MARQUESE - Moradia escrava na era do tráfico ilegal

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    Anais do Museu Paulista

    Universidade de Sao Paulo

    [email protected]

    ISSN (Versin impresa): 0101-4714

    BRASIL

    2005Rafael de Marquese Bivar

    MORADIA ESCRAVA NA ERA DO TRFICO ILEGAL: SENZALAS RURAIS NOBRASIL E EM CUBA, C. 1830-1860

    Anais do Museu Paulista, Julho-Dezembro, ao/vol. 13, nmero 002Universidade de Sao Paulo

    So Paulo, Brasilpp. 165-188

    Red de Revistas Cientficas de Amrica Latina y el Caribe, Espaa y Portugal

    Universidad Autnoma del Estado de Mxico

    mailto:[email protected]://redalyc.uaemex.mx/mailto:[email protected]
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    1.Este artigo faz parte deum projeto coletivo maisamplo que conta com oauxlio da The Getty Foun-dation.Agradeo a ajudae os comentrios de Dale

    Tomich,Paulo Garcez Ma-rins,Marcos Andr Torresde Souza, Maria CristinaWissenbach, Marina deMello e Souza,Carlos Al-berto Zeron,Carlos Bacel-lar, Fbio Joly, Rafael Va-lente e Yna Lopes dos

    Santos.

    165Anais do Museu Paulista.So Paulo. N.Sr.v.13.n.2.p.165-188 jul.-dez.2005.

    M oradia escrava na era do trfico ilegal:senzalas rurais no Brasil e em C uba,

    c. 1830-1860

    1

    Rafael de Bivar Marquese

    Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia,Letras e Cincias Humanas da Universidadede So Paulo

    RESUM O : H um bom tempo a historiografia sobre a escravido nas Amricasanalisa o tema da moradia escrava. O debate nas ltimas dcadas tem girado em tornoda discusso da autonomia escrava e do controle senhorial na construo desses espaos,centrando-se em especial na investigao das matrizes africanas das moradias rurais erigidaspelos cativos. Examino, no artigo, a novidade histrica representada por dois tipos especficos

    de moradia que apareceram aps o segundo quartel do sculo XIX: o barraco de ptio docinturo aucareiro cubano (na regio de M atanzas-C rdenas-C ienfuegos) e a senzala emquadra do Vale do Paraba cafeeiro (no C entro-Sul do Imprio do Brasil). O trabalho demonstraque houve uma articulao histrica estreita entre esses dois arranjos arquitetnicos, passandopela apropriao de certas prticas do trfico de escravos em solo africano.

    PALAVRAS-C H AVE: M oradia escrava. Fazendas. Trfico transatlntico. C ontrole social. C uba.

    Brasil.

    ABSTRAC T: The subject of slaves living quarters has been under the scrutiny of the historiographyaround Slavery in the Americas for a good while. The debate decades has revolved in thelast few around the discussion on the slaves autonomy and the masters control in the constructionof such spaces, focusing in particular on the investigation of the A frican matrices present inthe rural dwelling spaces built by the captives. I examine, in the article, the historic noveltyrepresented by two specific types of dwelling spaces that emerged after the second quarter ofthe 19 th century: the patio shed of the C uban Sugar Belt (in the region of M atanzas-C rdenas-C ienfuegos) and the square senzala of the river Paraba Valley coffee region (in the M id-

    Southern region of the Brazilian Empire). The text demonstrates that there has been a historic

    articulation between these two architectural a rrangements, and that it is related with theappropriation of certain slave trade practices in African territory.

    KEYW O RDS: Slave Housing. Plantations. Transatlantic Slave Trade. Social C ontrol. C uba. Brazil.

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    M oradia escrava e historiografia

    C omecei a visitar velhasplantations do Sul basicamente para satisfazer minha curiosidade

    a respeito da organizao fsica da escravido. Tambm esperava adquirir alguma

    perspectiva histrica para meu trabalho como arquiteto afro-americano. M eu interesse pelo

    assunto retrocede a meados dos anos 1960 , quando grande parte da ateno nacional

    voltou-se para o povo negro. Escritores, msicos e lderes polticos afro-americanos estavam

    demonstrando nao o quanto sua vida interior havia sido ignorada pelo fato de a

    experincia de sua populao afro-americana ter sido silenciada (AN TH O N Y, 1976, p.8).

    Essas palavras do arquiteto norte-americano C arl Anthony so bastanteelucidativas a respeito do interesse que a historiografia passou a nutrir sobre acultura escrava a partir da dcada de 1960. C om efeito, certo que desde oincio do sculo XX os historiadores prestaram ateno a temas como a famlia,a religio e a vida material dos escravos, mas somente com o boom dahistoriografia sobre a escravido verificado aps os anos sessenta que aabordagem desses assuntos tomou corpo. Em resposta direta a questes sociaise polticas de seu tempo, os estudiosos passaram a pesquisar sistematicamenteos vrios aspectos da vida dos escravos africanos e de seus descendentes noN ovo M undo, encarando-os como sujeitos ativos na construo de seu devir2.

    A nova nfase na agncia escrava, por sua vez, permitiu a investigaoaprofundada dos temas relativos cultura material. N o que se refere ao assuntodeste artigo, a moradia escrava, pode-se afirmar que, nas trs ltimas dcadas,consolidou-se na historiografia duas vertentes de anlise, no raro empregadassimultaneamente pelos pesquisadores. G rosso m odo , a primeira se ocupa dosmodelos arquitetnicos das moradias escravas, isto , suas origens, tipologias etcnicas construtivas, enquanto a segunda trata dos usos e apropriaes escravasdesses espaos. A inda que as pesquisas disponveis tratem de lugares e pocasvariadas, nos ltimos tempos vem se construindo certo consenso interpretativosobre a questo. O s historiadores apontam que, quando tiveram oportunidadepara tanto, os escravos configuraram suas moradias baseando-se em formas etcnicas africanas, exercendo assim considervel grau de autonomia naconformao de sua vida material3.

    Um bom exemplo dessa perspectiva pode ser encontrado no livrorecente de Robert Slenes, N a senzala, um a flor,cujo foco a famlia escravano Sudeste cafeeiro do Brasil oi tocentista. Ao analisar os significados daorganizao familiar para os prprios cativos, o autor ressalta a importnciaque davam para a formao de ncleos familiares como arma na luta contra ossenhores. O estabelecimento de laos conjugais estveis, assim, lhes facultariamaior autonomia para o controle de vrios aspectos de sua vida material ecultural. Era isso, segundo o autor, o que ocorria com a moradia.

    Baseando-se em relatos de viajantes que percorreram o C entro-Sul doBrasil ao longo do sculo XIX, Slenes distingue trs tipos de vivenda escrava: as

    2.Em resenha recente datraduo brasileira do li-vro clssico de SidneyMintz e Richard Price(2003), procurei traarum breve quadro dos es-tudos sobre a culturaafro-americana no sculoXX,em especial a novida-de trazida pela produoposterior dcada de1960. Ver MARQUESE,2004b.

    3.Para uma viso geral des-sas abordagens para os di-

    ferentes espaos escravis-tas do Novo Mundo,e semqualquer pretenso de es-gotar os ttulos dispon-veis,ver,para o Caribe in-gls e francs, DEBIEN,1974, p. 222-225; HIG-MAN, 1995,p. 255-257 eCRATON,1978;para os Es-tados Unidos,MORGAN,1998,p. 104-124;GENO-VESE,1974,p.524-535 e

    VLACH,1993;para Cuba,RIVA,1983 e FRAGINALS,1987,v.2,p.87-97;para oBrasil,SILVA,1990;FARIA,1993; AZEVEDO, 1994;CARRILHO,1994;MELLO,2002 e SILVA,2003.

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    senzalas pavilho, edifcio nico com pequenos recintos ou cubculos separadospara os escravos solteiros e casados, as senzalas barraco , onde viveriamescravos e escravas solteiros em grandes recintos separados, e as senzalas

    cabana , onde viveriam escravos casados ou solteiros de um mesmo sexo. Aosintetizar sua anlise sobre a questo, Slenes escreve que

    o que chama a ateno na maioria destes depoimentos que o casar-se [. . . ] conferia acesso

    a um espao construdo prprio, seja um cubculo num barraco/ pavilho, seja num barraco

    separado. M esmo no sendo necessariamente maior do que os cubculos [nos barraces],

    os compartimentos [nos pavilhes] ou os casebres dos solteiros, a moradia da pessoa casada

    ou pelo menos da recm-casada, sem filhos geralmente congregava menos gente [. . . ].

    A lm disso, e mais importante, era uma habitao di vidida com um parceiro de vida, no

    apenas de roa. Enfim, o casar-se freqentemente implicava para o escravo ganhar mai s

    espao construdo; mas, sobretudo, significava apoderar-se do controle desse espao, junto

    com o cnjuge, para a implementao de seus prprios projetos (SLEN ES, 1999, p. 159).

    N a seqncia , Slenes examina as matrizes arquitetnicas africanasdas senzalas cabana construdas pelos escravos no C entro-Sul cafeei ro.Procedentes em grande parte da zona congo-angolana da frica C entral, essescativos teriam recriado no Brasil vrias das tcnicas de construo empregadas

    em seu continente de origem, como o uso de paus de forquilha para a sustentaoda cobertura, a adoo de um formato retangular para as cabanas, com tetode duas guas e cmodos pequenos, ou a ausncia de janelas. Afora os elementosformais da construo, o sentido bsico da moradia negra a definio decomo se usavam espaos internos e externos teria permanecido o mesmo napassagem da frica para o Brasil: a cabana no era o local de moradia emum sentido burgus, mas apenas o local do sono ou do abrigo contra as variaesdo tempo; o habitar, portanto, se desenrolaria antes no entorno da cabana do

    que no seu interior (SLEN ES, 1999, p.149-180).O trabalho de Robert Slenes demonstra o proveito em se adotar uma

    perspectiva atlntica para o exame dos padres de vida material escrava nasAmricas. N o entanto, deve-se ressaltar que no apenas as experincias dosescravos foram trazidas da frica para o N ovo M undo, mas tambm asexperincias dos poderes escravistas. Por ter enfocado mais a agncia escravado que a agncia senhoria l, Slenes deixou passar despercebida a novidadecontida em certos arranjos de moradia que foram adotados em algumas dasgrandes fazendas de caf do Vale do Paraba. Refiro-me ao que a documentaocoeva registra como senzala em quadra, isto , edifcios contnuos erigidos emformato retangular e subdivididos em compartimentos ou cubculos, todos voltadospara um terreiro ou ptio com entrada nica guardada por um porto de ferro.

    O que pretendo neste artigo justamente analisar a novidade histricarepresentada pelas senzalas em quadra, sem me ocupar das apropriaesescravas desses espaos. C ontudo, para obter uma compreenso mais adequadadas razes para a adoo desse modelo arquitetnico, necessrio examin-loem conjunto com os barracones cubanos, isto , as grandes senzalas erigidasnos engenhos mecanizados e semimecanizados do cinturo aucareiro da colnia

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    espanhola. As senzalas em quadra das fazendas de caf brasileiras e osbarraconesdos engenhos de acar cubanos trouxeram uma ruptura substantivaem relao aos padres de moradia escrava anteriormente existentes nas

    Amricas, j que negavam brutalmente a autonomia escrava em sua construo.Ademais, ambos os arranjos arquitetnicos surgiram em um mesmo momento, adcada de 1840. Em um contexto de acelerao da produo de caf e acar,aumento no volume do trfico negreiro transatlntico ilegal e acirramento dastenses internas e externas em torno da escravido, os grandes senhores brasileirose cubanos recorreram a um modelo arquitetnico bastante difundido nas reaslitorneas da frica em que operavam seus respectivos traficantes.

    Senzala em quadra e barraco de ptio

    O s primeiros esforos sistemticos para ordenar a moradia escravaapareceram na li teratura agronmica do C aribe ingls e francs em fins dosculo XVIII, como parte de um impulso mais amplo de controle e otimizao dafora de trabalho cativa (M A RQ UESE, 2004a). C om efeito, so poucos os

    indcios disponveis sobre a normatizao da moradia escrava pelos proprietriosrurais das diversas regies deplantation do N ovo M undo antes do final dosculo XVIII. Houve, claro, aqueles que cuidaram pessoalmente da construodas vivendas escravas, mas a regra parece ter sido a concesso de autonomiapara os cativos erigirem esses espaos de acordo com seus prprios padresculturais.

    Para os autores caribenhos que escreveram sobre o assunto, o primeiro

    item que lhes preocupou foi o estado sanitrio das senzalas. As prescries deJean Baptiste G uisan um engenheiro militar suo com vasta experincia agrcolano Suriname, contratado na dcada de 1780 pelas autoridades francesas daG uiana para a aplicar as tcnicas agrcolas da colnia holandesa so tpicasa respeito do assunto. De acordo com G uisan, os alojamentos destinados aoscativos deveriam merecer ateno cuidadosa dos senhores. Em sua avaliao,os proprietrios franceses (tanto os das ilhas caribenhas quanto os da G uiana)eram em geral displicentes em relao ao problema, deixando a construo

    das senzalas a cargo exclusivo dos escravos, que as erigiam conforme seushbitos africanos, isto , em casebres feitos de barro, madeira e palha, isoladosuns dos outros e sem ordenao aparente. A prtica dos holandeses no Suriname,contudo, era diferente. A construo das senzalas seguia o modelo das casernas,em edifcio nico com total simetria. G uisan advertiu que os escravos resistiam oquanto fosse possvel ao modelo de moradia do Suriname, demonstrando ntidapreferncia por palhoas isoladas. A reforma das senzalas deveria atender emparte s demandas dos escravos, separando-as em alojamentos distintos paracada famlia ou casal; ao senhor, porm, competia certas interferncias comvistas a garantir o mximo de salubridade possvel. Assim, as senzalas deveriam

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    ser erigidas unicamente em madeira, com certa elevao do solo para evitar aumidade excessiva e assegurar boa circulao do ar, e distribudas de tal formaa evitar a comunicao de fogo de uma a outra (G UISAN , 1825, p. 245-247).

    A reforma das senzalas, portanto, deveria tomar de emprstimo omodelo arquitetnico dos destacamentos mili tares. Esse impulso para amilitarizao da moradia escrava fica ainda mais evidente no trabalho de outroautor caribenho do perodo, P. J. Laborie, um grande produtor escravista de cafde So Domingos. Laborie foi um daqueles senhores que, no curso da revoluoescrava na dcada de 1790, apoiaram a invaso inglesa da colnia francesacomo meio para restabelecer a ordem escravista. Para tanto, redigiu, com baseem sua experincia de cafeicultor, o manual The C offee Planter of Saint Dom ingo,destinado a guiar os eventuais investidores ingleses no processo de reconstruoda economia escravista da colnia. O projeto de Laborie foi derrotado com avitria das tropas de ex-escravos comandadas por Toussaint LO uverture, masseu manual persistiu como a principal referncia agronmica sobre o assuntopor todo o sculo XIX. A razo disso consistiu no fato de Laborie ter sintetizadoas tcnicas agronmicas que haviam garantido para So Domingos o posto demaior produtora mundial de caf antes da Revoluo Francesa.

    O tratado foi dividido em quatro captulos, que abordaramrespectivamente a escolha e preparo dos terrenos para o plantio do caf, aconstruo e distribuio dos edi fcios, a cultura e processamento dos gros e,por fim, a administrao dos escravos. Dentro desse plano, Laborie dedicouateno particular organizao espacial dasplantations cafeeiras. Tanto assim que o texto se fez acompanhar de vrias pranchas nas quais eramapresentadas plantas arquitetnicas de grandes fazendas de So Domingos,com a indicao exata da localizao dos edifcios, dos cafezais, das matas e

    dos pastos. Um cuidado especial foi reservado exposio do plano de reformada arquitetura da moradia escrava. Laborie propunha a construo das senzalasem linha, divididas em cubculos com 10 x 20 ps, cada qual reservado paratrs escravos; os cubculos, por sua vez, seriam subdivididos em dois quartos,um, A , onde se faz o fogo, outro, B, para dormir. Pode-se acrescentar por detrsuma galeria , C , da largura de seis ps, para suas aves (Figura 1).

    Em sua organizao interna, essas unidades seguiam claramente opadro de moradia i oruba, adotado por grande parte dos escravos em So

    Domingos quando tinham a autonomia para tanto4. O sentido que Laborie lhesimprimiu, contudo, foi outro. Um rpido exame da Figura 2 bem demonstra afiliao arquitetnica de suas senzalas s casernas europias. Sendo assim, oque buscou com a conjugao das diferentes unidades habitacionais escravasem edifcios nicos, simtricos e uniformes, dispostos de forma alinhada em tornodos terreiros de caf ou em locais observveis a partir da casa de vivendasenhorial, foi exatamente potencializar o controle senhorial sobre a morada doscativos. Em suas palavras,

    4. Como esclarece VLA-CH,1990,p.125 a respei-to dessa filiao arquite-tnica o repertrio arqui-tetnico ioruba bastan-te extenso,com estrutu-ras variando de casassimples a palcios.Mas,adespeito da variedade,to-dos os edifcios se ba-seiam em mdulos dedois cmodos medindo10 x 20 ps [...]. Essa ca-sa de dois cmodos es-sencial para o sistema ar-quitetnico ioruba e,con-

    seqentemente, no foiesquecida mesmo sob osrigores da escravido.

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    as casas [ . . . ] devem ser de maneira situadas, que possa o senhor ver tudo, ouvir e dar

    ordem. A exao, e cuidado da manufatura, o servio do hospital, que se deve guardar de

    dia, e de noite, a polcia das senzalas, e o cuidado do gado de toda a casta, inteiramente

    dependem da presena e vigilncia do senhor (LABO RIE, 1798, p.83) (Figura 2 ).

    Para nossos fins, importa salientar que as prescries desses autores

    antilhanos foram difundidas no Brasil e em C uba na passagem do sculo XVIII

    para o XIX. C om efeito, dentro dos esforos para recuperar as respectivas posiesde Portugal e Espanha no quadro internacional, os administradores ilustrados

    desses dois imprios elaboraram um amplo programa de reformas econmicas,

    com nfase especial na questo da pol tica colonial. Parte dessa poltica consistiu

    na tentativa de aplicar s colnias deplantation portuguesas e espanholas o

    receiturio que havia garantido s possesses antilhanas de franceses e ingleses

    o posto de maiores produtoras mundiais de artigos tropicais. Sendo assim, vrios

    dos textos agronmicos compostos para o C aribe francs e ingls foram traduzidospara o portugus e castelhano. Tal foi o caso do manual de Laborie, vertido

    para a primeira lngua em 1800 e para a segunda em 18105.

    A despeito dessas tradues, os novos modelos de moradia escrava

    propostos pelos autores caribenhos no foram adotados nasplantationsbrasileiras

    e cubanas. N outras palavras, antes da dcada de 1840, as unidades cafeeiras

    e aucareiras que foram montadas no Brasil e em C uba mantiveram os padres

    anteriores de habitao escrava. Tome-se o exemplo do Vale do Paraba em fins

    da dcada de 1810 e incios da de 1820, momento do deslanche da produocafeeira na regio. O naturalista francs Auguste de Saint-H ilai re, ao percorrer em

    5.A traduo para o por-tugus foi realizada porAntonio Carlos Ribeirode Andrada e publicadana coleoO fazendeir odo Brasil (t.III,v.II),edi-tada por Frei Jos Maria-no da Conceio Veloso.

    J a traduo espanholafoi feita por Pablo Boloix,sendo impressa em Hava-na com o ttulo de Culti-vo del cafeto,o ar bol que

    produ ce el Caf, y modo

    de beneficiar este fr ucto.

    170 Anais do Museu Paulista.v.13.n.2. jul.-dez.2005.

    Figura 1 Planta ba ixa e corte vertical da senzala proposta por P. J. Laborie (LABO RIE, 1798). Acervo de G uita e Jos M indlin,So Paulo. Reproduo de Hlio N obre.

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    abril de 1822 o C aminho N ovo da Piedade, retornando de So Paulo ao Rio deJaneiro, registrou, na altura da freguesia de A reias, as seguintes observaes:

    Hoje, comecei a notar, tanto beira da estrada como a alguma distncia, casas um pouco

    mais bem tratadas do que as vendas, e habi tadas por agricultores mais abastados. Desde

    ontem comeei a ver plantaes de caf, hoje mais numerosas. D evem aumentar mais ainda

    medida que me for aproximando do Rio de Janeiro. Esta alternativa de cafezais e matas

    virgens, roas de milho, capoeiras, vales e montanhas, esses ranchos, essas vendas, essas

    pequenas habi taes rodeadas das choas dos negros e as caravanas que vo e vem, do

    aos aspectos da regio grande variedade (SAIN T-H ILAIRE, 1974, p.100).

    A feio exata dessas choas dos negros ou senzalas cabana ,para empregarmos a expresso cunhada por Robert Slenes fica evidente se

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    Figura 2 N a legenda, A indica a casa de vivenda; L, as senzalas em linha, sendo que o ltimo edifcio direita traz um cortehorizontal com a indicao da existncia de 10 cubculos em cada senzala (LABO RIE, 1798). Acervo de G uita e Jos M indlin,So Paulo. Reproduo de Hlio N obre.

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    observarmos um outro registro do perodo. N o desenho aquarelado de ThomasEnder, que percorreu o mesmo caminho de Saint-H ilaire cinco anos antes, pode-se ter uma idia mais precisa do que eram essas choas : o que se nota

    esquerda da Figura 3 so casebres que seguem os padres africanos de moradiaescrava estudados a fundo por Slenes (Figura 3).

    Esse parece ter sido o modelo das moradias escravas nas fazendasdo Vale do Paraba at a quarta dcada do sculo XIX. certo que j na dcadade 1830 alguns fazendeiros estavam erigindo senzalas em linha nas unidadescafeeiras do Vale do Paraba (o inventrio do proprietrio da FazendaC achoeirinha de Baixo, na vila de Bananal, So Paulo, dono de 26 escravos,registra em 1836 a existncia de uma senzala contnua com sete lanos cobertos

    de telha) (C ARRILH O , 1994, p. 62), mas at ento no houve a deliberaopara se construir um espao diferenciado de habitao escrava. N esse perodo,contudo, surgiu uma ateno mais detida com a normatizao dos espaos demoradia nas fazendas. Isso pode ser observado com clareza nos manuaisagrcolas publicados no perodo.

    O exemplo mais significativo disso reside no traba lho de FranciscoPeixoto de Lacerda W erneck, baro de Pati do A lferes. Ao publicar sua M emriasobre a fundao de uma fazenda na Provncia do Rio de Janeiro em 1847,

    primeiro nas pginas do peridico Auxiliador da Indstria N acionale logo emseguida em livro, W erneck apresentou a sntese do saber escravista gestado nasfazendas de caf do Vale do Paraba (fluminense e paulista) na primeira metadedo O itocentos. J na abertura do trabalho, ao traar as instrues para aconstruo da senzala, W erneck recomendava cuidado com a sade dos

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    Figura 3 Detalhe do desenho a lpis aquarelado de Thomas Ender, representando a fazenda do capito Estevo, napassagem do Rio Pira , pouco antes de se entrar na Provncia de So Paulo, 1817. (W AG N ER, 2000, p.805). Acervodo G abinete de G ravuras da A cademia de Belas Artes (Kupferstichkabinett der Academie der Bild Knst), Viena.

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    escravos e vigi lncia estrita sobre eles. A senzala deveria ser erguida em umas linha, num lugar sadio e enxuto, com quartos de 24 palmos quadrados ecom uma varanda de oito palmos de largo em todo o seu comprimento; cada

    cubculo deveria acomodar quatro escravos solteiros, e, no caso dos casais,marido e mulher com os filhos. As portas dos cubculos estariam voltadas aoquadro da fazenda, que conformava uma espcie de ptio em torno do terreiro,sendo cada face ocupada respectivamente pela casa do senhor, pelos paiis,tulhas e cavalarias, pelos engenhos de pi les e de mandioca e pela senzala.A moradia escrava, assim, permaneceria sempre sob a vista e o controle dosenhor (W ERN EC K, 1985, p.57-58).

    A semelhana com algumas das plantas reproduzidas por Laborie

    evidente. N o entanto, o manual de W erneck deve ser lido luz do que secomeou a construir no Vale do Paraba a partir da dcada de 1840. A novidadeveiculada em seu trabalho consistiu no fechamento do terreiro, dispondo-se assenzalas em uma mesma quadra contnua casa senhorial e aos edifcios damanufatura (engenhos, tulhas, etc. ). Exatamente nesse perodo os inventrios dasfazendas comearam a registrar uma nova forma arquitetnica, denominadacomo quadro de senzalas , ou senzalas em quadra . H um caso que ajudaa melhor iluminar o assunto. N o inventrio de 1855 da Fazenda das Antinhas

    (Bananal, So Paulo), com um total de 137 escravos, anotou-se a existncia deum quadro de senzalas com trinta lanos 6. Por si s, esse registro poucoesclarece, mas h uma pintura a leo dessa propriedade, composta duas dcadasaps a realizao do inventrio, que muito auxilia a compreenso do arranjoarquitetnico (Figura 4).

    6. Inventrio post-mor-tem, padre Bento JosDuarte,1855.Juzo de r-fos e Ausentes,Cartriodo 1 Ofcio de Bananal,

    Museu Histrico e Peda-ggico Major Novaes,Cruzeiro-SP.Como escla-rece Carlos Lemos (1999,p. 24),a palavra lano[...] significava uma sriede cmodos encarreira-dos,um atrs do outro,formando uma fila per-pendicular rua ou aoterreiro, quando se trata-

    va de casa rural.

    173Annals of Museu Paulista.v.13.n.2.Jul.-Dec.2005.

    Figura 4 Jos de Lima, Fazenda das Antinhas, Bananal, SP, leo sobre tela, c. 1870, 90 x 163 cm. (SETUBA L, 2004, p. 160).Acervo de M aria Aparecida Rezende G ouveia de Freitas, So Paulo. Fotografia de Romulo Fialdini.

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    A disposio das senzalas em L, com as portas avarandadas e voltadasao terreiro, bem evidente ao fundo da imagem. A casa de vivenda localiza-se direita, sendo que um muro a separa do terreiro. Do lado oposto ao da senzala,

    h mais uma construo em linha (possivelmente as tulhas com seis lanos, comoindica o i nventrio de 1855). O que mais chama a ateno, no entanto, ofato de o conjunto ser fechado: os vazios entre os edifcios so preenchidos comgrades altas em balastre, sendo que o nico acesso ao terreiro e s senzalas dado por um porto, visvel na parte inferior esquerda da imagem.

    Uma outra imagem, do mesmo perodo e da mesma regio, aindamais esclarecedora quanto ao arranjo arquitetnico da senzala em quadra. Refiro-me Fazenda Boa Vista, pertencente a Luciano Jos de A lmeida , um notvel

    cafeicultor de Bananal, dono de mais de 800 escravos quando de sua morte em1854. Em seu inventrio, h referncia a dois conjuntos de senzalas em quadrana Fazenda Boa Vista, um com 49 e outro com 60 lanos7. O bservando-se apintura a leo dessa propriedade, percebe-se claramente qual a disposio dasduas quadras. A primeira, com 60 lanos mais tulhas e engenho (localizados naparte superior direita do terreiro), localizava-se em frente casa de vivenda; asegunda, apenas com os lanos das senzalas, encontrava-se atrs. N a quadrafrontal, nota-se novamente a existncia de um nico porto de entrada; todas as

    portas dos lanos da senzala, por sua vez, voltavam-se para o terreiro (Figura 5).As senzalas em quadra, enfim, caracterizavam-se por seu isolamento,

    garantido por meio de sua disposio retangular, pelos compartimentos dehabitao dos cativos que se comunicavam apenas com o terreiro, pelainexistncia de janelas, pelos muros altos ou cercas em balastres e pela entradanica fechada com porto. O estado atual das pesquisas indica que essa soluo

    7. Inventrio post-mor-tem, comendador Lucia-no Jos de Almeida,1854.

    Juzo de rfos e Ausen-tes,Cartrio do 1 Ofcio

    de Bananal, Museu Hist-rico e Pedaggico MajorNovaes,Cruzeiro-SP.

    174 Anais do Museu Paulista.v.13.n.2. jul.-dez.2005.

    Figura 5 G eorg G rimm (atribuio), Fazenda Boa Vista, Bananal, SP, leo sobre tela, c. 1880, 74 x 144 cm (SETUBA L,2004, p. 160). Acervo dos descendentes de Dolores de Almeida Helou, So Paulo. Fotografia de Romulo Fia ldini.

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    arquitetnica foi uma disposio especfica do Vale do Paraba cafeeiro entreas dcadas de 1840 e 1880, pois, com exceo de algumas grandes fazendascafeeiras do C entro-O este paulista, no h registros de seu emprego em outras

    regies escravistas deplantation no Brasil oitocentista8

    . As explicaes que osestudiosos fornecem para sua adoo apontam para a herana da arquiteturarural do norte de Portugal. N essa tradio, esclarece C arlos Lemos (1999, p.29),a disposio dos edifcios em torno de um terreiro,

    com os cmodos de servio volta, constitui a pea-chave da circulao, servindo no s

    de distribuio como de local de manipulao dos gneros agrcolas. onde a famlia

    portuguesa trabalha com os raros empregados, o espao muito bem definido e acessvel

    por um s porto.

    O terreiro moda portuguesa, no Brasil, teria sido aplicado de incioem M inas G erais. N a passagem do sculo XVIII para o XIX, com a montagemda cafeicultura no Vale do Paraba, o modelo teria sido disseminado por reinisou colonos vindos de M inas e adquirido sua configurao especfica nas fazendasde caf da regio. N essa interpretao, a inscrio das senzalas no terreiro dafazenda responderia antes necessidade de controle sobre as atividades no

    interior do quadro do que a formas rigorosas de confinamento da mo-de-obraescrava (C ARRILHO , 1994, p.125).H , no entanto, uma outra explicao possvel para a adoo das

    senzalas em quadra no Vale do Paraba, que o caso cubano torna intelig vel.A t a terceira dcada do sculo XIX, a moradia escrava tpica dasplantationscafeeiras e aucareiras de C uba foi o boho (pa lavra de origem taino), quemesclava elementos da arquitetura indgena com o padro ioruba de moradia eno tinha qualquer interferncia senhorial (VLAC H , 1990, p.125-127; W ATTS,

    1992, p.106). Em meados dos anos 1820, algumas das autoridades coloniaise dos senhores de escravos cubanos passaram a defender a adoo de umnovo modelo de vivenda para os escravos. Tal foi o caso de C ecilio Ayllon,governador, militar e poltico de M atanzas. Em 1825, a regio foi agitada poruma srie de revoltas escravas, notadamente em G uamacaro. Diante disso,Ayllon, convencido da importncia e necessidade de que seja uniforme o regimee governo interior das fincas rurais para afianar melhor a segurana dos campos,consultou vrios senhores da regio sobre as medidas mais adequadas a serem

    tomadas para garantir a disciplina escrava. O resultado final foi um projeto paraum cdigo negro que recebeu o ttulo de Reglam ento de esclavos9.

    Ayllon dividiu seu regulamento em quatro partes: medidas desegurana, obrigaes dos senhores, normas penais e vigilncia . A parte quemais interessa para os fins deste artigo a primeira, que cuidou do controledisciplinar da escravaria. Seu princpio bsico consistiu na incomunicabilidadetotal dos escravos com o mundo externo splantations. Sendo assim,recomendava-se proibio expressa da entrada de homens de cor livres e brancos

    desconhecidos naplantation para a venda de gneros aos cativos, bem comoo pernoite de pessoas estranhas nos alojamentos dos escravos. Aps a orao

    8.So vrios os exemplosde adoo de senzalas emquadra em grandes fazen-das de caf do Vale do Pa-raba registrados em in-

    ventrios.Para relatos deviajantes que as descre-veram,ver,em relao dcada de 1860,TSCHU-DI,1980,p.57-58 e,dca-da seguinte, SMITH,1941.Sobre a ausncia desenzalas em quadra emoutras regies deplanta-t ion do Brasil oitocentis-ta, ver os trabalhos deAZEVEDO e SILVA cita-dos na nota 3.As aquare-las de antigas fazendas ca-feeiras de Campinas que

    Jos de Castro Mendescomps na dcada de1940 documentam a pre-sena de senzalas emquadra em algumas delas.Pela leitura do livro re-cente de FERRO,2004,p.202-205,pode-se aven-

    tar a hiptese de ter ha-vido filiao arquitetni-ca direta entre as senza-las em quadra do Vale doParaba e as que foramerigidas nas fazendas deCampinas a partir demeados do sculo XIX.

    9.Sobre essa revolta,vero trabalho recente de Ma-nuel Barcia (2000).

    175Annals of Museu Paulista.v.13.n.2.Jul.-Dec.2005.

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    noturna das nove horas, o porto da finca seria trancado e os escravos impedidosde circularem dentro da propriedade. O s vigilantes brancos fariam de duas atrs rondas noturnas, verificando se todos os escravos se encontravam

    descansando nas senzalas. O s instrumentos agrcolas de ferro seriam trancados noite, e as armas de fogo pertencentes aos proprietrios e brancospermaneceriam sempre guardadas e seguras. Em trs anos, todas as propriedadescom mais de 30 escravos deveriam substituir os bohos independentes porsenzalas de alvenaria, em edifcio nico, com alas separadas por sexo comuma s porta e trancas de ferro (AY LLO N , 1825, p.1-6).

    O cdigo de A yllon pode ser entendido como uma das primeiraspropostas formuladas em C uba para a construo de um novo tipo de moradia

    escrava, capaz de aumentar o controle espacial dos trabalhadores. H onoratoBernado de C hateausalins, mdico de origem francesa, certamente ajudou adifundir a nova planta arquitetnica proposta por Ayllon. N ascido em 1791, eformado em medicina pela prestigiosa Universidade de Paris, C hateausalins foicontratado pela famlia Drake, no incio da dcada de 1820, para cuidar dosescravos de suasplantations cafeeiras em C uba, na regio de M atanzas.C hateausalins logo se tornou membro da Sociedade Econmica dos Amigos doPas de H avana, e, calcado em sua experincia como mdico de escravos,

    publicou, em 1831, EI vadem ecum de los hacendados cubanos.O livro obtevegrande sucesso entre os senhores de escravos cubanos, tendo sido reimpressoem 1848, 1854 e 1874.

    N ovamente, interessam aqui as orientaes de C hateausalins arespei to da moradia escrava. Suas recomendaes foram idnticas s doReglam ento de A yllon, o que parece indicar a existncia de um consenso arespeito do assunto, entre os senhores de M atanzas, a partir da dcada de1830. Em substituio aosbohosde barro cobertos com palhas,

    sempre aconselharei que se fabriquem em forma de barraco com uma s porta aberta,

    cuidando o administrador ou feitor de recolher a chave pelas noites. C ada quarto que se

    fabrique, no ter outra entrada que uma s portinhola, e ao lado uma janela fechada com

    balastres para que o negro no possa de noite comunicar-se com os outros (C HATEAUSA LIN S,

    1848, p.14).

    C omo se v, C hateausalins empregou um novo vocbulo barraco para se referir moradia escrava que estava prescrevendo. Sua proposta e ade A yllon para a construo de novas senzalas em substituio aos antigosbohos, no entanto, no representava ainda uma ruptura significativa, pois setratava de uma variao do edifcio em linha prescrito pelos autores caribenhosingleses e franceses de fins do sculo XVIII. A virada veio na dcada de 1840e, como sugeriu o historiador Juan Perez de la Riva (1983, p.16-30), conectou-se diretamente ao aumento da resistncia escrava. N essa dcada, comeou aser erigido nos engenhos cubanos um novo tipo de moradia escrava, que seafastava profundamente dos padres anteriores.

    Para apreender essa novidade arquitetnica, cabe examinar algumasdas publicaes agrcolas cubanas de meados do sculo XIX que procuraram

    176 Anais do Museu Paulista.v.13.n.2. jul.-dez.2005.

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    sistematiz-la. Tal o caso do manual de Antonio de Landa, impresso em 1857e reeditado com acrscimos em 1866, que pode ser tomado como o termo lgicode mais de 40 anos de reflexo sobre a gesto escravista em C uba. Landa

    trabalhou 20 anos como administrador de engenhos na regio de M atanzas, ocentro da economia aucareira cubana at a dcada de 1860; seu livro, destinado gesto deplantationspertencentes a proprietrios absentestas, pretendia apontaros erros mais comuns cometidos pelos administradores, indicar os meios paraevit-los e instruir os nefitos nos segredos da funo.

    A proposta de Landa para a moradia escrava seguiu claramente ainovao arquitetnica que apareceu na regio de M atanzas na dcada de1840 , o barraco de ptio. Tratava-se de uma construo de alvenaria, em

    quadriltero fechado em torno de um ptio e com uma nica entrada com portode ferro. Todos os cubculos onde dormiriam os escravos (que passaram a serchamados de bohos,termo anteriormente empregado para designar as choasindependentes dos cativos) dariam para o ptio interno, sendo que cada umteria uma pequena janela gradeada para a entrada de ar e luz, tambm elavoltada para o ptio. O s bohos seriam trancados aps o toque de recolher,assim como o porto de ferro que dava acesso ao ptio. O s solteiros (escravose escravas) ocupariam bohos separados, enquanto os casais com filhos teriam

    bohosespecficos. N o meio do ptio do barraco, haveria uma cozinha telhada,com no mnimo 30 varas de largura e sete de comprimento e mesas de tbuas,para os escravos l comerem nos dias de chuva. Ao lado da cozinha, deveriaser aberto um poo para servir toda a escravaria; se isso no fosse possvel,bastaria um tanque ladrilhado, abastecido por um canal pelo poo mais prximo.Em uma das faces internas do barracn, haveria ai nda uma priso, com ostroncos destinados punio dos escravos (LAN DA, 1866, p.30-31)10.

    N o manual de Landa, no foram inseridas imagens, mas outras

    publicaes do perodo apresentaram plantas arquitetnicas detalhadas dobarraco de ptio. Tal foi o caso de uma cartilha annima publicada em 1862,que indicava em uma gravura bastante precisa quais seriam as dimenses ideaisdo edifcio, suas divises internas e externas e o desenho da fachada, seguindo,em linhas gerais, os mesmos elementos que haviam sido prescritos por Landa:entrada nica (15), compartimentos separados para casados (9) e solteiros (10,13), cozinha no centro do ptio (1) (Figura 6).

    Tal como a senzala em quadra, que foi empregada apenas nas grandes

    fazendas de caf do Vale do Paraba, os barraces de ptio foram construdossobretudo nos grandes engenhos mecanizados e semimecanizados de C uba,montados a partir da dcada de 1840 . N essa poca, os senhores cubanosmais capitalizados comearam a adotar tcnicas que vinham sendo criadas naInglaterra e Frana para o fabrico do acar de beterraba. Em substituio aoterno de caldeiras abertas, passaram a empregar caldeiras a vcuo, queaumentavam enormemente a produtividade do engenho e reduziam em muito ademanda de trabalho e combustvel. As novas caldeiras aproveitavam a energia

    a vapor que era gerada para movimentar a moenda horizontal. A lis, nesseperodo, um cubano inventou esteiras mveis que interligavam diferentes conjuntos

    10.O barraco de ptio,portanto, representouuma soluo arquitetni-ca distinta das vilas escra-vas cercadas por muros

    que SINGLETON, 2001,encontrou em planta-tions cafeeiras de Cuba.Como essa arqueloga in-dicou,o controle e o cer-ceamento da autonomiaescrava foram bem maisagudos nos barraces deptio; de todo modo, omodelo para ambas solu-es foram os barracesde embarque de escravosna Costa da frica, algoque passou despercebi-do autora.

    177Annals of Museu Paulista.v.13.n.2.Jul.-Dec.2005.

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    Figura 6 Plano de um barracn cubano (C ARTILLA, 1862). Acervo da Fondacin AntonioN ez Jimnez de la N aturaleza y el Hombre, Havana.

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    Figura 7 Engenho Armona. Litogravura de Eduardo Laplante. (C AN TERO ; LAPLAN TE, 1857). Acervoda Fondacin Antonio N ez Jimnez de la N aturaleza y el Hombre, Havana.

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    de moendas horizontais, aumentando consideravelmente a capacidade demoagem de cana dos engenhos. N o que se refere ao preparo final do produto,as centrfugas eliminaram o difcil e prolongado processo de purga necessriopara a cristalizao do acar. Por fim, no se pode esquecer da construo, a

    partir de 1837, da malha ferroviria cubana, que viabilizou o estabelecimentode engenhos afastados dos portos martimos. As ferrovias, alm de diminuremos custos de transporte dentro da i lha, permitiram a ampliao da escala deproduo das unidades aucareiras: a construo de trilhos dentro das maiores

    plantations facilitava e acelerava o transporte de cana para as moendas11.A combinao do emprego das moendas horizontais movidas a vapor,

    das caldeiras de mltiplo efeito a vcuo, das centrfugas e das ferrovias deu origemaos engenhos aucareiros completamente mecanizados de C uba. Essas unidades

    se destacaram no contexto do escravismo moderno no apenas por sua tecnologiaavanada, mas igualmente por sua fora de trabalho numerosa: alguns dessesengenhos chegaram a empregar de 400 a 500 escravos, afora uma quantidadeconsidervel de collieschineses em regime de servido temporria.

    Para se ter uma idia da inscrio dos barraces de ptio no espaodos engenhos mecanizados, o registro mais adequado a obra de Justo C anteroe Eduardo Laplante, que, em meados da dcada de 1850, apresentou umnotvel panorama das maiores unidades produtivas aucareiras de C uba. N a

    planta reproduzida como Figura 7, que representa o Engenho A rmona, v-seque o centro do espao ocupado pela casa das moendas e das caldeiras,

    11.Sobre a revoluo tec-nolgica dos engenhoscubanos,ver FRAGINALS,1987, v.1, p. 211-237 eKNIGHT,1970,p.25-46.

    Sobre as ferrovias cuba-nas,ver GARCA;ZANET-

    TI,1998,p.1-56.

    180 Anais do Museu Paulista.v.13.n.2. jul.-dez.2005.

    Figura 8 Engenho Unin. O barraco de ptio, construdo em alvenaria , localizava-se no alto

    esquerdo da imagem; a casa de vivenda se encontrava no lado oposto. Litogravura de EduardoLaplante (C AN TERO ; LAPLAN TE, 1857). Acervo da Fondacin Antonio N ez Jimnez de laN aturaleza y el Hombre, Havana.

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    complementada , direita, pela casa de purgar. Abai xo, localiza-se a casa devivenda senhorial, ladeada direita pela serralharia e esquerda pela enfermariados escravos. O barraco se encontra isolado, esquerda do conjunto.

    Portanto, ao contrrio da senzala em quadra brasileira, que searticulava de forma estreita casa senhorial por meio do terreiro de caf, obarraco de ptio cubano era erigido como um edifcio autnomo e afastadoda casa de vivenda (Figura 8 ). O utra di ferena importante se encontrava nosistema construtivo: enquanto os barraces cubanos eram de alvenaria, assenzalas brasileiras adotavam a tcnica da taipa de mo. Essas distines,entretanto, no escondem o que havia de comum aos dois arranjos de moradiaescrava: a entrada nica com porto, as trancas noturnas, os cubculos sem

    janelas, as pequenas frestas gradeadas, as portas todas voltadas ao ptio ouao terreiro. Tratava-se, enfim, de uma soluo espacial que cerceava brutalmentea autonomia escrava. Esses pontos em comum, alm do mais, sugerem a existnciade uma mesma matriz arquitetnica para a construo das senzalas em quadrano Brasil e dos barraces de ptio em C uba.

    Barraces africanos, trfico i legal e moradia escrava

    H um bom tempo os historiadores cubanos assinalam que o vocbulobarracn foi tomado de emprstimo das prticas do trfico transatlntico deescravos. N a costa africana, a palavra designava as construes onde os cativoseram confinados antes do embarque nos navios negreiros. A lgumas descriescontemporneas ajudam a se ter uma idia de sua arquitetura. Em sua memriasobre o trfico de escravos em Angola, composta em 1793 e publicada em

    1812, Lus Antnio de O liveira M endes (1977, p. 47) anotou que, ao chegaremao litoral, os cativos eram metidos em um ptio seguro, de altas paredes, queno podem pela mesma escravatura ser saltadas, ficando ali ao tempo; e denoite h um telheiro, ou armazm tambm trreos, aonde recolhida . C omefeito, os barraces ou quintais, expresso tambm utilizada pelos portuguesesem Angola caracterizavam-se por altos muros, erigidos em alvenaria ou comfortes paliadas unidas por lminas de ferro, e galpes dentro do cercado paraabrigar os cativos das variaes climticas, sendo todo o conjunto vigiado por

    homens fortemente armados. N os maiores edifcios, podiam ser acondicionadosde quatro a seis mil escravos; nos menores, eram alocados de cem a seiscentosescravos12.

    Barraces de escravos com tais caractersticas no foram exclusivosda costa angolana. O comandante da marinha i nglesa Sir H enry Huntley,responsvel pelo combate ao trfico ilegal na costa da frica O cidental entre1831 e 1838, registrou as seguintes observaes a respeito dos barraces queo clebre traficante baiano Francisco Flix de Souza (o C hach) mantinha no

    reino do Daom:

    12.Os historiadores quesalientaram a unidade vo-cabular entre os barra-ces africanos e as senza-las cubanas foram OR-

    TIZ,1996,p.75-76;RIVA,1983,p. 18-19 e FRAGI-NALS,1987,v.2,p.96.Pa-ra os barraces angola-nos,ver,alm da citaode Oliveira Mendes, ostrabalhos de RODRI-GUES,2005,p.67-71;LA-CROIX,1977,p.162-167e MILLER, 1988, p. 387-401.

    181Annals of Museu Paulista.v.13.n.2.Jul.-Dec.2005.

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    perto da residncia de De Souza esto os barraces ou depsitos de escravos, que so

    grandes espaos descobertos rodeados de muros ou de fortes paliadas, no interior dos

    quais esto os abrigos para os negros no caso de mau tempo, durante o extremo calor do

    dia ou durante a noite. A li esto freqentemente reunidas numerosas centenas de jovens, de

    adultos, de homens e de mulheres (apud VERG ER, 1987, p. 464).

    N ada diferia os barraces de C hach de seus congneres em Luandae Benguela, o mesmo podendo ser afirmado sobre os numerosos depsitos quetraficantes hispano-cubanos como Pero Blanco e Julian de Zulueta mantinham noSenegmbia e no G olfo de G uin (FRAN C O , 1980, p.169, 178, 182, 200,201). A lm do mais, os barraces do trfico de escravos guardaram muitas

    semelhanas formais e funcionais com os fortes e feitorias que os europeusestabeleceram desde o sculo XVI ao longo do litoral da frica O cidental. Agravura inserida no livro do padre francs Jean Baptiste Labat, referente sfeitorias portuguesa, inglesa, francesa e holandesa em Savi, Daom, bem o

    182 Anais do Museu Paulista.v.13.n.2. jul.-dez.2005.

    Figura 9 Palcio Real e Feitorias Europias em Savi, Daom, gravura (LABAT, 1730). Acervo do Instituto de EstudosBrasileiros da Universidade de So Paulo, So Paulo. Reproduo de H lio N obre.

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    demonstra (Figura 9). N o obstante suas variaes, barraces, fortes e feitoriaseram compostos por muros altos e vigiados, com uma nica entrada, e buscavamcontrolar de forma estrita enormes grupos de escravos antes do embarque nos

    navios negreiros.Foi esse o princpio que governou a construo das senzalas emquadra do Vale do Paraba e dos barraces de ptio de C uba. A rigor, asvivendas escravas americanas aqui analisadas representaram uma reelaboraodos barraces da costa africana, e so as circunstncias da adoo dessassolues de moradia escrava que permitem falar em filiao arquitetnica direta.

    N o contexto da era das Revolues, o escravismo atlntico passoupor uma alterao estrutural. O surgimento do movimento antiescravista, a crise

    do sistema colonial, a industrializao e a conseqente expanso do mercadomundial de artigos tropicais trouxeram um enorme impacto para a escravidonegra nas Amricas. As modificaes ocorridas na economia internacional napassagem do sculo XVIII para o XIX impuseram aos senhores de escravos anecessidade do aumento constante da produtividade do trabalho de seus cativos,sob o risco de serem excludos do mercado mundial. Isso levou, por um lado, crise de antigas regies produtoras como as A ntilhas inglesas e francesas,acuadas por movimentos abolicionistas metropoli tanos; por outro,

    especializao produtiva das regies escravistas das Amricas que refundarama instituio a partir de novos arranjos polticos. Assim, o arranque da cafeiculturabrasileira, com a elevao de sua produtividade, colocou em cheque acafeicultura cubana; a especializao dos produtores escravistas de C uba naeconomia aucareira, por sua vez, foi um dos fatores centrais da crise daproduo de acar do Brasil (TO M IC H, 2004).

    De todo modo, o motor do crescimento da produo escravistabrasileira e cubana na primeira metade do sculo XIX foi, sem sombra de dvidas,

    o trfico transatlntico de escravos, que cresceu de forma inaudita para essasduas regies aps 1808. N essa data, alm de o comrcio negreiro transatlnticoter se tornado monoplio portugus e espanhol (no ano anterior, o trfico paraas colnias inglesas e para os Estados Unidos havia sido abolido), Brasil e C ubase conectaram diretamente ao mercado mundial, por conta da abertura dosportos brasileiros e do fato de a Espanha ter perdido, no contexto das guerrasnapolenicas, o controle comercial sobre suas possesses americanas. N oentanto, aps 1815, Portugal e Espanha tiveram que fazer frente a uma fortssima

    presso diplomtica da Inglaterra pela abolio do trfico transatlntico deescravos. Em 1820, os ingleses conseguiram arrancar dos espanhis a proibiolegal do comrcio negreiro, o mesmo ocorrendo em 1831 com os brasileiros,que, aps a independncia, herdaram de Portugal todo o problema poltico arespeito do assunto (BLAC KBURN , 2002).

    N o obstante esses decretos que aboliam o trfico nas letras da lei,o comrcio negreiro brasileiro e cubano, entre as dcadas de 1820 e 1850,prosseguiu e cresceu na ilegalidade, assim como as gestes inglesas sobre os

    imprios do Brasil e da Espanha para que o encerrassem de forma definitiva. Aresposta brasileira e hispano-cubana, por sua vez, foi relativamente uniforme, o

    183Annals of Museu Paulista.v.13.n.2.Jul.-Dec.2005.

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    que demonstra a unificao pol tica, geogrfica e operacional do trfico negreirotransatlntico no sculo XIX. N o plano diplomtico, as autoridades brasileiras ehispano-cubanas recorreram a uma mesma argumentao e estratgia. N o plano

    concreto do trfico, os mercadores brasileiros e hispano-cubanos no s atuaramde forma conjunta nas mesmas regies da costa da frica (zona congo-angolanae costa da M ina; a exceo foi a costa da A lta G uin, na qual agiram apenasos hispano-cubanos) como elaboraram novas modalidades de gesto do negcio,com operaes articuladas e sofisticadas que com freqncia envolviam praascomerciais em trs continentes distintos (Rio de Janeiro, Salvador, Havana, N ovaIorque, Londres, Sevilha, Lisboa, afora os diversos portos africanos) e buscavamburlar a vigilncia naval inglesa (VERG ER, 1987; C O N RAD, 1985; ELTIS, 1987;

    TAVARES, 1988; A M ARAL, 1999; SILVA , 2004).N essas operaes, os barraces africanos desempenharam grandeimportncia. A forma arquitetnica havia sido aplicada desde o sculo XVI paracontrolar o risco de revoltas de escravos ainda em solo africano. C om oendurecimento da pol tica antiescravista pela Inglaterra, que montou uma esquadrasediada em Serra Leoa destinada exclusivamente ao combate e captura dosnegreiros, os barraces adquiriram uma outra funo, qual seja, a de apressaro ritmo do circuito do trfico. C omo assinala Robin Law (1998, p.102)

    o armazenamento de escravos [em barraces] em antecipao ao embarque, apesar de

    ser realizado antes, tornou-se uma prtica bem mais comum na era do trfico ilegal, dada

    a necessidade de acelerar a partida dos navios negreiros para minimizar os riscos de

    interceptao.

    A sofisticao dos negcios negreiros no ocorreu apenas no ladoafricano do A tlntico. Em C uba e no Brasil, os traficantes diversificaramconsideravelmente seus investimentos ao longo do sculo XIX. Uma parcela

    considervel das fortunas cafeeiras do Vale do Paraba teve origem no trficode escravos. N a colnia espanhola, a imbricao entre o setor agroexportadore o trfico transatlntico foi ainda mais profunda: as ferrovias que permitirama ampliao da fronteira aucareira e os grandes engenhos mecanizadosforam em grande parte financiados com capitais amealhados no trfico ilegalde africanos. Dois exemplos so particularmente significativos para o que seest discutindo aqui: Luciano Jos de A lmeida, proprietrio da Fazenda BoaVista, envolveu-se di retamente com o trfico i legal, como comprova seu papel

    no caso do Bracuhy, em 1852; M iguel de Aldama e Jos Luis A lfonso, donosdo Engenho Armona , tinham participao ativa no comrcio negreirotransatlntico para C uba13.

    N as dcadas de 1830 e 1840, diante do aumento da presso inglesa,da acelerao do trfico ilegal, do incremento da explorao da fora de trabalhopara responder demanda do mercado mundial e do aumento da resistnciaescrava a revolta dos M als e a conspirao de La Escalera, eventos fundamentaispara a conformao da conscincia senhorial brasileira e cubana no sculo XIX,

    ocorreram exatamente nesse perodo (REIS, 2003; PAQ UETTE, 1988) , osfazendeiros de caf e os senhores de engenho no Brasil e em C uba se viram ante

    13.Para a articulao en-tre trfico negreiro emontagem da cafeicultu-ra no Brasil, ver FRAGO-SO;FLORENTINO,1993;

    para Cuba, ver FRAGI-NALS, 1995,p. 190-205.Sobre o envolvimento deLuciano Jos de Almeidano trfico, ver ABREU,1995.Sobre Aldama e Al-fonso,ver BARCA;TOR-RES-CUEVAS, 1994, p.410-411.

    184 Anais do Museu Paulista.v.13.n.2. jul.-dez.2005.

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    a necessidade de aumentar o controle sobre seus cativos. Para tanto, o modelodo barraco africano, uma soluo arquitetnica bastante familiar para algunsdos grandes proprietrios escravistas brasileiros e cubanos, muito tinha a oferecer.

    N a passagem pelo A tlntico, o modelo recebeu modificaesrelevantes. Enquanto os barraces foram a norma na costa africana, as senzalasem quadra e os barraces de ptio encontraram pouca difuso no Brasil e emC uba. Apenas os grandes engenhos cubanos mecanizados e semimecanizadosos adotaram, o mesmo ocorrendo no Vale do Paraba, onde somente fazendascom mais de 100 escravos que no eram a regra, mas sim a exceo ofizeram. A permanncia dos cativos nos barraces africanos era breve, os cuidadoscom a higiene do local, mnimos, e o agrilhoamento, bastante comum; alm do

    mais, para acolher os escravos das variaes climticas, havia apenas pequenascoberturas feitas de palha. J as senzalas em quadra e os barraces de ptioeram concebidos como moradias permanentes. Por essa razo, a preocupaocom a higiene era bem maior, os materiais de que eram feitas, mais consistentes,e, acima de tudo, os cubculos que abrigavam os escravos pressupunham aexistncia de uma comunidade com relaes familiares estabelecidas.

    As diferenas, entretanto, no escondem a filiao: a forma retangular,o muramento, a entrada nica e a superviso estrita estiveram presentes nos dois

    lados do A tlntico14. O impulso bsico para a adoo de um modelo arquitetnicodo trfico transatlntico nasplantations cafeeiras e aucareiras do Brasil e deC uba foi a militarizao da moradia escrava, vista como um meio capaz deajudar a conter a escravaria em um contexto externo e interno profundamentetenso. N esse sentido, as senzalas em quadra e os barraces de ptio deramcontinuidade normatizao dos autores antilhanos de fins do sculo XVIII, masde um modo muito mais acentuado e explcito.

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    docompound ioruba pa-ra a forma do barraco deptio cubano:primeiro,pelo fato de ocompoundno ter entrada nica,se-gundo,por se organizar apartir do princpio da fa-mlia extensa.Ver,dessesautores,os trabalhos cita-dos na nota 3. Sobre ocompound,ver CUNHA,1985,p.87-89.

    185Annals of Museu Paulista.v.13.n.2.Jul.-Dec.2005.

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    Artigo apresentado em 07/ 2005. Aprovado em 10/ 2005.