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    vol. 12, n. 1, jun 2012, p. 24-35Em pauta

    Artista s avessas: a ao cultural em dilogo com a educao

    Isabel Marques1

    Resumo

    Discute-se um exemplo de ao cultural cujas referncias iniciais de concepo e realizao se deramno campo da educao. Revelados pela tica autobiogrfica da artista, aquilo que em princpio aludia tarefa e ao olhar do pedagogo, transforma-se em ao artstica e cultural. Traremos um recortepontual do espetculo Coreolgicas do Caleidos Cia. de Dana/SP para essa discusso, que traduzum artista s avessas: da pedagogia arte.

    Palavras-chave: dana, educao, dialogicidade

    Abstract

    This article discusses an example of cultural action which initial conception references were broughtfrom the Education field. Revealed by the artists point of view, what primarily could be seen as apedagogue look upon art is transformed into artistic and cultural action. Examples for discussion willbe drawn from the dance performance Choreologics by Caleidos dance co.

    Keywords: dance, education, dialogue

    Educao em dana

    Apesar das transmutaes de conceitos de tempo, espao e corpo advindos das

    experincias ps-modernas no campo da dana; mesmo tendo a produo contem-

    pornea de dana escancarado as fronteiras conceituais e de atuao de inmeros

    artistas; a despeito da literatura produzida nos ltimos 80 anos sobre processos de

    educao em dana ter varrido a reproduo mecnica de passos das salas de aula,

    em grande escala as prticas de educao na rea de dana pouco foram alteradas

    no ltimo sculo.

    Pais e mes orgulham-se de ter seus filhos matriculados em escolas de dana

    com modelo russo (leia-se rgido e famoso), delegando a educao dos mesmos a

    uma equipe de treinadores. Professores de escolas pblicas se desconsertam diante

    da ausncia de dicas do formador para montagem de uma coreografia a ser apresen-

    tada pelos alunos no fim do ano. Gestores de educao aprovam programas oficiais

    1 Diretora/coregrafa do Caleidos Cia. de Dana e do Instituto Caleidos, So Paulo/SP.

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    que propem sequncias didticas que garantiro passo a passo a atuao de seus

    professores na rea de dana. Milhares de artistas da dana s conhecem e reco-

    nhecem essa arte repetindo-a, executando seus passos exausto.

    A dana como sinnimo de repertrio fixo e imutvel e a educao como sin-

    nimo de treino cristalizado e acrtico esto longe de serem totalmente banidos ou at

    mesmo questionados do meio social mais amplo. A crtica que se faz a esse binmio

    (repertrio/treino) ainda est longe de alcanar em amplitude as academias de dana,

    os projetos sociais e governamentais, as escolas formais e at mesmo as companhias

    de dana. A expectativa do pblico, as crenas de professores e as prticas seculares

    de artistas na construo dessa dana treinamento repertrio acirra um ciclo vicioso

    de difcil ruptura.

    A cpia calada, sem compreenso, questionamento ou possibilidade de ressigni-

    ficao tem garantido o discurso do aprimoramento meramente tcnico, mecnico na

    manuteno de repertrios, sejam eles do coregrafo da companhia, do artista convi-

    dado, da tradio, do professor de sala ou das sequncias programadas pelos syllabus

    internacionais. A cpia mecnica de repertrios que passa por exerccios tcnicos

    rigorosos e nem sempre corretos ainda a prtica mais comum e disseminada no

    territrio da educao em dana. A cpia de passos dos repertrios de companhias

    consagradas s danas propostas pela mdia ainda o meio mais eficaz, contumaz

    e aceito pela grande maioria da populao para se efetivar o danar.

    As crticas que academicamente se fazem a esse tipo de ensino de dana no

    chegaram aos distantes rinces do pas, s academias de bairro, s escolas formais,

    aos projetos sociais e governamentais a ponto de tambm modificar o conceito de

    dana dessa populao. A dana continua sendo, para a grande maioria da popu-

    lao, uma sequncia de passos, uma coreografia, um repertrio a ser perpetuado

    pelos artistas, portanto, por professores e alunos.

    Desde 1988 tenho tentado entender esse quadro e propor outras formas de

    compreender o binmio dana/educao, focando a superao do descompasso entre

    o ensino de dana em suas diferentes instncias e a produo contempornea de

    dana. O grande vcuo entre educar e produzir arte no se estabelece somente nas

    academias privadas de dana (ou de ballet, como comumente so chamadas) dos

    rinces do Brasil ele est tambm presente em renomadas companhias de dana

    contempornea.

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    As palavras dana e educao nos remetem, inicialmente, a dois campos semn-

    ticos geradores de no mnimo duas reas de conhecimento, e a dois polos de atuao

    profissional aparentemente incomunicveis. Reza o senso comum que dana/arte e

    educao so dois modos distintos de ser e estar em sociedade. Do mesmo modo,

    convenes sociais distinguem dois grupos de pessoas com interesses nem sempre

    mtuos e com prticas sociopoltico-culturais nem sempre alinhadas: de um lado, os

    professores, do outro, os artistas (Marques, 2010b).

    Afastada do senso comum e das convenes sociais, compreendo dana

    e educao como campo hbrido, um binmio indissocivel que se multiplica em

    inmeros sentidos, entendimentos e aes (Marques, 1999, 2010ab). Nesse sentido,

    o campo da educao no passvel de reduo s atividades escolares, s acade-

    mias de dana, aos conservatrios ou aos projetos sociais em que a dana ensi-

    nada. A educao no se restringe ao ensino.

    Tendo como princpio que educar no se resume a ensinar, a educao tampouco

    no se restringe aos processos de ensino de aprendizagem articulados pela relao

    professor/aluno. Ao considerarmos dana e educao como um campo hbrido de

    conhecimento, estaremos tambm diante de todos os profissionais da dana envol-

    vidos no cenrio social de produo dessa arte (artistas, crticos, produtores, drama-

    turgos, iluminadores, curadores etc) atuando como educadores, no necessariamente

    como professores.

    Na perspectiva de que, conforme coloca Paulo Freire, educar impregnar de

    sentido cada ato cotidiano (apud Gadotti, 1998), artista e professor se aproximam de

    maneira significativa em suas aes sociopoltico-culturais: artistas tambm educam

    ao propor trabalhos de arte com o pblico, pois artistas impregnam e desdobram mlti-

    plos sentidos com suas propostas artsticas. As relaes entre artista/pblico, portanto,

    configuram-se com eminentemente educacionais, no necessariamente pedaggicas.

    Artista s avessas

    Sou formada em Pedagogia. Terminada a graduao, resolvi seguir os rumos da

    dana que j praticava desde os quatro anos de idade. A passagem pelo Laban Centre

    (hoje Trinity Laban), em Londres, fez-me compreender que meu caminho profissional

    no seria abandonar a educao, mas, sobretudo, caminhar no fio da navalha entre a

    dana e a educao.

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    De volta ao Brasil, o incio de minha carreira profissional deu-se na interseco

    da prtica pedaggica e da pesquisa acadmica: nos anos de 1991-92 fui assessora

    na rea de dana da gesto Paulo Freire na Secretaria Municipal de Educao de So

    Paulo, poca em que desenvolvia tambm pesquisa de doutorado na Faculdade de

    Educao da USP. Clareava-se, portanto, uma perspectiva de continuidade de carreira

    mais voltada para a rea de educao, embora atravessada pela dana.

    Nessa poca, deparei-me com a ausncia da dana nas escolas formais e

    tambm com conceitos e prticas sobre arte (e dana) absolutamente incompatveis

    e distantes daqueles propostos por Paulo Freire ou Rudolf Laban. Os contextos e

    conceitos de dana nas escolas pblicas de So Paulo se opunham e ao mesmo

    tempo ignoravam aqueles estudados em pesquisa de doutorado que se voltava para

    a arte contempornea, para o estudo da ps-modernidade em dana e em educao.

    Da reproduo de passos aolaissez-faire, as escolas e professores com que trabalhei

    se encontravam repletas de exerccios e prticas pedaggicas, mas ausentes de arte.

    Encontrei e ainda encontro nas escolas formais inmeros professores no faze-

    dores, no fruidores, no conhecedores de arte; professores at mesmo absolutamente

    incuriosos a respeito do sistema da arte. Encontrei alunos na mesma situao: executores

    de tcnicas, de passos e de repertrios. A situao das prticas de ensino nas academias

    e companhias de dana, assim como de projetos sociais, no se diferenciava muito disso.

    Reflexes, inquietaes, questionamentos e crticas ao mundo estabelecido do

    ensino de dana e situao em que a dana se encontrava nas escolas me moti-

    varam a investigar e adentrar o universo da produo artstica. Como encher de arte

    a escola? Seria a produo artstica capaz de interferir de alguma forma no ciclo

    vicioso da dana como tcnica que prepara para a execuo de repertrios?

    Considero-me uma artista s avessas: o chamamento para a educao (e tambm

    para o ensino) no veio em decorrncia apenas de uma necessidade de sobrevi-

    vncia, como para muitos artistas, nem mesmo como uma premncia de continui-

    dade de propostas artsticas a que a educao tambm serve. Sendo primeiramente

    pedagoga, deparei-me com uma realidade escolar totalmente desamparada sobre a

    dana e a arte em geral. Do meu ponto de vista, as relaes entre arte e educao

    nas escolas formais estavam distorcidas, no mnimo anacrnicas. Aprofundando-me

    no que acreditava ser um processo de educao em dana, comecei minha carreira

    artstica profissional propriamente dita.

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    Em 1996, terminada minha pesquisa de doutorado, fundei o Caleidos Cia. de

    Dana, em So Paulo, capital. Antes disso, em 1993, havia criado o embrio do que

    seria o Caleidos Cia. tendo produzido o espetculo Corpo Dcil, com a Bolsa Vitae

    de Artes. So, portanto, 18 anos trabalhando com o hibridismo entre a dana e a

    educao em situao de produo artstica. Com a fundao da cia., algumas das

    questes levantadas durante a pesquisa de doutorado vieram novamente tona2.

    Perguntas no mais explicitamente sobre as salas de aula, professores, escolas, mas

    sim voltadas para a produo artstica propriamente dita, para uma ao que pudesse

    dialogar de forma significativa com o universo do ensino e aprendizagem de dana,

    sem se restringir a ele.

    Tendo percebido que o universo da produo artstica da dana muitas vezes to

    convencional quanto o observado nas escolas, ou seja, tambm pautados pelo binmio

    tcnica/repertrio, fechados, prontos a serem cultuados, lancei-me o desafio de propor

    e experimentar processos de criao e fruio diferentes dos existentes: propus-me

    a pensar e a realizar processos/produtos atravessados por conceitos e vivncias de

    tempo, espao e corpo da contemporaneidade, que ao mesmo tempo (em uma mesma

    ao) dialogassem com conceitos e vivncias de uma educao contempornea.

    Para que possam tambm educar dentro de um contexto de relaes e vivn-

    cias contemporneas, como artistas poderiam experienciar outras formas de relao

    com o pblico que no as convencionais? Como o artista poderia abarcar as relaes

    hbridas entre dana e educao sem, contudo, escolarizar a arte? Essa proposta

    encheria de arte a escola, os professores, a comunidade escolar? Poderia essa a

    proposta cnica (produo artstica) contribuir para a transformao da escola crista-

    lizada, embalsamada em vivncias e conceitos de dana to distantes das vivncias

    contemporneas de tempo, espao e corpo de seus alunos?

    Tendo em vista as relaes hbridas entre educao e arte propostas pelo Caleidos

    Cia., vejo hoje que sua produo artstica se configura como uma ao cultural, como

    uma maneira de formar um pblico de posse de meios de acesso ao trabalho de

    criao, capaz de adotar uma posio crtica em relao aos produtos culturais e ao

    mundo em geral, assim como de participar ativamente na criao de bens simblicos

    (Pupo, 2009, p. 270). Vejo hoje que no foi o trabalho artstico que gerou uma ao

    2

    As reflexes tericas que antecedem essa produo esto em MARQUES, Isabel. A dana no contexto: umaproposta para a educao contempornea. Tese (Doutorado) Faculdade de Educao, Universidade de So

    Paulo, So Paulo, 1996.

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    educacional, mas sim uma postura educacional que se desdobrou em ao cultural,

    uma arte s avessas.

    Discuto a seguir alguns dos conceitos educacionais que pautaram e ainda

    pautam o desenvolvimento das produes artsticas/aes culturais do Caleidos Cia.

    de Dana: a dialogicidade e a articulao de conhecimento.

    Dialogicidade

    O dilogo o encontro dos homens para a pronncia do mundo(Freire, 1983, p. 79)

    A ideia de dilogo como pro-nncia implica que dilogos so portadores de mensa-

    gens (do latimpro-nuntio-are), estruturas ordenadas de signos que pode[m] propiciar a

    construo de significados (Brazil, 2007 apud Marques, 2010a, p. 133). A pronncia domundo diz respeito a construir significados, de acordo com o mundo (ibid).

    A impregnao de sentidos nos cotidianos, coloca Freire (1983), no pode reduzir-

    -se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco de tornar-se

    simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes (p. 93). A educao

    como uma ao reflexiva que acarreta a pronncia do mundo deve ser dialgica e no

    bancria. Nessa linha de raciocnio, a dialogicidade como encontro aponta para quea

    pronncia do mundo seja tambm um ato de criao, uma ao que gera e geradapela reflexo, sendo, portanto, tambm crtica (ibidem).

    A proposta dialgica de Freire para a educao vai de encontro a tudo que

    presencio e vivo no mundo convencional da dana. No que tange ao ensino, ainda

    presenciamos prticas de alunos depsitos de coreografias que no foram criadas a

    partir de encontros; so frequentes a execuo calada de passos que no tomam os

    danantes como pronunciantesdo mundo; propostas de ensino e aprendizagem que

    pressupem a ingenuidade e agonizam diante da crtica so a tnica da maioria dassalas de aula de dana.

    No campo da produo artstica, no so poucas as companhias de dana que

    ignoram sumariamente o conceito e a ao dialgicas, tanto no que tange s relaes

    coregrafo/intrprete quanto intrpretes/pblico. A voz nica e silenciadora do diretor/

    coregrafo ainda impera na imposio de ideias, movimentos, concepes de arte que

    so apresentadas a um pblico mais amplo.

    Diante do desafio/proposta de uma educao criadora, crtica e transformadora, adialogicidade foi/ conceito atravessador das produes Caleidos Cia., especialmente

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    de sua primeira proposta, Coreolgicas. Para que uma produo de dana pudesse

    pronunciar o mundo, proporcionar encontros crticos, impregnar de sentidos e trans-

    formar , presumi que ela deveria ser dialgica. J em 1996, perguntava-me como

    propor, danando, esses processos dialgicos que rompessem com as convenes e

    hbitos de silenciamento provenientes de uma educao bancria que caracterizam o

    mundo institudo da dana.

    O conceito freireano de dialogicidade se desdobrou artisticamente em compre-

    ender o papel dos artistas no como aqueles que apresentam coreografias, que

    mostram o mundo, mas sim como profissionais corresponsveis pelo dilogo, pelo

    encontro, pela pronncia do mundo. Compreender o papel dialgico do artista na cena

    da dana deu-se tambm ao compreend-lo corresponsvel pela construo de mlti-

    plos sentidos na cena artstica.

    Diante desta perspectiva, desde 1993 trabalho com o conceito de artista/docente

    para compreender outras possibilidades de atuao de artistas que educam e

    tambm de professores que produzem arte. O artista/docente, proponho, aquele

    que, no abandonando suas possibilidades de criar, interpretar, dirigir, tem tambm

    como funo e busca explcita a educao em seu sentido mais amplo (Marques,

    1999, p. 112). No mais distante e distanciado do pblico, o artista/docente passa a

    ser a fonte do conhecimento [...] e no somente uma ponte entre o [pblico] e o mundo

    da arte (ibidem, p. 113).

    Para cunhar essa proposta, aproximei-me dos conceitos de artista propositor desen-

    volvidos por Lygia Clark e das propostas artsticas de Helio Oiticica. Com isso, entendi o

    papel do artista como aquele que compreende o pblico tambm de maneira distinta:

    some a perspectiva de espectadores passivos, distantes, contemplativos. Diante das

    proposies artsticas, o pblico passa a ser o realizador daquilo que os projetos anun-

    ciam (Favaretto, 1985). A arte contempornea pressupe um pblico que seja articulado,

    informado, sensvel s proposies dos artistas; o pblico tende a ser incorporado aos

    trabalhos que no mais mostram o mundo e sim balizam sua construo (Lebrun, 1983).

    Em 1993, trabalhei de forma embrionria com esses conceitos na produo do

    espetculo de dana Corpo Dcil, compartilhado com alunos do Ensino Mdio da

    cidade de So Paulo. Percebi que o conceito de artista propositor no dava conta do

    que acreditava em termos de educao: buscava um artista propositor consciente de

    sua funo educacional, um artista propositor educador, ou o artista/docente.

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    O artista/docente no se configura como um professor que dana, tampouco

    como um artista que ensina. O artista/docente aquele que, numamesma proposta,

    dana e educa: educa danando e dana educando (Marques, 1999). O artista/docente

    constitui-se no hibridismo, assim como a dana e a educao. O desafio do artista/

    docente em cena compreender que, ao danar, no mostra, prope; no apresenta,

    convida; no dana para, dana com o pblico; no ensina, educa.

    Foi-se consolidando ao longo dos anos, nas diferentes produes de Coreo-

    lgicas3 do Caleidos Cia., a inteno do artista em danar consciente de que, na

    proposta artstica em si, propunha dilogos mltiplos, convidava a si mesmo e ao

    pblico a danar vrias possibilidades de todos, para que no encontro pronunciem o

    mundo. Essa concepo vem de encontro formao, acadmica ou no, da maioria

    dos artistas da dana que no veem, no pblico, seus interlocutores e sim seus depo-

    sitrios. A produo de trabalhos que tm como pressuposto o conceito de artista/

    docente exige um contnuo trabalho de formao dos intrpretes da companhia. No

    tratarei desse assunto neste artigo.

    O conceito de artista/docente implica, necessariamente, uma ruptura com os

    conceitos convencionais de processos coreogrficos, tanto os implcitos no ato da

    criao quanto no compartilhamento da dana com o pblico. Certifiquei-me de que,

    para estabelecer dilogos que permitam encontros e pronunciem o mundo e que, ao

    mesmo tempo, proponham a construo de sentidos, a concepo convencional de

    espetculo (evento espetacular) tambm deveria sofrer rupturas, transformaes.

    A meu ver, esse um primeiro passo para que uma proposta educacional (no

    pedaggica) se compreenda no universo da ao cultural: as estruturas coreogrficas

    (de cena de um modo geral) devem ser repensadas, os processos de criao devem

    ser revistos, as relaes entre diretor/coregrafo e intrpretes deve ser ressignificada

    para que a ao do artista no seja pedaggica, mas sim artstica, artstico/educativa.

    As produes de Coreolgicas, desde seu incio em 1996, so proposies inte-

    rativas que jogam abertamente com os signos da linguagem da dana. No encontro

    entre interao, ludicidade e signos da linguagem, as propostas de Coreolgicas foram/

    esto sendo construdas em prol de um dilogo profcuo entre a dana e a educao.

    Vejamos esses trs componentes do ponto de vista da dialogicidade/ao cultural.

    3

    O Caleidos Cia. de Dana produziu, desde 1996, sete verses diferentes de Coreolgicas: Coreolgicas I, II,III, IV, V, Brasil-Finland e Ludus. Em 2008, foi produzido tambm o Coreolgicas-Recife, com Acupe Grupo de

    Dana, de Recife.

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    1) A interatividade prope em sua etimologia uma atividade, uma ao entre.

    Por essa razo, distingo o conceito de interatividade do de participao. Participao

    no implica, necessariamente, dilogo, simplesmente uma parte da/na ao. J a

    interatividade, um convite para estar entre pelo menos duas coisas, para dialogar.

    Em Coreolgicas,estabelece-se umdilogo coreogrfico que gera relaes significa-

    tivas entre intrpretes, entre intrpretes e o pblico e entre o pblico consigo mesmo.

    A interatividade proposta pelo Caleidos Cia. pressupe aes criativas do pblico que

    dialoga corporalmente com os artistas: o pblico completa e complementa a proposta

    coreogrfica, reconstruindo e ressignificando a cena inicial da dana proposta.

    A interatividade proposta em Coreolgicas no se d somente no momento em

    que o pblico entra na cena para danar com os artistas, a interatividade faz parte

    integral da tessitura dos fios da composio coreogrfica propriamente dita: a coreo-

    grafia de Coreolgicas se desenha atravessada pela interatividade, incorporando-a.

    Nessa produo artstica, a coreografia vista como um texto aberto que se articula a

    partir de signos da linguagem cuidadosamente escolhidos, escolhidos para que gerem

    dilogos e mltiplos sentidos quando danadas na presena do pblico.

    De fato, Coreolgicas incorpora a ideia de que a cena [teatral, da dana]

    constituda por uma complexa articulao entre diferentes sistemas de signos que no

    tm sentido absoluto em si mesmos, mas s adquirem significado uns em relao aos

    outros (Pupo, 2001, p. 182). A construo de redes de relaes significativas entre os

    signos que constrem as coreografias de Coreolgicas intencionalmente dialgica

    e interativa, implica outra atitude diante da cena que, por sua vez, gera dilogos entre

    intrpretes e pblico.

    2) A interatividade proposta em Coreolgicas assume o carter de ao cultural

    medida que se prope de forma ldica, estabelecendo jogos entre os signos da

    linguagem da dana (proposies coreogrficas) que, por sua vez, geram e so

    gerados com a interlocuo do pblico presente. A ludicidade que se estabelece em

    cena, de certa forma anloga a do jogo teatral, visa a fazer com que participantes de

    qualquer idade [gnero, biotipo, cultura corporal] adquiram conscincia sobre a signifi-

    cao [da dana] e possam, atravs [dela], emitir um discurso sobre o mundo (Pupo,

    2001, p. 182). A interatividade ldica de Coreolgicas, proposta por artistas/docentes

    cria redes de relaes, e as relaes so sempre transformadoras (Freire, 1982).

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    3) Coreolgicas vem de Coreologia, termo cunhado por Rudolf Laban para compre-

    ender a lgica da dana, a ordem oculta da dana, as leis da dana. Laban colocava que

    o conhecimento da lgica da dana um pr-requisito para se tornar um criadorde cultura

    (Doerr, 2008). Os estudos coreolgicos so vistos hoje como um estudo das regras escon-

    didas no movimento que o fazem expressivo e funcional, e no arbitrrio ou sem sentido

    (Preston-Dunlop, 1998, p. 276-77). Estudar, conhecer, danar atravessados conscientemente

    pelos estudos coreolgicos, portanto, nos possibilita compreender os jogos de linguagem,

    criar redes de relaes e, enfim, sermos leitores crticos da dana/mundo (Marques, 2010a).

    As produes artsticas de Coreolgicas do Caleidos Cia. trabalham diretamente

    com os signos da linguagem da dana: proposies so criadas tendo a articulao

    dos signos como instigadores de processos de improvisao e de composio. Ao

    serem danadas, as proposies Coreolgicas estabelecem dilogos entre artista e

    pblico de forma interativa e ldica, culminando, em ltima instncia, na apropriao

    (tornar prprio) dos signos da dana por parte do pblico. Com isso, artistas e pblicos

    so, a cada compartilhamento, cocriadores da dana, cocriadores do mundo.

    Articulao do conhecimento

    Uma segunda premissa educacional que foi tomada como referencial para a

    criao dos espetculos interativos e ldicos do Caleidos Cia. foi a proposta de articu-

    lao do conhecimento. Diferentemente dos cotidianos das salas de aula de dana nas

    diversas situaes sociais e tambm em companhias de dana em que o conhe-

    cimento fragmentado, isolado, no relacional, as diferentes proposies cnicas do

    Caleidos Cia. incorporam e corporeificam artstica e esteticamente o conhecimento

    conectado (Stinson, 1998) e a rede de relaes entre os diferentes contedos da

    dana e desses contedos com a sociedade (Marques, 2010a).

    A articulao de conhecimento, que vem ao encontro de uma prtica pedaggica

    crtica e transformadora, foi/ tambm geradora de textos e proposies coreogrficas

    de Coreolgicas, proposies essas capazes de criar condies para que as pessoas

    criem suas prprias redes de sentidos.

    As redes de relaes propostas por Ana Mae Barbosa (2010 etc.), e que foram

    sintetizadas na Proposta Triangular para o Ensino da Arte na dcada de 1980, consti-

    turam-se como importantes referenciais do pensamento educacional na concepo e

    produo artstica de Coreolgicas ao longo dos anos.

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    Na possibilidade de dilogos que articulam conhecimentos, artistas e pblico

    podem recriar as cenas propostas, educando-se. Essa possibilidade faz com que

    tambm ressignifiquem suas cenas cotidianas pessoais. A dialogicidade cnica arti-

    culada a redes de conhecimento atravessa outras cenas sociais, articuladas entre si,

    abrindo espaos para que as interaes sociais tambm sejam transformadas.

    Reerncias bibliogrfcas

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