolescentes e dos jovens que chegam a nós como alunos aprendizes,
trazendo consigo uma forma diferente (da nossa) de serem alunos (p.169).
1.2.3. Definição das Questões de Estudo:
A presente investigação, para alcançar seu objetivo geral, pretende encontrar
respostas para as seguintes questões de estudo:
Quais as percepções de alunos e professores do Ensino Médio sobre o ensino de Língua
Portuguesa, na escola Flodoardo Cabral, em Cruzeiro do Sul, tendo em vista o
relacionamento professor/aluno e os conteúdos trabalhados em sala de aula?
As competências: aplicar as tecnologias da comunicação e da informação na escola;
articular as redes de diferenças e semelhanças entre a língua oral e a escrita; considerar a
Língua Portuguesa como fonte de legitimação de condutas sociais, estão sendo construídas
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pelos alunos do Ensino Médio da escola Flodoardo Cabral?
Como os alunos do Ensino Médio da escola Flodoardo Cabral querem que seja o ensino
de Língua Portuguesa, tendo em vista a construção de competências estabelecidas pelos
PCNEM?
1.3. Importância do Estudo
A idéia de que a meta principal da escola não é o ensino de conteúdos
disciplinares, mas sim o desenvolvimento das competências pessoais, está hoje no centro das
atenções. E, como não existe uma competência sem a referência a um contexto no qual ela se
materializa, é que a importância desta pesquisa se dá na necessidade de identificarmos em que
medida as competências em Língua Portuguesa estabelecidas pelos PCNEM estão sendo
construídas pelos alunos do Ensino Médio da escola Flodoardo Cabral, nosso Recanto
Amazônico.
Os PCNEM (1997, p.10), na apresentação das Diretrizes Curriculares
Nacionais, apresentam como uma das competências a serem desenvolvidas em Língua
Portuguesa: “Compreender e usar a Língua Portuguesa como língua materna, geradora de
significação e integradora da organização de mundo e da própria identidade”. Esta
competência demonstra quão relevante é o papel que um idioma pátrio deve desempenhar na
vida de qualquer ser humano, a partir dos primeiros anos de existência.
Porém, somos conscientes das dificuldades que existem para a construção de tal
competência e também das demais, que serão analisadas neste trabalho, uma vez que
professores e alunos são partes atuantes de um meio onde não há o hábito de amar e respeitar a
Língua Portuguesa como língua mãe, geradora de tantos benefícios. E, por isso, estamos
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procurando cooperar, de forma efetiva, para a reversão da situação, propondo o presente
estudo.
E, no um estudo deste gênero, os maiores beneficiados certamente serão alunos
e professores de Língua Portuguesa do Ensino Médio que terão suas necessidades e interesses
atendidos à medida que estamos procurando elaborar um trabalho altamente inserido na
realidade local dos mesmos, onde eles serão os atores principais do processo, construindo
competências que venham a colaborar com o ensino-aprendizagem de língua materna em um
Recanto Amazônico. Queremos contribuir para que se realize o que Allessandrini (2002) nos
coloca:
Aprendendo a ver com olhos observadores e reflexivos, a
escutar o discurso que está sendo dito, a ler e a sentir o que está presente
nas entrelinhas do texto gestual ou escrito, o educador torna-se capaz de
desenvolver uma nova consciência que lhe possibilita enxergar o tácito e o
implícito no processo de aprendizagem de seu aluno. Desse modo, é
convidado a desenvolver suas próprias competências, direcionando seus
alunos para que aprendam a ser e a pensar (p. 161).
Os resultados desta pesquisa oferecerão subsídios para os diversos segmentos
envolvidos no processo ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa em Cruzeiro do Sul, a
partir da Escola de Ensino Médio Flodoardo Cabral, contribuindo na prática pedagógica dos
professores, visando auxiliá-los em seu trabalho diário com a língua e proporcionando ao
aluno condições para a ampliação de seu patrimônio científico, para a aprendizagem de uma
consciência crítica, capaz de interpretar o idioma que estuda e capaz de construir as
competências em Língua Portuguesa estabelecidas pelos PCNEM.
Pois, ao nosso ver, o mérito de uma pesquisa em educação, no tocante à
língua mãe, se justifica pela necessidade de garantir a aprendizagem de conhecimentos
básicos a todos os envolvidos. Denominamos conhecimento básico, em Língua Portuguesa, a
possibilidade de desenvolvimento da comunidade por meio da linguagem verbal em
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diferentes esferas da vida social, e a construção de competências básicas a partir do EBC
(Ensino-Baseado-em-Competênca).
“Trabalhar com aprendizagem envolve um contínuo movimento de reflexão,
um reajuste cotidiano de nossos próprios processos” (Allessandrini, 2002, p.166). Assim, este
trabalho de pesquisa, poderá ser um instrumento para a construção de um conhecimento
crítico, valorizando os interesses individuais articulados a um contexto sócio-histórico que
abrange o uso das novas metodologias e das tecnologias da comunicação e da informação,
fugindo de uma perspectiva puramente instrumental, acreditando que é possível fazer do
ensino-aprendizagem de língua materna uma intensiva interlocução, começando pela
conscientização de que ensinar o idioma pátrio a quem o domina de forma intuitiva constitui
um dever árduo; porém, necessário à formação básica e permanente do cidadão.
Precisamos apenas querer mudar e assumir os riscos de uma atitude inovadora,
onde o professor seja guia seguro e o aluno seja sujeito de sua própria história de
aprendizagem, e ambos acreditem que as mudanças virão, principalmente, daqueles que vivem
o ensino de língua, não daqueles que especulam sobre ele. Perrenoude (2002, p.31), refere-se a
esta percepção ao dizer: “Os formadores trabalham, refletem, formam-se, inovam, mas com
freqüência cada um continua no seu canto. Deixam o desenvolvimento de uma visão conjunta
nas mãos dos ministérios e da direção das instituições”.
Assim, um processo ensino-aprendizagem de língua mãe fundamentado no
EBC, nunca pode ser completamente isolada da cultura no qual está profundamente
enraizada, pois seu estudo deve levar aluno e professor à percepção de que há muitas formas
de construir competências e de olhar para as coisas, muitas formas de ação e expressão, e que
as diferenças não representam, necessariamente, questões certas ou erradas. De acordo
Allessandrini, (2002):
Há uma consciência crítica que deve ser desenvolvida. Há
uma qualidade de ser humano que precisamos aprender a ser. Há uma
23
nova postura que precisa participar de nossa atuação no mundo. Há um
desafio imenso que se traduz em pequenos gestos, no cotidiano de nossas
vidas pessoais e profissionais, que deve ser enfrentado e elaborado com a
maturidade que construirmos. Há competências a serem atualizadas e
ressignificadas. Há novas competências a serem desenvolvidas (p. 169).
Desta forma, o ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa, que concebemos
com este trabalho, será aquele que oferece ao homem um maior desenvolvimento de sua
capacidade ideativa, pela reflexão constante a que nos obriga o estudo de um sistema
lingüístico, trazendo-lhe, ainda, um aperfeiçoamento estético e uma evolução do pensamento
discursivo, com reflexo na função cognitiva, isto é, na que nos produz conhecimento, na que
nos leva ao mundo do saber constante e inserido numa realidade específica e que alimenta a
busca de sempre estarmos em evolução. Os PCNEM (1997), acrescentam:
O desenvolvimento da competência lingüística do aluno no
Ensino Médio, dentro dessa perspectiva, não está pautado na exclusividade
do domínio técnico de uso da língua legitimada pela norma padrão, mas,
principalmente, no saber utilizar a língua, em situações subjetivas e/ou
objetivas que exijam graus de distanciamento e reflexão sobre contextos e
estatutos de interlocutores – a competência comunicativa vista pelo prisma
da referência do valor social e simbólico da atividade lingüística e dos
inúmeros discursos concorrentes (p.11).
É importante também perceber que até mesmo o caminho da produção desta
investigação está sendo gratificante, pois o ponto de partida é a vivência de dezesseis anos que
temos com o ensino de Língua Portuguesa em Cruzeiro do Sul. Por esta ótica, procuraremos
manter o respeito à diversidade e às diferenças das pessoas entrevistadas na coleta de dados,
incluindo reflexões sobre o sentido do ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa e das
competências a serem objetivadas no Ensino Médio da mesma disciplina.
24
E, finalmente, um dos primeiros fatores a ser considerados para que esta
investigação faça sentido pode ser encontrado na experiência daqueles que vivenciaram e
vivenciam o ensino de Língua Portuguesa no nosso Recanto Amazônico ou em qualquer outro
lugar. Um poema, Aula de Português, de um dos maiores poetas da literatura brasileira e
mundial, Carlos Drummond de Andrade (1974, p.76-77), dá algumas indicações sobre uma
dessas experiências:
A linguagem
na ponta da língua,
tão fácil de falar
e de entender.
A linguagem
na superfície estrelada de letras,
sabe lá o que ela quer dizer?
Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,
e vai desmatando
o amazonas de minha ignorância.
Figuras de gramática, esquipáticas,
atropelam-me, aturdem-se, seqüestram-me.
Já esqueci a língua em que comia,
em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,
a língua, breve língua entrecortada
do namoro com a prima.
O português são dois; o outro, mistério.
De acordo com esta percepção de experiência com o ensino de Língua
Portuguesa na escola, a língua que se ensina é diferente e distante do português que se usa no
dia-a-dia. Este, como apresenta a primeira estrofe, esta na ponta da língua e é fácil de falar / e
de entender. Já o outro Português, o da escola, é visto, na segunda estrofe, como
incompreensível: “sabe lá o que ela quer dizer?”.
25
Ainda, de acordo com essa percepção, o resultado do ensino dessa outra língua
não é o seu aprendizado. Ao contrário, é, primeiramente, o reconhecimento de que não se sabe
essa língua: “Professor Carlos Góis, ele é quem sabe, / e vai desmatando / o amazonas de
minha ignorância”. É, por fim, o esquecimento, ou melhor, o estranhamento da língua do dia-a-
dia: “já esqueci a língua em que comia”,... Em suma: “o português são dois; o outro, mistério”.
Segundo a experiência acima, o português que se usa e o Português que se
ensina não coincidem. É como se fossem dois mundos tentando sobreviver numa única
realidade. Batista (1997), mostrando-se conhecedor de tal experiência nos coloca:
A natureza, assim, daquilo que se transmite na aula de
Português pode ser vista como o resultado das condições em que se
realiza a própria atividade de transmissão. Faz sentido, desse modo,
perguntar: quando se ensina Português, que português se ensina?
Responder a essa pergunta é de fundamental importância. Buscando sua
resposta, pode-se ter uma visão mais clara dos problemas enfrentados
pelos professores de Português em sua prática de ensino (p. 07).
Foi a partir de questões como as que foram acima mencionadas, que nos
propusemos a elaborar esta investigação; pois é investigando, explorando, pesquisando a
realidade dos fatos que nós podemos responder perguntas que não querem calar, produzir
nosso próprio conhecimento e descobrir o verdadeiro funcionamento do processo ensino-
aprendizagem de Língua Portuguesa: competências em construção, uma solução?
26
CAPÍTULO II
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Neste capítulo, temos por objetivo construir a fundamentação teórica da
investigação. Com este propósito, em primeira instância, abordaremos certas concepções de
ensino-aprendizagem. Em seguida, traçaremos uma perspectiva histórica do EBC (Ensino-
Baseado-em-Competência). E, finalmente, trabalharemos com os PCNEM (Parâmetros
Curriculares Nacionais - Ensino Médio) na área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias,
fazendo uma análise crítica de três competências das oito a serem desenvolvidas em Língua
Portuguesa estabelecidas pelos mesmos PCNEM.
2.1. Concepções de Ensino-Aprendizagem
Para Fernádez (1998, p. 45), as reflexões sobre o estado atual do processo
ensino-aprendizagem nos permite identificar um movimento de idéias de diferentes correntes
teóricas. Entre os fatores que estão provocando esse movimento, podemos apontar as
contribuições da Psicologia atual em relação à aprendizagem, que nos leva a repensar nossa
prática educativa. E os mecanismos de influência educativa têm um lugar no processo de
ensino-aprendizagem, como um ponto onde não se centra atenção apenas em um dos aspectos
que o compreendem, mas em todos os envolvidos.
27
O Relatório Jacques Delors (1998), resultado dos trabalhos da Comissão
Internacional sobre Educação para o Século XXI, da UNESCO, apresenta também sua
contribuição valiosa no tocante à aprendizagem:
A educação deve organizar-se em torno de quatro
aprendizagens fundamentais que, ao longo de toda a vida, serão de algum
modo para cada individuo, os pilares do conhecimento: aprender a
conhecer, isto é, adquirir os instrumentos da compreensão, aprender a
fazer, para poder agir sobre o meio envolvente, aprender a viver juntos, a
fim de participar e cooperar com os outros em todas as atividades
humanas; finalmente aprender a ser, via essencial que integra as três
precedentes. É claro que estas quatro vias do saber constituem apenas
uma, dado que existem entre elas múltiplos pontos de contato, de
relacionamento e de permuta (p.89-90).
Podemos perceber nesse texto do Delors a insistência em conjugar, em todos os
sentidos da palavra, dois verbos em cada um dos chamados pilares, sendo que o primeiro,
aprender, repete-se em todos eles. Aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver,
e aprender a ser. Enfim, levando às suas últimas conseqüências pedagógicas, os pilares se
reduzem a aprender a aprender, embora o próprio relatório considere essa máxima como
síntese apenas do primeiro pilar. “Aprender para conhecer supõe, antes de tudo, aprender a
aprender, excitando a atenção, a memória e o pensamento” (p.92).
O processo ensino-aprendizagem tem sido historicamente caracterizado de
formas diferentes, que vão desde a ênfase no papel do professor como transmissor de
conhecimento, até as concepções atuais que concebem o processo de ensino-aprendizagem
como um todo integrado que destaca o papel do educando. Nesse último enfoque, considera-
se a integração do cognitivo e do afetivo, do instrutivo e do educativo como requisitos
psicológicos e pedagógicos essenciais. Para Machado (2002), o que concretiza as concepções
atuais de ensino-aprendizagem é o desenvolvimento das competências:
28
Hoje, porém, parece cada vez mais claro que tanto a
formação escolar básica quanto a formação profissional justificam-se
apenas se se concentrarem no desenvolvimento das competências
pessoais. Estas certamente não são desenvolvidas sem que se estude
muita ciência, sem o recurso constante a aparatos tecnológicos,
concebidos para servir de meios à realização de nossos projetos (p.152).
A concepção defendida aqui é que o processo ensino-aprendizagem é uma
integração dialética entre o instrutivo e o educativo que tem como propósito essencial
contribuir para a formação integral de personalidade do aluno. O instrutivo é um processo de
formar homens capazes e inteligentes. Entendendo por homem inteligente quando, diante de
uma situação problema ele seja capaz de enfrentar e resolver os problemas, de buscar soluções
para resolver as situações. Ele tem que desenvolver sua inteligência e isso só será possível se
ele for formado mediante a utilização de atividades lógicas, como, por exemplo, a construção
de competências básicas.
A eficácia do processo ensino-aprendizagem está na resposta em que este dá à
apropriação dos conhecimentos, ao desenvolvimento intelectual e físico do estudante, à
formação de sentimentos, qualidades e valores, que alcancem os objetivos gerais e específicos
propostos em cada nível de ensino de diferentes instituições, conduzindo a uma posição
transformadora, que promova as ações coletivas, a solidariedade e o viver em comunidade.
A concepção de que o processo ensino-aprendizagem é uma unidade dialética
entre a instrução e a educação está associada à idéia de que igual característica existe entre
ensinar e aprender. Esta relação nos remete a uma concepção de que o processo ensino-
aprendizagem tem uma estrutura e um funcionamento sistêmico, isto é, está composto por
elementos estreitamente inter-relacionados. Paulo Freire (1978, p.79), há mais de duas
décadas, já defendia uma idéia educacional de comunhão: “Já agora ninguém educa ninguém,
como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão,
mediatizados pelo mundo”.
29
Essa é uma das afirmações mais citadas e mais conhecidas de Paulo Freire, mas
que, se não examinada em profundidade, pode provocar grandes equívocos. Estamos citando-
a aqui com a intenção de retomar uma idéia tão difícil de ser absorvida na nossa prática
educativa, dada à tradição hegemônica de um sistema educacional cujo eixo tem sido, entre
nós, o de ensinar conteúdos. A máxima freiriana constitui-se como auto-educação, pois tem
como centralidade o aprender, não o ensinar. Neste sentido, essa concepção posiciona-se na
mesma linha de Relatório Delors. Paulo Freire (1997) é até mais explícito nessa direção:
É preciso, sobretudo, e aí já vai um desses saberes
indispensáveis, que o formando, desde o princípio mesmo de sua
experiência formadora, assumindo-se como sujeito também da produção
do saber, se convença definitivamente de que ensinar não é transferir
conhecimento, mas criar as possibilidades para sua produção ou sua
construção (p.25).
Assim, no processo ensino-aprendizagem fundamentado em Paulo Freire,
homens e mulheres são irredutíveis a objetos do educador, isto é, não são informados nem
formados por outrem, mas auto-informados e autoformados. Aqui cabe indagar se o educador
tem razão de ser e, mais do que isso, se ele é fundamental ao processo pedagógico, embora
sua tarefa, na educação libertadora, seja a de criar possibilidades e ambiência adequada para
a construção do conhecimento pelos educandos. Esta ótica que caracteriza o olhar freiriano
sobre o processo ensino-aprendizagem se esclarece na perspectiva histórica:
Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi
aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens
descobriram que era possível ensinar. Foi assim, socialmente
aprendendo, que ao longo dos tempos mulheres e homens perceberam
que era possível – depois, preciso – trabalhar maneiras, caminhos,
métodos de ensinar. Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras,
ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender (Freire,
1997, p.26).
30
Isso nos leve a crer que nos primórdios da humanidade, não havia processos
sistemáticos e intencionais de ensino. Os seres da espécie aprendiam observando a realidade,
buscando, inicialmente, as soluções individuais. Com o passar do tempo, o homem construiu
coesões sociais mais amplas. Mas, o que queremos destacar aqui, é que o processo do
aprender precedeu o do ensinar. Esse, com o correr do tempo, tornou-se uma necessidade,
dada a acumulação de conhecimentos, habilidades e posturas necessárias à preservação ou à
transformação das formações sociais.
Já no primeiro livro de sua grandiosa carreira, Educação e atualidade
brasileira, escrito em 1959 e republicado em 2001, Paulo Freire assim se expressou:
Somente uma escola centrada democraticamente nos
educandos e na sua comunidade local, vivendo as suas circunstâncias,
integrada com seus problemas, levará os seus estudantes a uma nova
postura diante dos problemas de seu contexto. (...) Escola que se faça uma
verdadeira comunidade de trabalho e de estudo, (...) e faça com que
aqueles aprendam sobretudo a aprender (2001, p.85).
Tais idéias de Paulo Freire, há mais de quatro décadas, certamente causaram
grande estranheza para muitos; no entanto, acabaram por se tornar o eixo norteador da
educação no século XXI. Pois, apenas recentemente, foi que a humanidade descobriu que a
possibilidade de aprender conteúdos, desenvolver competências e habilidades, incorporar
princípios só é possível quando a pessoa aprende a aprender. Peter Senge (1990) escreveu:
O ser o humano vem ao mundo motivado a aprender, a
explorar e a experimentar. Infelizmente, a maioria das instituições em
nossa sociedade é orientada mais para controlar do que para aprender,
recompensando o desempenho das pessoas, em função de obediência a
padrões estabelecidos e não por seu desejo de aprender (p.45).
31
Ao longo desta discussão, estamos percebendo que todo ato do processo
ensino-aprendizagem obedece a determinados fins e propósitos de desenvolvimentos sociais e
econômicos, sustenta-se em uma filosofia da educação, adere a concepções epistemológicas
específicas, leva em conta os interesses institucionais e, depende, em grande parte, das
características, interesses e possibilidades dos sujeitos participantes: alunos, professores,
comunidades escolares e demais fatores do processo.
Todas estas influências exercem sua ação inclusive nos pequenos atos que
ocorrem na sala de aula, ainda que não sejam conscientes. Por isso, a adoção de uma nova
postura educacional, a busca de um paradigma da educação tem substituído, no processo
ensino-aprendizagem, uma relação de causa e efeito para um modelo que enfatiza o exercício
de investigação e construção de conhecimento. Allessandrini (2002) apresenta os temas
transversais como uma resposta à nova postura educacional:
Os temas transversais, longamente discutidos nos PCNs,
representam uma direção educacional efetivamente norteadora, pois
solicita-nos a refletir sobre a inserção real de nossos valores em nossa
práxis, criando respostas coerentes com o que pressupõe uma ação
reflexiva (p. 172).
Quem ensina sabe que a atividade escolar transcorre de uma forma rápida
demais. O professor deve atuar entre os alunos, em seus trabalhos, nas avaliações, na sala de
aula, nas consultas e visitas dos pais etc. No entanto, sem uma reflexão sobre a própria
prática, esta se torna automática e corre o risco de distanciar-se cada vez mais da realidade
mutante da sala de aula. A reflexão é a única via para melhorar o trabalho educativo.
Assim, alguns pontos são considerados essenciais por Fleury (1995) para gerar
uma dinâmica de ensino-aprendizagem em contextos de permanentes mudanças:
O processo de inovação, de busca contínua de capacitação e qualificação
das pessoas é um processo permanente, jamais esgotado.
32
O processo de aprendizagem é um processo coletivo, partilhado por todos,
e não o privilégio de uma minoria pensante.
A comunicação flui entre pessoas, áreas, níveis, visando à criação de
competências interdisciplinares.
Desenvolve-se uma visão sistêmica e dinâmica do fenômeno
organizacional (p.103).
O desafio é que esta dinâmica da aprendizagem precisa estar fundamentada
sobre valores básicos, que dêem consistência às práticas do processo ensino-aprendizagem.
Ou seja, há necessidade de que os valores básicos sejam consistentes com esta dinâmica de
aprendizagem e inovação permanentes.
Acredita-se, também, que a nossa emancipação, como professores, com relação
aos conteúdos e ao seu ensino, deva vir através do desenvolvimento de uma atitude crítica
sobre o conhecimento e o ensino do conhecimento, numa perspectiva de investigação e
construção de uma nova prática. Por nova prática, entendemos uma prática consciente, na
qual nós professores reflitamos e escolhamos os caminhos, de maneira mais comprometida
com resultados mais positivos, para nós e para nossos alunos.
Enfim, como educadores, deparamo-nos com a necessidade de trabalharmos no
sentido de aprimorar nosso conhecimento e desenvolver nossas possibilidades, favorecendo,
assim, a construção das competências de nossos aprendizes, permitindo-lhes que aprendam a
pensar e a aprender por eles próprios, a partir de diretrizes básicas, permeadas por valores e
princípios. Deste modo, o processo ensino-aprendizagem, do qual somos partes integrantes,
será um processo onde nós e nossos alunos possamos ensinar e aprender juntos, como sujeitos
de um único processo. Assim, certamente, o que Perrenoud (2002) escreve não continuará
sendo uma realidade entre nós:
As reformas escolares fracassam, os novos programas não
são aplicados, belas idéias como os métodos ativos, o construtivismo, a
avaliação formativa ou a pedagogia diferenciada são pregadas, porém
33
nunca praticadas. Por quê? Precisamente porque, na área de educação,
não se mede suficiente o desvio astronômico entre o que é prescrito e o
que é viável nas condições efetivas do trabalho docente. (p.17).
E, saindo de uma visão geral de ensino-aprendizagem para um aspecto mais
específico, Língua Portuguesa, podemos nos perguntar: O que significa mesmo
ensinar/aprender Português?
Quando dirigimos esta pergunta a estudantes de Língua Portuguesa, em geral
obtemos como resposta algo em torno da grande dificuldade de aprender uma língua
considerada “difícil e complicada”. Há uma clara percepção de que existe acentuada diferença
(já cantada em versos e prosa por Drummond, em Aula de português e por Luis Fernando
Veríssimo, em O gigolô das palavras) entre o português que se sabe e se pratica
cotidianamente e aquele que é ensinado na escola. Tal percepção dos falantes a respeito dessa
duplicidade sugere pelo menos uma pergunta: o que se ensina, de fato, nas aulas de Português,
para falantes de Português?
Autores como Cagliari (1984), Luft (1984/2002), Geraldi (1984 e 1996),
Soares (1995/2002) e Batista (1997) defendem que o ensino de teoria gramatical é a tônica e a
questão que se impõe no ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa. Porém, os mesmos
estudiosos têm buscado mais respostas a essa questão e algumas certezas já são correntes.
Talvez a mais importante delas seja a de que o ensino quase exclusivo de metalinguagem e de
teoria gramatical não determina a autonomia para o uso da língua em situações que não sejam
as simuladas em sala de aula.
Neste contexto, os PCNEM (1997) surgem como que redefinindo os conceitos
e apontando novos rumos para o ensino-aprendizagem de língua materna:
A Língua Portuguesa é um produto de linguagem e
carrega dentro de si uma história de acumulação/redução de significados
sociais e culturais. Entretanto, na atualização da língua, há uma variedade
34
de códigos e subcódigos internalizados por situações extra-verbais que
terminam por se manifestar nas interações verbais estabelecidas (p.20).
Além disso, por mais que se façam diagnósticos de crise, de falhas e de
denúncias sobre o ensino de teoria gramatical, esse modelo de ensino persiste e é realista
pensar como Ilari (1986, p. 219-20) quando ele avalia que, de certa forma, “(...) a gramática
tradicional resiste porque tem constituído um poderoso fator de auto-confiança do professor
primário e secundário, e faz parte da representação que o professor de português faz de sua
própria competência profissional”.
Uma compreensão mais ampla aponta para o ensino-aprendizagem de Língua
Portuguesa como sendo “o produto de uma visão do fenômeno da língua e do papel de seu
ensino em uma determinada sociedade” (Batista, 1997, p. 3); um produto, portanto, de certas
condições sócio-históricas que o engendram. Em conseqüência dessa posição, assume-se que
há lutas políticas na definição do objeto e dos objetivos de Língua Portuguesa. Assim, aquilo
que se ensina/aprende é fruto de uma escolha que se processa por meio de tensões e disputas
pela hegemonia no campo da linguagem.
Em 1984, Luft já havia argumentado que o ensino tradicional é ingênuo porque
é cheio de preconceitos que reiteram uma ação acrítica e rotinizada de práticas pedagógicas
caracterizadas pela via de mão única: professor ensina/aluno aprende. Tal prática, ainda na
visão de Luft, não leva em conta que todo falante já sabe sua língua e que “não há
oportunidade privada no mundo das palavras” (p.30). No entanto, a escola continua
orientando-se pela concepção de que há certo e errado em língua e assumindo, com isso, a
discriminação lingüística. Luft (1984/2002) define assim o ensino ideal:
O ensino ideal, a educação ideal, que todos desejamos, há
de ser uma educação para a liberdade, como a têm preconizado figuras do
porte de um Paulo Freire em nosso país. Muito particularmente se aplica
isto ao ensino de língua materna, já que é através dela que pensamos,
35
analisamos o mundo, nos integramos e nos relacionamos com os nossos
irmãos (p. 98).
Portanto, a nossa tarefa fundamental, como professores de língua materna ou
não, num novo processo ensino-aprendizagem, hoje, é semear desejos, estimular projetos,
consolidar uma arquitetura de valores que os sustentem e, sobretudo, fazer com que os nossos
alunos saibam articular seus projetos pessoais com os da coletividade na qual se inserem,
sendo, conseqüentemente, competentes e capazes de construírem competências básicas e seu
próprio modelo de aprendizado, no nosso caso, no Recanto Amazônico lócus de nossa
pesquisa.
2.2. Ensino-Baseado-em-Competência
O EBC (Ensino-Baseado-em-Competência) não está necessariamente
associado a qualquer filosofia ou a qualquer modelo de ensino-aprendizagem. Como
movimento, ganhou alta cotação a partir do fim da década de 60 nos Estados Unidos. E, como
a maioria dos movimentos dessa natureza, reflete uma tendência cultural geral, assim como
metas educacionais específicas.
Duas forças na sociedade americana se somaram contribuindo para o
desenvolvimento do EBC. A primeira, derivada de pressões nos setores comerciais e
industriais, enfatizava a responsabilidade que era cobrada dos indivíduos no exercício de suas
atividades. Assim, não se esperava que médicos, professores, dentistas, e outros, dominassem
profundamente apenas os conhecimentos dos seus campos. A segunda força, modeladora e
direcionadora do ensino, fundamentava-se na necessidade de personalização do ensino,
necessidade esta de profundas raízes na cultura americana (Houston, 1974).
36
O ensino para a competência constitui programa flexível e individualizado, que
liberta ambos, professor e aluno, das tarefas rotineiras e tradicionais, a fim de poderem
trabalhar no seu ritmo próprio, sem receio de fracasso, razão pela qual este tipo de ensino vem
ganhando tantos adeptos e suscitando tanto interesse. Muitos recorreram ainda a esta espécie
de ensino devido ao descontentamento reinante em relação à discrepância evidente que existe
entre teoria e prática. Outros, ainda, para tentarem responder às demandas públicas por
melhores professores ou ainda para que surjam novas mudanças na tecnologia educacional.
Apesar da noção de competência não ser nova, seu uso cada vez mais
difundido nos discursos educacionais, científicos e sociais é relativamente recente e nos leva a
inquirir sobre a significação do seu emprego. Segundo Bourdieu (1989, p. 67), “é preciso
examinar-se o espaço que as palavras ocupam na construção das coisas sociais”. E, devido à
importância que a palavra competência assumiu para se estabelecer o que seria um bom ou
um mau profissional, foi elaborada uma gama variada de definições.
Uma das definições mais comuns é de que este termo designa o conjunto de
conhecimentos, capacidades e aptidões que habilitam alguém para uma multiplicidade de
decisões e desempenhos sociais. Seu significado, no âmbito educacional e da formação para o
trabalho, está intimamente ligado ao desempenho e à eficiência. Mas, Perrenoud (1999),
esclarece-nos:
Não existe uma definição clara e partilhada das
competências. A palavra tem muitos significados, e ninguém pode
pretender dar a definição. O que fazer então? Resignar-se à Torre de
Babel? Procurar identificar o significado mais comum em uma instituição
ou em um meio profissional? Avançar e conservar uma definição
explícita? (p.19).
O próprio Perrenoud (2002), três anos depois, já se arrisca numa definição
mais consistente para competência:
37
Atualmente, define-se uma competência como a aptidão
para enfrentar uma família de situações analógicas, mobilizando de uma
forma correta, rápida, pertinente e criativa, múltiplos recursos cognitivos:
saberes, capacidades, microcompetências, informações, valores, atitudes,
esquemas de percepção, de avaliação e de raciocínio (p.19).
Essa amplitude semântica evidencia diversidade de significação, gerando
incerteza na conceituação geral de competência; às vezes, tal termo remete à capacidade,
outras vezes à habilidade, ao conhecimento, às atitudes e ao desempenho, conforme se pode
verificar em algumas definições presentes no Documento Educação Profissional: o debate da
(s) competência (s), citado pela Revista do PAS - Vol. 2. - Nº 2:
Competência é a capacidade de uma pessoa para desenvolver ações de maneira
autônoma, planejando-as, complementando-as e avaliando-as.
Competência profissional é a capacidade de utilizar os conhecimentos e as habilidades
adquiridas para o exercício de uma situação profissional.
Competência é a capacidade para usar habilidades, conhecimentos e atitudes e
experiências adquiridas para desempenhar bem papéis sociais.
Competência é a capacidade para aplicar habilidades, conhecimentos e atitudes em
tarefas ou combinações de tarefas operacionais. (p. 26)
Vale dizer ainda que as noções de saberes e competências foram redefinidas
pelas ciências cognitivas. Para alguns autores, competência é a potencialização de
capacidades várias e, para outros, é a efetivação das capacidades. Na elaboração do currículo,
essas duas dimensões estão configuradas: busca-se desenvolver no educando capacidades já
descobertas ou ainda não reveladas.
Em nossos dias, as rápidas transformações tecnológicas e as mudanças nas
formas de organizações sociais, sobretudo no mundo do trabalho, exigem um
redimensionamento educacional. Assim, O EBC começou surgir em vários países, deixando
38
as fronteiras dos Estados Unidos, com padrões estabelecidos de avaliação em conseqüência
dessas transformações, apresentando traços comuns em vários lugares, exigindo um novo
perfil do professor. Perrenoud (2000) parece que concorda com este raciocínio ao oferecer
mais uma definição para competência:
Prática reflexiva, profissionalizante, trabalho em equipe e
por projetos, autonomia e responsabilidade crescentes, pedagogias
diferenciadas, centralização sobre os dispositivos e sobre as situações de
aprendizagem, sensibilidade à relação com o saber e com a lei delineiam
um roteiro para um novo ofício (p.11).
E Cooper e Weber (em Houston, 1974, p.53) definem EBC como um
programa que especifica: “As competências a serem demonstradas pelo aluno. Os critérios
que serão aplicados na avaliação das competências do aluno. A responsabilidade do aluno
para satisfazer aqueles critérios”.
Tais competências referem-se a atitudes, comportamentos e habilidades que
facilitarão o crescimento físico, intelectual, social e emocional nas crianças e que são, sem
dúvida, necessárias a um ensino eficiente de qualquer disciplina. O aluno pode, no entanto,
ajudar a determinar as competências que serão demonstradas ou construídas por eles ao
longo de suas vidas escolares, atitude esta que raras são às vezes que acontece. O normal ou
comum, em vários sistemas educacionais, é o aluno ficar de fora do processo inicial da
escolha das competências.
Por esta ótica, o saber pedagógico do professor na sua relação com os alunos
deve estar pautado na compreensão de os saberes adquiridos no cotidiano da vida devem ser
sempre o ponto de partida e de chegada para a ampliação da compreensão mais competente
do mundo letrado, observando-se a seleção de conteúdos e os procedimentos de ensino-
aprendizagem, identificando as competências a serem construídas e o processo de avaliação
como um todo.
39
Perrenoud (2000), tendo como guia um referencial de competências adotado
em Genebra em 1996, apresenta dez novas competências para ensinar. Estas competências
apresentadas por Perrenoud são caminhos que nos conduzirão a novos horizontes, pois elas,
de uma forma didática, oferecem passo a passo o que precisamos fazer para construímos um
novo ofício em nossa prática docente:
Organizar e dirigir situações de aprendizagem; administrar
a progressão das aprendizagens; conceber e fazer evoluir os dispositivos
de diferenciação; envolver os alunos em suas aprendizagens e em seu
trabalho; trabalhar em equipe; participar da administração da escola;
informar e envolver os pais; utilizar novas tecnologias; enfrentar os
deveres e os dilemas éticos da profissão; administrar sua própria
formação contínua. (p.20)
Assim, o referencial no qual Perrenoud baseou-se para definir estas dez
competências parece que foi desenvolvido com uma finalidade definida: orientar a formação
contínua dos professores para torná-la coerente com as renovações em andamento no sistema
educativo. Ele não é definitivo nem acabado, pois nenhum referencial pode garantir uma
representação consensual, completa e estável de um ofício ou das competências que ele
operacionaliza. O referencial de Genebra é, então, parte integrante do EBC, servindo para
torná-lo mais rico e mais completo.
No EBC, a ênfase está no educando e na aprendizagem, em lugar do professor
e do processo de ensino. Esta mudança foi o que tornou o EBC um movimento ver-
dadeiramente revolucionário. Neste tipo de ensino, um padrão mínimo para o desempenho
efetivo é exigido. Cinco objetivos são definidos por seus defensores (Houston, 1974, p. 62):
Objetivos baseados na cognição. Espera-se aqui que o participante demonstre
conhecimento, capacidade intelectual e habilidades.
Objetivos baseados em desempenho. O participante é requisitado a fazer algo mais do
que simplesmente conhecer algo. Assim, põe a ênfase na ação observável.
40
Objetivos baseados em conseqüência. Solicita-se que o indivíduo ocasione mudanças em
outras pessoas, por exemplo, a habilidade de ensinar do professor é avaliada pelo
desempenho dos seus alunos.
Objetivos exploratórios. Os resultados aqui não são precisamente definidos, mas sim,
especificadas as atividades que prometem conduzir a uma aprendizagem significativa.
Objetivos no domínio afetivo. São vitais no EBC e estão embutidos nos demais tipos de
objetivos.
E para caracterizar o EBC, muitos elementos são considerados essenciais.
Houston (1974, p. 87), citando vários outros autores, lista uma série de características do
referido ensino. Destacamos algumas delas:
O programa como um todo é sistêmico e modularizado.
Os objetivos educacionais são formulados com clareza e precisão.
A instrução é individualizada e personalizada.
O tempo não é considerado, o importante é a aquisição da habilidade.
O aluno assume a direção de sua aprendizagem.
As competências devem ser hierarquizadas.
Uma escala flexível de atividades de aprendizagem é essencial.
A experiência de aprendizagem é guiada pelo feedback.
Em resumo, para os seus defensores, todo o EBC está fundamentado no tripé
que esclarece nitidamente a sua essência:
Organização do conteúdo a ser aprendido em componentes interdependentes.
Especificação do que deve ser aprendido.
Feedback durante a seqüência de aprendizagem.
Este tripé é facilmente compreendo através do esquema apresentado na figura
abaixo, baseada em Houston (1974):
41
Input Sistema de transformação Output
Feedback
Como qualquer outro programa, um programa de EBC apresenta alguns pontos
difíceis, mas não impossíveis de serem solucionados. Faz-se, portanto, necessário que se
estabeleça sempre uma reflexão profunda sobre eles para que o programa não seja ameaçado
de tornar-se estéril ou marginalizado.
Verificou-se inicialmente a dificuldade que existe em se preparar uma lista de
competências básicas para o EBC. É muito difícil se obter consenso porque variam as
filosofias de educação e teorias de aprendizagem, e porque as diversas comunidades
apresentam diferentes interesses e necessidades. A seleção de competências é, assim, um dos
pontos mais cruciais num programa de ensino baseado em competências. Perrenoud (1999)
completa este raciocínio:
Enfrentar situações diversas requer competências também
diversas, e estas não serão construídas pela simples transferência de
esquemas gerais de raciocínio, análise, argumentação e cisão. A escola só
pode preparar para a diversidade do mundo trabalhando-a explicitamente,
aliando conhecimento e savoir-faire a propósito de múltiplas situações da
vida de todos os dias (p. 75).
Um outro aspecto polêmico no EBC diz respeito à avaliação. Um programa
assim só poderá ser bem sucedido se houver meios adequados de se avaliar a competência do
aluno e do professor. É necessário criar novos métodos para se avaliarem os objetivos
complexos como os cognitivos e os afetivos, que são uma parte essencial da formação de
professores defendida pelo EBC.
SITUAÇÕES DE ENSINO DESEMPENHO
ALUNO
42
Neste contexto, uma das metodologias mais pertinentes ao desenvolvimento do
EBC, elaborado interdisciplinarmente através de contextos significativos para o aluno, que
contemplem cada vez mais aspectos da cultura juvenil, é a de projetos. Sua construção se dá
no coletivo, proporcionando a reflexão e o incentivo a práticas de valores, como o respeito às
diferenças e à solidariedade. Sem falar no processo de avaliação contínua que é inerente a tal
metodologia, promovendo a avaliação diferenciada e a auto-avaliação.
O Relatório Delors (1998) defende, assim como nós, um ensino voltado à
metodologia de projetos:
Parece, pois, que a educação deve utilizar duas vias
complementares. Num primeiro nível, a descoberta progressiva do outro.
Num segundo nível, e ao longo de toda a vida, a participação em projetos
comuns, que parece ser um método eficaz para evitar ou resolver conflitos
latentes (p.97).
No EBC, os professores são tidos como responsáveis pelos resultados de seus
alunos, embora se reconheça como é difícil controlar os muitos fatores que influenciam a
aprendizagem (interesse e motivação do aluno, disponibilidade de recursos, e outros). Desta
forma, tem-se que relevar esse ponto durante a avaliação da competência de um professor. E
mais ainda, levantar a questão se serão professores mais bem sucedidos aqueles que mostram
mais altos níveis de desempenho nas várias competências. Assim, professores formados por
programas baseados em competência serão professores mais eficientes? Ou todos são iguais,
independente do programa de formação?
Pesquisas estão sendo realizadas no sentido de relacionar a aprendizagem do
aluno com a as competências do professor, o que oferece um bom feedback para avaliar-se a
competência de um professor formado por um programa baseado em competência. Isso
porque o bom professor não é aquele que apenas obtém resultados bons nos seus exames
escolares, mas as decisões que ele tomará mais tarde, já em real interação com os alunos é que
43
evidenciará se o programa preparou-o adequadamente para o exercício eficiente de sua
carreira.
Apesar de alguns obstáculos e dificuldades, as inúmeras vantagens do EBC
justificam o seu desenvolvimento. Ele valoriza o tempo do professor e dos alunos, diminui o
tempo gasto em atribuições de notas, de controle da disciplina e exposição da matéria. Sendo
o aluno livre para realizar a tarefa proposta pelo programa dentro do seu ritmo individual e,
inclusive podendo auxiliar o professor durante a fase do estabelecimento dos objetivos, tem
grandes chances de se tornar um indivíduo autodeterminado e responsável.
Assim, o EBC vem preencher o vácuo existente entre teoria e prática. O mesmo
possui caráter democrático, uma vez que não discrimina a pessoa na base de classe, educação,
raça ou cor, respeitando todos com seus respectivos potenciais, o que contribui, obviamente,
para a formação de pessoas com caráter ético e democrático. Porém, como diz Perrenoud
(1999), o mais importante na construção de competências não é o modelo de programa
seguido:
Desenvolver competências não é contentar-se em ter
seguido um programa, e sim não parar com sua construção e testagem.
Pouco importa o programa; o que se deve fazer é enfrentar o problema, e
o problema é que a ação pedagógica não alcançou sua meta. Deve-se,
então, teimar, sem cair na persistência pedagógica, sem fazer mais a
mesma coisa, procurando novas estratégias (p.79).
A implantação de um Programa de Competências requer uma reestruturação
total, seja por parte das autoridades educacionais, do programa, do planejamento, do
treinamento e papéis de professores, das instalações, da didática, do tempo e energia
necessários, das responsabilidades e dos custos, pois, para Perrenoud, em PÁTIO ANO VI Nº
23 SET/OUT 2002:
Talvez o grande perigo dos programas orientados para as
competências seja não sustentar suas promessas, como também não
44
proporcionar sólidos e verdadeiros conhecimentos àqueles que mais
necessitam deles. Ao invés de estigmatizar os programas, seria melhor
apontar as incoerências dos governos que os promulgam, mas não
proporcionam os meios para que sejam aplicados, reforçando, assim, as
desigualdades (p.08).
O Brasil e vários países europeus (por exemplo, França, Portugal e Espanha)
introduziram ou estão introduzindo, desde o Ensino Fundamental, programas orientados para
as competências. Porém, há quem pense que os programas baseados em competências são
uma invenção das classes dominantes e das forças conservadoras que comandam o mundo.
Perrenoud, mais uma vez em PÁTIO ANO VI Nº 23 SET/OUT 2002, esclarece:
Os historiadores dirão – daqui a 30 ou 50 anos – se os
programas orientados para as competências foram uma profunda agressão
na emancipação das pessoas e no desenvolvimento democrático das
sociedades ou, ao contrário, um progresso. Também dirão quem tinha
razão: os que combateram e os que apoiaram essas reformas (p.09).
A partir desta concepção de Perrenoud, é evidente que devemos tomar
posições sem saber a que exatamente nos opomos ou nos aliamos. O mais prudente, sem
dúvida, é adotar uma postura de esperar para ver, de não se engajar, de não se manifestar.
Naturalmente, essa prudência permite preservar nossa virtude, mas a história não é construída
por aqueles que esperam o fim da mesma história para tomar partido. Por esta ótica, aliamo-
nos ao grupo dos que acreditam e apostam em um Programa de Ensino-Baseado-em-
Competência, confiando nas palavras de Perrenoud (1999):
Se uma abordagem por competências não passar de uma
linguagem da moda, ela modificará apenas os textos e será rapidamente
esquecida. Se sua ambição for a transformação das práticas, passará a ser
uma reforma do terceiro tipo. Construir competências desde a da escola
requer paciência e longo tempo (p.86).
45
2.3. Competências em Construção - PCNEM
Na análise que ora iniciamos, procuraremos situar nossas exposições no
contexto das inovações curriculares propostas para o Ensino Médio, na tentativa de provocar
uma reflexão em torno das competências a serem desenvolvidas em Língua Portuguesa
estabelecidas pelos PCNEM (Parâmetros Curriculares Nacionais - Ensino Médio) e sua
conexão com uma concepção de ensino-aprendizagem baseado na construção de
competências básicas, pois construir competência, hoje, parece ser necessário a qualquer
sistema de ensino, apesar das dificuldades existentes em um processo assim.
Vale lembrar que os PCNEM não são nem um currículo já pronto, nem uma
proposta curricular predeterminada, nem muito menos um programa curricular. Eles apenas
apontam, sugerem e encaminham possibilidades de trabalho. Eles são tão somente
parâmetros. E, ao apresentarem-se, afirmam que os mesmos têm como finalidade delimitar a
área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. E ainda esclarecem:
(...) As diretrizes têm como referência a perspectiva de criar uma escola
média com identidade, que atenda às expectativas de formação escolar
dos alunos para o mundo contemporâneo.. O caminho de sua produção foi
longo e histórico. O ponto de partida se deu em 1996. Houve adesão de
diferentes pessoas, que encaminharam críticas e sugestões diversas, o que
motivou a elaboração de várias versões. Cabe ao leitor entender que o
documento é de natureza indicativa e interpretativa, propondo a
interatividade, o diálogo, a construção de significados na, pela e com a
linguagem (p. 04).
É certo que este documento tem um alcance normativo para todo o sistema de
escolas federais, estaduais e municipais de Ensino Médio e Tecnológico. No entanto, para um
conjunto nacional mais significativo, ele é apenas, como já foi dito antes, um instrumento.
Pode ser lido como princípio de orientação para aqueles docentes e escolas que, não
46
dispondo de recursos materiais e humanos, necessitam ainda construir uma metodologia de
ensino. Esta é, de fato, sua primeira e principal função.
Dito isso, faz-se necessário enfocar os conceitos de interdisciplinaridade,
contextualização e competências, eixos fundadores da reforma do Ensino Médio baseada nos
PCNEM. É sobre esse tripé que se articula a resposta a uma demanda crescente e legítima no
mundo contemporâneo: colocar em contato as diferentes especialidades de modo a articular
uma visão de conjunto do real e permitir um domínio significativo dos saberes. Pois, de
acordo com Perrenoud, em PÁTIO ANO VI Nº 23 SET/OUT 2002: “A abordagem por
competências cria vínculos entre os saberes escolares e as práticas sociais” (p.10).
Com isso, tem-se em vista a necessidade de se construir competências gerais e
básicas na educação de nível médio. É missão da escola, hoje, superar a fragmentação, a qual
constitui um entrave à construção de um mundo mais igualitário. Os PCNEM pretendem
contribuir para que a escola pense a fragmentação e promova a superação do isolamento
disciplinar, cuja função histórica há muito se esgotou e, muitas vezes, resta-nos tão somente
mal-entendidos, desvios. Guiomar Namo de Mello (1988) esclarece que
(...) a interlocução é sempre difícil; um diz uma coisa, o outro entende
outra; demora para as pessoas estarem falando a mesma língua, com o
mesmo quadro de referência. A comunicação é muitas vezes truncada, ou
seja, aquele processo através do qual se podem compartilhar diferentes
universos, que são simbólicos, são culturais e, portanto, são também
políticos, é um processo de encontro e desencontros (p.21).
A meta da nova educação básica contida nos PCNEM é, pois, promover o
desenvolvimento pessoal do aluno, tornando-o capaz de tomar decisões ao longo de sua vida e
de intervir socialmente. O que o tornará sujeito crítico, capaz de solucionar problemas e tomar
decisões é uma aprendizagem por competências. Através dela, o aluno terá que enfrentar
desafios apresentados pelo professor, pelo grupo e pela sociedade.
47
Deste modo, o jovem aprende a enfrentar desafios através da mobilização de
competências frente a problemas significativos para ele. Logo, terão significado para o aluno
os problemas referentes ao seu contexto. Cada aluno é único, com histórias e repertório
diversificados (saberes e competências acumulados pela escolaridade e pelo que a vida lhe
ensinou). Cabe a nós, professores, ampliarmos este repertório, esta rede de conhecimentos que
o aluno possui e mobilizá-los a serviço do seu desenvolvimento pessoal.
Assim, a nova concepção de aprendizagem busca construir a autonomia
intelectual do aluno, para que ele possa tomar decisões, que é mais do que resolver
problemas, pois implica na utilização de raciocínio e de valores, como decidir pelo que é
mais justo para ele e para sua comunidade. A multiplicidade de alternativas frente à tomada
de decisões está intrinsecamente ligada à ampliação do repertório do aluno, que se dará pela
construção de competências.
O que fica patente, com toda a discussão aqui efetivada, é que as competências
ocupam, atualmente, lugar central na construção dos currículos educacionais. A escolha das
competências básicas, as que devem formar o cidadão, está ligada à própria concepção de
homem, de educação e de sociedade que se pretende. Tendo como pressuposto a convicção
de que o homem não deve apenas adaptar-se às condições que lhe são impostas pela
sociedade, como se fosse mero objeto, mas prepara-se, sobretudo, para transformá-las.
Perrenoud (2002) é feliz quando diz:
O reconhecimento de uma competência não passa apenas
pela identificação de situações a serem controladas, de problemas a
serem resolvidos, de decisões a serem tomadas, mas também pela
explicitação dos saberes, das capacidades, dos esquemas de pensamento
e das orientações éticas necessárias. (p.19).
Os PCNEM classificam as competências da área de Linguagens, Códigos e
suas Tecnologias em três conjuntos de competências: Representação e comunicação;
48
Investigação e compreensão; Contextualização sócio-cultural. Nesses três conjuntos, são
apresentadas oito competências a serem desenvolvidas em Língua Portuguesa.
Não iremos analisar todas elas. Tomamos a liberdade e elegemos apenas três, uma de cada
conjunto, na certeza de estarmos tirando uma amostra que contemple a demanda de nossa
pesquisa. Os PCNEM apresentam assim suas competências:
As competências que aqui serão objetivadas correspondem
a uma visão da disciplina dentro da área e deverão ser desenvolvidas no
processo de ensino-aprendizagem, ao longo do Ensino Médio. A proposta
não pretende reduzir os conhecimentos a serem aprendidos, mas sim
indicar os limites sem os quais o aluno desse nível teria dificuldades para
prosseguir nos estudos, bem como participar ativamente na vida social.
(p.20).
2.3.1. Aplicar as tecnologias da comunicação e da informação na escola, no trabalho e
em outros contextos relevantes para a sua vida (PCNEM, p.11).
Ao iniciarmos nossas reflexões, podemos perceber que não é mais possível
pensarmos em cidadania plena sem uma alfabetização tecnológica. Logo, poder servir-se das
tecnologias da comunicação e da informação é uma competência básica a ser propiciada no
conjunto do currículo escolar e de suas disciplinas.
De acordo com os PCNEM, “As novas tecnologias da comunicação e da
informação permeiam o cotidiano, independente do espaço físico, e criam necessidades de
vida e convivência que precisam ser analisadas no espaço escolar” (p. 11-12). Assim,
situaremos nossas considerações no contexto das inovações curriculares propostas para o
Ensino Médio, na tentativa de provocar uma reflexão e um debate em torno do papel das
novas tecnologias e sua conexão com uma concepção de educação baseada no
49
desenvolvimento de competências básicas, e vinculada aos diversos contextos de vida dos
alunos.
E, considerando o fato de que não faz sentido conhecer e não saber utilizar, a
competência de aplicar essas tecnologias em contextos relevantes vem, por assim dizer,
coroar os esforços que o novo Ensino Médio pretende desenvolver para aproximar a educação
da vida concreta. Afinal de contas, somos seres dotados de necessidades que são
historicamente constituídas e as novas tecnologias são respostas sociais a necessidades que
vão sendo criadas pela própria dinâmica da vida coletiva. Para os PCNEM,
As tecnologias da comunicação e informação não podem
ser reduzidas a máquinas; resultam de processos sociais e negociações
que se tornam concretas. Elas fazem parte da vida das pessoas, não
invadem a vida das pessoas. A organização de seus gêneros, formatos e
recursos procura reproduzir as dimensões da vida no mundo moderno
(p.12).
Dada a intrincada rede de relações que as realidades tecnológicas mantêm com o
todo cultural, o novo currículo do Ensino Médio também prevê uma contribuição especial da
Área de Ciências Humanas e suas Tecnologias a uma tomada de posição mais definida com
relação a essa questão. Trata-se de estruturar um currículo em que o estudo das ciências e o
das humanidades sejam complementares e não excludentes. Busca-se, com isso, uma síntese
entre humanismo, ciência e tecnologia, que implique a superação do paradigma positivista,
referindo-se à ciência, à cultura e à história (PCNs, vol. 4, p. 19).
Hoje, mais do que ontem, em virtude das inúmeras possibilidades de aplicação
à educação das novas tecnologias da comunicação e da informação, devemos estar atentos
para não repetir erros do passado, quando as tecnologias educacionais foram inspiradas mais
nos seus meios do que nos seus fins. Com o predomínio da técnica, foram adicionados meios
50
ao sistema tradicional como se esses, por si sós, fossem capazes de promover mudanças
significativas na escola e no sistema educacional. Consoante com os PCNEM, as
Descobertas humanas foram pensadas para o homem e
assim devem ser entendidas. Os sistemas tecnológicos, na sociedade
contemporânea, fazem parte do mundo produtivo e da prática social de
todos os cidadãos, exercendo um poder de onipresença, uma vez que
criam formas de organização e transformação de processos e
procedimentos. (p.12)
Infelizmente, no contexto educacional brasileiro, as coisas não acontecem bem
assim. A prática predominante tem sido a de, primeiro, dotar as escolas de equipamentos e
produtos, para depois pensar ou viabilizar, através da capacitação de professores e alunos, sua
utilização no contexto da escola. E, o que sabemos hoje, é que os computadores existentes nas
escolas, ligados ou não à Internet, salvo exceções, não vêm se constituindo em um auxiliar da
prática pedagógica, em instrumento motivador da aprendizagem, de exploração crítica, da
prática da pesquisa, enfim, um instrumento renovador do processo ensino-aprendizagem.
Contextualizando: em março de 2001, estávamos nós numa cidade do interior
do Acre, Brasiléia, assistindo a uma palestra do então Governador do Estado, Jorge Viana.
Quando este terminou sua fala, pediu que a platéia se manifestasse sobre o assunto por ele
discursado: Biodiversidade. Foi então que um aluno do Ensino Médio local, surpreendendo a
todos, mudou totalmente a lógica do debate pedindo ao Governador a concessão para ele e
seus colegas usarem os muitos computadores que há dois anos estavam dentro de uma sala da
escola onde ele estudava, mas que ninguém podia utilizá-los.
O Governador Jorge Viana ficou irritado com a denúncia feita pelo aluno e
ordenou que imediatamente fosse formada uma comissão para a investigação dos fatos. Os
resultados apurados nós não tomamos conhecimento. Porém, isso não é o principal. Citamos
aqui apenas um exemplo tentando mostrar os problemas que ainda rondam a aplicação de
51
tecnologia nas escolas brasileiras. E neste contexto, os PCNEM chamam nossa atenção para o
perigo de convivermos com as tecnologias sem entendê-las:
Qualquer inovação tecnológica traz certo desconforto
àqueles que, apesar de conviverem com ela, ainda não a entendem. As
tecnologias não são apenas produtos de mercado, mas produtos de
práticas sociais. Seus padrões são arquitetados simbolicamente como
conteúdos sociais, para depois haver uma adaptação mercadológica
(p.12).
Deste modo, a visão educacional que precisamos adotar compreende um
aspecto transformador, uma vez que exige uma postura crítica por parte das autoridades
educacionais e dos professores de forma a promovermos a aplicação das novas tecnologias da
comunicação e da informação à prática do ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa, de
modo particular, em nosso Recanto Amazônico, que tanto necessita de um desenvolvimento
tecnológico que lhe assegure um ensino de qualidade baseado nos recursos modernos que hoje
permeiam a educação nacional.
Neste contexto, devemos assumir a responsabilidade ética de sermos agentes de
mudanças em nosso ambiente de trabalho, transformado-nos em multiplicadores de novas
idéias e das novas tecnologias, por mais que isso não seja uma tarefa fácil. Para Allessandrini
(2002), devemos “(...) entender a educação como a possibilidade de oferecer ao outro
qualidade e condições de desenvolvimento” (p.170).
Enfim, para encerrar esta discussão, citaremos a Comissão Internacional sobre
Educação para o séc. XXI:
O aparecimento de sociedades da informação corresponde
a um duplo desafio para a democracia e para a educação, e que estes dois
aspectos estão estreitamente ligados. A responsabilidade dos sistemas
educativos surge em primeiro plano: cabe-lhes fornecer, a todos, meios
para dominar a proliferação de informações, de as selecionar e
hierarquizar, dando mostras de espírito crítico.
52
Concluímos nossas reflexões, reiterando o quanto é fundamental que nós,
profissionais de educação, invistamos em tecnologias inovadoras, contribuindo para que
nossos aprendizes encontrem seus próprios modos de construção. Dessa maneira, estaremos
desenvolvendo uma verdadeira Pedagogia Diferenciada, baseada em construção de
competências básicas.
2.3.2. Articular as redes de diferenças e semelhanças entre a língua oral e escrita e seus
códigos sociais, contextuais e lingüísticos (PCNEM, p. 24).
A partir das concepções de Vygotsky (1991), partimos do princípio que,
através do ensino, os sujeitos se encontram numa rede de relações com o mundo, que lhes
possibilita adquirir uma forma peculiar de existência, constituindo, assim, seu campo
simbólico de significações. Esta capacidade simbólica do homem, que se expressa através da
linguagem e se materializa no texto oral ou escrito, relaciona-se diretamente com sua prática
social global.
As pesquisas mais recentes sobre o ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa
apontam para a necessidade de definir-se por uma concepção de linguagem que fundamente a
prática pedagógica. Essa concepção deve ser o ponto de partida para o ensino de língua
materna em todos os aspectos e, em especial, nas muitas diferenças e semelhanças existentes
entre a língua oral e a escrita, um grande desafio presente no processo ensino-aprendizagem
de nosso idioma pátrio. Para Rocco (1989):
Nas duas últimas décadas, a preocupação sistemática com
as especificações do oral e do escrito, tem estado muito presente entre
estudos da linguagem, mostrando-se como uma espécie de
questionamento - desafio para um grande número de pesquisadores da
área (p.76).
53
A oralidade é uma prática social para fins comunicativos fundada na realidade
sonora e que se apresenta em realizações que vão da mais informal a mais formal, sem a
necessidade de uma tecnologia além do próprio ser humano. Já a escrita, inserida na prática
do letramento, envolve desde um conhecimento mínimo de sua tecnologia (como no indivíduo
analfabeto que identifica o ônibus que deve tomar, mas não é capaz de escrever) até o
conhecimento que possibilita escrever e ler sem restrições.
Assim, as modalidades da linguagem verbal atualizam-se nas formas oral e
escrita. A primeira é adquirida pela criança, ainda quando pequena, na interação social. Há
um processo complexo para essa aquisição, que pode ser favorecida num ambiente de
interação amigável, marcado por descontração e afeto. O aprendizado da escrita, por outro
lado, ocorre principalmente na escola. Por volta dos seis ou sete anos, a criança entra na
escola, começa aprender a escrever e a partir daí não pára mais. A aprendizagem da escrita
tem um começo, mas não um término, como observa Vygotsky (1991, p. 85):
Nossa investigação mostrou que o desenvolvimento da
escrita não repete a história do desenvolvimento da fala. A escrita é uma
função lingüística distinta, que difere da fala oral tanto na estrutura como
no funcionamento, até o seu mínimo desenvolvimento exige um alto
nível de abstração. Ao aprender escrever, a criança precisa se desligar do
aspecto sensorial da fala e substituir palavras por imagens de palavras.
Por isso, dizer que o homem é um ser que fala não significa, para Marcuschi
(2000), dizer que a oralidade é superior à escrita, muito menos que a escrita é derivada e a fala
primária. A escrita não é uma representação da fala. Por um lado, ela não reproduz certos
fenômenos da oralidade como os gestos e os movimentos do corpo. Por outro, ela possui
elementos próprios como tamanho e tipo de letras que podem representar graficamente gestos
ou prosódia. Escrita e oralidade são, portanto, práticas e usos da língua com características
próprias, mas não são dois sistemas lingüísticos diferentes.
54
Muitas sociedades e pessoas sobrevivem sem o registro escrito e transmitem
suas idéias pela fala, mostrando que as regras-padrão da escrita não são, portanto, a única
possibilidade de uso. E, para Bagno (2001), a língua falada é um sistema lingüístico, como é o
escrito:
(...) Isso não significa, como querem nos convencer os
tradicionalistas, que a língua falada não tem regras, é relaxada, não tem
compromisso com a gramática (...). Significa, sim, que muitas regras
cristalizadas na norma-padrão não fazem parte da gramática do português
falado no Brasil. (...) Não existe língua falada que não tenha regras, que
não tenha uma lógica de funcionamento sintático-semântico-pragmático,
que não tenha gramática, enfim (p.161-2).
Aprender a escrever faz sentido em uma sociedade letrada, isto é, numa
sociedade em que estar analfabeto significa não compartilhar de um direito social. No Brasil,
podemos dizer que aproximadamente 40 milhões de pessoas vivem sem saber escrever.
Entretanto, elas são, de uma forma ou de outra, pressionadas pela palavra escrita. Precisamos,
por isso, aprender a escrever, pois numa sociedade como a nossa, o domínio da palavra escrita
significa poder.
Dessa forma, podemos afirmar que no Brasil existe uma situação de diglossia
bastante peculiar. Embora não tenhamos aqui duas línguas diferentes, como no caso do
Paraguai, por exemplo, existe, por outro lado, uma distribuição bastante desigual dos usos
atribuídos às variedades mais padronizadas (escrita) e dos atribuídos às variedades menos
padronizadas (fala). Assim, as pessoas que não têm acesso à norma-padrão têm como língua
materna uma variedade lingüística que apresenta sempre pontos de atrito. Bagno (2001) ainda
acrescenta:
Quando se trata dos falantes pouco escolarizados ou
totalmente analfabetos, o abismo entre a norma-padrão e a língua
realmente falada fica ainda maior. É por isso que costumo dizer que no
Brasil se desenrola um verdadeiro drama lingüístico. Embora se diga que
55
aqui “todo mundo fala português”, existem “portugueses” que valem mais
do que outros... (p.163).
Na mesma linha de argumentação, o lingüista Mário Perini (1997) fala da
distância entre o ”português” (norma-padrão, escrita) e o “vernáculo” (a língua falada pelos
brasileiros). Vejamos o que ele nos diz:
O português e o vernáculo são, é claro, línguas muito
parecidas. Mas não são em absoluto idênticas. (...). Isto é, poderiam ser
consideradas línguas distintas, se ambas fossem línguas de civilização e
oficialmente reconhecidas. Mas sendo as coisas como são, tendemos a
pensar que o vernáculo é simplesmente uma forma errada de falar
português. (...) Pessoalmente, não tenho grandes objeções quanto a se
escrever português; mas acho importante que se entenda que ele é (pelo
menos no Brasil) apenas uma língua escrita. Nossa língua materna não é o
português, é o vernáculo brasileiro – isso não é um slogan, nem uma
posição política; é o simples reconhecimento de um fato (p. 31-8).
Perini, nesta citação, faz declarações bastante comprometedoras. Porém, são
distâncias como as que ele aponta que fazem com que nosso trabalho com a língua materna se
torne a cada dia mais difícil. Pois, muitas vezes, não sabemos lidar com as diferenças
existentes entre a língua falada e a escrita e isso faz com que se instaure um dilema, dando a
impressão de dois português, como dizia Drummond: “O português são dois; o outro,
mistério”. Para nós, é esta realidade que constitui o tipo especial de diglossia que temos no
Brasil, apesar desta não ser uma posição aceita por muitos estudiosos da língua.
Mattoso Câmara (1981), um grande lingüista brasileiro, ao criticar a rigidez das
gramáticas, da norma-padrão, destaca a sua importância para evitar o caos lingüístico.
Observemos uma citação onde ele chama a atenção para o perigo das intervenções individuais
sobre a língua:
56
Seria penoso que diante dessa precariedade da norma
lingüística cada um de nós tivesse, a cada momento, de achar soluções por si.
A gramática normativa que se descreve com a arte de escrever e falar
corretamente, poupa-nos esse esforço, apresentando uma espécie de códigos
de leis, que estudamos para obedecer. (...) Aqueles que se dedicam ao estudo
da linguagem e os literatos, que fazem dela um motivo de arte, discutem
essas soluções e apresentam outras diversas. Quem tem apenas o objetivo
prático de comunicação eficiente deve, ao contrário, pautar-se pelas
convenções usualmente seguidas, embora sem procurar orientar-se por
gramáticos e dicionários intransigentemente conservadores (p. 91).
Um outro exemplo do poder da palavra escrita encontra-se nos fundamentos
dos jesuítas, os primeiros que, no Brasil, ensinaram a Língua Portuguesa aos índios. No ato de
ensinar a língua, também ocorria um processo violento de aculturação por parte dos índios.
Isso significa que os nativos eram obrigados a passar por um processo de substituição de seus
princípios e de seus valores. E o que observamos aqui é que desde os primórdios do ensino-
aprendizagem de língua materna do Brasil, não foi respeitado o direito da utilização de várias
linguagens, conforme alertam os PCNEM:
O conhecimento, a análise e o confronto de opiniões sobre
as diferentes manifestações da linguagem devem levar o aluno a respeitá-
las e preservá-las como construções simbólicas e representações da
diversidade social e histórica. As linguagens se utilizam de recursos
expressivos próprios e expressam, na sua atualização, o universal e o
particular (p. 09).
Desta forma, se apenas a aquisição da língua culta, burguesa por excelência, é
o objetivo da escola, estaremos, com certeza, imputando uma substituição cultural. Negamos,
assim, que há uma cultura popular tão rica quanto outra qualquer, que pode na prática escolar
ser registrada. Se, por outro lado, considerarmos a aquisição da língua padrão como mais
uma, dentre as variedades lingüísticas, privilegiada só porque representa uma classe social,
57
estaremos mostrando a diversidade de manifestações possíveis da linguagem, como
argumenta Fiorin (2002):
A língua escrita não reflete todas as mudanças que ocorrem
na língua falada. A língua escrita vem normalmente a reboque das
mudanças ocorridas na língua falada, havendo freqüentemente uma
defasagem entre o aparecimento de mudanças na língua falada e o
momento em que elas passam a ser aceitas ou pelo menos toleradas na
língua escrita (p.147).
Por este aspecto, o mais viável seria uma integração da língua falada em nossas
práticas escolares. Pois tal integração poderia oferecer uma resposta às conhecidas
dificuldades do ensino de Português no Brasil contemporâneo e, em particular, no nosso lócus
de estudo e trabalho, Cruzeiro do Sul, nosso Recanto Amazônico. Assim, o importante seria
sabermos lidar com as redes de diferenças e semelhanças existentes entre os dois processos
distintos, oral e escrito, de uma mesma realidade, a Língua Portuguesa. Língua é, pois,
mudança, interação, transformação.
Para Marcuschi (2000), a oralidade será sempre o fator de nossa identidade
social, já que a língua é socialmente modelada e desenvolvida. Enquanto a escrita, por ser
pautada pelo padrão, carece dessa marca de identidade. Apesar de oralidade e escrita serem
realizações de uma gramática única, já que ambas fazem parte do mesmo sistema de língua,
não podemos dizer que a escrita representa a fala. E aqui estamos diante de mais um dos
pontos polêmicos da língua. Zuleika Murrie (2001), por exemplo, coloca:
(...) O oral existe sem a escrita mas a escrita não existe sem o oral. Grupos
éticos diversos, em comunidades primitivas ou desenvolvidas, servem-se
sem exceção, da comunicação oral. A escrita, no entanto, já não se mostra
como um a priori da vida dos grupos sociais. Se temos catalogadas
aproximadamente 3000 línguas, sabemos que, dentre elas, somente 110
possuem escrita e apenas 78 chega à literatura (p. 69).
58
Finalizando, podemos concluir que ter domínio da língua escrita faz muita
diferença. Significa, numa sociedade como a nossa, estar mais preparado para interagir com
outras pessoas, o que implica ter a possibilidade e influenciar seu modo de agir e pensar e, da
mesma forma, também ser influenciado. Porém, não podemos negar a importância da língua
oral, nossa primeira conquista como seres humanos. Sem contar que um processo, oral, não
prevalece nunca sobre o outro, escrito, nem vice-versa. Os dois têm a mesma importância, em
esfera distinta, é claro. E ambos formam a mesma língua Portuguesa que os PCNEM assim
vêem o seu espaço:
O espaço da Língua Portuguesa na escola é garantir o uso
ético e estético da linguagem verbal; fazer compreender que pela e na
linguagem é possível transformar/reiterar o social, o cultural, o pessoal;
aceitar a complexidade humana, o respeito pelas falas, como parte das
vozes possíveis e necessárias para o desenvolvimento humano, mesmo
que, no jogo comunicativo, haja avanços/retrocessos próprios dos usos da
linguagem; enfim, fazer o aluno se compreender como um texto em
diálogo constante com outros textos. (p.22-23)
2.3.3. Considerar a Língua Portuguesa como fonte de legitimação de acordos e condutas
sociais e como representação simbólica de experiências humanas manifestas nas formas
de sentir, pensar e agir na vida social (PCNEM, p.20).
De maneira ampla, a educação se envolve com duas tarefas básicas: a
transmissão do conhecimento produzido pela cultura e a formação do indivíduo para atuar na
realidade social. Para cumprir seus objetivos, a instituição escolar se fundamenta em certa
organização e em técnicas pedagógico-administrativas com vistas à transmissão de saberes e à
socialização da criança e do jovem. Assim, a escola é o espaço privilegiado da construção da
inteligência, das competências, dos saberes, do pensamento e das subjetividades mais
adequadas à ação social do educando. Os PCNEM dizem:
59
Na escola, a exigência de se dar espaço para a verbalização
do não-dito será uma possibilidade para a construção de múltiplas
identidades. Dar espaço para a verbalização da representação social e
cultural é um grande passo para a sistematização da identidade de grupos
que sofrem processos de deslegitimação social (p.20).
Fundamentando-nos em Vygotsky (1987), vamos perceber que ele parece
colocar no primeiro plano da cena do desenvolvimento e da aprendizagem a interação social e
a linguagem, porque defende que estas são, sobretudo, fenômenos de natureza interpessoal,
“(...) é a interiorização do diálogo exterior que faz a linguagem exercer influência sobre o
fluxo do pensamento”.
Vygotsky vai ainda mais além e postula que, ao interagir com um par mais
competente, a criança vai se desenvolvendo numa área chamada “zona de desenvolvimento
proximal”, que é aquela onde se situa o nível atual do (a) aprendiz e o nível potencial ao qual
ele/ela pode atingir quando guiado pela interação colaborativa. Filomena Varejão (2000), em
sua Dissertação de Mestrado em Lingüística Aplicada pela UFRJ, chama a atenção para uma
das manifestações da linguagem, a fala, como meio de aprendizagem social:
Ora, se a fala é o meio pelo qual o mundo é significado,
apreendido e reconstruído, é importante que nos detenhamos no fenômeno
da linguagem em ação para que compreendamos seu alcance na
constituição dos significados sociais negociados pelo e no diálogo (p.35).
Ao assumir uma perspectiva que põe em foco a linguagem em ação (discurso)
no contexto escolar, é fundamental caminhar por um viés teórico que seja adequado à
compreensão da complexidade do processo discursivo da escola. Essa é uma instituição onde
agem sujeitos que amam, odeiam, lutam, refletem, submetem-se e rebelam-se, envolvidos em
suas emoções, trazendo no discurso as marcas de sua identidade e história. Esses são os
sujeitos reais cujas vozes, fala, é preciso ouvir, num processo também de diálogo e interação,
60
se pretendemos compreender os fenômenos de linguagem que se apresentam numa sala de
aula de Língua Portuguesa, como apontam os PCNEM:
A linguagem verbal representa a experiência do ser humano
na vida social, sendo que essa não é uniforme. A linguagem é constructo e
construtora do social e gera a sociabilidade. Os sentidos e significados
gerados na interação social produzem uma linguagem que, apesar de
utilizar uma mesma língua, varia na produção e na interpretação (p.20).
Os estudos de Bakhtin (1981) são instrumentos bastante adequados à
compreensão desse intrincado e fascinante fenômeno que é o processo de educação
interpessoal na escola. Essa posição se justifica porque a dialogicidade é a noção mais cara ao
corpo de idéias construído por esse intelectual russo e ela é pertinente a um estudo de base
sócio-interacional, como este que ora apresentamos. Por dialogicidade Bakhtin entende a
natureza multivocal do discurso, isto é, sua natureza contínua e incorporadora de vários outros
discursos. Assim, para os PCNEM,
A competência do aluno depende, principalmente, do poder
dizer/escrever, de ser alguém que merece ser ouvido/lido. A escola não
pode garantir o uso da linguagem fora do seu espaço, mas deve garantir
tal exercício de uso amplo no seu espaço, como forma de instrumentalizar
o aluno para o seu desempenho social. Armá-lo para poder competir em
situação de igualdade com aqueles que julgam ter o domínio social da
língua. (p.22)
Expandindo a noção vygotskyana de construção social do conhecimento,
Bakhtin confere lugar de destaque à dialogicidade como poderoso instrumento de mediação
para um ensino que se pretenda sócio-culturalmente situado. Em sala de aula, uma perspectiva
nessa linha é aquela que entende a interação e o discurso para ensinar/aprender como
fenômenos situados em entendimentos mútuos entre pessoas que se comunicam, como
61
escreveu Stella Maris Bortoni-Ricardo (1997), um dos nomes mais importantes da
Sociolingüística brasileira, citado em Bagno (2001):
“Em sociedades mais democráticas, a língua-padrão está
associada ao contexto de uso. (...) No Brasil, a língua-padrão é
determinada, só secundariamente, pelo contexto. Sua distribuição é, em
principio, associada à classe social. As classes que têm acesso à cultura de
letramento, por meio de uma escolarização eficiente, têm o apanágio das
formas prestigiosas de falar. À grande massa de brasileiros é sonegada
uma boa escolarização e, conseqüentemente, o acesso aos recursos
lingüísticos que permitem ao falante transitar, com segurança, de um
estilo menos monitorado aos mais monitorados, de acordo com as
exigências da situação social. Nessas circunstâncias, muitos brasileiros
são silenciados, porque se sentem inseguros no uso de sua própria língua
materna!” (p.166).
È importante retomar a idéia de que os sujeitos interagem em determinado
contexto e a fala, as condições sociais de comunicação e as estruturas sociais estão
intimamente ligadas e, portanto, “ (...) não são palavras o que pronunciamos ou escutamos,
mas verdades ou mentiras, coisas boas e más, importantes ou triviais, agradáveis ou
desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido
ideológico ou vivencial” (Bakhtin, 1981, p. 95).
Deste modo, a linguagem integrada à vida humana não pode ser compreendida
fora de seu contexto, que é sempre social. Ela não só informa sobre os significados localmente
construídos como também informa sobre o macro-contexto no qual age como discurso. Isso
significa que a linguagem praticada na sala de aula é, ao mesmo tempo, meio pelo qual se
ensinam e se aprendem os conteúdos e saberes de uma disciplina e também é veículo de
construção e transmissão de valores e significados socialmente úteis às relações de poder
momentaneamente em ação. “O discurso se revela, portanto, como um local onde se
confrontam valores sociais contraditórios e provisórios” (Bakhtin, 1981, p. 136).
62
Mattoso Câmara (1981), ao considerar que as funções primordiais da
linguagem são a organização do pensamento e a comunicação ampla do pensamento assim
organizado, está imbuído de um espírito sociológico extremado, que justifica a correção
lingüística em termos de consenso, sinal de status social e de grau de instrução:
A conseqüência inevitável é que cada um de nós tem de
saber usar uma boa linguagem para desempenhar o seu papel de indivíduo
e de membro de uma sociedade humana. Não se pode admitir que um
instrumento tão essencial seja mal conhecido e mal manejado; mal utilizá-
lo é colocarmo-nos na categoria dos operários que são canhestros e
incipientes no exercício de sua profissão (p. 12).
Concluindo, o que se ensina numa sala de aula de língua materna, por exemplo,
é um ponto de fundamental importância para que se compreendam avanços e recursos no
processo de escolarização de uma pessoa, no qual está intimamente ligado aos lugares sociais
que ela ocupa dentro e fora da escola. Deste modo, os educando estarão aptos a considerarem
a Língua Portuguesa como fonte de legitimação de acordos e de condutas sociais, em um
mundo repleto de desigualdades também sociais.
63
CAPÍTULO III
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Neste capítulo, são apresentados os procedimentos metodológicos adotados
para a realização desta investigação, tais como o método escolhido, as etapas do estudo e as
técnicas de coleta de dados, a seleção da população, a construção e a aplicação dos
instrumentos, a contextualização do local e dos sujeitos de pesquisa. Durante toda a
elaboração deste capítulo, tentaremos manter em nós o mesmo entendimento de metodologia
que inspirou Minayo (1999):
Entendemos por metodologia o caminho do pensamento e a
prática exercida na abordagem da realidade. Neste sentido, a metodologia
ocupa um lugar central no interior das teorias e está sempre referida a
elas. Dizia Lênin (1965) que ‘o método é a alma da teoria’ (p.148),
distinguindo a forma exterior como que muitas vezes é abordado tal tema
do sentido generoso de pensar a metodologia como articulação entre
conteúdos, pensamentos e existência (p.16).
3.1. O Método Escolhido
Agora é o momento de apresentarmos o método que utilizamos na
concretização de nossa investigação. Richardson (1999, p.29) afirma: “Em sentido genérico,
método de pesquisa significa a escolha de procedimento sistemático para a descrição e
explicação dos fenômenos”.
Dentre as visões contemporâneas de pedagogia, há aquela que defende um
olhar crítico e constantemente reflexivo sobre todos os campos ou eventos que envolvem o
64
processo ensino-aprendizagem, dentre os quais: os conteúdos, os currículos, a metodologia, a
abordagem e a visão dos sujeitos sobre a aprendizagem, linguagem e disciplinas. Nas palavras
de Demo (1996, p.14), a centralidade de pesquisa em sala de aula está intimamente ligada à
tarefa de ensinar, pois “Quem ensina carece pesquisar, quem pesquisa carece ensinar”.
Assim, podemos perceber que não é possível vislumbrar possibilidade de
transformação e mudanças na prática de profissionais da educação quando se separam o
ensino e a pesquisa, pois ambos se alimentam mutuamente e alavancam novas perspectivas de
produção de conhecimento para ensinar e aprender.
Além disso, estudiosos como Moita Lopes e Cavalcanti (1991), Magalhães
(1994) e Demo (1996) afirmam que não há emancipação histórica sem pesquisa, visto que
sem ela inexiste o diálogo crítico com a oralidade, sem o qual a ação educativa torna-se estéril
e reprodutora. Pôr em xeque o saber vigente e abrir novas possibilidades para a construção de
competências básicas é uma ação que exige, por um lado, comprometimento político e, por
outro, capacitação técnica. Filomena Varejão (2000), em sua Dissertação de Mestrado em
Lingüística Aplicada pela UFRJ, afirma consciente:
O fundamental na ação do pesquisador é que, além de gerar
compromissos técnicos e políticos, ele é capaz de produzir e multiplicar
conhecimento. O experimentador pode ser instrumento fácil de
manipulação política que venha a servir a interesses pouco afinados com
aqueles que visam a uma educação libertadora e democrática, uma vez
que só reproduz as idéias de outrem, sem o compromisso com a reflexão e
a pesquisa próprias. O mais comum é encontrarmos o profissional
empregando métodos e discursos veiculados pelo senso-comum presente
nos livros didáticos e/ou orientação de coordenadores de disciplinas
(p.53).
Neste contexto, é que a figura do pesquisador faz-se necessária e fundamental
na construção de um novo panorama para o cenário educacional, pois como já dizia Van Lier
65
(1988, p.46), “(...) não há observação livre de valores ou livre de teorias”, assim como não há
ação humana que não responda a um projeto político construído pela inserção do sujeito no
mundo social. Isso significa que toda pesquisa é um ato político e carrega as marcas do sujeito
pesquisador, seus valores e sua visão de mundo.
Tomando como central a noção de que a vida humana é complexa e envolve
significados constituídos na relação social, o interpretativismo assume a multiplicidade de
modelos de estudo na área de ciências humanas e sociais, pautando-se, assim, o chamado
paradigma interpretativista, em três concepções básicas:
O problema advém da imersão do observador no contexto e da percepção que os sujeitos
nele envolvidos têm da sua realidade.
A análise dos dados visa à compreensão das ações e inter-relações pessoais no próprio
contexto onde se desenvolvem.
A vinculação indissociável do sujeito ao objeto, o que coloca o pesquisador como parte
integrante do processo de pesquisa, passando a ser um sujeito político e socialmente
localizado, que interpreta e atribui significados aos fenômenos em foco.
Para Alves (1999, p. 54), existe um ponto comum que unifica esse paradigma
de pesquisa que é o fato de que se baseia, principalmente, na tradição hermenêutica, onde se
parte do princípio de que “as pessoas agem em função de suas crenças, percepções,
sentimentos e valores e seu comportamento tem sempre um sentido, um significado que não
se dá a conhecer de modo imediato, precisando ser desvendado”.
Segundo Lüdke e André (2002:12), na pesquisa qualitativa, é de fundamental
importância a percepção do pesquisador sobre aspectos que, a princípio, passariam
despercebidos a pessoas de fora do processo, “numa tentativa de captar as perspectivas dos
participantes, isto é, a maneira como os informantes encaram as questões que estão sendo
focalizadas”. Logo, nesse paradigma, o conhecimento é concebido como uma construção em
66
processo dinâmico, que sofre interferência do corpo social e das subjetividades nela
envolvidas. Minayo (1999) explica:
A pesquisa qualitativa responde a questões muito
particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de
realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o
universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes,
o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos
e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de
variáveis (p.21-2).
Deste modo, percebemos que, na pesquisa qualitativa, a quantificação não é o
centro de referência, o qual se desloca para as interpretações dos dados e a busca de relações
entre os fenômenos e as causas que os produziram. Mas, como bem ainda explica Minayo
(1999, p. 22): “O conjunto de dados quantitativos e qualitativos, porém, não se opõem. Ao
contrário, se complementam, pois a realidade abrangida por eles interage dinamicamente,
excluindo qualquer dicotomia”. Apesar de nem sempre ser possível percebermos esta
realidade, o fato é que outros teóricos também pensam como Minayo.
E, nesta investigação, adotamos os pressupostos básicos da pesquisa
interpretativa ou qualitativa a qual tem como base a total integração dos membros envolvidos.
Contudo, como salientam Sâmara e Barros (2002, p.31) para cada “pesquisa cabe ao
pesquisador indicar a metodologia adequada que venha solucionar o problema de pesquisa,
decidindo se, para cumprir aos objetivos propostos, a metodologia deve ser quantitativa,
qualitativa ou ambas”. Valemo-nos também da pesquisa quantitativa na coleta e na
apresentação dos dados, pois acreditamos, como Richardson (1999, p. 38), que “O aspecto
qualitativo de uma investigação pode estar presente até mesmo nas informações colhidas por
estudos essencialmente quantitativos...”.
67
3.2. Etapas do Estudo e Técnicas de Coleta de Dado
Na certeza de alcançarmos, com êxito, o objetivo geral desta pesquisa:
Identificar em que medida as competências em Língua Portuguesa, estabelecidas pelos
PCNEM, estão sendo construídas pelos alunos do Ensino Médio da Escola Flodoardo Cabral,
nosso Recanto Amazônico, em Cruzeiro do Sul / Acre, dividimos nosso processo de trabalho
em três etapas metodológicas que orientaram nossa investigação. Vejamos estes três
momentos em detalhes:
3.2.1. Primeira Etapa:
Nesta etapa, realizou-se a pesquisa teórica onde concentramos nossas atenções
em construir uma convincente fundamentação teórica que justificasse nossas opções por estes
temas de nossa preferência: concepções de ensino-aprendizagem; ensino-baseado-em-
competência; competências em construção - PCNEM. Procuramos, nesta etapa, observar o
que Richardson (1999) escreveu sobre como o pesquisador deverá se comportar neste
contexto. Para ele, o pesquisador,
(...) estudará, em nível macro, dentro da corrente teórica escolhida, as
diversas perspectivas e concepções acerca do tema, utilizando
coerentemente o método dedutivo, pois todo processo de passagem do
nível teórico macro para o nível micro implica inferência de pressupostos
que possuam grau maior de abrangência da realidade (...) (p.23).
Na realização desta fundamentação teórica, utilizamo-nos de um time de
intelectuais de primeira linha para melhor embasarmos as nossas argumentações sobre os
assuntos definidos por nós para justificar o tema desta dissertação: O Ensino-Aprendizagem
de Língua Portuguesa num Recanto Amazônico: Competências em Construção.
68
O trabalho de fundamentação baseado em tais intelectuais foi realizado tendo
em vista o que nos coloca Neto (1999):
A plena realização de um trabalho de campo requer (...)
várias articulações que devem ser estabelecidas pelo investigador. Uma
dessas diz respeito à relação entre fundamentação teórica do objeto a ser
pesquisado e o campo que se pretende explorar. A compreensão desse
espaço da pesquisa não se resolve apenas por meio de um domínio
técnico. É preciso que tenhamos uma base teórica para podermos olhar os
dados dentro de um quadro de referências que nos permite ir além do que
simplesmente nos está sendo mostrado (p.61).
E, nesta etapa, valemo-nos também da técnica de análise de documentos, que,
segundo Caulley (1981), citado por Lüdke e André (1986:38), é útil para se buscar
“identificar informações factuais nos documentos a partir de questões ou hipóteses de
interesse“. Para Guba e Lincoln (1981), citados por Lüdke e André (1981:39), a análise
documental apresenta as seguintes vantagens: os documentos constituem uma fonte estável e
rica e, como persistem ao longo do tempo,
(...) podem ser consultados várias vezes (...) podendo dar mais
estabilidade aos resultados obtidos; outra vantagem é o custo baixo para
acesso; são uma fonte não reativa, permitindo a obtenção de dados
quando o acesso ao sujeito é impraticável (...) ou quando a interação com
os sujeitos pode alterar seu comportamento ou seus pontos de vista (...).
Vale dizer que os documentos analisados cuidadosamente por nós foram os
PCNEM (Parâmetros Curriculares Nacionais - Ensino Médio) de 1997 na Área de
Linguagem, Códigos e suas Tecnologias, acreditando que eles são, para nós brasileiros, a
autoridade máxima na questão construção de competências. Igualmente analisamos o
Relatório Jacques Delors (1998), o resultado dos trabalhos da Comissão Internacional sobre
Educação para o Século XXI, da UNESCO.
69
Finalizando, podemos afirmar que todo o trabalho de fundamentação que
conseguimos executar, na pesquisa teórica, foi uma tentativa de concretizar o que Richardson
(1999) disse que um pesquisador deveria ser capaz de fazer:
O pesquisador deverá realizar uma interpretação do tema,
historicamente ou apenas na fase atual, analisando criticamente as
diversas concepções de perspectivas anteriormente apresentadas, ou
melhor, apresentado sumariamente o Status Question, isto é, o estágio do
desenvolvimento do assunto ‘ mediante referência a tudo que se escreveu
sobre ele’ (p.23).
3.2.2. Segunda Etapa:
Esta é a etapa da pesquisa de campo e inicia-se pela definição da população de
pesquisa: alunos e professores de Língua Portuguesa da escola de Ensino Médio Flodoardo
Cabral, nosso Recanto Amazônico. Ao nos decidir por esta população, estamos pretendendo
trabalhar com dois grupos em nossa coleta de dados.
Em seguida, aconteceu a elaboração do instrumento de pesquisa, os
questionários. Optamos pela elaboração de questionários porque concordamos com
Richardson (1999, p.142) quando afirma: “Existem diversos instrumentos de coleta de dados
que podem ser utilizados para obter informações acerca de grupos sociais. O mais comum
entre esses instrumentos talvez seja o questionário”.
Na elaboração dos questionários, decidimos por elaborar questionários com
perguntas fechadas e abertas ao mesmo tempo. Richardson (1999) coloca:
Freqüentemente, os pesquisadores elaboram os
questionários com ambos os tipos de perguntas. As perguntas fechadas,
destinadas a obter informação sociodemográfica do entrevistado (sexo,
escolaridade, idade etc.) e respostas de identificação de opiniões (sim –
não, conheço – não conheço etc.), e as perguntas abertas, destinadas a
70
aprofundar as opiniões do entrevistador. Geralmente, o pesquisador,
visando não fechar totalmente uma pergunta, inclui entre suas alternativas
uma categoria outros, aberta (p.146).
Elaboramos o questionário para os alunos com 08 e o questionário para os
professores com 07 perguntas, acreditando que as perguntas feitas são o necessário para uma
coleta de dados eficiente para a nossa investigação, consoante com o problema e o objetivo de
pesquisa. Além do mais, novamente citando Richardson (1999), percebemos:
Atualmente, não existem normas claras para avaliar a
adequação de determinados questionários a clientelas específicas. É
responsabilidade do pesquisador determinar o tamanho, a natureza e o
conteúdo do questionário, de acordo com o problema pesquisado e
respeitar o entrevistado como ser humano que pode possuir interesses e
necessidades divergentes das do pesquisador (p.143).
Para um melhor desenvolvimento de nossa coleta de dados, optamos por
trabalhar com o critério de amostra probabilística simples. Neste tipo de amostra, todos os
elementos da população têm igual probabilidade, diferente de zero, de serem selecionados
para compor a amostra. É a escolha aleatória dos elementos que farão parte da amostra.
Richardson (1999, p.108) esclarece: “A representatividade da população nessa amostra é
guiada pelas leis da probabilidade. Isso quer dizer que, de acordo com o modo como se
seleciona a amostra em relação à população, ela terá uma probabilidade adequada de ser
representativa da população”.
Foram entrevistados 03 professores, de um universo de 07 professores de
Língua Portuguesa da escola Flodoardo. Embora o número de professores informantes, à
primeira vista, pareça pequeno, representa o índice de aproximadamente 43 % dos professores
de Língua Portuguesa da escola. Foram entrevistados 55 alunos, o que representa 3,2% do
total de matriculados em 2002, 1750. As idades desses alunos variam de 15 a 20 anos: 76%;
71
de 21 a 25: 20% e de 26 a 30: 04%. E quanto à questão sexo, 38% representa homens e 62%,
mulheres.
Optamos, porque consideramos mais coerente com a análise de dados, por
aplicar questionário somente a alunos dos professore informantes, das turmas 1º B, 2º C e 3º
G do Ensino Médio, nos turnos da manhã, tarde e noite. Deste modo, a representatividade de
nossa pesquisa de campo abrange as séries e os horários totais da população definida para esta
coleta de dados.
Quanto à aplicação dos questionários, decidimos pelo método do contato direto
de fazê-la. Apesar de estarmos na cidade do Rio de Janeiro na época da aplicação, dezembro
de 2002, uma cidade geograficamente distante do lócus da coleta, a escola de Ensino Médio
Flodoardo Cabral em Cruzeiro do Sul, foi possível fazer a aplicação pelo contato direto,
graças à valiosa e fundamental colaboração de duas colegas professoras, Mariliza Trelha e
Alexandrina Félix.
Mandamos, via Internet, um exemplar dos questionários para a Mariliza e esta,
com a ajuda de seu esposo, Júlio César, fez a reprodução das cópias. Em seguida, as cópias
dos questionários foram entregues a Alexandrina. Esta última fez o contato direto com os
sujeitos de pesquisa, alunos e professores de Língua Portuguesa. O contato foi facilitado pelo
fato da Alexandrina ser professora de Literatura da própria escola. Assim, ela teve trânsito
livre para poder conversar e articular a aplicação dos questionários com professores e alunos.
Este método do contato direto de aplicação dos questionários, utilizando outras pessoas no
processo, é defendido por autores como Richardson (1999):
O próprio pesquisador, ou pessoas especialmente treinadas
por ele, aplicam o questionário diretamente. Dessa maneira, há menos
possibilidade de os entrevistados não responderem o questionário ou de
deixarem algumas perguntas em branco. No contato direto, o pesquisador
pode explicar e discutir os objetivos da pesquisa e do questionário,
72
responder dúvidas que os entrevistados tenham em certas perguntas
(p.149).
Realmente, podemos perceber que o método do contado direto, mesmo
utilizando outras pessoas no processo de aplicação dos questionários, é um método muito
proveitoso. Pois, dos 55 questionários entregues para os alunos, foram devolvidos,
devidamente respondidas todas as questões, os 55. E dos 03 entregues para os professores,
foram devolvidos todos. E tudo aconteceu dentro do espaço mínimo de tempo estabelecido,
dezembro de 2002.
Enfim, a pesquisa de campo que foi realizada com base na metodologia aqui
apresentada, tentou ficar no contexto do trabalho de campo que Neto (1999) defende:
O trabalho de campo, em síntese, é o fruto de um momento
relacional e prático: as inquietações que nos levam ao desenvolvimento de
uma pesquisa nascem no universo do cotidiano. O que atrai na produção
do conhecimento é a existência do desconhecido, é o sentido da novidade
e o confronto com o que nos é estranho. Essa produção, por sua vez,
requer sucessivas aproximações em direção ao que se quer conhecer. E o
pesquisador, ao se empenhar em gerar conhecimentos, não pode reduzir a
pesquisa à denúncia, nem substituir os grupos estudados em suas tarefas
político-sociais (p. 64).
3.2.3. Terceira Etapa:
Esta etapa é a etapa da análise da pesquisa de campo. Quando chegamos à fase
de análise de dados, podemos pensar que estamos no final da pesquisa. No entanto, podemos
estar enganados porque essa fase depende de outras que a precedem. Neto (1999) aponta para
a necessidade de uma comunhão intrínseca entre coleta e análise dos dados para que tudo
tenha coerência com os procedimentos anteriores da investigação e, conseqüentemente, a
etapa da interpretação dos dados tenha êxito, contemplando, assim, o objetivo de pesquisa:
73
(...) uma pesquisa não se restringe à utilização de instrumentos apurados
de coleta de informações para dar conta de seus objetivos. Para além dos
dados acumulados, o processo de campo nos leva à reformulação dos
caminhos da pesquisa, através das descobertas de novas pistas. Nessa
dinâmica investigativa, podemos nos tornar agentes de mediação entre a
análise e a reprodução de informações, entendidas como elos
fundamentais (p.62).
Minayo (1992) chama a atenção para três obstáculos numa análise de dados
eficiente. O primeiro diz respeito à ilusão do pesquisador em ver as conclusões, à primeira
vista, como “transparentes”, ou seja, pensar que a realidade dos dados, logo de início, se
apresenta de forma nítida a seus olhos. Essa ilusão pode nos levar a uma simplificação dos
dados, nos conduzindo a conclusões superficiais ou equivocadas.
O segundo obstáculo se refere ao fato do pesquisador se envolver tanto como os
métodos e as técnicas a ponto de esquecer os significados presentes em seus dados. Nesse
caso, os dados coletados que compõem a análise podem não ser devidamente considerados,
uma vez que a dimensão central da pesquisa se restringe a questionamentos dos
procedimentos metodológicos. Por último, o terceiro obstáculo para uma análise mais rica da
pesquisa relaciona-se à dificuldade que o pesquisador pode ter em articular as conclusões que
surgem dos dados concretos com conhecimentos mais amplos ou mais abstratos.
No decorrer do trabalho de análise dos dados, procuramos ficar em estado de
alerta para que esses obstáculos, colocados por Minayo, fossem superados e ultrapassados por
nós. E, ainda com base em Minayo (1992), podemos apontar três finalidades para essa etapa:
Estabelecer uma compreensão dos dados coletados.
Confirmar ou não os pressupostos da pesquisa e/ou responder às questões formuladas.
Ampliar o conhecimento sobre o assunto pesquisado, articulando-o ao contexto cultural
do qual faz parte.
74
Em outra obra (1999), Minayo apresenta uma proposta de interpretação de
dados que consideramos bastante adequada e, por isso, queremos executar a análise da
investigação desta dissertação fundamentada nela. Eis os passos que a própria autora coloca-
nos para a operacionalização de sua proposta:
Ordenação dos dados: Neste momento, faz-se um mapeamento de todos os dados obtidos
no trabalho de campo.
Classificação dos dados: Nesta fase, é importante sermos conscientes de que os dados não
existem por si. Eles são constituídos a partir de um questionamento que fazemos sobre
eles, com base numa fundamentação teórica. Aqui, nós determinamos os conjuntos das
informações, as categorias.
Análise final: Nesta etapa, procuramos estabelecer articulações entre os dados e os
referenciais teóricos da pesquisa, respondendo as questões da pesquisa com base em seu
objetivo geral. Assim, promovemos relações entre o concreto e o abstrato, o geral e o
particular, a teoria e a prática.
Para finalizar esta terceira etapa, queremos citar Gomes (1999):
(...) reforçamos, a título de conclusão, que o produto final
da análise de uma pesquisa, por mais brilhante que seja, deve ser sempre
encarado de forma provisória e aproximativa. Esse posicionamento por
nós partilhado se baseia no fato de que, em se tratando de ciência, as
afirmações podem superar conclusões prévias a elas e podem ser
superadas por outras afirmações futuras (p.79).
Enfim, chegamos à conclusão de é missão nossa, enquanto pesquisadores,
observamos os pressupostos teóricos defendidos por inúmeros autores que oferecem valiosas
contribuições para que nosso trabalho de investigação, na prática, torne-se menos complicado
e mais possível de ser uma realidade concreta e convincente, uma vez que pesquisar é sempre
uma tarefa de conquistas e descobertas.
75
3.3. O Contexto da Pesquisa e seus Sujeitos
No relato de uma pesquisa interpretativa, a descrição do contexto e dos sujeitos
nela envolvidos é importante para que os leitores possam reconstituir situações ou quaisquer
outros fenômenos que venham a interferir na análise de dados e na posterior compreensão
daquilo que o pesquisador observou em campo. Desta forma, o pesquisador tem a
responsabilidades de detalhar o contexto dos seus sujeitos de pesquisa, estando atento para o
fato de que do sucesso desta tarefa depende a compreensão, a análise e as conclusões
apresentadas no trabalho final.
A pesquisa de campo desta investigação foi realizada em uma escola pública,
Flodoardo Cabral, do município de Cruzeiro do Sul, Estado do Acre, situada no centro da
cidade, uma cidade com mais ou menos 70 mil habitantes. É uma escola de 03 turnos
destinados a estudos do Ensino Médio. Esta escola é o Recanto Amazônico desta dissertação
de mestrado.
A escola Flodoardo Cabral foi inaugurada em 04 de fevereiro de 1971. É
mantida pelo Governo do Estado do Acre através da Secretaria de Estado de Educação.
Atende a uma clientela ampla, oriunda de diversos segmentos sociais da Região do vale do
Juruá. Para ela acorrem alunos de pelo menos três municípios acreanos vizinhos: Mâncio
Lima, Thaumaturgo, Porto Walter, Rodrigues Alves e dois municípios amazonenses: Guajará
e Ipixuna, municípios esses que buscam suas independências educacionais aproveitando o
ensino que Cruzeiro do Sul proporciona a seus filhos.
A escola constitui-se em 06 prédios de um andar cada. Em 04 desses prédios,
contém as salas de aulas em funcionamento da escola. Outro prédio é um auditório com duas
salas, uma serve para funcionar o laboratório de ciência e a outra para ser a sala de vídeo.
Ainda está contido neste prédio um lindo palco que serve para a realização de múltiplas
atividades escolares. E o último prédio é um anexo onde funciona o laboratório de informática
76
da escola com mais de vinte computadores. Enfim, a estrutura física da escola Flodoardo é o
suficiente para o funcionamento total de suas funções.
As salas de aula desta escola são amplas, iluminadas e possuem janelas
adequadas à sua estrutura. As cadeiras estão arrumadas uma atrás da outra, na forma da
tradicional fila, voltadas todas para o quadro-de-giz. A sua pintura é em cores claras que dão
um tom de beleza e bem-estar. Todas as paredes das salas de aula são pintadas em amarelo
claro, marfim, e o fundo em azul claro, o que torna a iluminação das mesmas mais expressa e
mais brilhante. E, ainda completando a luminosidade do ambiente, em cada sala há 12
lâmpadas florescentes que servem para acabar com quaisquer sombras que possam aparecer.
A construção da escola é em alvenaria, com piso de cerâmica, cobertura em
telha brasilit e forro em madeira, tabique. A mesma possui funcionais instalações elétricas,
hidráulicas e sanitárias. Finalizando esta descrição física, podemos dizer que o que tira um
pouco da beleza da escola Flodoardo Cabral é um grande portão que está sempre fechado,
fazendo com que o acesso ao seu interior dependa de um funcionário que a vigia internamente
e abre o portão sempre que é solicitado.
O Ensino Médio funciona atualmente nos turnos manhã, tarde e noite, com 39
turmas, 13 turmas em cada turno. O quadro de professores da escola é de 84, sendo sua
grande maioria formada em Letras e Pedagogia pelo Campus Universitário da UFAC
(Universidade Federal do Acre). E o número dos professores de Língua Portuguesa é 07,
todos formados em Letras Vernáculo. Todos os dados fornecidos aqui são equivalentes ao ano
corrente de 2002.
Muitos professores da escola têm Especializações ao nível de lato senso.
Porém, não tem nenhum professor com Mestrado ou Doutorado. E, completando o quadro dos
profissionais que trabalham com os alunos, a escola ainda conta com uma equipe de apoio
com 09 membros, entre supervisores e coordenadores, todos formados em Pedagogia.
77
É importante ressaltar que a maior incidência de professores formados em
Letras deve ser entendida como resultado do trabalho do Campus da UFAC em Cruzeiro do
Sul, que conta, desde 1989, com os cursos de Letras/Vernáculo e Letras/Inglês, tendo já
formado inúmeros profissionais na área das Letras. Vejamos um depoimento de uma
professora, Alexandrina Félix, envolvida diretamente com o mesmo:
“O Curso de Letras em Cruzeiro do Sul pode ser
considerado como um marco histórico e cultural em nossa cidade. São 13
anos de efetivo trabalho na área de ensino de língua e de literaturas da
língua portuguesa. Trabalho esse muitas vezes pontuado pela extensão e
também pela pesquisa no campo lingüístico. Em todo esse tempo, temos
entre os alunos de Letras do Campus de Cruzeiro do Sul um relevante
projeto - Amazônia: os vários olhares - da UFAC que pesquisa e investiga
as mais diversas produções da região, trabalho esse que é conhecido
nacionalmente. É claro que nem tudo são flores, mas as nossas maiores
dificuldades são promovidas pela distância que estamos dos grandes
centros urbanos, pelo descaso de governantes com as parcerias as quais
estamos envolvidos e mais diretamente com a conjuntura nacional pela
qual passa a Universidade Brasileira. Mesmo assim, há uma contribuição
palpável do Curso de Letras no tocante à formação de professores de
Língua Portuguesa em nosso município e região.”
Realmente, o Curso de Letras, para Cruzeiro do Sul e região, foi um
marco histórico. Ainda lembramos, com saudades, daquele final de 1988 quando houve, pela
primeira vez, vestibular para um Curso que seria cursado na própria cidade. As conversas, em
todos os recantos, não giravam em torno de outra coisa. O vestibular para Letras era o assunto
do momento. E por que Letras? Simplesmente porque a população assim o escolheu através
de abaixo-assinados liderados pela saudosa professora Chirley Trelha, a pessoa que muito
contribuiu pela efetivação de tal Curso em Cruzeiro do Sul. Os nossos agradecimentos a ela!
Os anos se passaram e o Curso de Letras trouxe e está trazendo seus benefícios
culturais e educacionais para a população do vale do Juruá, formando todos os anos, desde
78
1992, mais do que 20 letrados que se distribuíram e se distribuem pelas escolas do município
de Cruzeiro do Sul e região, fato esse que mudou para melhor a cara educacional desses
lugares, numa demonstração de que a educação transforma.
Somos testemunha ocular e participante ativa neste processo, como aluna da 1ª
turma, em 1989, e como professora de Língua Portuguesa no Curso desde 1995. E é triste hoje
termos que conviver com a ameaça do fechamento deste Curso pelo MEC, por inúmeros
fatores. Mas talvez, como fala a Alexandrina Félix, “(...) as nossas maiores dificuldades são
promovidas pela distância que estamos dos grandes centros urbanos, pelo descaso de
governantes com as parcerias as quais estamos envolvidos e mais diretamente com a
conjuntura nacional pela qual passa a Universidade Brasileira”.
Os alunos do Ensino Médio também pensam sobre a situação passada e atual do
Curso de Letras em Cruzeiro do Sul. Observemos:
É visível e marcante a atuação desses 13 anos do Campus
da UFAC em Cruzeiro do Sul. Todos os nossos cursos trouxeram grandes
contribuições para educação cruzeirense. Porém, como jovem, acredito
que se deve implantar novos cursos, nossa cidade não necessita somente
de educadores, necessita de médicos, enfermeiros, analistas de sistemas e
etc, é claro mantendo e preservando a sua qualidade, não praticando a
arbitrária decisão que foi tomada de descredenciar o Curso de Letras
Vernáculo. (Moisés Oliveira, 3º ano Ensino Médio).
O nosso Recanto Amazônico, a escola Flodoardo Cabral, como já vimos, situa-
se na pequena cidade de Cruzeiro do Sul. Por isso, nada mais justo do que dedicarmos um
espaço, neste momento, para uma leve descrição da fisionomia física e cultural desta cidade,
já que escrever um texto descritivo é uma maneira de fotografar um determinado ser por meio
das palavras, eternizando, assim, tal ser.
A História de Cruzeiro do Sul foi construída graças a inúmeros povos que aqui
habitavam: os índios e os nativos; e a outros que aqui chegaram: os alemães, os italianos, os
79
nordestinos (em especial), os sulistas, os cariocas, dentre outros. Em muitos aspectos essa
miscigenação contribuiu para um desenvolvimento econômico, social e cultural da pacata
Cruzeiro do Sul. No tocante ao ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa, tal miscigenação
foi de valor inestimável. Vejamos o que nos diz uma professora local de Língua Portuguesa
do Ensino Médio, na Escola Flodoardo Cabral:
O que é o homem cruzeirense, senão uma síntese das
culturas de diferentes nacionalidades e regiões brasileiras. Essa mistura
trouxe uma contribuição positiva na fixação da linguagem cruzeirense.
Claro, com as marcas de sua história. A meu ver, as pessoas vindas de
fora tinham um domínio melhor da língua culta que os nativos. Portanto, a
contribuição foi no aspecto de fixação de uma linguagem mais próxima
da gramática da Língua Portuguesa e também na escola lexical, incluindo
alguns estrangeiros e regionalismos, enriquecendo, assim, nossa
linguagem (Antonieta Silva).
Neste contexto de miscigenação, como foi então construída a pequena Cruzeiro
do Sul? Do seu passado, não sabemos quase nada. O que sabemos é que ela foi construída às
custas de muito sofrimento e de muito suor de um povo pobre e guerreiro. Assim, o que temos
hoje é uma cidade situada em plena selva amazônica, com um aspecto físico coberto pelo
verde de uma floresta intensa.
Quanto a sua localização, Cruzeiro do Sul fica ao Sul do Estado do Amazonas,
fazendo fronteira com o Peru e com a Bolívia. Conta a sua história que ela foi campo de
batalha da cruel guerra entre o Brasil e a Bolívia na tomada do Acre como um Estado
totalmente brasileiro. E a sua gente, como será? Apesar das dificuldades pelas quais passa, a
população cruzeirense é simples e acolhedora como, de um modo geral, o é o homem
amazônico.
Entre todos os aspectos culturais que marcaram a história cruzeirense,
queremos destacar a religiosidade, porque suas marcas estão presentes em todos os lugares da
80
cidade. E iremos nos deter apenas na religiosidade tocante à Igreja Católica, pois ela é a que
mais se destaca, principalmente no setor educacional, mantendo, ao longo dos anos, Obras
Educacionais em Cruzeiro do Sul: o antigo Seminário Espiritano e hoje Escola São José, o
Instituto Santa Terezinha e o Seminário Maior de Filosofia e Teologia são algumas dessas
Obras. A professora Alexandrina Félix, como nativa da cidade, mais uma vez aparece
enriquecendo nosso estudo:
A Igreja Católica com as suas instituições escolares em
Cruzeiro do Sul é ao longo dos anos um referencial bastante positivo.
Aqui as escolas ligadas à igreja foram e serão ainda por muito tempo tidas
como modelo. Modelo educacional que tem dado certo, pelo menos na
preparação de indivíduos para prosseguirem os estudos lá fora. A maioria
dos profissionais nas áreas de saúde, educação, economia etc. que temos
aqui e que são filhos da terra foram alunos oriundos dessas escolas. Não
posso me posicionar sobre o português falado ou ensinado hoje em
Cruzeiro do Sul se tem ou não influência da igreja, mas devo dizer que a
Diocese continua a implementar e a colaborar com o ensino em nossa
cidade.
Cruzeiro do Sul é, enfim, a cidade onde construímos, até aqui, nossa história
educacional e profissional, pois, como muitos de seus moradores, nós também a escolhemos
como nossa cidade, com nosso lócus de convivência e trabalho. Concluímos, assim, este
capítulo de metodologia. Passaremos, então, a apresentar e a discutir os resultados de nossa
investigação, tarefa essa nada fácil, pois a análise de dados de uma investigação constitui
sempre um trabalho tão importante quanto difícil.
81
CAPÍTULO IV
APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE DADOS
Agora é o momento de expormos os resultados do nosso estudo e interpretá-los
à luz da fundamentação teórica. Este é o capítulo da apresentação e análise de dados que será
estruturado em duas seções. A primeira diz respeito à apresentação e interpretação dos dados
e, a segunda, diz respeito às conclusões, em forma de gráfico, a que chegamos com a coleta
dos mesmos dados. E, para obtermos os resultados aqui analisados, foram aplicados
questionários consoantes com os seguintes grupos de perguntas:
Perfil dos sujeitos de pesquisa.
O relacionamento professor/aluno e os conteúdos trabalhados em sala.
As competências a serem desenvolvidas em Língua Portuguesa / PCNEM.
O ensino de Língua Portuguesa que os alunos desejam.
Como já esclarecemos no capítulo anterior, os questionários deste estudo foram
elaborados com perguntas fechadas e abertas ao mesmo tempo. E, na aplicação dos mesmos,
houve espaço para uma longa explicação de cada uma das perguntas aos alunos e aos
professores que as responderam, inclusive foi oferecida a estes sujeitos a alternativa para
responderem somente as questões que lhes fossem convenientes. Porém, para nossa surpresa,
100% das perguntas foram respondidas.
Este capítulo trata, enfim, de um texto com base nas respostas obtidas na coleta
de dados e voltado ao objetivo geral desta investigação, respeitando às opiniões dos sujeitos
de pesquisa e obedecendo à ordem de apresentação dos grupos de perguntas acima
mencionados.
82
4.1. Apresentação e Interpretação dos Dados
4.1.1. Perfil dos sujeitos de pesquisa.
4.1.1.1. O seu sexo é:
Entre os alunos entrevistados podemos ver que a sua grande maioria é do sexo
feminino 34 (62%) e somente 21 deles (38%) são do sexo masculino. Tal realidade demonstra
que a maior parte dos alunos do Ensino Médio da escola Flodoardo Cabral é formada por
mulheres, uma vez que os questionários foram aplicados em turmas dos três turnos: manhã,
tarde e noite, o que dá uma visão global da situação da presença feminina e masculina na
escola lócus desta pesquisa, o nosso Recanto Amazônico. As respostas dos três professores
para a mesma pergunta feita aqui, indicam igualmente que a presença feminina (02) é
superior à masculina (01).
Os dados aqui presentes constroem uma fotografia que segue o padrão da
própria população local: a mulher existe em maior número que homem. Além disso, há
também a influência dos nossos ancestrais que colocavam o filho menino para ajudá-los nos
trabalhos com a seringa e/ou com a roça e a menina, quando podia, freqüentava a escola.
Deste modo, o menino ia virando homem tendo pouca chance de freqüentar uma comunidade
escolar. E mulher ia crescendo tendo oportunidades de estar hoje mais envolvida com a
educação escolar, que vai do Ensino Fundamental ao Superior, do que o homem.
Outro fato que, neste contexto, merece nossa atenção é que Cruzeiro do Sul
oferece poucas oportunidades de ascensão social e o homem migra muito em busca da
sobrevivência em outras cidades maiores ou às margens dos rios caçando ou pescando;
83
enquanto a mulher permanece mais fixa em determinado lugar tendo, assim, oportunidades de
estudar mais e de ser arrimo de família pelo estudo que tem.
4.1.1.2. A sua idade está entre:
Quanto à idade dos alunos entrevistados, os dados coletados demonstram que a
grande maioria deles, 42 (76%), está na faixa etária até 20 anos, seguida dos que têm de 21 a
25 anos: 11 alunos (20%). Por último, vem a faixa etária entre 26 a 30 anos: 02 alunos (04%).
Estes dados revelam que nossa investigação foi realizada em um grupo homogêneo e que a
escola Flodoardo tem uma porcentagem uniforme no que diz respeito à faixa etária dos seus
estudantes, apesar desse fato não significar necessariamente que os alunos estejam na idade
correspondente com a série que estudam.
Enfim, o fato de a idade dos alunos estar sendo mais para menos (15 a 20 =
76%) do que para mais (26 a 30 = 04%), indica que as crianças estão chegando mais cedo à
escola, coisa que até pouco tempo atrás acontecia exatamente ao contrário: muitas crianças,
no Estado do Acre como um todo, sobretudo as mais pobres, só iniciavam o Ensino
Fundamental depois de certa idade, com bem mais que 07 anos, como prevê Constituição
Federal. Um exemplo disso é o da atual Ministra do Meio Ambiente, a acreana Marina Silva,
que só começou sua vida escolar aos 13 anos de idade. Ao nosso ver, estes são indícios de que
a situação educacional, em Cruzeiro do Sul, de modo particular, começa apresentar sinais de
mudança.
Os sinais de mudança dos quais estamos falando aqui são aqueles em
comparação com o passado: os alunos que chegam mais cedo à escola, suas chances de
aprendizagem são maiores do que os que chegam atrasados. Isso é mudança! Porém, no que
diz respeito ao ensino de língua materna, há muito ainda o que fazer para que as mudanças
84
comecem aparecer igualmente. Uma professora local de língua e literatura, ao ser questionado
o modo de ela ver o ensino de língua em Cruzeiro do Sul, respondeu:
O Ensino de Língua Portuguesa em Cruzeiro do Sul ainda
está muito voltado para os velhos modelos didáticos pedagógicos da
escola tradicional que precisa ser aos poucos equiparada com as
novidades do ensino. As mudanças estão acontecendo no interior das
salas de aulas, mesmo que lentamente. Sabe-se que o novo causa espanto,
mas é sempre um desafio e professores e alunos já estão buscando
soluções viáveis para que a Língua Portuguesa deixe de ser uma
disciplina com regrinhas para decorar e se torne uma área de ensino mais
aberta, voltada para atividades lúdicas (Alexandrina Félix).
Este texto da professora Alexandrina sobre o ensino de língua em Cruzeiro do
Sul resume exatamente tudo aquilo que os resultados da coleta de dados, a seguir,
expressaram a respeito do ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa na escola lócus desta
investigação, o nosso Recanto Amazônico. Passemos, então, à análise das perguntas que se
relacionam diretamente com o ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa em sala de aula,
num contexto peculiar.
4.1.2. O relacionamento professor/aluno e os conteúdos trabalhados em sala.
4.1.2.1. Como é o seu relacionamento com seu (sua) professor (a) de Língua Portuguesa?
Os resultados obtidos com a questão relacionamento professor/aluno mostram
que 30 alunos dos entrevistados (55%) consideram regular; 16 alunos (29%) consideram bom,
e o restante, 09 alunos (16%), consideram ruim o relacionamento que mantêm com o (a)
professor (a) de Língua Portuguesa da escola onde estudam. Já a mesma questão respondida
pelos professores, obteve 100% de respostas no item bom. Assim, para a maioria dos alunos, o
85
contato que têm com os professores de Língua Portuguesa não está bom, mas regular; já com
os professores, acontece exatamente o contrário: para estes, o relacionamento está bom e não
regular.
No entanto, todos os professores fizeram observações dando a entender que
seus alunos são desinteressados e preguiçosos. A fala de um deles chamou a nossa atenção:
“Encontramos muitas dificuldades. Uma delas que eu acho a principal é a falta de interesse
por parte dos alunos (...). Eles têm uma preguiça sem tamanho de ler, de reler para chegar a
uma conclusão”. Ao nosso ver, este fato é uma contradição com o conceito bom dado pelos
mesmos professores na questão relacionamento, pois considerar determinadas pessoas
desinteressadas e preguiçosas, para nós, já é uma forma de não manter com as mesmas um
bom relacionamento.
Logo, entendemos que quem se relaciona bem com alguém consegue julgá-lo
de forma positiva, e não negativa. Ou seja, precisamos ver os nossos alunos como seres
criativos e capazes de serem sujeitos do aprendizado que lhes for proporcionado. Porque, para
os tempos atuais, não há outra forma de educação a não ser aquela em que todos os
envolvidos sejam considerados criativos e necessários ao processo ensino-aprendizagem da
mesma. Entretanto, como cada pessoa olha o mundo com os próprios olhos, vamos sempre
ver as pessoas da maneira que nos for conveniente.
Concluindo, o conceito regular que os alunos dão ao relacionamento que
mantêm com seus professores de língua materna, certamente influencia nos resultados do
processo ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa na escola Flodoardo. O Relatório Delors
(1998, p. 89) apresenta como um dos pilares educacionais: “(...) aprender a viver juntos, a fim
de participar e cooperar com os outros em todas as atividades humanas”. Assim, relacionar-se
bem é uma forma de aprender mais.
86
4.1.2.2. Interpretar os conteúdos estudados é uma prática comum em suas aulas de
Língua Portuguesa?
Para esta pergunta, 28 alunos (51%) responderam não; 21 alunos (38%)
responderam às vezes; e apenas alunos 06 (11%) responderam sim. Dos três professores
entrevistados, 02 responderam não e 01 respondeu às vezes à mesma pergunta. A partir dos
dados aqui apresentados, podemos perceber que interpretar os conteúdos estudados nas aulas
de língua materna não é uma prática comum na escola Flodoardo.
Dois professores afirmam que os alunos não estão acostumados ao exercício da
reflexão. Para estes, isso acontece por causa das deficiências do Ensino Fundamental que, em
geral, não promove reflexões maduras sobre assuntos relevantes para a vida dos estudantes. E
esse quadro se justifica a partir das inúmeras deficiências constatadas nas escolas de Ensino
Fundamental da região: professores sem a devida qualificação; falta de recursos didático-
pedagógicos; apego à pedagogia tradicional, entre outras. Uma professora aponta outro
ângulo:
Apesar da insistência de se mudar a metodologia de ensino
da Língua Portuguesa para um entender e um interpretar os códigos
lingüísticos, a maioria dos professores de Língua Portuguesa ainda não
criaram coragem de se libertar dos vícios de dar mais ênfase ao ensino
puro normativo da língua. No meu entender, essa prática é um mal que
perdurará por algumas décadas. Estamos num momento de transição que
torna a situação do aluno ainda mais complicada no tocante a perdas na
sua aprendizagem.
De acordo com a colocação dessa professora, o problema da falta de
capacidade de interpretação dos alunos não está somente no Ensino Fundamental com suas
escolas sem equipamentos e seus professores sem qualificação; mas, e principalmente, na
87
falta de coragem dos professores de Língua Portuguesa, de todos os níveis de ensino, de
iniciarem uma libertação dos vícios do ensino puramente normativo da língua.
Para os alunos entrevistados, a existência de aulas expositivas sobre temas
descontextualizados dos tempos atuais funciona como elemento inibidor de seus interesses e
isso se soma à seleção de conteúdos, que, muitas vezes, é desvinculada da realidade deles e
soa desinteressante à maioria dos mesmos. Vejamos o que disseram duas alunas das
entrevistadas, uma do 1º e outra da 2º ano: “O ensino de Língua Portuguesa deve ser bem
criativo para não ficarem tão cansativo e repetitivo todos os conteúdos”. / “As aulas todas
deverão ser com conteúdos interessantes para despertar no aluno mais interesse”. Estes são
depoimentos de alunas que desejam e sonham com um ensino de língua mãe de qualidade.
E os pedidos para que o ensino do idioma pátrio tenha conteúdos interessantes
e seja criativo vem de 53% dos alunos (dados da pergunta aberta 4.1.4.1.). Para nós, esse dado
demonstra que os alunos sabem muito bem o que querem e, ao mesmo tempo, reconhecem
que não têm o que querem: um ensino de língua mãe criativo e com conteúdos interessantes.
Isso é ter capacidade de interpretação, de reflexão, o que significa que os alunos são capazes
de refletirem quando são estimulados. Para Saviani (1987), a reflexão é
(...) um pensamento consciente em si mesmo, capaz de avaliar, de
verificar o grau de adequação que mantém com os dados
objetivos de medir-se com o real (...) é o ato de retomar,
reconsiderar os dados disponíveis, revisar, vasculhar numa busca
constante de significado. É examinar detidamente, prestar
atenção, analisar com cuidado (p.23).
Por esta ótica, se os alunos tivessem um ensino de língua materna criativo e
com conteúdos interessantes, como eles pedem (53%), certamente a capacidade de
interpretação dos mesmos seria bem diferente. Pois, partindo do princípio de que o homem é
um ser pensante, todos, professores e alunos, somos capazes de todos os dias construirmos
88
competências, se assim formos incentivados ou motivados por pessoas e por ambientes
apropriados.
É claro que somos conscientes dos problemas que envolvem o processo ensino-
aprendizagem de Língua Portuguesa em nosso Recanto Amazônico e em todo Brasil de um
modo geral. Reconhecemos que há problemas de todos os níveis: cultural, social, econômico
que dificultam o bom desenvolvimento de tal processo. Um dos alunos entrevistados sobre a
questão de interpretação dos conteúdos estudados, expressou-se assim:
O Ensino de Língua Portuguesa em nossa escola, precisa de
muitos melhoramentos para atingir um ensino de qualidade. Muitos
alunos não conseguem interpretar de maneira correta a língua que
falamos, em grande parte por não terem tido e ainda não terem um ensino
de qualidade que desenvolva suas capacidades e qualidades e que atenda
às exigências dos PCNEM de Língua Portuguesa.
Os aprendizes estão cobertos de razão à proporção que aspiram por um ensino
de Língua Portuguesa mais diversificado e, conseqüentemente, de mais qualidade. Porém,
Olhando a situação do professor brasileiro, percebemos que a grande maioria da classe
necessita assumir até dois contratos de trabalho para sobreviver. No caso específico do Acre,
os contratos assumidos são de 25 horas semanais cada um. E as turmas, nas quais o professor
desenvolve seu magistério, são muito grandes, com mais de 50 alunos em cada. Assim, está
evidente que falta ao professor de língua materna, como aos demais, tempo e incentivo para
preparar aulas mais elaboradas, com conteúdos mais atraentes.
4.1.3. As competências a serem desenvolvidas em Língua Portuguesa estabelecidas pelos
PCNEM.
89
4.1.3.1. As tecnologias da comunicação e da informação são aplicadas nas aulas de
Língua Portuguesa de sua escola?
Para esta pergunta, 09 alunos (16%) responderam muitas vezes; 30 (55%)
alunos responderam nunca; 16 alunos (29%) responderam que poucas vezes as tecnologias da
comunicação e da informação são aplicadas nas aulas de Língua Portuguesa da escola onde
estudam. E dos três professores entrevistados com a mesma pergunta, 100% respondeu que
poucas vezes tais tecnologias são aplicadas por eles em suas aulas de língua materna.
Para os PCNEM (1997, p.11-12), “As novas tecnologias da comunicação e da
informação permeiam o cotidiano, independente do espaço físico, e criam necessidades de
vida e convivência que precisam ser analisadas no espaço escolar”. De acordo com esta visão,
é preciso que a competência da aplicação das tecnologias da comunicação e da informação
seja uma realidade urgente no ensino de Língua Portuguesa do Ensino Médio em nossas
escolas.
Os alunos da escola Flodoardo expressaram, na coleta de dados, o desejo que
têm que as tecnologias sejam aplicadas em suas aulas de Língua Portuguesa. Vejamos o que
dois deles do 1º ano disseram: “As aulas de Português deveriam ser mais criativas, ou seja, a
professora deveria usar + a tecnologia que temos hoje para auxiliar o ensino, que hoje não
está muito bom”. / “A professora de Português deveria utilizar os recursos tecnológicos para
proporcionar uma aula menos cansativa e nós possamos aprender mais”.
Nesta análise, os alunos estão revelando que sabem o que torna suas aulas de
Língua Portuguesa mais criativas e menos cansativas: o uso de tecnologias. E isso faz com
que eles saiam ganhando: “... e nós possamos aprender mais”. Porém, na realidade específica
do nosso recanto Amazônico, o uso das tecnologias da comunicação e da informação não é
tão simples quanto possa parecer, pois há razões profundas que impossibilitam os professores
de fazerem uso das mesmas.
90
E, ao focalizar esses motivos, descobrimos que os recursos tecnológicos
começaram fazer parte da vida dos cruzeirenses há bem pouco tempo atrás e ainda hoje é
muito comum encontrarmos professores que não possuem um computador em casa, por
exemplo. Com os alunos, a realidade ainda é um pouco pior: muitos alunos nunca tiveram
contado com um computador e nem com outro tipo de recurso tecnológico. Deste modo,
muitas vezes, falta interesse por parte de professores e alunos para nos dedicarmos às questões
tecnológicas, pois são questões fora do nosso mundo de convivência.
Por outro lado, não há empenho por parte das autoridades educacionais e
governamentais no sentido de investimentos suficientes para equipar e monitorar as escolas
com recursos tecnológicos necessários ao desenvolvimento das disciplinas. Como vimos na
apresentação do local e dos sujeitos desta pesquisa, no capítulo anterior, a escola Flodoardo
possui um laboratório de informática com mais ou menos 20 computadores. No entanto,
conforme os professores, o referido laboratório não é bem utilizado por eles próprios e pelos
alunos. E se os professores se dispusessem a utilizá-los, o que representaria 20 computadores
para uma escola com 1750 alunos e 84 professores?
O resultado seria, igualmente, a não aplicação desta tecnologia tão
essencial para o desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem de qualquer
disciplina. Razões como estas é que, na maioria das vezes, impedem que alunos e
professores sejamos preparados para qualquer tipo de enfrentamento com as novas
tecnologias da comunicação e da informação de um modo geral.
Consoante com estas colocações, todos os professores entrevistados, nesta
pesquisa, responderam que somente poucas vezes as tecnologias da comunicação e da
informação são aplicadas por eles em suas aulas de Língua Portuguesa. Para estes professores,
as razões deste quadro são as mais variadas: vão desde a falta de apoio técnico da escola, até a
91
falta de contextualização das competências estabelecidas pelos PCNEM. Uma professora,
num tom de desabafo, disse:
As competências estabelecidas pelos PCNEM para o ensino
da Língua Portuguesa do Ensino Médio são textos bem elaborados, mas
por demais distanciadas da prática com a disciplina. A sua real efetivação
dependeria da aquisição de recursos didáticos e de uma ostensiva
supervisão no sentido de acompanhar e colaborar para que as atividades
diversificadas fossem realizadas. As competências para Língua
Portuguesa só poderiam ser desenvolvidas com eficácia se a escola (a
nossa, em Cruzeiro do Sul, por exemplo) tivesse condição de oferecer aos
alunos oportunidade de pesquisa, leitura, debates, acesso à internet etc. Os
PCNEM são, sem dúvida nenhuma, uma proposta de grande valor, falta
somente efetivá-los, considerando as particularidades, que infelizmente
foram desconsideradas pelo MEC.
Em relação à questão de considerar as particularidades locais de cada lugar, há
mais professores e vários alunos que pensam de acordo com a colocação acima mencionada.
Porém, há professores e alunos que discordam da mesma. Uma professora, por exemplo,
referindo-se ao documento que estabeleceu as competências a serem desenvolvidas em
Língua Portuguesa no Ensino Médio, assim se expressa:
O MEC foi muito feliz em identificar esse documento como
“PARÂMETROS”. Se compreendermos o significado desta palavra,
veremos que são apenas parâmetros de orientação, norteadores de
procedimentos pedagógicos. Se entendermos por esse ângulo, veremos
que são coerentes, pois deixam abertura suficiente para que cada região
selecione aquilo que deve ser incluído, de acordo com as necessidades
específicas de cada local.
Assim, voltando aos PCNEM, os mesmos trazem toda uma discussão sobre a
questão da aplicação da competência aqui analisada a partir dos resultados oferecidos pelos
sujeitos desta investigação. E defendem que, ao final do Ensino Médio, os alunos devem ter o
92
domínio das tecnologias, ou melhor, sejam capazes de construírem a competência
estabelecida por eles próprios sobre esta questão essencial a uma educação de qualidade em
tempos de modernidade. Observemos uma de suas falas:
Descobertas humanas foram pensadas para o homem e
assim devem ser entendidas. Os sistemas tecnológicos, na sociedade
contemporânea, fazem parte do mundo produtivo e da prática social de
todos os cidadãos, exercendo um poder de onipresença, uma vez que
criam formas de organização e transformação de processos e
procedimentos. (...) Elas fazem parte da vida das pessoas, não invadem a
vida das pessoas. A organização de seus gêneros, formatos e recursos
procura reproduzir as dimensões da vida no mundo moderno (p.12).
Muitos autores, como os PCNEM, vêem a revolução tecnológica como uma
das soluções para os problemas existenciais do mundo moderno. Navia (1989, p.27), por
exemplo, assim se expressa: “(...) la repercusión de la revolución científico-tecnológica, a
difusión de ciertos resultados de las ciencias sociales, el poder revulsivo de los problemas e
inquietudes sociales o los cuestionamientos derivados de las problemáticas existenciales o de
convivencia”. Deste modo, o que seria do mundo hoje sem o computador, sem a Internet, por
exemplo? Seria um mundo, mais ou menos, bem antigo; porém, com problemas atuais que
reclamam por recursos também atuais, como os tecnológicos.
O mais importante, nesta discussão, é o fato de as competências, as analisadas
aqui em particular, e todas as outras estabelecidas e as a estabelecer de acordo com as
necessidades particulares, estarem a nossa disposição para proporcionarmos, por meio delas,
um ensino-aprendizagem de qualidade às escolas de Ensino Médio. Os alunos de nossa
pesquisa conseguem claramente perceber a importância de tais competências e as deficiências
da escola onde estudam, coisa que é muito visível a quaisquer olhos. Ouçamos o que um deles
falou quando questionado a respeito das competências:
93
Teoricamente as competências são ótimas e o ideal a ser
alcançado, mas estão longe de corresponder a realidade ensinada nas
escolas públicas brasileiras e principalmente em Cruzeiro do Sul, onde
vários (as) professores (as) não têm a qualificação exigida, e as escolas
não têm estruturas para realização de atividades extra-classe e não têm
recursos didáticos, além das inúmeras dificuldades que os alunos trazem
de casa.
4.1.3.2. Você está sendo preparado (a), em suas aulas de Língua Portuguesa, para lidar
com as diferenças e com as semelhanças entre a língua oral e a escrita?
A análise dos dados abaixo oferece-nos a oportunidade de vermos que 34
alunos (61%) responderam não; 13 alunos (24%) deram outras respostas; 08 alunos (15%)
responderam sim para a pergunta a respeito da preparação para lidar com as diferenças e
com as semelhanças entre a língua oral e a escrita nas suas aulas de Língua Portuguesa. Dos
três professores entrevistados, 02 responderam sim e 01 respondeu não para a mesma
pergunta.
É fácil identificarmos, a partir destes resultados, que a escola de Flodoardo
Cabral não está preparando seus alunos para construírem a competência “Articular as redes de
diferenças e semelhanças entre a língua oral e escrita e seus códigos sociais, contextuais e
lingüísticos” (PCNEM, p.24). O fato de 34 alunos (61%) dizerem que não estão sendo
preparados para tal, é prova do que estamos afirmando: esta competência não está sendo
construída pelos mesmos alunos.
No entanto, dos três professores entrevistados, dois responderam que os alunos
estão sendo sim preparados para lidarem com as diferenças e com as semelhanças da língua
oral e escrita. Estamos assim diante daquilo que podemos considerar como ângulos diferentes:
os alunos pensam de uma maneira e os professores de outra a respeito da mesma situação, ou
seja, os alunos não conseguem perceber a preparação oferecida pelos professores nesta
94
questão de oralidade e escrita. E isso nos leva a crer que não existe feedback no processo
ensino-aprendizagem desta competência, ou melhor, os professores estão desenvolvendo-a e
os alunos não estão construindo-a e consideram o fato como se não estivesse sendo
trabalhado, uma vez que a ação de aprender não está conseguindo alcançá-los.
Como já tratamos no capítulo da fundamentação teórica desta dissertação, a
linguagem escrita e a oral são duas modalidades de expressão da linguagem. Partindo dessa
perspectiva, é conveniente que coloquemos em pé de igualdade as modalidades de expressão
oral e escrita, manifestadas nas mais variadas formas, conforme fala Bagno (2001):
(...) Sou a favor de um ensino crítico da norma-padrão. E
para empreender essa crítica, é necessário despejar sobre o pano de fundo
homogêneo da norma-padrão clássica a heterogeneidade da língua
realmente usada. Para isso, a escola deve dar espaço ao maior número
possível de manifestações lingüísticas, concretizadas no maior número
possível de gêneros textuais e de variedades de língua: rurais, urbanas,
orais, escritas, formais, informais, cultas, não-cultas etc. Assim como
Mattos e Silva (1995, p.37), também proponho “uma pedagogia voltada
para o todo da língua e não para algumas de suas formas” (p. 59).
Levando em conta o princípio de que toda língua, qualquer língua, em
qualquer momento histórico e em qualquer lugar do mundo, nunca é uma coisa compacta,
uniforme e que a principal característica das línguas humanas é a sua heterogeneidade, é que
devemos entender Bagno: ”a escola deve dar espaço ao maior número possível de
manifestações lingüísticas” e, conseqüentemente, Mattos e Silva: “uma pedagogia voltada
para o todo da língua”. Estes dois autores, neste contexto, estão propondo uma nova maneira
de trabalharmos a Língua Portuguesa, respeitando as suas várias e diferentes manifestações.
Assim, analisando os resultados (61%) que mostram que os alunos da escola
lócus de nossa pesquisa não estão sendo preparados para lidarem com as diferenças e
semelhanças da língua oral e escrita, chegamos a pensar que as deficiências que envolvem o
95
processo ensino-aprendizagem de língua materna, em nosso Recanto Amazônico, poderiam
ser amenizadas se nós professores começássemos trabalhar a língua escrita, dos livros
didáticos e das gramáticas, concomitantemente com a língua falada e vivida pelos nossos
alunos.
Uma professora da escola Flodoardo não contada como uma das pessoas
entrevistadas em nossa coleta de dados, mas como uma colaboradora, coloca-nos:
Considerando a miscigenação que constitui a nossa
sociedade pode-se concluir que a fala do cruzeirense é sem dúvida uma
síntese dos mais variados falares que aqui se fixaram. No tocante ao
ensino da Língua Portuguesa, vale salientar que a escola – instituição –
em Cruzeiro do Sul, seguiu sempre uma linha por demais tradicional, o
ensino da língua esteve sempre baseado no estudo da gramática; não
conheço nenhuma escola ou nenhum projeto que tenha tido a preocupação
em estudar ou aproveitar como recurso a mais em sala de aula os aspectos
lingüísticos locais, o que poderia gerar um enriquecimento lexical mais
próximo das nossas raízes (Alexandrina Félix).
Esta fala da professora Alexandrina expressa o desejo que a Língua Portuguesa
seja trabalhada de forma menos tradicional. Ela coloca: “o ensino de língua esteve sempre
baseado no estudo da gramática”, e isso pode significar que tal ensino está fundamentado
apenas no domínio da língua escrita. A professora continua sua fala e afirma: “não conheço
nenhuma escola (...) que tenha tido a preocupação em estudar (...) os aspectos lingüísticos
locais”. Aqui temos uma evidência de que a língua oral, a particular, não é trabalhada por nós
professores em nossas aulas de Língua Portuguesa.
De acordo com o IBGE, mais de 20 milhões de brasileiros não sabem ler nem
escrever. Sabemos que esse número não faz referência aos analfabetos funcionais, àqueles que
somente sabem desenhar o próprio nome, que são frutos de programas de alfabetização que
contemplam tão somente a interesses políticos e eleitoreiros, não respeitando a pessoa como
96
um ser humano que é portador do direito de ter, no seu sistema lingüístico pátrio, um
instrumento de libertação pessoal e, sobretudo, social.
Deste modo, estamos percebendo que a língua escrita é a ensinada nas escolas,
mas como seu ensino não considera a fala particular do estudante, este, na maioria das vezes,
apresenta dificuldade em aprender ler e escrever e, muitas vezes, nunca aprende, preferindo
abandonar a escola. Somente durante o ano letivo de 2002, na escola Flodoardo, 254 alunos
desistiram. E este índice aumenta tratando-se de escola de Ensino Fundamental em Cruzeiro
do Sul. Um outro lado da questão é a realidade de muitas pessoas não terem nunca sentado
num banco escolar. Este é o caso dos analfabetos que desconhecem totalmente o mundo da
escrita em suas vidas.
O fato de muitos brasileiros não terem o domínio da língua escrita ensinada na
escola indica que o ensino de língua materna precisa urgentemente mudar sua cara. Claro que
nem tudo depende da escola, pois o analfabetismo no Brasil, no Acre e em Cruzeiro do Sul é
sintoma de muitas doenças sócio-econômico-políticas. É um problema que exige que todos
nós nos empenhemos no sentido de resolvê-lo, pois, como diz Bagno (2001):
Tudo isso cria o que eu chamo de baixa auto-estima
lingüística: os brasileiros em geral têm vergonha ou medo de falar e de
escrever em situações um pouquinho mais formais porque acreditam que
a língua que eles realmente conhecem não “serve” para essas situações...
E não estou falando somente dos brasileiros analfabetos ou semi-
analfabetos (que, infelizmente, constituem uma parte substancial da nossa
população). Estou me referindo também aos falantes cultos, com
escolaridade superior completa (p.40).
Assim, observa-se que o uso efetivo da língua não se apresenta como uma
prática fundamental para que sejam experimentadas as diversas interlocuções possíveis em
uma sociedade dinâmica, e tal atitude gera a idéia de que o Português da escola é uma outra
língua. E, pelo fato de não admitirmos como válidas as diversas variantes socialmente
97
desprestigiadas, o conhecimento lingüístico do aprendiz, a começar pela fala, é sempre posto
em xeque e quase sempre é considerado errado ou insuficiente, como se a única forma correta
do nosso idioma pátrio fosse a língua da gramática e a dos livros didáticos, a única ensinada,
ainda hoje, nas aulas de Língua Portuguesa, infelizmente.
Uma coisa que fazemos questão de deixar muito claro é que não queremos, em
momento algum, responsabilizar somente nós professores pelo estado em que se encontra o
ensino de nossa língua mãe. Pois observamos, nesta investigação, que não há má-fé por nossa
parte no sentido de desenvolvermos nossas aulas da maneira que o fazemos. Tudo o que
acontece ou quase tudo é resultado, entre outros fatores, da nossa formação como
profissionais e do projeto político da escola da qual fazemos parte, numa sociedade desigual,
onde o professor é visto como um instrumento de reprodução de idéias e de bons costumes.
Vejamos o que nos diz uma das professoras entrevistadas:
O professor de Língua Portuguesa deve utilizar-se de uma
metodologia que propicie ao aluno oportunidades múltiplas de linguagem
verbal e não-verbal. A leitura e produção de textos de diferentes temas
dão oportunidade dos alunos de discutir e analisar as diferenças,
semelhanças, convivências (...). Esta compreensão permitirá que o aluno
participe e usufrua os bens da sociedade. Tal proposta incluiria os vários
falares, tanto da língua culta como de outro dialeto, e assim, se evitaria a
exclusão da linguagem popular que é uma grande perda cultural para nós
das barrancas do Rio Juruá.
4.1.3.3. Você está aprendendo a relacionar o conhecimento da Língua Portuguesa com as
questões sociais?
Ao responder esta pergunta, 27 alunos (49%) responderam que não estão
aprendendo nada; 19 alunos (35 %) responderam que estão aprendendo pouco; 09 alunos
98
(16%) responderam que estão aprendendo muito. Para a mesma pergunta, 100% dos
professores respondeu que os alunos estão aprendendo pouco.
Analisando estes dados que nos foram proporcionados generosamente pelos
sujeitos de nossa pesquisa, percebemos que a Língua Portuguesa na escola Flodoardo vem
sendo trabalhada sem a preocupação de relacioná-la com as questões sociais vigentes na
sociedade local. Assim, o que os PCNEM defendem, a seguir, fica cada vez mais distante da
realidade escolar do nosso Recanto Amazônico.
Na escola, a exigência de se dar espaço para a verbalização
do não-dito será uma possibilidade para a construção de múltiplas
identidades. Dar espaço para a verbalização da representação social e
cultural é um grande passo para a sistematização da identidade de grupos
que sofrem processos de deslegitimação social (p.20).
A escola é vista, pelos PCNEM, como um ambiente importante capaz de “Dar
espaço para a verbalização da representação social e cultural (...)”. E isso significa, para nós,
que vivemos em uma sociedade onde todas as disciplinas escolares precisam ser voltadas para
o aspecto social da comunidade da qual fazem parte. Assim, o ensino-aprendizagem de
Língua Portuguesa, para alcançar êxito, não pode ser desenvolvido sem também ser mesclado
por seu aspecto social particular.
Por esta ótica, os PCNEM, ao estabelecerem a competência, “considerar a
Língua Portuguesa como fonte de legitimação de acordos e condutas sociais e como
representação simbólica de experiências humanas manifestas nas formas de sentir, pensar e
agir na vida social” (PCNEM, p.20), tiveram uma visão bem ampla das sociedades modernas
como um todo. Pois, em tempos de modernidade, não é mais possível pensarmos na dimensão
da vida humana sem a percepção do fator social. E, neste contexto, nossa língua materna é
colocada “(...) como representação simbólica de experiências humanas manifestas nas formas
de sentir, pensar e agir na vida social”.
99
Mattoso Câmara (1981), ao considerar que as funções primordiais da
linguagem são a organização do pensamento e a comunicação ampla do pensamento assim
organizado, está imbuído de um espírito sociológico extremado, que justifica a correção
lingüística em termos de consenso, sinal de status social e de grau de instrução:
A conseqüência inevitável é que cada um de nós tem de
saber usar uma boa linguagem para desempenhar o seu papel de indivíduo
e de membro de uma sociedade humana. Não se pode admitir que um
instrumento tão essencial seja mal conhecido e mal manejado; mal utilizá-
lo é colocarmo-nos na categoria dos operários que são canhestros e
incipientes no exercício de sua profissão (p. 12).
Esta argumentação de Mattoso Câmara conduz-nos a uma necessidade de
empreendermos uma grande viagem pelo Brasil, de Norte a Sul e de Leste a Oeste,
recolhendo as várias linguagens utilizadas e os vários modos de falar das pessoas de todas as
regiões, de todos os estados, de todas as cidades etc. Nessa viagem, certamente, vamos
perceber que existem diferenças nas linguagens e nos modos de falar, diferenças que podem
ser fonéticas, sintáticas, morfológicas, lexicais, semânticas, pragmáticas... Há muita
semelhança, também, é verdade, mas são as diferenças que chamam mais a atenção e que
permitem classificar os variados modos de usar a Língua Portuguesa como conseqüência das
relações sociais que as pessoas estabelecem entre si, além de outros fatores, obviamente.
O estudo das relações que existem entre todos aqueles fatores usados para
classificar um falante (idade, sexo, escolaridade, origem geográfica etc) e o modo como ele
fala (a variedade lingüística dele) pertence ao campo científico da Sociolingüística. A
Sociolingüística, com este nome e com sua configuração teórica e metodológica atual, surgiu
na década de 60 nos Estados Unidos graças, sobretudo, aos trabalhos de William Labov. A
Sociolingüística veio mostrar que toda língua muda e varia, isto é, muda com o tempo e varia
no espaço, além de variar também de acordo com a classe social do falante.
100
Assim, depois da chegada da Sociolingüística, ficou difícil aceitar declarações
genéricas do tipo: “Em português tal coisa se diz assim”. O sociolingüista na mesma hora vai
querer saber: mas que português é esse? Falado no Brasil, em Portugal ou em Angola? Falado
em que região, por quais falantes, de qual classe social, de qual nível de escolaridade (...)? A
partir dessas concepções trazidas pela a Sociolingüística, fica evidente que cada vez mais o
ensino de língua materna precisa preparar os estudantes para a sociedade da qual são
membros e necessitam tornarem-se sujeitos para terem as condições necessárias de lutarem
para a transformação da mesma sociedade. Os PCNEM acrescentam:
A linguagem verbal representa a experiência do ser humano
na vida social, sendo que essa não é uniforme. A linguagem é constructo e
construtora do social e gera a sociabilidade. Os sentidos e significados
gerados na interação social produzem uma linguagem que, apesar de
utilizar uma mesma língua, varia na produção e na interpretação (p.20).
A pesquisa de campo desta dissertação detectou que os alunos do nosso
Recanto Amazônico não estão sendo preparados para construírem a competência “considerar
a Língua Portuguesa como fonte de legitimação de acordos e condutas sociais e como
representação simbólica de experiências humanas manifestas nas formas de sentir, pensar e
agir na vida social”. E o ensino de língua mãe continua sendo um ensino baseado na língua
dos gramáticos e dos dicionaristas, sem muita preocupação com o engajamento no contexto
social dos estudantes, o que torna o ensino-aprendizagem de nosso idioma pátrio lento e
desinteressante. Quais causas explicariam este quadro?
Não nos envolvemos, nesta investigação, a desvendar os motivos que fazem
com que o ensino de Língua Portuguesa seja apenas fundamentado nos livros e não também
na vida social dos alunos. Porém, através da coleta de dados, deu para termos a idéia de que
nós professores somos frutos de uma formação que conduz à reprodução e não à criação. E
nada mais coerente, assim, que seguirmos unicamente o que outros já disseram antes de nós.
101
É mais seguro e menos perigoso... Além do mais, a maioria das escolas não estão preparadas
com recursos modernos, como laboratórios de experimentação e de computação, que
propiciem um ensino de língua diversificado e atraente.
E os PCNEM destacam a necessidade da escola instrumentalizar o aluno,
através do “poder dizer/escrever”, para o seu desempenho social:
A competência do aluno depende, principalmente, do poder
dizer/escrever, de ser alguém que merece ser ouvido/lido. A escola não
pode garantir o uso da linguagem fora do seu espaço, mas deve garantir
tal exercício de uso amplo no seu espaço, como forma de instrumentalizar
o aluno para o seu desempenho social. Armá-lo para poder competir em
situação de igualdade com aqueles que julgam ter o domínio social da
língua. (p.22)
4.1.4.1. Como você gostaria que fosse o ensino de Língua Portuguesa em sua escola?
Os dados aqui presentes mostram como os alunos querem que seja o ensino
de Língua Portuguesa na escola onde eles estudam. Observemos: 18 alunos (33%) optaram
por um ensino bem criativo; 14 alunos (25%) querem um ensino que utilize os recursos
tecnológicos modernos; 12 alunos (22%) aspiram por um ensino onde materiais concretos
sejam utilizados; 11 alunos (20%) desejam um ensino com conteúdos interessantes. E,
observando estes dados, chegamos a dedução de que eles esperam por um ensino de língua
baseado numa educação voltada para a liberdade, conforme as idéias de Luft (2002):
O ensino ideal, a educação ideal, que todos desejamos, há
de ser uma educação para a liberdade, como a têm preconizado figuras do
porte de um Paulo Freire em nosso país. Muito particularmente se aplica
isto ao ensino de língua materna, já que é através dela que pensamos,
analisamos o mundo, nos integramos e nos relacionamos com os nossos
irmãos (p. 98).
102
No contexto desta colocação de Luft e na tentativa de revelarmos mais
resultados obtidos na coleta de dados, selecionamos cuidadosamente algumas falas dos alunos
para melhor nos situarmos no que realmente eles estão pensando e falando, no intuito de
conhecermos melhor àqueles que foram os sujeitos desta investigação:
“O ensino de língua portuguesa deve ser bem criativo para não ficar tão cansativo e
repetitivo todos os conteúdos”.
“O ensino de Língua Portuguesa deve ser criativo e com bastante utilização de
recursos didáticos, para que estimule o aluno a aprender e participar das aulas com
dedicação”.
“As aulas de português deveriam ser mais criativas, ou seja, a professora deveria usar
+ a tecnologia que temos hoje para auxiliar o ensino, que hoje não está muito bom”.
“(...) Utilizar os recursos tecnológicos para proporcionar uma aula menos cansativa e
possamos aprender mais”.
“A língua portuguesa deve ser trabalhada de muitas formas, com dinâmicas, aulas
recreativas e principalmente utilizando materiais concretos”.
“A nossa língua deverá ter um ensino mais estimulante, usando outros métodos, para
facilitar a aprendizagem dos alunos”.
“As aulas de português todas deverão ser com conteúdos interessantes para despertar
no aluno mais interesse”.
Analisando estes textos dos alunos sujeitos de nossa pesquisa, a impressão
que temos é de que eles falam por si somente e dispensam quaisquer comentários. Pois,
através dos mesmos, os alunos revelam toda a ansiedade que trazem consigo no sentido de
terem um ensino de língua criativo, tecnológico, didático e com conteúdos interessantes. Esse,
sim, seria o ensino ideal, consoante com os dados coletados. Vejamos mais um aluno
expressando seus desejos a respeito do ensino de sua língua mãe:
103
Ensino de Língua Portuguesa dever ser trabalhada de
maneira a propiciar novos desafios aos alunos. Escola e professores em
geral devem ser mais dinâmicos. Incentivar, por exemplo, os alunos a
escreverem peças teatrais, músicas, poesias, jornal escolar, criar
dicionários locais de palavras etc. São atividades interessantes que
desenvolvem ao mesmo tempo a ortografia correta e a linguagem oral.
Estes resultados demonstram a ausência total de muitos indicadores
considerados necessários ao desenvolvimento das competências básicas para um ensino-
aprendizagem de língua materna de qualidade. E, em vista destes resultados, não fica difícil
concluir-se que os alunos e até mesmo os professores não estão satisfeitos com a situação
atual do ensino de Língua Portuguesa que têm em sua escola e, conseqüentemente, em sua
cidade. Em contrapartida, os mesmos resultados apontam para um novo ensino.
Enfim, se os sujeitos desta investigação querem tanto um ensino de língua
criativo, tecnológico, didático e com conteúdos interessantes é porque ainda não o têm. Aqui
podemos dizer que o Ensino-Baseado-em-Competência poderia ser uma das soluções para
este problema. Pois a construção de competências básicas será mais ou menos significativa à
proporção direta em que assumirmos um trabalho voltado para o desenvolvimento concreto
das mesmas. E vale lembrar que tal trabalho não poderá ser isolado. É em conjunto que temos
as condições reais para caminharmos na direção de mudanças.
4.2. Conclusões da Análise de Dados
Finalizando este capítulo de análise dos dados, utilizamo-nos da representação
gráfica para oferecemos uma síntese das respostas dos alunos às perguntas dos questionários
aplicados. Primeiramente, traçamos um perfil sobre a questão sexo e idade desses sujeitos de
nossa investigação.
104
05101520253035
1 2
1. Masculino: 21 (38%) 2. Feminino: 34 (62%)
4.1.1.1. SexoFigura 1
0
10
20
30
40
50
1 2 3
1. 15 a 20: 42 (76%) 2. 21 a 25: 11 (20%) 3. 26 a 30: 02 (04%)
4.1.1.2. IdadeFigura 2
Para responder a primeira questão de estudo desta dissertação (Quais as
percepções de alunos e professores do Ensino Médio sobre o ensino de Língua Portuguesa, na
escola Flodoardo Cabral, em Cruzeiro do Sul, tendo em vista o relacionamento
professor/aluno e os conteúdos trabalhados em sala de aula?), elaboramos duas perguntas:
Como é o seu relacionamento com seu (sua) professor (a) de Língua Portuguesa?
0
5
10
15
20
25
30
1 2 3
1. É bom: 16 (29%) 2. É regular: 30 (55%) 3. É ruim: 09 (16%)
4.1.2.1. RelacionamentoFigura 3
105
Interpretar os conteúdos estudados é uma prática comum em suas aulas de Língua
Portuguesa?
0
10
20
30
1 2 3
1. Não: 28 (51%) 2. Às vezes: 21 (38%) 3. Sim: 06 (11%)
4.1.2.2. Interpretar conteúdosFigura 4
Encerrando as conclusões sobre a primeira questão de estudo que trata do
relacionamento professor/aluno e da interpretação dos conteúdos estudados, de certa forma,
podemos dizer que nos deparamos, ao longo da análise dos resultados sobre este assunto, com
tipos especiais de competências que precisam ser construídas pelos alunos e professores de
Língua Portuguesa do Ensino Médio, em contexto de um Recanto Amazônico. Pois ser capaz
de manter bom relacionamento e ser capaz de exercitar interpretação dos conteúdos estudados
são faculdades que exigem de nós competências básicas.
No intuito de contemplarmos a segunda questão de estudo desta investigação
(As competências: aplicar as tecnologias da comunicação e da informação na escola; articular
as redes de diferenças e semelhanças entre a língua oral e a escrita; considerar a Língua
Portuguesa como fonte de legitimação de condutas sociais, estão sendo construídas pelos
alunos do Ensino Médio da escola Flodoardo Cabral?), trabalhamos com três perguntas nos
questionários de coleta de dados. Vejamos as perguntas e os resultados.
As tecnologias da comunicação e da informação são aplicadas nas aulas de Língua
Portuguesa de sua escola?
106
0
10
20
30
1 2 3
1. Muitas vezes: 09 (16%) 2. Nunca: 30 (55%) 3. Poucas vezes: 16 (29%)
4.1.3.1. TecnologiasFigura 5
Você está sendo preparado (a), em suas aulas de Língua Portuguesa, para lidar com
as diferenças e com as semelhanças entre a língua oral e a escrita?
05101520253035
1 2 3
1. Sim: 08 (15%) 2. Não: 34 (61%) 3. Outros: 13 (24%)
4.1.3.2. Oral e Figura 6
Você está aprendendo a relacionar o conhecimento da Língua Portuguesa com as
questões sociais?
0
5
10
15
20
25
30
1 2 3
1. Muito: 09 (16%) 2. Pouco: 19 (35%) 3. Nada: 27 (49%)
4.1.3.3. Condutas sociaisFigura 7
107
Consoante com os dados apresentados nas figuras 5, 6 e 7, fica claro que as
competências estabelecidas pelos PCNEM ainda não são praticamente trabalhadas pelos
professores de Língua Portuguesa do Ensino Médio da escola Flodoardo e, conseqüentemente,
não estão sendo construídas pelos alunos da mesma escola. Não consideramos, nesta pesquisa,
os motivos que levam os professores não trabalharem as competências, apenas queríamos
concretizar o objetivo geral desta dissertação: identificar em que medida as competências em
Língua Portuguesa, estabelecidas pelos PCNEM, estão sendo construídas pelos alunos do
Ensino Médio da escola Flodoardo Cabral, o nosso Recanto Amazônico, em Cruzeiro do Sul /
Estado do Acre.
Neste contexto das competências em Língua Portuguesa ainda não serem
construídas pelos alunos pela razão das mesmas não serem trabalhadas pelos professores,
vale recordar o que Perrenoud (2000) diz sobre competências:
Prática reflexiva, profissionalizante, trabalho em equipe e
por projetos, autonomia e responsabilidade crescentes, pedagogias
diferenciadas, centralização sobre os dispositivos e sobre as situações de
aprendizagem, sensibilidade à relação com o saber e com a lei delineiam
um roteiro para um novo ofício (p.11).
Perrenoud, com estas palavras, oferece uma definição para competências e nos
leva a crer que para assumirmos uma prática docente baseada em competências precisamos
querer e termos a coragem de mudarmos certos hábitos. Precisamos trabalhar numa ótica de
“pedagogias diferenciadas” e, assim, construirmos “um novo ofício” para ensinar. Olhando
esta questão das competências na sua teoria, parece que estamos diante de uma situação
simples; na prática, porém, parece que tudo se complica e os dias passam-se e as
competências não são construídas. Um dos alunos sujeitos de nossa pesquisa, refletindo sobre
as competências em Língua Portuguesa estabelecidas pelos PCNEM, afirma:
108
A divulgação dos conteúdos dos PCNEM deve ser feita da
melhor forma possível, para que todos tenham acesso compreensivo aos
mesmos e assim possam aplicá-los no dia-a-dia das salas de aula. Os
supervisores de ensino precisam estar por dentro de todas as propostas
dos PCNEM para poderem acompanhar e dar boas sugestões ao corpo
docente de sua escola; todos os recursos necessários sejam oferecidos aos
professores para que possam concretizar na sua docência a filosofia de
ensino dos PCNEM que é o desenvolvimento de competências.
O raciocínio expressado por este aluno responsabiliza o aspecto fora da sala de
aula pelo não trabalho das competências: “A divulgação dos conteúdos dos PCNEM deve ser
feita da melhor forma possível, (...) Os supervisores de ensino precisam estar por dentro de
todas as propostas dos PCNEM para poderem acompanhar e dar boas sugestões ao corpo
docente de sua escola”. Com isso, podemos ver que até os próprios alunos conseguem
diagnosticar que para construirmos, como professores, “um novo ofício” é preciso que mais
gente também esteja envolvida no processo de mudança. Perrenoud (1999) completa este
raciocínio ao dizer:
Enfrentar situações diversas requer competências também
diversas, e estas não serão construídas pela simples transferência de
esquemas gerais de raciocínio, análise, argumentação e cisão. A escola só
pode preparar para a diversidade do mundo trabalhando-a explicitamente,
aliando conhecimento e savoir-faire a propósito de múltiplas situações da
vida de todos os dias (p. 75).
Para termos ciência de como os alunos sujeitos desta pesquisa querem que seja
o ensino de Língua Portuguesa, na escola onde estudam, foi que elaboramos a terceira
questão de estudo de nossa investigação (Como os alunos do Ensino Médio da escola
Flodoardo Cabral querem que seja o ensino de Língua Portuguesa, tendo em vista a
construção de competências estabelecidas pelos PCNEM?). E, para respondermos
convincentemente tal questão, fizemos apenas uma pergunta no questionário de coleta de
109
dados, a que foi suficiente para conhecermos os desejos que os alunos trazem em suas mentes
para o ensino de língua materna.
Como você gostaria que fosse o ensino de Língua Portuguesa em sua escola?
0
2
4
6
8
10
12
14
16
18
1 2 3 4
1. Bem criativo: 18 (33%)2. Tecnológico: 14 (25%) 3. Concreto: 12 (22%) 4. Interessante: 11: (20%)
4.1.4.1. Ensino desejado Figura 8
Avaliando estas respostas, podemos ver claramente que os alunos aspiram
por um ensino de Língua Portuguesa baseado no desenvolvimento das competências, apesar
de eles não usarem a palavra competência. Basta observarmos o conteúdo das respostas e
compararmos com o que entendemos por competência “Prática reflexiva, profissionalizante,
trabalho em equipe e por projetos, autonomia e responsabilidade crescentes, pedagogias
diferenciadas (...)“ que veremos o que os alunos esperam: um ensino de qualidade baseado em
competências. E um ensino assim, vem ao encontro do que os PCNEM dizem sobre as
competências:
As competências que aqui serão objetivadas correspondem
a uma visão da disciplina dentro da área e deverão ser desenvolvidas no
processo de ensino-aprendizagem, ao longo do Ensino Médio. A proposta
não pretende reduzir os conhecimentos a serem aprendidos, mas sim
indicar os limites sem os quais o aluno desse nível teria dificuldades para
prosseguir nos estudos, bem como participar ativamente na vida social.
(p.20)
110
CAPÍTULO V
REFLEXÕES CONCLUSIVAS
Este é o último capítulo desta dissertação de mestrado. Ao chegarmos nesta
fase da investigação, a sensação que sentimos é de que alguma coisa ficou para trás e tudo o
que vamos dizer aqui necessita de um olhar retroativo ao interior dos demais capítulos. É
como se tudo necessitasse de algo passado para dar sentido ao agora presente. E, para um bom
desenvolvimento deste capítulo, dividiremos o mesmo em duas seções. A primeira seção
apresenta as considerações finais. A segunda, as recomendações do estudo.
5.1. Considerações Finais
Esta pesquisa baseou-se no princípio de que toda interação, principalmente a
pedagógica, envolve atores e discursos em tensão, numa luta pela supremacia na construção
de significados educacionais. Isso implica assumir que enunciados não são neutros; ao
contrário, revelam uma visão particular de mundo e encerram valores com os quais os
indivíduos lutam na arena de suas vidas. Assim, entendendo a escola como um ambiente
dialógico em necessário conflito, este trabalho se guiou pela noção de que há vozes
divergentes interferindo diretamente no processo de ensinar/aprender.
Ao inserirmo-nos no campo da pesquisa, com o olhar preparado para buscar
tais conflitos no tocante ao ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa na escola de Ensino
Médio Flodoardo Cabral em Cruzeiro do Sul, deparamo-nos com uma situação de muitas
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questões sociais, culturais, políticas, conceituais e didáticas envolvidas na problemática do
processo ensino-aprendizagem de língua materna no lócus de nossa investigação e, para nós,
tais questões, vão além desta pesquisa, tomando proporções nacionais. Basta olharmos ao
nosso redor para identificarmos a dimensão dos problemas que envolvem o ensinar/aprender
de nosso idioma pátrio.
Neste contexto, foi que definimos o problema de estudo desta dissertação: em
que medida as competências em Língua Portuguesa, estabelecidas pelos PCNEM, estão sendo
construídas pelos alunos do Ensino Médio da escola Flodoardo Cabral, o nosso Recanto
Amazônico, em Cruzeiro do Sul / Estado do Acre? Ao longo deste texto, procuramos
encontrar resposta para tal problema; porém, não foi fácil vermos as coisas com clareza. Mas,
ao final, deu para termos a certeza, a partir dos resultados obtidos com a análise de dados, que
as competências aqui mencionadas ainda não estão sendo construídas pelos alunos também
mencionados.
Entretanto, apesar destas competências ainda não estarem sendo construídas,
desenvolvidas, elas foram consideradas, tanto pelos professores quanto pelos alunos, como de
fundamental importância para um Ensino-Baseado-em-Competência, dado que ofereceu, na
fundamentação teórica desta dissertação, instrumental teórico para se exercer uma reflexão
crítica a respeito do contexto econômico, político, social e cultural do processo ensino-
aprendizagem de Língua Portuguesa no Ensino Médio, permitindo assim uma leitura mais
elaborada do mesmo processo na escola Flodoardo, o nosso Recanto Amazônico, e garantindo
uma atuação mais consciente e crítica ao trabalho docente nesta área.
E, segundo os resultados obtidos, conclui-se que há necessidade de assumir um
Ensino-Baseado-em-Competência no sentido de o ensino de Língua Portuguesa ser mais
eficaz para que os alunos, ao concluírem o Ensino Médio, sejam capazes de construírem as
competências estabelecidas pelos PCNEM na área de Linguagens, Códigos e suas
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Tecnologias e sejam capazes de ocuparem profissão de nível médio que exige conhecimento
de Língua Portuguesa e sejam considerados aptos a prestarem a prova de Português do
vestibular ao Ensino Superior.
Saindo do contexto das competências estabelecidas pelos PCNEM e pensando
nas competências e conhecimentos hoje exigidos para que um jovem possa ter desempenho
nas suas necessidades de convívio social (leitura crítica do mundo, aprender a aprender,
tomar decisões, assumir posições políticas, construir competências pessoais etc.),
descobrimos igualmente que os alunos da escola Flodoardo não estão sendo trabalhados, na
sua grande maioria, para tal. É como se os conflitos se apresentassem de forma inevitável e
professores e alunos fossem vítimas de algo que os impedem de desenvolverem um ensino de
língua mãe de qualidade. Por quê? Não investigamos o aspecto causas. Talvez por isso, não
conhecemos as respostas para esta pergunta que insiste em não calar.
E, no decorrer desta investigação, deparamo-nos com certos paradoxos entre as
percepções dos professores e as dos alunos sobre as aulas de Língua Portuguesa. Por exemplo,
100% dos professores, na questão relacionamento professor/aluno, responderam que
consideram o relacionamento de ambos bom. Já 55% dos alunos entrevistados consideram
regular o mesmo relacionamento.
Fui possível também perceber, a partir de dados coletados (52% dos alunos
respondeu não e, apenas 13%, respondeu sim à pergunta “Interpretar os conteúdos estudados é
uma prática comum em suas aulas de Língua Portuguesa?”), que interpretar os conteúdos
estudados nas aulas de língua materna não é uma prática comum na escola Flodoardo, em
Cruzeiro do Sul. Do ponto de vista especificamente pedagógico, a não prática de interpretação
detectada aqui pode ser devida à forma pela qual as aulas são desenvolvidas: centradas em
um método expositivo não-dialogado e à seleção de conteúdos, que não contempla as
expectativas dos jovens.
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O ensino de Língua Portuguesa no Ensino Médio, então, não atende às
expectativas dos alunos, até a dos próprios professores, e nem redime os mesmos da
submissão às mazelas do sistema de ensino, que continuam emperrando ações mais eficazes
para elevação da qualidade deste ensino. Destaca-se entre essas mazelas: o apego a
metodologias tradicionais de ensino; a falta de recursos didático-pedagógicos adequados; a
falta de apoio das equipes governamentais e técnicas para um ensino mais eficaz; a falta de
oportunidade de qualificação dos professores nas áreas específicas de atuação.
Entendemos que para trabalhar com aulas de Língua Portuguesa para jovens do
Ensino Médio e para que esse trabalho seja significativo para tais jovens, uma clareza por
parte dos educadores da íntima solidariedade que existe entre conteúdo e forma, entre postura
teórica, científica e técnico-pedagógica só poderá render bons frutos. Pois ser crítico interessa
a qualquer ser humano e não apenas a quem tem aulas de língua materna. Tais aulas
constituem um momento privilegiado, como diz Allessandrini (2000, p. 167), “a atuação do
professor deve acontecer no sentido da construção de uma nova consciência, consolidando
uma cidadania ética e solidária”.
Deste modo, esta pesquisa reforça a noção de que não existe um único fator
responsável pelos problemas que envolvem o ensino de Língua Portuguesa hoje no lócus
desta investigação e em contexto nacional. O contexto estudado indica que ele, o ensino,
ainda colabora no processo de exclusão social e na construção de um significado de língua
que resulta em uma barreira cada vez maior para as possibilidades de inclusão. É preciso
encontrar o lugar das diferenças dentro das atuais condições de nossas escolas, questionando
os currículos e os papéis que o senso comum nos destina.
Precisamos pensar, por exemplo, no significado de língua construído quando
uma variante lingüística é eleita e estudada como padrão, em detrimento de outras igualmente
válidas e usadas cotidianamente nas suas comunidades. A visão mais tradicional de ensino de
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Língua Portuguesa postula a substituição de uma variante popular pela de prestígio, negando
voz a visões de mundo diferentes das hegemônicas, como vimos anteriormente. Tal postura
gera a noção de que há linguagens melhores que outras e, por conseguinte, classes de pessoas
mais merecedoras de sucessos do que outras.
É óbvio que não negamos a necessidade do ensino da norma culta de uma
norma padrão. Mas é preciso diferenciar o ensino da norma culta de um ensino descritivo de
Língua Portuguesa. Acreditando erroneamente que descrever é essencial ao desempenho do
usuário de uma língua, e que os aprendizes sejam capazes de transferir o conhecimento
estrutural para o saber pragmático. Analogicamente, segundo esta visão do ensino de
gramática, é como se estivéssemos impedidos de sermos bons motoristas caso não
conheçamos as peças e o funcionamento do motor do automóvel.
Concluindo, evocamos o pensamento de Paulo Freire para argumentar pela
urgência de que se mantenha ou se reavive a noção de que educar é essencialmente um ato
político, mais do que um conjunto de técnicas e de processamentos técnico-pedagógicos. As
falas dos sujeitos desta pesquisa, capítulo anterior, vêm confirmar a idéia de que há alunos e
professores dispostos a romper a barreira da burocracia, do desânimo, do descompromisso
com certo segmento social construído ao longo dos anos de uma política educacional que vem
desmantelando a escola pública. E, apesar de a insatisfação com velhos modelos ser explícita,
a busca de novas formas de ensinar/aprender nem sempre encontra meios de se desenvolver,
dadas às condições objetivas de trabalho.
Por outro lado, mais do que rebater na tecla da crítica profissional muitas vezes
tido como acomodado e resistente a mudanças, ou ao aprendiz que “não quer nada com
estudo”, este trabalho indica que também somos frutos de forças sociais, políticas, culturais...
em tensão que precisam ser explicitadas e compreendidas como um primeiro passo em
direção ao avanço na melhoria das relações sociais e pedagógicas na escola e na vida. Sem
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dimensionamento das tensões que cercam a tarefa docente de língua materna, o conteúdo
veiculado em nossas aulas e as identidades com as quais agimos socialmente, cairemos apenas
na crítica vazia ou sustentaremos valores preconceituosos e excludentes contra os quais
lutamos e os quais, sem querer, nos flagramos reproduzindo.
Finalmente, a mudança prática de sala de aula é um caminho lento e começa
por refletirmos sobre nossa postura como professores: O que queremos? Para que ensinamos?
Para quem ensinamos? Por que ensinar aquilo que ensinamos? O final do caminho não existe,
porque ele é construído no próprio ato de ensinar. Cada professor, assim como cada aluno, na
construção e uso da língua mãe, terá uma postura e prática diferenciada. A diferenciação, no
entanto, não significa abuso ou estereotipia do espontaneísmo. O importante é identificar-se
na diferenciação.
“Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de quem,
estudando, o escreveu. É perceber o condicionamento histórico-
sociológico do conhecimento. (...) Estudar não é um ato de consumir
idéias, mas de criá-las e recriá-las”.
Paulo Freire
5.2. Recomendações
À vista dos resultados e das conclusões deste estudo, recomendamos que:
1. A preocupação no aprimoramento cada vez maior do uso da Língua Portuguesa no
processo do ensino e da aprendizagem não seja exclusiva dos professores desta disciplina,
mas de todos os docentes convictos de que ao declínio do vernáculo corresponderá
inevitavelmente o declínio das demais áreas de conhecimento.
2. Se enriqueçam os currículos com metodologias alternativas, tais como palestras, debates,
seminários, cursos paralelos, evitando sua limitação e simples aulas e computando-se tais
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atividades como créditos, ou seja, como notas para efeito de avaliação bimestral ou
semestral.
3. O ensino de Língua Portuguesa seja desenvolvido de maneira a propiciar novos desafios
aos alunos. Escola e professores em geral devem ser mais dinâmicos, incentivando, por
exemplo, os alunos a escreverem peças teatrais, músicas, poesias, jornal escolar, criar
dicionários de palavras desconhecidas.
4. O (a) professor (a) de Língua Portuguesa utilize-se de metodologias e tecnologias que
propiciem aos alunos oportunidades múltiplas de linguagem verbal e não-verbal. Esta
compreensão permitirá que os aprendizes participem e usufruam os bens da sociedade,
incluindo os vários falares, tanto da língua culta como de qualquer outra variante da
mesma.
5. A Língua Portuguesa, em Cruzeiro do Sul, seja ensinada a partir de uma visão bem ampla,
que seria a de reconhecer o direito que tem o homem deste Recanto Amazônico de
apropriar-se, ele também, da norma culta da língua e possa participar, em condição de
igualdade, da vida social do país, sem precisar abandonar a linguagem regional, ou seja, o
seu modo particular de usar a língua.
6. Cursos de relações humanas sejam realizados com professores e alunos no sentido de
aperfeiçoar sempre mais o relacionamento professo/aluno que nesta investigação foi
considerado regular por 55% dos alunos entrevistados.
7. Os conteúdos a serem desenvolvidos nas aulas de Língua Portuguesa sejam revistos e
planejados de forma tal que os alunos possam construir as competências básicas
necessárias tanto para o ingresso no Ensino Superior quanto no mercado de trabalho.
8. Antes que qualquer decisão seja tomada quanto à implantação do Ensino-Baseado-em-
Competência, reúna-se o corpo docente de Língua Portuguesa, para tomar decisões sobre
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que competências desenvolver nos alunos e que programas e metodologias facilitariam o
alcance das mesmas.
9. A Secretaria de Estado de Educação continue oferecendo os cursos sobre os PCNEM e os
professores de língua materna, assim como os demais, tenham mais condições de realizar
um trabalho eficiente com as competências em Língua Portuguesa estabelecidas pelos
próprios PCNEM, e os alunos sejam capazes de construírem tais competências no decorrer
do Ensino Médio e em suas vidas.
10. Sejam feitas algumas adaptações das propostas estipuladas pelos PCNEM às nossas
peculiaridades regionais, econômicas e sociais para maior sucesso e desempenho dos
mesmos nas escolas de Ensino Médio em Cruzeiro do Sul, uma região com
particularidades tão singulares e tão diferentes dos grandes centros urbanos do país.
11. Os procedimentos de avaliação, incluindo a seleção ou construção dos instrumentos de
medida, sejam cuidadosamente replanejados de acordo com os objetivos propostos pelo
Ensino-Baseado-em-Competência e pelos PCNEM de 1997, a fim de propiciar aos alunos
uma avaliação consoante com a realidade dos mesmos.
12. O ensino de língua materna alcance uma nova era onde seja ensinada a norma padrão sim;
mas que sejam igualmente respeitados os vários valares dos alunos. Assim, entendamos de
uma vez que “O domínio da língua, oral e escrita, é fundamental para a participação social
e efetiva (...) Ao ensiná-la, a escola tem a responsabilidade de garantir aos seus alunos o
acesso aos sabores lingüísticos, necessários para o exercício da cidadania, direito
inalienável a todos” (PCNs v.2, p. 15).
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