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Mark Hackard - O Bombardeiro da Paz Nos últimos meses de 2010, os EUA haviam intensificado sua campanha aérea sobre terras tribais pashtun que se situam ao longo de uma montanhosa e parcamente definida fronteira paqui-afegã. No curso de 102 dias, 58 ataques contra operativos da Al-Qaeda e do Talibã (bem como contra um número alto, porém desconhecido, de inocentes) foram realizados pela Força Aérea e pela frota de veículos aéreos não- tripulados da CIA. Tanto jihadistas como civis são incinerados por mísseis hellfire sem muita atenção da mídia, e soldados e fuzileiros americanos que caem em combate não tem como esperar coisa muito melhor. Porém, uma morte conectada à guerra no Hindu Kush certamente atraiu atenção em Washington: a de Richard Holbrooke, o Representante Especial do Departamento de Estado para o Afeganistão e o Paquistão. Holbrooke, responsável pela coordenação diplomática do conflito, morreu de uma aorta rompida em 13 de dezembro. Desde então, a imprensa e a administração Obama derramaram torrentes de elogios sobre esse "gigante da diplomacia americana". Mas talvez o tributo mais adequado ao homem tenha sido o papel cada vez maior de drones assassinos na execução de políticas, como relatado desde o noroeste do Paquistão. Apesar de suas experiências anteriores no Vietnã, Richard Holbrooke passou a crer firmemente em redenção por poder aéreo coercitivo. No bombardeio há progresso; no bombardeio deveremos encontrar a paz. À luz de seu zelo missionário, as realizações e histórico de Holbrooke merecem exame. Ele foi, como o estudioso dos Bálcãs Srdja Trifkovic notou, um arquiteto central e de certas maneiras a personificação do intervencionismo americano. À parte seu status elevado em Foggy Bottom, Holbrooke representava um nexo de governo, interesses de Wall Street e influência de ONGs. Nessa capacidade, ele foi por décadas um impositor efetivo e enérgico da Pax Americana. Onde projetos geopolíticos americanos cruzavam com pontos de crise na Eurásia, Holbrooke era enviado para explorar a situação. Seus métodos de negociação consistiam principalmente na apresentação de ultimatos e punições correspondentes por desobediência. A década de 90 seria a década em que Holbrooke ganharia sua fama. Conforme a antiga Iugoslávia se despedaçava em conflitos étnicos e religiosos, os EUA buscavam impôr sua dominação sobre a região. As guerras balcânicas daquela década foram algo brutal e complexo, mas para Holbrooke e a administração Clinton era tudo muito simples: os sérvios precisam ser diminuídos. Aqui, também, estava a perfeita

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Nos últimos meses de 2010, os EUA haviam intensificado sua campanha aérea sobre terras tribais pashtun que se situam ao longo de uma montanhosa e parcamente definida fronteira paqui-afegã. No curso de 102 dias, 58 ataques contra operativos da Al-Qaeda e do Talibã (bem como contra um número alto, porém desconhecido, de inocentes) foram realizados pela Força Aérea e pela frota de veículos aéreos não-tripulados da CIA.

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Mark Hackard - O Bombardeiro da Paz

Nos últimos meses de 2010, os EUA haviam intensificado sua campanha aérea sobre terras tribais

pashtun que se situam ao longo de uma montanhosa e parcamente definida fronteira paqui-afegã. No

curso de 102 dias, 58 ataques contra operativos da Al-Qaeda e do Talibã (bem como contra um

número alto, porém desconhecido, de inocentes) foram realizados pela Força Aérea e pela frota de

veículos aéreos não-tripulados da CIA.

Tanto jihadistas como civis são incinerados por mísseis hellfire sem muita atenção da mídia, e

soldados e fuzileiros americanos que caem em combate não tem como esperar coisa muito melhor.

Porém, uma morte conectada à guerra no Hindu Kush certamente atraiu atenção em Washington: a

de Richard Holbrooke, o Representante Especial do Departamento de Estado para o Afeganistão e o

Paquistão.

Holbrooke, responsável pela coordenação diplomática do conflito, morreu de uma aorta rompida em

13 de dezembro. Desde então, a imprensa e a administração Obama derramaram torrentes de elogios

sobre esse "gigante da diplomacia americana". Mas talvez o tributo mais adequado ao homem tenha

sido o papel cada vez maior de drones assassinos na execução de políticas, como relatado desde o

noroeste do Paquistão. Apesar de suas experiências anteriores no Vietnã, Richard Holbrooke passou

a crer firmemente em redenção por poder aéreo coercitivo. No bombardeio há progresso; no

bombardeio deveremos encontrar a paz.

À luz de seu zelo missionário, as realizações e histórico de Holbrooke merecem exame. Ele foi,

como o estudioso dos Bálcãs Srdja Trifkovic notou, um arquiteto central e de certas maneiras a

personificação do intervencionismo americano. À parte seu status elevado em Foggy Bottom,

Holbrooke representava um nexo de governo, interesses de Wall Street e influência de ONGs. Nessa

capacidade, ele foi por décadas um impositor efetivo e enérgico da Pax Americana. Onde projetos

geopolíticos americanos cruzavam com pontos de crise na Eurásia, Holbrooke era enviado para

explorar a situação. Seus métodos de negociação consistiam principalmente na apresentação de

ultimatos e punições correspondentes por desobediência.

A década de 90 seria a década em que Holbrooke ganharia sua fama. Conforme a antiga Iugoslávia

se despedaçava em conflitos étnicos e religiosos, os EUA buscavam impôr sua dominação sobre a

região. As guerras balcânicas daquela década foram algo brutal e complexo, mas para Holbrooke e a

administração Clinton era tudo muito simples: os sérvios precisam ser diminuídos. Aqui, também,

estava a perfeita oportunidade para se exercer poder americano em prol do progresso humano. Nos

vales montanhosos do sudeste da Europa, os fantasmas da história só poderiam ser exorcizados com

uma barulhenta demonstração de força. Como um profeta de Washington, Holbrooke iluminaria o

caminho para uma Sociedade Aberta com munições guiadas por laser.

Os papeis nessa peça teatral moralista já estavam distribuídos: muçulmanos bósnios virtuosos e

vitimizados, croatas mais ou menos toleráveis, e sérvios malignos, até mesmo selvagens. O fato de

que o presidente bósnio Alija Izetbegovic e seu par croata Franjo Tudjman eram gangsters do

mesmo molde que o sérvio Slobodan Milosevic não era registrado pelas elites da política externa

americana - o roteiro já estava escrito, e tinha que ser seguido. A direção desse cenário por

Holbrooke lhe garantiria seguidores no Ocidente, com os Acordos de Dayton de 1995 sendo projeto

seu.

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A fórmula favorita de Holbrooke de intimidação e bombardeio aéreo foi aplicada repetidamente para

forçar Belgrado a se submeter às demandas americanas, primeiro de criar o Estado bósnio e então de

separar o Kosovo da Sérvia em 1999. O seguinte pedido a seu colega Strobe Talbott esclarece

Holbrooke, amante e libertador da humanidade, em toda sua retidão beligerante:

"Este é um momento crítico para nós pessoalmente, nossa responsabilidade para com a nação e a

coisa certa a fazer. Dê-nos bombas para diplomacia. Dê-nos bombas para a paz. Precisamos

bombardear para tornar nossa diplomacia efetiva. E não nos segurarmos".

Seria um erro ver tal apelo como meramente outro exemplo do dito de Clausewitz sobre a guerra

como instrumento da política, pois ela está enraizada em uma visão muito mais ampla e de longo

alcance. O homem criado quaker por pais judeus ateístas desenvolveu uma fé inabalável na violência

redentora, a destruição revolucionária necessária para moldar um novo mundo. Nisso ele era uma

alma irmã dos radicais oitocentistas e neoconservadores contemporâneos como Paul Wolfowitz. O

desejo apaixonado de Holbrooke por bombas foi concedido, a influência americana na Europa

justificada, e novos micro-estados muçulmanos estabelecidos nos Bálcãs.

Holbrooke usualmente explicaria suas ambições políticas no contexto de sua história familiar e etnia.

Sua mãe havia fugido da Alemanha na década de 30, seu pai de Varsóvia. Um secularista convicto,

como muitos outros homens assim Holbrooke ainda assim se orgulhava de sua herança judaica e

evidentemente mantinha um forte laço emocional com Israel e o sionismo. E apesar de ele ter

nascido em Nova Iorque, em seu coração ele se identificava com o refugiado alienado.

Por insistência da mídia, pressupõe-se que devamos associar o falecido Holbrooke

fundamentalmente com compaixão e saudá-lo pro lançar seu nome por trás de inúmeras iniciativas

humanitárias. Ainda assim, demonstrações públicas de virtude não retratam plenamente o espírito da

carreira de Holbrooke e sua missão maior. Por trás da retórica moralista e de projetos de ajuda

dignos de celebridades estava uma clara veia de animosidade em relação à cultura tradicional e os

povos da Europa.

O que impulsionava Holbrooke tanto quanto simpatia por certas classes de vítimas era uma profunda

hostilidade ao cristianismo, principalmente pela civilização ortodoxa, que tem permanecido

significativamente fora da órbita americana. Assim, ele não foi apenas ativo mas entusiástico em

garantir que a Sérvia seria pulverizada por uma campanha aérea da OTAN e roubada da província do

Kosovo. Hoje o Kosovo é o maior conduíte europeu para a heroína afegã e um centro de tráfico

ilegal de órgãos, além de abrigar uma das maiores bases americanas no continente. Holbrooke

também nunca cansou de recomendar a entrada da Turquia na UE e era um promotor ativo de

proxies jihadistas na Europa ocupada.

Se uma política provavelmente antagonizaria a Rússia, Holbrooke provavelmente a apoiaria. Da

expansão da OTAN, a revoluções coloridas e programas de "sociedade civil" a tensões na Ossétia do

Sul, ele consistentemente buscava interferir na periferia de Moscou. Sérvios desafiadores e os

nacionalistas retrógrados no Kremlin tinham que conhecer seu lugar no Admirável Mundo Novo, e

precisavam assim ser punidos e humilhados até que abraçassem sua subjugação. Se a Rússia em

algum momento tivesse carecido dos meios de se defender, Holbrooke indubitavelmente teria estado

pronto para implementar o modelo Kosovo no Cáucaso.

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Todo o estilo e substância da obra de Holbrooke pode ser destilada em uma qualidade: não

compaixão, mas agressão. A antiga prática imperial de dividir para conquistar só foi ampliada pelo

discurso da ideologia dos "direitos humanos", e clipes de refugiados veiculados pela CNN serviam

como desculpa conveniente para lançar mísseis contra infraestrutura civil. Onde estava, então, a

lendária compaixão de Holbrooke por sérvios "expurgados" em Krajina e no Kosovo, ou por aqueles

sequestrados, executados e explorados como doadores de órgãos no mercado negro? E as vítimas da

Operação Força Aliada da OTAN? Elas não merecem a menor lembrança; nem, aliás, cristãos do

Levente ao Timor Leste. Holbrooke tinha pouco tempo para se importar com os massacres dos

timorenses na década de 70, enquanto ele estava obtendo caças contra-insurgentes para os assassinos

indonésios. Isso não é pacificação, mas predação.

O teórico russo da renovação cultural Ivan Ilyn descreveu os bolcheviques que tomaram o poder em

sua terra natal como aventureiros internacionalistas. Entre os supostos estadistas de nossa era,

Richard Holbrooke exibia a marca do messianismo impiedoso característico de um Lênin ou Trótski.

Ele, também, era um aventureiro internacionalista e o herdeiro espiritual de uma geração anterior de

homens que promoveram a causa da revolução global. A morte de Holbrooke na aventura afegã é

um prenúncio pouco sutil do que vem por aí: tal como o marxismo soviético, a ordem liberal marcha

de seu momento de exaltação à aniquilação em meio a um terreno familiar.

Comentaristas tem lamentado o vácuo na política externa americana causado pela saída de um

diplomata insubstituível. Em realidade há muito tem havido um nada sobrepujante no globalismo

americano; o próprio Holbrooke, a grande máquina de demolição, incorporava este fenômeno

melhor do que ninguém. Ele prestou serviços inestimáveis ao Império, tornando o mundo seguro

tanto para a MTV como para os mujahedin, para a Ikea e o ELK. O que permanece é uma trilha de

morte, as baixas infligidas para aproximar o homem a uma fraternidade de consumo, o composto

para um futuro perfeito de liberdade e igualdade.

Richard Holbrooke proferiu estas palavras em uma entrevista em 2010 para descrever o programa

político jihadista, mas ele não captou a ironia. Sua frase expõe tão bem quanto a longa guerra por

democracia universal:

"É puro niilismo. Eles não representam absolutamente nada além de destruição, e eles destroem as

vidas das pessoas deu ma maneira aleatória e insana".