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1 Mário de Andrade e a estética do inacabado Roniere Menezes CEFET-MG 9. Aquilo que já foi é aquilo que será e aquilo que foi feito aquilo se fará E não há nada novo sob o sol 10. Vê-se algo se diz eis o novo Já foi era outrora fora antes de nós noutras-eras Eclesiastes. Salomão. Trad: Haroldo de Campos 1 O inacabamento da criação artística foi algo amplamente discutido na estética marioandradina. Ao propor a idéia da “traição da memória”, Mário de Andrade acredita que a produção artística é, antes que a manifestação de uma inspiração divina ou o desabrochar de um sentimento ou de um pensamento extremamente original, a falha de uma memória arquivista. Esta funciona, durante a criação artística, como agenciadora das leituras, das vivências e convivências, daquilo que recebemos, armazenamos, mas que também esquecemos. É na falha da memória, que esquece em parte, mistura, seleciona, redefine, que está uma das peças-chave para a compreensão do processo criativo. Mário de Andrade, em O Banquete, assim se refere ao instante criativo e à idéia de arte livre: (...) a “criação livre” é uma quimera, porque ninguém não é feito de nada, nem de si mesmo apenas; criação não é uma invenção do nada, mas um tecido de elementos memorizados, que o criador agencia de maneira diferente, e quando muito leva mais adiante. (...) A criação, com toda a sua liberdade de invenção que eu nego, não passa de uma reformulação de pedaços de memória. 2 Ao dizer que a criação “não passa de uma reformulação de pedaços de memória”, o escritor endossa sua posição de que a arte deve perder seu status de nobreza, sua aura divina e original e ser vista de maneira mais próxima ao artesanato. Um outro ponto a ser pensado sobre a passagem citada é a busca de Mário de Andrade 1 CAMPOS, Haroldo de. Qohélet/ O-que-sabe / Eclesiastes, 1990. 2 ANDRADE, (M). O banquete, p. 150.

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Mário de Andrade e a estética do inacabado

Roniere Menezes – CEFET-MG

9. Aquilo que já foi é aquilo que será e aquilo que foi feito aquilo se fará E não há nada novo sob o sol

10. Vê-se algo se diz eis o novo Já foi era outrora fora antes de nós noutras-eras

Eclesiastes. Salomão. Trad: Haroldo de Campos1

O inacabamento da criação artística foi algo amplamente discutido na estética

marioandradina. Ao propor a idéia da “traição da memória”, Mário de Andrade acredita

que a produção artística é, antes que a manifestação de uma inspiração divina ou o

desabrochar de um sentimento ou de um pensamento extremamente original, a falha de

uma memória arquivista. Esta funciona, durante a criação artística, como agenciadora

das leituras, das vivências e convivências, daquilo que recebemos, armazenamos, mas

que também esquecemos. É na falha da memória, que esquece em parte, mistura,

seleciona, redefine, que está uma das peças-chave para a compreensão do processo

criativo.

Mário de Andrade, em O Banquete, assim se refere ao instante criativo e à

idéia de arte livre:

(...) a “criação livre” é uma quimera, porque ninguém não é feito de nada, nem de si mesmo apenas; criação não é uma invenção do nada, mas um tecido de elementos memorizados, que o criador agencia de maneira diferente, e quando muito leva mais adiante. (...) A criação, com toda a sua liberdade de invenção que eu nego, não passa de uma reformulação de pedaços de memória. 2

Ao dizer que a criação “não passa de uma reformulação de pedaços de

memória”, o escritor endossa sua posição de que a arte deve perder seu status de

nobreza, sua aura divina e original e ser vista de maneira mais próxima ao artesanato.

Um outro ponto a ser pensado sobre a passagem citada é a busca de Mário de Andrade

1 CAMPOS, Haroldo de. Qohélet/ O-que-sabe / Eclesiastes, 1990. 2 ANDRADE, (M). O banquete, p. 150.

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pelo rompimento com a aura do artista que se vê superior à própria obra. O problema da

vaidade na arte é que “em vez de uma atitude artística, é uma atitude sentimental. De

forma que (...) a obra de arte quase desaparece ante essa desmedida inflação e

imposição do eu”.3 A arte só se tornaria humana ao destruir a apologia do

individualismo.

Em relação à elaboração de Macunaíma, é o próprio Mário de Andrade quem irá

desconstruir sua própria aura de criador original, ao se “auto-denunciar” em artigo do

Diário Nacional, datado de 20 de setembro de 1931 (Macunaíma é publicado em 1928),

endereçado a Raimundo Moraes. Em artigo anterior, Moraes, estudioso do folclore

nacional, procura utilizar-se da estratégia retórica de afastar-se do enunciado, ao

escrever que alguns intelectuais estavam acusando o autor paulista de plágio na

confecção de Macunaíma e procurava em seu texto defendê-lo contra as difamações.

Andrade percebe o jogo tramado e satiriza o seu “querido defensor”. Nesse artigo,

expõe sua estética da “traição da memória”:

Copiei sim, meu querido defensor. O que me espanta e acho sublime de bondade, é os maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, restringindo a minha cópia a Koch-Grüenberg, quando copiei todos. E até o sr. na cena da Boiúna. Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente.(...) 4

Para o autor é muito tênue o limite que separa a criação do plágio. Ao quebrar as

barreiras da autoria literária, Mário de Andrade questiona o próprio termo propriedade,

que aqui pode ser entendido também no sentido social e econômico. Ao trazer a

discussão para a questão da descoberta do país — ou invasão — o autor questiona e

satiriza o valor do termo posse e levanta a discussão sobre a influência da razão

européia na tradição literária brasileira, que era preciso — num gesto de esquecimento

macunaímico — trair e perverter:

Enfim, sou obrigado a confessar duma vez por todas: eu copiei o Brasil, ao menos naquela parte em que me interessava satirizar o Brasil por meio dele mesmo(...).Meu nome está na capa do Macunaíma e ninguém o poderá tirar. Mas só por isso apenas o Macunaíma é meu. 5

3 ANDRADE, (M). O baile das quatro artes, p. 32. 4 ANDRADE, (M). A Raimundo Moraes. Diário Nacional, domingo, 20 de setembro de 1931. In: Taxi e

outras Crônicas no Diário Nacional. Org. ANCONA LOPES, Telê Porto, 1976. p. 433-435. 5 Idem. p. 433-435.

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O conceito de plágio é discutido amplamente na estética marioandradina,

inclusive no sentido de questionar sua existência, já que é difícil desvencilhar-se de sua

voz opressora. Esta parece querer continuar inscrevendo sua marca em outros tempos e

em vários lugares de enunciação. Se é onipresente, o plágio não existe, simplesmente

porque sempre existiu. A melhor maneira de fugirmos à contravenção do plágio é

assumi-lo e tratá-lo com naturalidade. O desrecalque da idéia do plágio é uma maneira

de a arte se tornar mais livre, desvencilhar-se do virtuosismo, da assinatura individual e

recuperar seu valor de expressão coletiva.

Mário confessa a Manuel Bandeira ter “pastichado” o ritmo melódico da

composição “Cabôca de Caxangá”, de Catullo da Paixão Cearense, em sua única

composição musical, denominada “Viola Quebrada”. Relata também, entre outras

histórias, o episódio de que uma vez, em companhia do pintor Lasar Segall, cantarolava

um aboio cearense que haviam lhe mandado e o pintor continuou cantarolando em russo

a mesma cantiga, “pois as linhas melódicas coincidiam inteiramente entre o aboio e uma

canção russa”.6 A cultura popular não pode ser vista como “pura”, essencialista e

germinada nos confins do sertão. É fruto de produção coletiva, que há séculos vem

fazendo “apropriações, seleções e sínteses criativas”.7

Laurenty Jenny irá definir intertexto como um “texto absorvendo a

multiplicidade de textos, embora centrado num só sentido”.8 Uma reflexão que pode ser

suscitada é a respeito da originalidade dos textos. Se todo texto é um intertexto, fica

difícil definirmos a originalidade que pode estar sempre em outro lugar. Mas, ao

reacomodar os elementos disponíveis, embaralhá-lhos e dispô-los sob nova

configuração, estaria presente a partir da idéia que Mário de Andrade usa do “fazer

melhor” a originalidade. No caso, a palavra não encerra a idéia de uma fonte

primeira, mas sim de um diferencial.

Otávio Paz nos chama a atenção para o caráter paradoxal do jogo intertextual,

que se apresenta ao mesmo tempo como ausência e marca de originalidade:

6 ANDRADE, (M). Música, doce música, p. 274. 7 WISNIK. Música: o nacional e o popular na cultura brasileira, p. 147. 8 JENNY, Laurent. A estratégia da forma, p. 23.

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Cada texto é único e, simultaneamente, é a tradução de outro texto. Nenhum texto é inteiramente original, porque a própria linguagem, na sua essência, já é uma tradução: primeiro, do mundo não-verbal e, depois, porque cada signo e cada frase traduzem outro signo e outra frase. Mas esse raciocínio pode ser invertido sem perder validade; todos os textos são originais porque cada tradução é diferente. Cada tradução é, até certo ponto, uma invenção, e assim constitui um texto único. 9

É comum o trabalho artístico se fazer a partir da repetição, de maneira pessoal,

daquilo que, inicialmente, o artista achou que era “autêntico” e que na verdade era uma

espécie de citação. É através do ato de repetir com variações que vai surgindo a

“diferença”, a nova formulação.

A personagem Pirrre Menard assinala, por meio da escrita de Jorge Luís

Borges,10 que “pensar, analisar, inventar” passam pelo critério de “entesourar antigos e

alheios pensamentos”. Não há aí nada de anormal ou condenável, pois a inteligência

respira normalmente dessa forma. Todo homem, para Menard, “deve ser capaz de todas

as idéias (...)”.11 Essa sede de saber deve contar, necessariamente, com a experiência,

visão de mundo e criação de outros escritores, por exemplo, que se deseja “trair”, que se

deseja trazer para junto da nova voz que quer se impor como “autêntica”. A transgressão se

aliaria aí à vontade de saber presente na confecção artística. Nesse sentido, o processo

criativo é também, ou talvez antes de tudo, um processo de aprendizagem, de

conhecimento.

Ao trabalharmos com a idéia da “traição da memória”, da estética do inacabado na

obra marioandradina, não podemos nos esquecer do valor das viagens feitas pelo musicólogo.

O turista Mário conhece “Oropa, França, Bahia” sem ter nunca saído do país.12 Mas conhece

muito concretamente a vida e os afazeres de povos de diversas regiões brasileiras. Como

exemplo, podemos citar as viagens do escritor a Minas Gerais (Mário esteve no estado

em 1919, 1924, 1939 e 1944) e ao Norte e Nordeste do país, entre 1927 e 1929.

Na viagem imaginária e na real, o escritor turista é um devorador contumaz tanto de

técnicas quanto de rituais, tanto da estética artística das vanguardas quanto da estética do

cotidiano, aprendida nas ruas com as pessoas humildes. A conhecida “fúria de saber”

marioandradina era devoradora de textos-paisagens, exposições artísticas, concertos,

teorias estéticas, estruturas lingüísticas e estilos literários. Fazendo anotações para que as

9 PAZ, Otávio. A nova analogia: poesia e tecnologia. In: Convergências; ensaios sobre arte e literatura, 1991. p. 150. 10 BORGES. Ficções, p. 38. 11 BORGES. Ficções, p. 38. 12 Na verdade, Mário de Andrade faz uma curta passagem por Iquitos, no Peru, durante sua viagem etnográfica à Amazônia, em 1927.

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notas da melodia popular não se perdessem e pudessem dialogar com aquelas outras de sua

formação pianística, o maestro passeia por escalas modais e tonais. Transcreve rituais

africanos, encanta-se com os cocos nordestinos, redescobre Aleijadinho, valoriza

esteticamente o congado, o bumba-meu-boi, e descreve o “Mundo Musical” erudito de

São Paulo e Rio de Janeiro.

Como um nômade, em cada trecho do trajeto em que encontra solo firme, terra

produtiva, lança suas sementes, dissemina idéias, colhe “sabença” e parte em busca de

outras terras, desgeografizando assim os limites territoriais, cruzando saberes. Ao

caminhar, tece a lenta teia da intertextualidade, estabelecendo elos entre as mais

diversas narrativas. Os trajetos, indefinidos, buscam terras próximas, distantes, ou

voltam-se a um ponto já conhecido. É o entrecruzamento das diferentes “narrativas”

ouvidas, esquecidas em parte, associadas a outras apreendidas em um passado remoto

que vai dando direção ao trajeto do viajante, constituindo seu “repertório”. No processo

de reacomodar e conseguir estabelecer um novo sentido para as “influências” recebidas

está presente a autoria do artista.

Em seu projeto de arte nacional, Mário propõe que os compositores devam

pesquisar e se apropriar de materiais sonoros tipicamente brasileiros e, posteriormente,

transformá-los, reelaborá-los de forma erudita. Essas composições devem servir para

fixar a identidade do país, ao serem reconhecidas internacionalmente como brasileiras.

A imagem de nação, de arte e de artista são desenhadas, pontuando-se o momento

histórico pelo qual passava o país, que, acreditava-se, precisava fortalecer seu caráter para

poder ingressar no “concerto das nações” dando sua contribuição. Por outro lado, o

fortalecimento do caráter nacional justifica-se buscando forças no “sal da terra”. Para

expressar o Brasil, revelar e valorizar a produção do país, é necessário, contudo, um

método de pesquisa. Empreender a busca da cultura local não visa apenas o documento,

mas, no caso da música, as “normas de compor”, as “formas fixas”, os “esquemas

obrigatórios”, presentes na música da tradição popular. O conceito de “sabença” –

entendido como a via analítica, o método de pesquisa que permite o acesso e o

entendimento da maneira de pensar da tradição – ao mesmo tempo em que amplia o

conceito de arte e de conhecimento, valorizando a consciência criativa nacional, faz a

proposição de uma lógica que perverta as influências estrangeiras de forma

“espertalhona”. O musicólogo não se interessa pelo passadismo, pelo “folclorismo”,

mas pela invenção, pelo “fazer milhor”, pelos “melhores achados” da tradição popular.

Ao serem incorporados em músicas nacionais eruditas, esses elementos populares

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devem ser antes entendidos em sua organização interna, em seus processos rítmico-

melódicos. Valorizam-se, dessa maneira, métodos de composição anti-acadêmicos e um

pensamento mais natural, menos pautado pelos critérios da civilização. Evitam-se,

assim, a citação aleatória, o exotismo, o “negrismo” que não contribuiriam em nada

para a configuração de uma arte brasileira.

O escritor não se fecha ao trabalho com a tradição popular, está sempre aberto

à cultura erudita, moderna e às tecnologias importadas, que dariam força, equilibrando o

ócio criativo brasileiro com a lenta descoberta do conhecimento. O progresso urbano e

as influências estrangeiras deveriam passar pelo critério da “traição da memória”, da

transformação crítica. Deveriam ser devorados e reapresentados de forma que pudessem

enriquecer esteticamente a produção cultural local. O virado da cultura brasileira

deveria ser mexido com a colher torta da estética canibal inacabada.

Acreditamos que a tentativa de associar o pensamento “pré-lógico”, o ócio

criativo com a consciência intelectual – a “sabença” tropical e o saber europeu – está

ligada tanto à descoberta e valorização da “bagagem cultural” do povo brasileiro quanto

ao canibalismo da tradição estrangeira. Parece-nos que, para Mário de Andrade, o sabor

e o saber deveriam sempre andar juntos. Aprender e produzir com alegria e seriedade,

com leveza e firmeza são eixos do projeto marioandradino que define como charitas a

paixão, a entrega visceral que o artista deve ter em relação ao seu material de trabalho e

como estesia a sede de um fazer constante, o espírito crítico e criativo capaz de

reformular e questionar não só conteúdos apreendidos, mas também as próprias

criações, que nunca devem mostrar-se acomodadas. Aqui, notamos a ligação entre a

poética (proposição artística ligada a um momento determinado) e a estética (questões

ligadas à imanência do material artístico).

Mário enfatiza a técnica como síntese do artefazer. A expressão técnica deve

colocar-se como mediadora da relação entre a subjetividade do criador e a objetividade

do material de trabalho. Ela deve controlar o derramamento sentimental, o excesso de

formalismo e a exagerada preocupação social. Mário pretendia que a arte moderna

combinasse aquilo que Chico Antônio, cantador do Rio Grande do Norte, fazia de forma

inconsciente. Cantarolando seus cocos, emboladas e desafios no ritmo de seu ganzá,

Chico Antônio exemplificava que a descoberta da cultura popular brasileira trazia a

marca da novidade, assim como era novidade a descoberta da vanguarda artística

importada. Ali havia poder de comunicação, “traição da memória” e técnica do

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inacabado, características surrealistas, “moderníssimas” e também um ethos, um

vínculo com a coletividade.

Em Mário de Andrade não existe liberdade de pensamento se o artista não tiver

desenvolvido uma técnica de pensar. A técnica liga-se à sua consciência profissional, e

a beleza é conseqüência de sua aplicação, não finalidade maior.

Mário de Andrade, ao propor que a produção artística parta de uma

“inspiração” e passe pelo trabalho intelectual, chama a atenção para um terceiro

elemento: o trabalho técnico. Sobre o valor da técnica e do artesanato, na conferência

“O artista e o artesão”,13 afirma que o “artesanato” consiste no conhecimento pelo

artista do seu material de trabalho, o que legitima o ensino das artes. “Virtuosidade”

seria o “conhecimento e prática” de várias técnicas históricas do trabalho de criação,

seria o estudo da “técnica tradicional”. Segundo o escritor, embora seja bastante útil e

ensinável, não é imprescindível. Já a “solução pessoal do artista” compreenderia a

técnica encontrada por ele para o desenvolvimento de seu trabalho. Estaria relacionada

ao talento, “embora não seja todo ele”. Para Mário, é “de todas as regiões da técnica a

mais sutil, a mais trágica, porque ao mesmo tempo imprescindível e inensinável.” A

conjugação desses elementos visavam à melhoria não só da arte como da coletividade.

A criação artística, do ponto de vista de Mário de Andrade, é a soma de inspiração,

consciência e trabalho técnico que vise à clara expressão.

Toda obra de arte é inacabada não apenas porque ela pode sempre ser

retrabalhada, reburilada; pode atrair, seduzir e se completar com o leitor. Mas, antes,

porque cada texto se configura, em sua imanência, como ausência, como metáfora da

falta humana que busca se completar com o traço das letras, com o desenho das notas,

com a dicção da voz. O espaço vazio de uma folha de papel nos mostra sempre a

grandeza do branco infinitamente à procura de um traço, um rabisco, uma marca, um

preenchimento. Mas, como no desejo, nunca se esgota a procura. A ilha a que se quer

chegar parece estar sempre além do espaço que a separa do barco. Nesse sentido, a

escrita, a melodia, em suma, os textos que circulam socialmente, funcionam como uma

miragem a que nunca se chega de forma inteira. Eles nunca serão finalizados. Estão

sempre à espera de serem recriados. Assim como nos palimpsestos, é necessário haver o

esquecimento para que aconteça a lembrança. Conhecendo os ventos do mar, os

mecanismos de funcionamento do barco, relendo mapas de outras “viagens” é que se

13 ANDRADE, (M). O baile das quatro artes, p. 12-15.

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chega ao nosso texto/ilha/miragem. A ilha é tanto mais real quanto mais nos desviarmos

da rota dos mapas tradicionais. Quanto mais inventarmos o nosso “fazer milhor”,

trairmos a memória apreendida, mais “original” torna-se a ilha. A criação artística, a

autoria, é, portanto, mais a maneira, a possibilidade de cada viajante, chegado ao porto,

ordenar, pintar e decorar as casas, igrejas, praças e prédios públicos – que já existiam na

ilha, ordenados pelo olhar de outro viajante. É de dentro dos muros que cercam a

paisagem que o artista, tomado pelo espírito de um fazer constante, devora, transforma,

cria sua obra original. A ilha, vista aqui como texto, é menos inacabada na forma em

que se apresenta que pelo olhar do viajante. Este, ao olhar para ela, sempre pode

enxergar outra disposição para os elementos que a compõem. Depende, para isso, da

posição “geográfica” em que se encontra.

Estamos sempre imersos na “rede” da linguagem e da cultura. Mesmo quando

estamos expressando os mais íntimos pensamentos e acreditamos estar produzindo algo

novo, estamos, de certa forma, ecoando o antigo, nossa vivência e influências recebidas,

traindo a memória dos ancestrais. Isso explica o fato de o pensamento marioandradino

passar da dualidade inspiração/intelecto para uma compreensão mais ampla do processo

criativo: tanto no momento da inspiração já estão presentes aspectos intelectuais, certas

estruturas lógicas construídas ao longo da vida, quanto no momento do trabalho

intelectual o artista terá novos insights, novas inspirações. Estas, por sua vez, trazem

também certa “determinação”.

O artista, porém, não pode ficar passivo e reproduzir as estruturas sociais,

endossando a ditadura da linguagem. É de dentro da “gramática” cultural que ele deve

dar seu grito e propor novos olhares para a realidade, procurando criar um novo mundo

dentro de outro já gasto por séculos de história. É a tentativa, a busca da liberdade da

arte que faz o artista. É aí que está presente a estesia. A arte livre pode nunca chegar a

existir, mas é no impulso em sua direção que está presente o valor da criatividade.

Ao procurarmos estabelecer alguns diálogos entre a teoria crítica marioandradina

e a cultura contemporânea, notamos que o autor não se prende ao contexto histórico e

cultural do modernismo. As idéias do escritor nos ajudam a apreciar a expressão

cultural do nosso tempo. Mário é um pensador brasileiro, um intelectual que fez seu

trajeto às margens do pensamento acadêmico que pode, muitas vezes, subjugar o

espírito criador. Foi um autodidata. Daí algumas falhas de métodos lógicos que, por

outro lado, propiciaram um olhar diferencial para o país. Mário de Andrade foi, antes de

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tudo, alguém que procurou compreender melhor o Brasil, mesmo que essa

“compreensão” apresente, muitas vezes, mais o olhar de um artista que o de um teórico.

Conhecer melhor o tortuoso pensamento de Mário de Andrade é também uma

forma de canibalismo. Mário é sinônimo de consciência ética e sensibilidade apurada

que nos fortalecem no contato com um mundo em que a chamada “indústria cultural”

nos apresenta - dentro da diversidade de riquezas artísticas existentes - uma produção

cada vez mais epidérmica.

Fontes Bibliográficas:

ANDRADE, Mário de. O baile das quatro artes. 3.ed. São Paulo: Martins/MEC, 1975.

ANDRADE, Mário de. O banquete. 2.ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1989.

ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Martins, 1962.

ANDRADE, Mário de. Música, doce música. 2.ed. São Paulo – Brasília: Martins/INL,

1976.

ANDRADE, Mário. A Raimundo Moraes. Diário Nacional, domingo, 20 de setembro

de 1931. In: Taxi e outras Crônicas no Diário Nacional. Org. ANCONA LOPES, Telê

Porto. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1976.

BORGES, Jorge Luís. Ficções. 4. ed. Porto Alegre/Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1986.

CAMPOS, Haroldo de. Qohélet/ O-que-sabe / Eclesiastes. São Paulo: Perspectiva,

1990.

JENNY, Laurent. A estratégia da forma, p. 23. Apud: BRANDÃO SANTOS, Luis

Alberto. Texto: Intertexto. In: Littera – Língüística e Literatura. Faculdade de Ciências

Humanas de Pedro Leopoldo, vol. 1, nº 1.

PAZ, Otávio. A nova analogia: poesia e tecnologia. In: Convergências; ensaios sobre

arte e literatura. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

MENEZES, Roniere. Notas de um turista canibal: Mário de Andrade e a estética do

Inacabado. Dissertação de mestrado em Estudos Literários – FALE/UFMG, 2000.

WISNIK. Música: o nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense,

1982.