MARQUESE, Rafael. 'Revisitando Casas-grandes e Senzalas'

download MARQUESE, Rafael. 'Revisitando Casas-grandes e Senzalas'

of 47

Transcript of MARQUESE, Rafael. 'Revisitando Casas-grandes e Senzalas'

  • 11Anais do Museu Paulista. So Paulo. N. Sr. v.14. n.1. p. 11-57. jan.- jun. 2006.

    Revisitando casas-grandes e senzalas: a arquitetura das plantations escravistasamericanas no sculo XIX1

    Rafael de Bivar Marquese2

    RESUMO: O artigo analisa a planta arquitetnica de grandes unidades rurais escravistas doVale do Paraba cafeeiro (Brasil), do cinturo algodoeiro de MatanzasCienfuegosTrinidad(Cuba) e do cinturo algodoeiro do Alabama e do baixo vale do Mississippi nos EstadosUnidos, todas construdas na primeira metade do sculo XIX. O foco incide sobre as relaesentre os processos produtivos e a disposio das casas de vivenda senhoriais e das moradiasescravas. O objetivo examinar o peso respectivo que a funo e a representaoarquitetnicas tiveram na conformao desses espaos.PALAVRAS-CHAVE: Escravido. Arquitetura de Plantation. Brasil. Cuba. Estados Unidos.

    ABSTRACT: This article analyses the architectural plans of the Vale do Paraba large slave coffeeplantations (Brazil), of the MatanzasCienfuegosTrinidad (Cuba) sugar plantations and ofthe Alabama and lower Mississipi Valley cotton plantations in the United States, all built in thefirst half of the 19th Century. The focus is cast on the relationship between the productiveprocesses and the disposition of the masters big houses and slave quarters. The aim is toexamine the respective weights that the architectural function and representation featured inthe disposition of these spaces. KEYWORDS: Slavery. Plantation Architecture. Brazil. Cuba. United States.

    A tradio da casa-grande e as plantations escravistas do Novo Mundo

    O surgimento da tradio da casa-grande na Europa ocidental doincio da Idade Moderna fez parte do mesmo processo histrico que levou formao das primeiras plantations escravistas do espao atlntico. Como

    1. O texto, originalmenteapresentado como confe-rncia ao II Encontro Es-cravido e Liberdade noBrasil Meridional (UFRGS,Porto Alegre, outubro de2005), faz parte de umprojeto coletivo mais am-plo financiado pela TheGetty Foundation.Agrade-o as sugestes e os co-mentrios da equipe doprojeto (Dale Tomich,Reinaldo Funes,Carlos Ve-negas,Charles Burroughs,Maria Ceclia Winter),bem como os organiza-dores do encontro emPorto Alegre. Agradeoainda os comentrios deUlpiano Bezerra de Mene-ses,Robert Slenes e SilviaLara.

    2. Docente do Departa-mento de Histria da Fa-culdade de Filosofia, Le-tras e Cincias Humanasda Universidade de SoPaulo. E-mail: [email protected]

  • Reinhard Bentmann e Michael Mller demonstraram h mais de trinta anos, asistematizao do movimento arquitetnico que ficou associado ao nome deAndrea Palladio notabilizado pela tentativa de trazer para o mundo modernoa linhagem das villas romanas do mundo antigo foi em grande parte umaresposta das elites mercantis venezianas crise que se abateu sobre a economiade sua repblica com os descobrimentos martimos da passagem do sculo XVpara o XVI. Com efeito, a expanso ultramarina portuguesa e espanhola trouxeenorme impacto negativo para a economia veneziana, at ento totalmenteestruturada em torno do comrcio com o Levante. Aps 1530, quando ficouevidente que a crise seria persistente, ocorreu a virada decisiva dos interessesdas elites mercantis da Serenssima para a chamada terraferma, a vasta plancieque servia de retaguarda para o enclave porturio na laguna do Adritico eque vinha sendo ocupada desde o sculo XIV. A partir da quarta dcada dosculo XVI, como parte de um movimento intelectual e social mais amplodenominado villegiatura, a paisagem da terraferma passou a ser dominada porsuntuosas villas, que, ao buscarem as tradies arquitetnicas e literrias clssicas,procuravam neutralizar as graves tenses sociais que marcavam a Repblica deVeneza (BENTMANN; MLLER, 1975).

    O quadro histrico que deu origem s villas romanas, no entanto, eraprofundamente diferente do Vneto quinhentista. Antes de tudo, pelo simples fatode se tratar de um universo social regido pelo escravismo. Em seu esforo pararecompor o mundo clssico, o palladianismo e a villegiatura tiveram que enfrentarum outro obstculo ainda maior, pois, antes das escavaes arqueolgicassetecentistas, no havia exemplares arquitetnicos das villas romanas quepudessem ser diretamente observados pelos coevos (GUARINELLO, 1993). Aarquitetura das casas de vivenda rurais que apareceu na terraferma venezianado sculo XVI, pretensamente baseada nas villas romanas, foi, portanto, muitomais uma tradio inventada do que uma recuperao integral e intocada demodelos clssicos (ACKERMAN, 1990; HOBSBAWM; RANGER, 1984).

    No exato momento em que estava sendo criada essa tradio, umesquadro societrio anlogo ao romano, composto por senhores e grandes massasde trabalhadores escravizados, ressurgia no espao atlntico. Fruto do alargamentoda base geogrfica da economia-mundo europia (WALLERSTEIN, 1974), asunidades produtivas aucareiras fundadas pelos europeus nas Canrias e naMadeira, na segunda metade do sculo XV, guardavam ainda muitos dos elementosque haviam caracterizado a atividade no Mediterrneo durante a Idade Mdia,como uma tecnologia rudimentar, adaptada de outros processos produtivos (comoo do vinho e do azeite), e uma mo-de-obra mista, com uso apenas parcial deescravos. O ponto de virada veio com a implantao da indstria aucareira emSo Tom e Hispaniola na primeira metade do sculo XVI e, sobretudo, com aformao da rede de engenhos na costa nordeste da Amrica portuguesa nasegunda metade desse sculo. Na mesma dcada em que eram impressos naItlia os Quattro Libri dellArchitettura, de Palladio (1570), Bahia e Pernambucoiniciavam o incrvel arranque de sua produo escravista de acar, com unidadesque, em breve, combinariam especializao na produo de bens para

    12 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

  • exportao, tecnologia avanada, mo-de-obra exclusivamente escrava e umaposse de terra consolidada (MILLER, 1997, p. 17).

    O advento do escravismo de plantation no espao atlntico e o dopalladianismo e da villegiatura na Itlia setentrional, enfim, fizeram parte deuma ao mais ampla de recuperao, reconfigurao e projeo do mundoantigo para a modernidade. Palladianismo e escravismo de plantation, contudo,s iriam se cruzar de forma clara e evidente a partir do final do sculo XVIII. verdade que, j na segunda metade do sculo XVII, parece ter havido uma certaleitura de Palladio para o universo dos engenhos na Amrica portuguesa. Todoo quadro pictrico empregado por Frans Post para tratar da paisagem dosengenhos de acar de Pernambuco, por exemplo, baseou-se claramente nosprincpios do palladianismo, como a disposio da paisagem construda naforma de teatro, localizando-se a casa-grande e a capela no alto da encosta,as instalaes produtivas no plano mdio e a vrzea ao fundo. Sabendo-se, noentanto, que os documentos visuais no podem ser tomados como registros fiise neutros de prticas materiais (MENESES, 1996), possvel aventar a hiptese a ser confirmada com futuras pesquisas arqueolgicas de que essa leiturade Palladio tenha ocorrido antes no campo das representaes visuais do queno da prtica construtiva dos engenhos.

    Seja como for, antes do final dos setecentos, a tradio da casa-grande desenvolveu-se bem mais no Velho do que Novo Mundo. A difuso queo palladianismo ento encontrou em diferentes lugares da Europa ocidental,como na Inglaterra hanoveriana e na Lombardia habsburga, deveu-se em grandeparte s inscries polticas do ideal da villa, tal como expresso nos QuattroLibri de Palladio e em outros textos da villegiatura, como os de Alvise Cornaro(Discorsi intorno alla vita sobria, 1583-1595) e Vincenzo Scamozzi (Ideadellarchittetura universale, 1615). Afinal, propagava-se nesses textos a visoda villa como uma pequena cidade, como um mundo fechado, um lugar ondeo gentil-homem poderia ser senhor de si, completamente autnomo no governode sua famlia e de seus dependentes (BENTMANN; MLLER, 1975). O idealservia tanto aos whigs ingleses, que o empregaram como forma de afirmaocontra a tirania Stuart, como aos aristocratas e proprietrios rurais da Lombardia,onde o palladianismo funcionou como uma arma poltica contra a dominaoda corte vienense (ACKERMAN, 1990; HARRIS, 2003).

    Esse carter poltico e ideolgico do palladianismo, somado grandeadaptabilidade de seu vocabulrio estilstico, foram dois dos fatores que, a partirdo final do sculo XVIII, permitiram sua adoo mais sistemtica por senhoresde escravos do Novo Mundo. Os casos mais notveis, nesse ponto, certamenteso os senhores virginianos George Washington e Thomas Jefferson, proprietrios,respectivamente, das famosas plantations de Mount Vernon e Monticello.Construtores de um Estado nacional recm-independente assentado na escravidonegra, Washington e Jefferson pretendiam expressar em suas plantations os ideaisde ordem, liberdade e autonomia que serviam de fundamento para seu projetopoltico (DALZELL JR.,1993).

    13Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

  • De fato, ao longo da primeira metade do sculo XIX, houve uma novaonda de apropriao do palladianismo pelos senhores de escravos das Amricas,relido agora por meio da corrente neoclssica. Em um contexto de expansoacelerada, e em escala global, da economia mundocapitalista, tal como aocorrida entre as dcadas de 1820 e 1870, as sociedades escravistas do NovoMundo passaram por profundas alteraes econmicas e polticas. Enquantoantigas reas escravistas, como o Caribe ingls e francs, entraram em crise,outras regies verificaram notvel crescimento, como foi o caso da colniaespanhola de Cuba, do Imprio do Brasil e dos estados meridionais da Repblicanorte-americana (TOMICH, 2004). Nesse movimento, a arquitetura dasplantations e as prticas de administrao de suas paisagens foram igualmentemodificadas. Novas idias sobre a gesto agrcola e do trabalho foramcombinadas com novas modalidades de construo dos espaos de produoe de moradia, que, no raro, inspiraram-se diretamente na tradio inauguradapor Palladio. Para os propsitos deste artigo, importa ressaltar o surgimento deunidades rurais escravistas com plantas inditas, que guardavam uma relaodireta com os quadros polticos que foram ento erigidos em cada uma dessasregies.

    Meu objetivo analisar a planta arquitetnica de algumas das maioresunidades rurais escravistas do Vale do Paraba cafeeiro (Brasil), do cinturoaucareiro de MatanzasCienfuegosTrinidad (Cuba), e do cinturo algodoeirodo Alabama e do baixo vale do Mississippi nos Estados Unidos, todas elasconstrudas na primeira metade do sculo XIX. Convm dizer que os exemplaresaqui examinados, dadas suas dimenses, elaborao arquitetnica e fora detrabalho que empregaram, constituram a exceo, e no a regra em suasrespectivas regies. De todo modo, vale lembrar a advertncia de John Vlachsobre o peso que, no sul dos Estados Unidos, tiveram essas grandes plantations,de resto vlida para Brasil e Cuba. Em suas palavras,

    como um lugar to pouco representativo como a grande plantation veio dominar a auto-percepo do sul um ponto sobre o qual tem havido considervel discusso. Basta dizeraqui que tanto aqueles fazendeiros que possuam poucos escravos como aqueles que notinham nenhum ficavam impressionados pelas prdigas plantations habitadas pela gentry,mirando essa classe e suas construes com uma mistura de admirao e inveja. A defernciacom a qual eram tratados os grandes planters em todos os condados se relacionava, semdvida, s mensagens que eram visualmente expressas no design de suas propriedades,indicaes mais do que claras de uma dominao senhorial que requeria, ao mesmo tempo,a submisso do trabalhador negro e a do visitante branco (VLACH, 1993, p. 8).

    Tais exemplares arquitetnicos, em resumo, marcaram profundamentea paisagem escravista do sul dos Estados Unidos, de Cuba e do Brasil. Dado olimite de espao, meu foco incidir sobre as relaes entre os processos produtivose a disposio das casas de vivenda senhoriais e das moradias escravas naplanta das grandes fazendas e engenhos sulistas, cubanos e brasileiros. Pretendo,com isso, examinar o peso respectivo que a funo e a representaoarquitetnicas tiveram na conformao desses espaos.

    14 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

  • Cabe ainda uma rpida explicao para a escolha do ttulo do artigo.Gilberto Freyre, em uma das obras mais famosas da literatura mundial sobre aescravido negra nas Amricas, adotou como ttulo justamente esses dois espaosde moradia, empregando-os como uma metfora capaz de sintetizar o conjuntodas relaes sociais que pretendia apreender. Alm de todos os problemas deCasa-grande & Senzala j exaustivamente apontados pelos crticos h maisde meio sculo , dois em especial chamam a ateno: primeiro, a anulaodo tempo histrico; segundo, o completo olvidamento da dimenso do poderexpressa nesses espaos de moradia. Da a necessidade de revisitar, do pontode vista da arquitetura e do poder, as relaes histricas entre casas-grandes esenzalas na paisagem americana.

    Processos produtivos, funo e representaes arquitetnicas

    H um bom tempo os historiadores da arquitetura no Brasil trabalhamcom a categoria programa de necessidades para entender de que modo osespaos construdos so determinados pelos usos funcionais a que se destinam(COSTA, 1941; LEMOS, 1999). Trata-se, sem dvida, de uma ferramentabastante til para compreender as articulaes entre os processos produtivos doalgodo, do acar e do caf e a implantao dos edifcios que compunhamas fazendas e engenhos do sul dos Estados Unidos, de Cuba e do Brasil. til,porm insuficiente. Noutros termos, essas unidades rurais escravistas foramerigidas articulando de modo estreito as preocupaes funcionais com os efeitossimblicos que pretendiam produzir nos diversos grupos sociais nelas envolvidos senhores, trabalhadores livres, escravos e comunidade externa plantation.Para demonstr-lo, preciso antes de tudo examinar as demandas criadas pelosprocessos produtivos desses artigos sobre a implantao das fazendas eengenhos.

    Comeo pelo caso do algodo. O artigo foi cultivado para finsmercantis em todas as Amricas desde o sculo XVI, mas, at meados do XVIII,seu valor comercial para as metrpoles foi diminuto. A razo se encontrava,sobretudo, na reduzida demanda europia. A partir do quarto final dos setecentos,com o advento da industrializao, o consumo do produto aumentousubstantivamente, o que estimulou diversas regies do Novo Mundo como asterras baixas da Carolina do Sul e da Georgia, as Antilhas francesas e inglesas,as Guianas, o Suriname, Maranho e Pernambuco a produzirem o artigo. Ata dcada de 1790, predominou nas plantaes americanas o granjeio dasvariedades do algodo arbreo de fibra longa, cujo descaroamento podia serfacilmente realizado por mecanismos (derivados da churka oriental) compostosde dois rolos pequenos postos em paralelo, que se moviam em direes opostase eram acionados manualmente ou por pedais; o acondicionamento nos fardos,por sua vez, era feito com o prprio peso dos trabalhadores escravos (VELLOSO,

    15Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

  • 16 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

    1806, p. 5-7) (Figura 1). At ento, o algodo herbceo de fibra curta notinha destinao comercial, haja vista as grandes dificuldades para o seubeneficiamento.

    Na dcada de 1780, as maiores regies produtoras de algodo doNovo Mundo eram Maranho e Pernambuco (Amrica portuguesa) e SoDomingos (Antilhas francesas). Os estados do sul dos Estados Unidos eram, nessemomento, produtores marginais do artigo no mercado mundial. A virada veiona dcada seguinte, com a revolucionria inveno do descaroador de EliWhitney. O invento fez parte de um conjunto de esforos sistemticos paraultrapassar os obstculos que impediam a converso do algodo herbceo defibra curta em gnero agrcola mercantil. A adoo do novo descaroador deWhitney na ento fronteira escravista do sul as terras altas da Carolina do Sule da Gergia foi imediata: alm de aumentar enormemente a capacidade debeneficiamento do produto, permitindo o plantio do algodo de fibra curta emlarga escala, o baixo custo do mecanismo tornou-o disponvel a todos osproprietrios escravistas das terras altas. A fcil converso do cultivo do tabacoe do trigo para o do algodo simplificou a transio agrcola para o novoproduto (GRAY, 1958, p. 2, 678-686; CHAPLIN, 1993, p. 277-329).

    Se a inveno de Whitney superou de forma definitiva o gargalo parao beneficiamento do algodo de fibra curta, permaneciam as dificuldades parasua colheita. O cultivo no apresentava tantos problemas, pois j na dcada

    Figura 1 Representao ideal da produo algodoeira nas Antilhas francesas, dcada de1760. Padro tcnico que vigorou em todas as Amricas antes da inveno do descaroadorautomtico de Eli Whitney, em 1793. [ANNIMO], Une habitation des Isles de lAmrique olon cultive le coton (DIDEROT, 1969).

  • de 1790 adotou-se a tcnica de plant-lo em regos, com o uso do arado, e deefetuar a capina com o emprego combinado de arados e enxadas. Por outrolado, as variedades ordinrias de algodo de fibra curta cultivadas na passagemdo sculo XVIII para o XIX nas terras altas da Carolina do Sul e da Gergia reduziam em muito a capacidade de colheita por escravo, devido dificuldadede retirar as cpsulas do vegetal. No Baixo Sul (Alabama, Mississippi, Louisiana),em fins da dcada de 1800, a criao de variedades hbridas de algodo defibra curta (valendo-se para tanto de sementes do algodo mexicano) solucionouo problema. Os novos tipos de algodo que passaram a ser cultivados nosestados do sul a partir da dcada de 1810, mais produtivos e mais fceis deserem colhidos, tiveram importncia considervel no deslanche da economiaalgodoeira norte-americana, com o notvel aumento da produtividade agrcola,tendncia que ganhou impulso ainda maior com a ocupao e o cultivo, aps1820, da regio da Black Prairie do Alabama e Mississippi, e das terras dealuvio do rio Mississippi (GRAY, 1958, p. 2, 689-690; WHARTENBY, 1977,p. 100-115; WRIGHT, 1978, p. 15-22).

    Esse um ponto fundamental para compreender a arquitetura dasplantations algodoeiras no sul dos Estados Unidos. O foco do processo produtivoresidia no campo, e no na manufatura. Antes da Guerra Civil, o aumentoconstante da produo algodoeira norte-americana escorou-se basicamente naampliao da rea de cultivo e no aumento de produtividade da planta e dotrabalho escravo nas fainas agrcolas (WHARTENBY, 1977). Aps a invenode Whitney, as nicas inovaes ocorridas na etapa de beneficiamentoconsistiram no melhoramento do mecanismo criado em 1793 e na aplicaode prensas mecnicas para o acondicionamento da fibra nos fardos destinados exportao. Os edifcios reservados para tanto eram trs: 1) o cotton gin,onde ocorria o descaroamento, em geral um edifcio de madeira com doispavimentos, sendo o superior destinado alimentao do maquinrio com amatria-prima e o inferior reservado trao (animal ou vapor) e sada dafibra j descaroada; 2) a prensa, movida por trao animal, com um eixo demadeira capaz de comprimir as fibras em fardos de 180 a 270 quilos; 3) oarmazm destinado aos fardos (AIKEN, 1973; VLACH, 1993) (Figura 2). Essesedifcios podiam ser dispostos em qualquer ponto da sede da fazenda. No casoda produo algodoeira, por conseguinte, no houve um programa denecessidades que impusesse de forma rigorosa as demandas do processoprodutivo sobre a implantao arquitetnica da unidade rural.

    O mesmo no se pode afirmar a respeito do acar. Desde o inciodo sculo XVII, quando se criaram, em Pernambuco e na Bahia, as linhas geraisdo padro tcnico que iria vigorar em todas as plantations americanas at ofinal do sculo seguinte, a complexidade do processo de produo imps umcerto programa de necessidades a ser atendido na construo do engenho(GAMA, 1983; WATTS, 1992). Como se sabe, a transformao do sumo dacana em acar envolve etapas distintas, porm articuladas. Aps o corte, acana precisa ser moda em menos de 24 horas, sob o risco de inviabilizar aproduo. A primeira imposio do processo produtivo sobre a arquitetura dosengenhos, portanto, derivou desse elemento. Houve, desde o sculo XVII at o

    17Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

  • 18 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

    presente, uma relao estreita entre os meios de transporte disponveis e aextenso e distncia dos canaviais em relao fbrica.

    Mas no apenas isso. Antes do sculo XIX, o engenho de acar teveo carter de manufatura orgnica. Conforme indicou a anlise de Marx sobreesta base tcnica, a proporcionalidade matemtica existente entre cada umadas atividades a serem desempenhadas s permitiria a ampliao da escala deproduo por meio da multiplicao simtrica de todas as etapas do processoprodutivo, com seu respectivo nmero de trabalhadores (MARX, 1990, v. I, p.280-281). Foi o que ocorreu nas plantations aucareiras dos sculos XVII e XVIII.A quantidade de cana a ser plantada era determinada pela capacidade deproduo do engenho, que, por sua vez, obedecia correlao entre capacidadede esmagamento das moendas, de processamento do caldo no terno das caldeirase de purificao dos pes de acar na casa de purgar. O equilbrio existenteentre essas fases significava que, caso fosse adotada uma mudana em umadeterminada etapa, todo o processo teria que ser revisto para atender proporcionalidade que regia o conjunto (CASTRO, 1976).

    Em que pesem algumas propostas surgidas em fins do sculo XVIII,como a de Jacques-Franois Dutrne para So Domingos (1790), a arquiteturados engenhos de acar do Novo Mundo foi relativamente uniforme durantetodo esse perodo. Moenda e casa das caldeiras faziam parte de uma nicaedificao ou eram inscritas em construes contguas. Nos engenhos da Amricaportuguesa e das Antilhas francesas que produziam acar branco e no

    Figura 2 Cotton Gin e prensa mecnica. Ilustrao em TOMPKINS, D. A. History of MecklenburgCounty and the City of Charlotte, 1903 (Apud AIKEN, 1973).

  • 19Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

    apenas acar bruto (como nas Antilhas inglesas) , a casa de purgar constituaum edifcio parte. Por fim, no caso das moendas movidas gua ou vento,havia uma outra determinao, qual seja, a da proximidade das fontes deenergia3.

    A imposio das necessidades do processo produtivo aucareirosobre a planta arquitetnica das unidades rurais escravistas acentuou-se aindamais aps 1830, com a revoluo tecnolgica ocorrida no setor. Nas Amricas,isso se deu sobretudo em Cuba e, em menor escala, no Delta do Mississippi.Quebrando com o carter de manufatura orgnica, o engenho de acar adquiriunessas regies o estatuto de verdadeira indstria no campo. A moagem, ocozimento e a purificao foram, ento, profundamente transformados. As novasmoendas horizontais, construdas com ferro fundido e movidas a vapor, ampliaramem muito a capacidade de extrao do sumo da cana. Essa inovao eracompatvel com o padro tcnico manufatureiro anterior, mas em contrapartidaexigia a multiplicao do nmero de ternos de caldeiras abertas e a ampliaosubstancial nas dimenses da casa de purgar, o que tornava ainda maiscomplicados os controles tcnicos do processo produtivo (Figura 3). A soluopara o problema veio com as caldeiras a vcuo, que aumentavam enormementea produtividade do engenho, garantiam um controle tcnico preciso sobre ocozimento, e reduziam em muito a demanda de trabalho e combustvel, poisaproveitavam a energia a vapor que era gerada para movimentar a moenda.No que se refere ao preparo final do produto, as centrfugas eliminaram o difcile prolongado processo de purga necessrio para a cristalizao do acar(FRAGINALS, 1987; SITTERSON, 1973) (Figura 4).

    3. Esse conjunto relativa-mente uniforme foi regis-trado exausto pela ico-nografia coeva.Ver, a res-peito, MARQUESE, 2002.

    Figura 3 Eduardo Laplante, Casa das caldeiras do engenho El Progreso (detalhe), litografia(CANTERO; LAPLANTE, 1857).

  • 20 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

    Tudo isso implicou a reviso profunda da planta arquitetnica dosengenhos. Criou-se a necessidade, antes de qualquer coisa, de um enormealargamento da rea de cultivo. Em regies j densamente ocupadas por umarede estabelecida de engenhos, como nas colnias inglesas e francesas no Caribeou no Recncavo baiano, esse ponto representou considervel obstculo para ainovao. Em Cuba, pelo contrrio, havia amplas reservas de terra virgem nointerior do territrio. A construo, a partir de 1837, da malha ferroviria cubanaviabilizou o estabelecimento de engenhos afastados dos portos martimos. Asferrovias, alm de diminurem os custos de transporte dentro da ilha, permitiram aampliao da escala de produo das unidades aucareiras, pois, dentro dasmaiores plantations, a construo de trilhos facilitava e acelerava o transporte decana para as moendas (GARCA; ZANETTI, 1998). A combinao do empregodas moendas horizontais movidas a vapor, das caldeiras de mltiplo efeito a vcuo,das centrfugas e das ferrovias deu origem aos engenhos aucareiros completamentemecanizados de Cuba, que passaram a dominar a paisagem at ento desocupadano interior da regio centro-ocidental da ilha. As unidades que foram a erguidasobedeciam em grande parte s demandas funcionais criadas pelo novo padrotcnico da indstria aucareira, adotando um modelo de implantao arquitetnicaindito na histria do produto (TOMICH, 2005a) (Figura 5).

    Tal como o acar, a produo de caf requeria certos procedimentosque condicionavam de forma decisiva a construo da fazenda. No entanto,no que se refere complexidade do beneficiamento, a cafeicultura bem maisprxima da produo algodoeira do que da fabricao do acar, pois se tratade um processo fsico, e no qumico. O beneficiamento do caf consiste apenasna separao da semente dos dois invlucros que a revestem, a polpa e opergaminho. O mtodo que os rabes primeiros produtores do artigo haviam

    Figura 4 Eduardo Laplante, Casa das caldeiras do engenho Flor de Cuba, litografia (CANTERO;LAPLANTE, 1857).

  • 21Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

    adotado para tanto era deixar os frutos maduros secarem por um longo tempo,em panos dispostos no cho e expostos ao sol, at o ponto em que a polpa eo pergaminho fossem facilmente retirveis em piles manuais (VELLOSO, 1800).Quando, na virada do sculo XVII para o XVIII, os poderes coloniais europeuspassaram a produzir o artigo, foram introduzidas modificaes importantes,visando, em especial, ao aumento na escala da produo. Isto ocorreu sobretudocom o sucesso da aclimatao do arbusto na Amrica. Na segunda metade dosculo XVIII, ocasio em que as Antilhas francesas se tornaram a maior produtoramundial do gnero, criou-se um conjunto de normas tcnicas que, em suas linhasgerais, at hoje seguido por uma parte considervel dos produtores globais.

    Esse padro pode ser observado no trabalho de P. J. Laborie, umgrande produtor escravista de caf de So Domingos. Laborie foi um daquelessenhores que, no curso da revoluo escrava na dcada de 1790, apoiaram ainvaso inglesa da colnia francesa como meio para restabelecer a ordemescravista. Para tanto, redigiu, com base em sua experincia de cafeicultor, omanual The Coffee Planter of Saint Domingo, destinado a guiar os eventuaisinvestidores ingleses no processo de reconstruo da economia escravista dacolnia. O projeto de Laborie foi derrotado com a vitria das tropas de ex-escravos, comandadas por Touissaint LOuverture, mas seu manual persistiu comoa principal referncia agronmica sobre o assunto por todo o sculo XIX.

    O tratado foi dividido em quatro captulos, que abordaram a escolhae preparo dos terrenos para o plantio do caf, a construo e distribuio dosedifcios, a cultura e processamento dos gros e, por ltimo, a administraodos escravos. Para nossos fins, importa salientar de que modo as tcnicas

    Figura 5 Eduardo Laplante, Vista do engenho Santa Teresa, 1857, litografia (CANTERO;LAPLANTE, 1857).

  • 22 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

    prescritas por Laborie determinavam a implantao da unidade rural. O mtodopor ele recomendado, dada a alta pluviosidade caribenha, era o que por l sedenominava preparao em casca, conhecido no Vale do Paraba como viamida. Neste mtodo, a polpa dos frutos era imediatamente retirada aps acolheita por uma mquina despolpadora acionada por energia hidrulica;envolvidos apenas pelo pergaminho, em seguida os gros eram lavados durante24 horas em tanques com gua corrente, com o duplo propsito de tirar a gomadas sementes e de separar os gros maduros dos cochos que, ao serem colocadosnesses tanques, subiam superfcie estes gros, apartados dos maduros,davam posteriormente um caf de inferior qualidade. Aps a lavagem, os grosem pergaminho eram levados aos terreiros (ou plataformas de secar, nome quelhes era dado nas Antilhas francesas), e, quando completamente secos, procedia-se retirada final do pergaminho nos moinhos de descascar (no caso, em ummecanismo que, no Brasil, seria conhecido como carreto ou ripes), encerrando-se o processo com a escolha dos gros e o seu ensacamento (LABORIE, 1798).

    Dois pontos se destacavam nessas tcnicas: 1) a importnciafundamental do abastecimento constante de gua para a movimentao dosmecanismos de beneficiamento e lavagem dos gros; 2) a centralidade dosterreiros. A rigor, pelas pranchas que apresentavam algumas das mais eficientesplantations cafeeiras de So Domingos, nota-se facilmente como o terreiro geravao conjunto arquitetnico da fazenda (Figura 6).

    Aps o colapso da produo de So Domingos com a vitria darevoluo escrava, Brasil, Cuba e Java herdaram a posio da antiga colnia

    Figura 6 Planta arquitetnica de uma habitation cafeeira de So Domingos, anterior Revoluo de 1791 (LABORIE, 1798).

  • 23Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

    francesa no mercado mundial do artigo. A partir da dcada de 1830, com odeslanche da cafeicultura escravista no Vale do Paraba, essa posio coubeexclusivamente ao Brasil (VALVERDE, 1985). Por aqui, entretanto, houve algumasalteraes no que se refere base tcnica da produo, tanto na esfera agrcolacomo na manufatura. O que nos interessa a segunda parte. Entre as dcadasde 1830 e 1860, o processo de beneficiamento adotado por praticamentetodos os cafeicultores do Vale do Paraba foi o da via seca, que consistia nasecagem dos frutos colhidos em terreiros de cho batido (aps 1850, no raroasfaltados ou ladrilhados) at o ponto em que as polpas estivessem completamentesecas. A separao da polpa e do pergaminho ocorria num engenho de piles mecanismo que reunia quatro piles movidos a gua num s conjunto (Figura7) , tendo, por vezes, ventiladores unidos ao eixo da roda para limpar a poeiraoriginada com a quebra dos revestimentos dos gros do caf; em seguida, ogro j limpo ia para a casa da escolha, aps o que o caf estava pronto paraser ensacado e enviado ao mercado (AGUIAR, 1836, p. 15-17).

    A despeito dessas alteraes, o terreiro compreendido nadocumentao coeva como o centro do quadro da fazenda permaneceucomo a forma geradora do conjunto arquitetnico cafeeiro (CARRILHO, 1994,p. 120). O principal manual agrcola do Vale do Paraba oitocentista, a famosa

    Figura 7 Bateria de piles, regio de Entre-Rios, RJ. J.B. Wiegandt, 1878, xilogravura(SMITH, 1878).

  • 24 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

    Memria, do baro do Paty do Alferes, reconheceu isso de modo muito evidente.Ao fornecer as instrues para a construo de uma fazenda de caf, escreveuLacerda Werneck:

    [...] apenas achado o lugar para sentar as mquinas, que, se for possvel, devem ficar noquadro da fazenda, tirar ou mandar tirar a planta, com a designao da casa de moradia,de todas as mquinas que forem necessrias, de paiis e armazns, de cavalarias esenzalas para a moradia dos pretos (WERNECK, 1985, p. 57).

    Mesmo com os melhoramentos da segunda metade do sculo XIX,como o emprego do maquinrio Lidgerwood, a construo de terreiros asfaltadose ladrilhados ou a adoo da via mida de beneficiamento, no houve mudananessas demandas construtivas (Figuras 8 e 9). No caso da cafeicultura brasileira,portanto, a inovao tcnica no se traduziu em reviso radical da implantaoarquitetnica, tal como ocorreria com a produo aucareira.

    Do que foi exposto at o momento, possvel depreender que asexigncias de processos produtivos como os do acar e o do caf criaram umclaro programa de necessidades para a construo de engenhos e fazendas, oque em absoluto significa afirmar que responderam sozinhas pela implantaodessas unidades. Outras escolhas estiveram em jogo, mesmo para fazendas eengenhos que seguiam um padro tcnico anlogo ou que produziam artigosdistintos. Uma rpida comparao entre plantations das regies examinadasservir para comprov-lo.

    Figura 8 Maquinrio Lidgerwood, fazenda Flores do Paraso, Rio das Flores, RJ, julho de 2005,fotografia de Maria Ceclia Winter.

  • 25Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

    Tome-se, em primeiro lugar, o exemplo da habitation cafeeira de SoDomingos, veiculado por Laborie, e um esquema de implantao da fazendaBoa Vista (Bananal, Vale do Paraba paulista), feito a partir de um leo de GeorgGrimm. Tanto em um caso como em outro, o terreiro ocupa posio central noconjunto arquitetnico. Todavia, enquanto na habitation de Laborie a casa devivenda se localiza fora de seu eixo central e as senzalas ocupam apenas umade suas faces (Figura 6), na fazenda Boa Vista a casa de vivenda monumental,diga-se de passagem no s ocupa o eixo central do terreiro como o partidoarquitetnico obedece claramente ao modelo em U proposto por Palladio,conjugando-o com duas senzalas em quadra, uma defronte e outra atrs da casade vivenda (Figuras 10 e 11). Um segundo exemplo pode ser buscado na Louisianae em Cuba. A plantation Uncle Sam e o ingenio Manacas tinham o mesmo padrotcnico, isto , eram engenhos semimecanizados, que compatibilizavam o empregode moendas horizontais a vapor com ternos de caldeiras abertas (Figuras 12 e13). No que se refere implantao arquitetnica, entretanto, a Uncle Sam eramuito mais parecida com as plantations algodoeiras do sul dos Estados Unidosdo que com suas equivalentes aucareiras em Cuba.

    Para entender essas diferenas, necessrio recorrer a uma chaveinterpretativa que no se limite mera explicao funcional. Em outras palavras,atentar para os elementos de representao mobilizados na ordenao dosespaos de produzir e de morar dessas plantations pode ajudar a compreend-las devidamente. No que se segue, apresento em poucas pginas um esquemageral de interpretao dessas relaes em grandes fazendas e engenhos do sul

    Figura 9 Terreiro e engenho, fazenda Flores do Paraso, Rio das Flores, RJ, julho de 2005,fotografia de Maria Ceclia Winter.

  • 26 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

    Figura 10 Georg Grimm [atribuio], Fazenda Boa Vista (detalhe), Bananal, SP, leo sobre tela, ca. 1880, 74cm x 144cm (SETUBAL, 2004, p.160).

    Figura 11 Osmar Cassiano Gomes Jr., Fazenda Boa Vista, 2005, planta baixa.

  • 27Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

    Figura 12 Vista a vo de pssaro, plantation Uncle Sam, Louisiana. Coleo Historic AmericanBuildings Survey da Biblioteca do Congresso, Washington, D.C. (cortesia da Prints andPhotographs Division da Biblioteca do Congresso, EUA).

    Figura 13 Eduardo Laplante, Vista do engenho Manacas, litografia (CANTERO; LAPLANTE,1857).

  • dos Estados Unidos, de Cuba e do Brasil, que se apropriaram de elementosparticulares da tradio do palladianismo e do vocabulrio estilstico doneoclssico, reconfigurando-os conforme os condicionamentos locais, isto , deacordo com as sociedades escravistas e os quadros polticos a que pertenciam.

    O sul dos Estados Unidos e o republicanismo jeffersoniano

    Retomemos a penltima imagem que foi apresentada (Figura 12).Trata-se de um desenho a vo de pssaro da plantation Uncle Sam, feito nosanos 1940. Localizada no Delta do Mississippi, essa propriedade pertencentea Samuel Faggot foi erguida na segunda metade da dcada de 1830. Emmeados do sculo, sua unidade aucareira semimecanizada movida a vaporcontava com cerca de 165 escravos (VLACH, 1993, p. 191). A casa de vivenda,de inspirao neoclssica, era secundada simetricamente por duas garonnires,dois escritrios e dois pombais, e localizava-se logo na entrada da propriedade,defronte ao rio Mississippi. As moradias dos escravos estavam dispostas em doislocais distintos. Uma primeira fileira de senzalas, que se iniciava com a enfermaria,encontrava-se esquerda da casa senhorial, ao passo que um segundoagrupamento de moradias, tambm enfileiradas, ficava bem ao fundo da sededa plantation. Em posio transversal entre os dois conjuntos de senzalas,assentavam-se as instalaes produtivas moendas, caldeiras, armazns.

    Sua implantao, portanto, separava de forma ntida os espaos demoradia de senhores e escravos. A Uncle Sam tinha uma semelhana muitoacentuada com outra plantation aucareira do Delta do Mississippi, a Evergreen,que, at recentemente, mantinha de p suas senzalas oitocentistas. A casa devivenda localizava-se na entrada da plantation e se encontrava voltada para orio, ao passo que a fileira de casebres escravos ficava sua esquerda, nitidamenteseparada da casa senhorial (Figuras 14). Enquanto a casa de vivenda atendeuao revival grego corrente no sul dos Estados Unidos a partir da dcada de 1820(Figuras 15 e 16), as senzalas geminadas cada qual destinada a duas famliasescravas foram construdas seguindo rigorosamente as prescries da teoriaadministrativa coeva (Figura 17), isto , enfileiradas, sombreadas, uniformes emtamanho e aparncia, providas de janelas e varandas, erigidas em madeira,assoalhadas, elevadas a dois ps de altura do cho, com chamins de pedra etijolos (MARQUESE, 2004, p. 361-362).

    Uncle Sam e Evergreen, alm de serem da mesma regio, produziamum mesmo artigo. A plantation Thornhill, por sua vez, ficava na Black Prairiealgodoeira do estado do Alabama. Construda entre 1833 e 1835, s vsperasda Guerra Civil empregava 156 escravos. Como se pode depreender de umaelevao frontal da casa de vivenda feita um sculo aps sua construo, seuestilo combinava seis colunas jnicas um aporte oitocentista com um riscode estilo georgiano, tpico da Virgnia setecentista (Figura 18). Ainda que ovocabulrio fosse distinto, a implantao arquitetnica era praticamente igual

    28 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

  • 29Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

    ao que se observava no Delta do Mississippi (Figura 19): casa de vivenda voltadapara a entrada da plantation (no caso, na beira da estrada, e no do rio),moradias escravas em linha, na retaguarda e afastadas da casa senhorial,instalaes produtivas ao final da alameda das senzalas. Vlach (1993, p. 189-190) esclarece que nem todos os cativos de Thornhill residiam nas moradiasque aparecem no plano; cerca de dois teros da escravaria vivia em doisagrupamentos de senzalas prximos aos campos de algodo.

    O ltimo exemplo a ser apontado para o caso norte-americano ,certamente, o mais clebre, e servir para demonstrar a existncia de um padrocomum em todo o sul dos Estados Unidos, de Chesapeake ao Golfo do Mxico.Refiro-me a Monticello, a famosa plantation de Thomas Jefferson, visitadaexaustivamente desde o sculo XIX e transformada em um dos principais lugaresda memria da Repblica norte-americana. Seu projeto, elaborado pelo prprioJefferson, baseou-se em uma leitura direta dos Quattro Libri de Palladio,combinando essa referncia com outras matrizes arquitetnicas. De todo modo,a primeira referncia foi primordial, sobretudo na consecuo do plano em U(Figuras 20 e 21). Palladio considerava essas dependncias laterais como osbraos da villa, cuja cabea e tronco seriam exatamente a casa-grande; poressa razo, aos braos eram reservadas as instalaes voltadas para a produoe o servio da casa de vivenda. Em seu projeto de 1772, Jefferson inspirou-se

    Figura 14 Esquema de implantao da plantation Evergreen, Louisiana. Coleo Historic AmericanBuildings Survey da Biblioteca do Congresso, Washington, D.C. (cortesia da Prints and Photographs Divisionda Biblioteca do Congresso, EUA).

  • 30 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

    claramente em Palladio, imprimindo-lhe, no entanto, a brutalidade das relaesescravistas de poder. Organizados em dois pavimentos, os braos do Monticellotinham, em sua parte superior, um terrao para desfrute da famlia e visitantesbrancos, e, em sua parte inferior, as dependncias de servio e os alojamentosdos escravos domsticos.

    Os brancos literalmente andavam sobre as cabeas dos negros.Subjacente a tal escolha arquitetnica, havia a idia de apagar do raio de visosenhorial a presena da populao escravizada, e nisso que Monticello seaproximou das demais plantations do sul dos Estados Unidos. Tal como nasoutras unidades escravistas examinadas, os trabalhadores rurais que Jeffersonmantinha no cativeiro residiam em agrupamentos alinhados de senzalas, afastadosda sede (ACKERMAN, 1990, p. 186, 193; DALZELL JR., 1993).

    Como explicar esse modelo de implantao? Como se viu, a respostano se encontra no programa de necessidades da produo do acar, doalgodo ou de outros gneros, mas sim no quadro das relaes sociais e polticasmais amplas. Dentre as sociedades escravistas do Novo Mundo, o sul dos Estados

    Figura 15 Vista frontal casa de vivenda da plantation Evergreen, Louisiana. Coleo Historic American Buildings Survey daBiblioteca do Congresso, Washington, D.C. (cortesia da Prints and Photographs Division da Biblioteca do Congresso, EUA).

  • 31Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

    Unidos se notabilizou pela ciso absoluta entre o universo dos brancos livres eo universo dos negros escravizados, algo que foi sendo paulatinamente construdoao longo do sculo XVIII, consolidando-se de forma definitiva na primeira dcadados oitocentos, quando a pele negra se tornou marca de um estatutopermanentemente subalterno. Isso foi decorrncia, em primeiro lugar, da virtualausncia de alforrias no sul (a exceo foi o breve perodo que se seguiu Guerra de Independncia), que levava a uma associao quase imediata entrea cor negra e a condio escrava, e, em segundo lugar, do prprio mecanismode reproduo de seu sistema escravista. Como se sabe, o crescimento vegetativoda populao escrava presente em Chesapeake desde o incio do sculo XVIIIe, em Lowcountry, desde sua segunda metade possibilitou, na centria seguinte,a incrvel expanso do escravismo norte-americano sem a necessidade do trficonegreiro transatlntico (GENOVESE, 1974; BERLIN, 1998; MORGAN, 1998).

    O fato de a escravaria ser crioulizada, de se organizar em ncleosfamiliares relativamente estveis e de a populao negra livre ser diminuta e

    Figura 16 Vista lateral casa de vivenda da plantation Evergreen, Louisiana. Coleo Historic American Buildings Survey daBiblioteca do Congresso, Washington, D.C. (cortesia da Prints and Photographs Division da Biblioteca do Congresso, EUA).

  • 32 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

    estritamente vigiada pelos poderes pblicos dispensou a adoo, dentro dasplantations, de formas rigorosas de confinamento espacial. Em uma frase, o riscode fugas ou rebelies no teve qualquer papel na conformao da moradiaescrava no sul dos Estados Unidos. Da as senzalas no terem trancas e noserem vigiadas de perto pelo olhar branco, o que em absoluto significou ausnciade controle ou interferncia senhorial. Simetria e uniformidade arquitetnicaseram, em si, um terrvel ato de expresso do poder dos senhores sobre seusescravos, algo que os ltimos percebiam de forma cristalina (VLACH, 1993, p.162-165).

    Mais importante, no entanto, foi o fato de as casas de vivendabuscarem poucos efeitos de representao diante dos escravos. De acordo coma sugesto de Epperson (1999, p. 168), a escravaria no era a audinciaprimordial da arquitetura veiculada pelas casas-grandes do sul dos EstadosUnidos. Elas, afinal, davam suas costas para as senzalas, voltando-se antes aos

    Figura 17 Senzalas da plantation Evergreen (CARANDINI, 1984, v. 1, p. 200).

  • 33Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

    rios e s estradas, isto , s vias por onde trafegavam aqueles que iriam consumi-las visualmente. Noutras palavras, seu pblico-alvo era a comunidade branca,e, para entender corretamente o ponto, deve-se mirar para o sistema polticonorte-americano anterior Guerra Civil.

    hoje assente, na historiografia, que os estados do sul eram regidospor uma verdadeira democracia eleitoral, baseada, no entanto, numa clivagemracial profunda entre brancos inclusive os pobres com plenos direitos polticos,e negros, sem direito algum. A rigor, era justamente a presena da escravidonegra que fornecia a base material e ideolgica para a igualdade poltica entreos brancos. A fim exercerem o controle do jogo poltico, os grandes proprietriostinham que lutar pelos votos e pelo apoio dos pequenos proprietrios escravistasou mesmo dos no-proprietrios de escravos (COOPER JR., 2000; PARISH,1989, p. 124-138). Nesse jogo, o papel das casas-grandes monumentais foide grande relevncia: ao exprimirem o poder, o sucesso empresarial e acapacidade de liderana de seus senhores, acabaram por prestar servios

    Figura 18 Carl Edins, Frederick Utting e Clive Richardson. Elevao frontal da plantation Thornhill,. 1934-1935. Coleo Historic American Buildings Survey da Biblioteca do Congresso, Washington, D.C. (cortesiada Prints and Photographs Division da Biblioteca do Congresso, EUA).

  • 34 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

    importantes ao exerccio da hegemonia dos grandes plantadores sobre asociedade sulista.

    O crculo se fecha uma vez mais com Monticello. O republicanismojeffersoniano ofereceu aos senhores de escravos sulistas o ncleo duro de suaideologia poltica. Esse iderio bebia diretamente no modelo de ordem eindependncia veiculado pela tradio dos tericos ingleses da commomwealthe tambm do palladianismo, e que, por sua vez, era plenamente compatvelcom o paternalismo que estava na base do ethos senhorial (MORGAN, 1975;OAKES, 1990; ASHWORTH, 1995). Por todas essas razes, segundo oraciocnio dos proprietrios, seus escravos, racialmente inferiores e equivalentesa adolescentes brancos, jamais poderiam ocupar a face mais visvel dasplantations.

    Figura 19 W. A. Hotchkiss, Implantao de Thornhill, 1934-1935. Coleo Historic American Buildings Survey daBiblioteca do Congresso, Washington, D.C. (cortesia da Prints and Photographs Division da Biblioteca do Congresso, EUA).

  • 35Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

    Figura 20 Projeto de Thomas Jefferson para Monticello, c. 1772. Coolidge Collection, k31, k32 (cortesiada Massachusetts Historical Society, Boston, EUA).

  • 36 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

    Cuba e o estatuto colonial

    Os grandes engenhos aucareiros cubanos erigidos aps a dcadade 1830 seguiram um padro radicalmente distinto de implantao arquitetnica.Bem o demonstram os exemplares apresentados no lbum ilustrado Los Ingenios,editado em Havana em 1857. J tivemos oportunidade de observar algumasde suas litografias na primeira parte deste artigo (Figuras 3, 4 e 5). O livro,publicado sob a patronagem, e com textos explicativos, do proprietrio escravistaJusto Cantero, nascido em Trinidad e formado em medicina pela Universidadede Harvard, pretendia servir simultaneamente como uma pea de propagandado setor mais empreendedor da classe senhorial afinada com o esprito cientficoe tecnolgico do mundo industrial e como um meio de difundir entre todos osprodutores cubanos o avano tcnico que vinha ocorrendo nos grandes engenhosde acar da ilha. Seu destaque, contudo, no era o texto de Cantero. A obracontinha vinte e oito litogravuras coloridas, de grande beleza, compostas comum notvel apuro tcnico pelo artista francs Eduardo Laplante, at entoempregado na indstria tabaqueira cubana. Dessas litogravuras de Laplante,vinte e seis representavam os grandes engenhos mecanizados e semimecanizadosde Cuba, acrescidas por mais seis plantas arquitetnicas de alguns deles(VENEGAS, 1996; TOMICH, 2005b).

    Passemos ao exame da implantao de trs engenhos desta srie. Oprimeiro deles o Flor de Cuba, pertencente famlia Arrieta foi o que recebeumaior destaque no livro, pois, afora uma vista do conjunto, Laplante inseriu emsua obra a planta arquitetnica e uma representao interna da casa das caldeiras

    Figura 21 Vista a vo de pssaro, plantation Monticello (CARANDINI, 1984, v. 1, p. 190).

  • 37Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

    (Figura 4). Fundado em 1838, esse engenho localizava-se a doze lguas dabaa de Crdenas. Com uma capacidade produtiva superior a 3 mil toneladasmtricas anuais, garantida pela completa mecanizao do processo defabricao, em 1857, o Flor de Cuba empregava uma fora de trabalho compostapor 409 escravos e 170 collies chineses (CANTERO; LAPLANTE, 1857). Navista composta por Laplante, dois edifcios chamam a ateno do observador(Figura 22). A despeito de o primeiro plano ser ocupado por um aude e pelasoficinas de carpintaria, o olhar logo atrado para o edifcio localizado ao fimda estrada de acesso, tanto mais destacado pela presena de trs altas chamins.Trata-se da casa das caldeiras movidas a vapor, que abrigava no apenas omaquinrio a vcuo mas igualmente o jogo das centrfugas e as moendashorizontais interligadas por esteiras mveis. O outro edifcio em questo oenorme barraco que alojava os trabalhadores do engenho, localizado ao fundona imagem. Medindo 144 por 128 metros, foi um dos maiores construdos emCuba (FRAGINALS, 1987). A casa de vivenda senhorial de dois pavimentos,em posio perpendicular entre a casa das caldeiras e a casa de purgar,praticamente desaparece diante dessas grandes construes.

    Ainda que suas dimenses fossem menores, o ingenio Unin,pertencente a Lamberto Fernndez e localizado na jurisdio de Cienfuegos,tinha uma planta semelhante ao Flor de Cuba. Como se pode ver em sua litografia(Figura 23), o centro do conjunto ocupado pelo eixo composto por casa dascaldeiras totalmente mecanizada, algo que se depreende visualmente pelapresena de uma nica chamin e casa de purgar. Entre esses dois edifcios,

    Figura 22 Eduardo Laplante, Vista do engenho Flor de Cuba, litografia (CANTERO; LAPLANTE, 1857).

  • 38 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

    projeta-se o campanrio do engenho, ponto de observao dos trabalhos nobatey e locus da marcao do tempo do engenho pelo relgio. Em lados opostos,ficam a casa de vivenda, com plano em L, e o barraco dos escravos, em planoretangular. Novamente, para se encontrar a casa senhorial, exige-se doobservador uma certa ateno.

    O terceiro exemplo o do ingenio Armona, localizado na jurisdiode Gines e pertencente sociedade de Miguel de Aldama e Jos Lus Alfonso.Neste caso, Laplante optou por conjugar uma vista interna da casa das caldeiras(Figura 24) com a planta do conjunto arquitetnico (Figura 25). Como bemressalta o historiador Carlos Venegas,

    [...] o ingenio Armona [...] era um modelo de distribuio espacial da seu nome porsua orientao geogrfica, posio dos edifcios, delineamento dos campos, tudoharmonicamente organizado a partir de uma grande casa de mquinas com planta emforma de cruz, que ocupava o centro da plantao, com acessos de todos os ngulosfacilitando o ritmo da produo desde os mesmos campos, como uma totalidade agroindustrial(Venegas, 1996, p.97).

    A esse registro, deve-se acrescentar algo a respeito das posiesrelativas da casa de vivenda e da senzala. Assim como em muitos dos grandesengenhos cubanos mecanizados e semimecanizados, a moradia escrava doArmona consistia em um enorme barraco, de ptio construdo em alvenaria,cujas caractersticas marcantes eram a entrada nica, fechada com porto de

    Figura 23 Eduardo Laplante, Vista do engenho Unin, litografia (CANTERO; LAPLANTE, 1857).

  • 39Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

    ferro, as trancas noturnas, os cubculos sem janelas, com pequenas frestasgradeadas e portas voltadas ao ptio (MARQUESE, 2005). Do lado oposto aobarraco, encontrava-se a casa de purgar. Abaixo, localizava-se a casa devivenda senhorial, ladeada, direita, por uma horta e pela serralheria e, esquerda, por um jardim e pela enfermaria dos escravos. Moradia senhorial emoradia escrava, portanto, eram claramente separadas e ocupavam, no conjunto,uma posio secundria frente centralidade dos edifcios voltados produoaucareira.

    Uma mirada na totalidade das litogravuras de Laplante levanta umproblema: com exceo dos engenhos Manacas e Buena Vista, amboslocalizados no Valle de los Ingenios, em Trinidad, e o segundo deles pertencentea Cantero, todos os demais no tinham casas de vivenda que se destacassemno conjunto das edificaes. Com efeito, mesmo nas maiores unidadesaucareiras ou em engenhos como o Manacas e o Buena Vista, as casassenhoriais, ainda que seguissem padres de arquitetura erudita claramente filiadosao movimento neoclssico, eram relativamente simples, caso as comparssemoscom suas equivalentes do sul dos Estados Unidos e, como se ver adiante, doVale do Paraba cafeeiro. Alm do mais, em muitos desses engenhos a moradiaescrava se caracterizava por uma forma arquitetnica nica no conjunto dasplantations americanas, o barraco de ptio.

    Novamente, para compreender a especificidade da implantaoarquitetnica dos engenhos cubanos, devemos voltar nosso foco ao esquadro

    Figura 24 Eduardo Laplante, Casa das caldeiras do engenho Armona, litografia (CANTERO; LAPLANTE,1857).

  • 40 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

    Figura 25 Eduardo Laplante, Implantao do engenho Armona, litografia (CANTERO; LAPLANTE,1857).

  • das relaes sociais e polticas. O dado fundamental, aqui, a ordem colonialda ilha. No contexto da crise do regime colonial espanhol, Cuba e Porto Ricoforam as nicas colnias que permaneceram atadas metrpole. Como h muito salientado pela historiografia sobre o caso cubano, esse caminho derivou doprojeto escravista de suas classes senhoriais. Em troca do apoio espanhol paraa manuteno da escravido e do trfico negreiro transatlntico diante dascrescentes presses inglesas, sua elite seguiu risca o tema da sempre fiel ilhade Cuba. Tal opo valeu tanto para os perodos em que seus representantestiveram assento nas Cortes peninsulares, gozando Cuba da condio de provnciado reino espanhol (como ocorreu entre 1810-1814 e 1820-1823), como paraos perodos de regresso absolutista (1814-1820, 1823-1836). Mesmo porocasio das Cortes liberais de 1836-1837 quando Cuba deixou de serconsiderada provncia da Espanha e seus deputados foram impedidos de tomarassento em Madri , a elite escravista no questionou a relao com a metrpole.Se a deciso representou uma derrota para os liberais reformistas cubanos, aelite aucareira escravista aceitou de bom grado o novo estatuto da ilha4.

    Qual o significado disso tudo para a arquitetura dos engenhos? Ora,o locus para o exerccio da poltica no se encontrava no nvel local, na regiodos engenhos, mas sim em Havana, onde residiam o Capito-Geral e oIntendente, responsveis respectivamente pelo governo militar-civil e pelo governoeconmico da ilha. Os grandes senhores, proprietrios de vrios engenhos, sestacionavam em suas unidades aucareiras no perodo de safra, efetuada noinverno ou na estao seca, quando diminuam as chuvas e o clima se tornavamais agradvel. Noutras palavras, as casas de vivenda dos engenhos cubanosno desempenhavam qualquer papel no jogo poltico insular, representandoapenas um pouso ou, no mximo, um lugar de deleite familiar (VENEGAS, 1996).

    Espao de pouso e deleite, dominado, no entanto, por uma populaopredominantemente africana e refratria ao mando senhorial. A despeito de suaproibio em 1820, o trfico transatlntico de escravos para Cuba prosseguiuna ilegalidade at bem entrada a dcada de 1860. A concentrao de enormesmassas de africanos escravizados nas plantations da ilha acirrou suas tensessociais. Os constantes levantes e os crescentes rumores de planos de articulaoentre abolicionistas ingleses e escravos dos engenhos levaram os grandes senhorescubanos a adotar formas rigorosas de confinamento dos trabalhadores cativos.Para tanto, recorreram experincia que tinham como traficantes de escravosna Costa dfrica caso de Aldama, Alfonso e muitos outros. Como procureidemonstrar em outro texto, os barraces de ptio que foram construdos em Cubaaps a dcada de 1830 se inspiraram diretamente nos barraces de embarquedos cativos antes da travessia transatlntica (MARQUESE, 2005).

    Elaborar a imagem de que submetiam seus escravos por laos paternaisnunca passou pela cabea dos grandes senhores cubanos. Aos cativos, cabiao crcere do barraco, longe da vista da casa de vivenda, reservada para asafra. O engenho era compreendido antes como uma fbrica no campo do quecomo o lugar de moradia de uma famlia extensa, representao senhorialcorrente no sul dos Estados Unidos e no Brasil. As plantations aucareiras exigiam

    41Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

    4.Sigo,nesse ponto, as in-terpretaes de TORRES-CUEVAS (1994, p. 335-353) e FRAGINALS (1995,p. 190-205). Para uma in-terpretao alternativa,ver FRADERA (1999,p.71-93).Ver igualmente os tra-balhos de SCHMIDT-NO-WARA (1999) e BERBEL;MARQUESE (2005).

  • pesados investimentos, e, no caso das unidades mecanizadas, uma complexatecnologia que as colocava no mesmo passo do desenvolvimento industrial dospases centrais. Para uma classe senhorial ciosa de sua imagem empreendedora,era mais do que lgico que o centro do conjunto arquitetnico fosse ocupadopela casa das caldeiras.

    Imprio do Brasil e o jogo do clientelismo

    As plantations do Vale do Paraba cafeeiro guardaram pontos decontato e de afastamento em relao s suas congneres do sul dos EstadosUnidos e de Cuba. O primeiro exemplo a ser exposto o da fazenda Boa Vista(Bananal, provncia de So Paulo) (Figura 10). Fundada em fins do sculo XVIII,a sede, composta por terreiros, engenhos, senzalas e casa de vivenda, foifinalizada por Luciano Jos de Almeida ento seu proprietrio na dcadade 18405. Em inventrio de 1854, alm da listagem de 815 escravos, dosquais mais da metade residia na Boa Vista, h referncia existncia de doisconjuntos de senzalas em quadra. Por uma pintura oitocentista da fazenda,percebe-se claramente qual a disposio delas. A primeira localizava-se emfrente casa de vivenda, e era composta por sessenta lanos de senzalas maistulhas e um engenho de piles, ambos assentados em um nico edifcio dispostona parte superior direita do terreiro. A segunda quadra, apenas com os quarentae nove lanos de senzalas, encontrava-se atrs. Na quadra frontal, nota-se aexistncia de um nico porto de entrada; todas as portas dos lanos da senzala,por sua vez, voltavam-se para o terreiro. A planta seguia claramente o partidoem U proposto por Palladio, cujo eixo era dado pela casa de vivenda.

    O segundo exemplo, ainda que no tenha obedecido a esse planopalladiano, acompanhou as demais solues da Boa Vista. Trata-se da fazendado Retiro, de Paraba do Sul (atual Bemposta, Rio de Janeiro), uma das inmeraspropriedades do cl dos Werneck (TAUNAY, 1939, p. 8, 329). Como documentopara essa fazenda, temos um leo pintado por Georg Grimm em 1881 (Figura26). Nele, observa-se a presena de dois terreiros de caf, um fora do risco dasede, outro disposto no interior da quadra que abrigava os cubculos dos escravos,as habitaes do feitor, a tulha e o engenho. Seguiu-se, aqui, o tpico padrovale-paraibano da senzala em quadra: isolamento em relao ao espao externo fazenda, garantido por meio de sua disposio retangular, pelos compartimentosde habitao dos cativos que se comunicavam apenas com o terreiro, pelainexistncia de janelas, pelos muros altos e pela entrada nica fechada comporto. Uma de suas faces, alm do mais, era parcialmente preenchida pelovolume do sobrado senhorial. Em fotos atuais da fazenda (Figura 27), v-se quea parte do pavimento inferior que se conectava com o quadrado era reservadas dependncias de servio da casa de vivenda, havendo ainda, nesta face,uma capela em p-direito duplo (Figura 28), com acesso independente fora domuro a ltima porta do rs-do-cho. Em sua fachada, a casa-grande se

    42 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

    5. O inventrio, de 1835,da meia-irm de LucianoJos de Almeida,Domicia-na Maria da Conceio,herdeira e proprietria dafazenda Boa Vista, registraa construo parcial deseu sobrado,mas no ano-ta nada a respeito das sen-zalas em quadra. A pro-priedade foi adquiridapor Luciano junto a JosRamos Nogueira, seu cu-nhado e vivo de Domi-ciana,em fins dessa dca-da.Os inventrios de 1835(Domiciana Maria da Con-ceio) e 1854 (LucianoJos de Almeida), referen-tes ao Cartrio do 1. Of-cio de Bananal, esto de-positados no Museu His-trico e Pedaggico Ma-jor Novaes, Cruzeiro, SP.Sobre a genealogia da fa-mlia, ver ainda RODRI-GUES (1980) e FARIA(1995).

  • 43Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

    apropriava de parte do vocabulrio neoclssico, como se observa na composioordenada, no entablamento adotado, na moldura e pestana das janelas ou noscapitis das pilastras dos cunhais. E, tal como na Boa Vista, todo o conjuntoregia-se por uma integrao estreita entre moradia escrava e moradia senhorial.

    O ltimo exemplo , certamente, o mais grandioso. A fazenda Floresdo Paraso (Figura 29) foi construda em meados do sculo XIX no corao da

    Figura 26 Georg Grimm, Fazenda Retiro, 1881, leo sobre tela. Coleo particular.

    Figura 27 Casa de vivenda da fazenda Retiro, fotografia de Pedro Osvaldo Cruz (PIRES, 1990,p. 126).

  • 44 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

    cafeicultura fluminense, no ento municpio de Valena. Seu proprietrio eraDomingos Custdio Guimares, nascido em So Joo del Rei em 1800, baroem 1854 e visconde do Rio Preto em 1867. A origem da fortuna de CustdioGuimares datava da dcada de 1820, quando, em sociedade com o tambmmineiro Jos Francisco de Mesquita, fundou a companhia Mesquita & Guimares,especializada no abastecimento de carne para a Corte Imperial e na vendade escravos africanos serra acima (LENHARO, 1993, p. 62; TAUNAY, 1939,p. 5, 183-184). Na dcada seguinte, inverteu seus capitais, acumulados nocomrcio e no trfico, na compra de terras e no plantio de caf na regio dovale do rio Preto (afluente do Paraba), divisa das provncias do Rio de Janeiro ede Minas Gerais. O centro de suas atividades foi a sesmaria das Flores, adquiridaem 1843, onde levantou a sede da Flores do Paraso, finalizada dez anosdepois (MUNIZ, 1979, p. 80-85; ALEGRIO, 2004, p. 33). Conhecida comoa jia de Valena, a fazenda notabilizou-se pela adoo de uma srie deinovaes tcnicas, como iluminao a gs, terreiros asfaltados e um avanado

    Figura 28 Interior da capela da fazenda Retiro, fotografia de Pedro Osvaldo Cruz (PIRES, 1990,p.126).

  • 45Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

    maquinrio de beneficiamento cafeeiro implantado no incio da dcada de1860. Afora tudo isso, em 1875 a fazenda foi registrada pelo pincel de NicolauFacchinetti, em uma das mais belas paisagens desse pintor italiano (MARTINS;PICCOLI, 2004).

    O que nos interessa a sua planta. A via de acesso, que j no sculoXIX contava com a alameda de palmeiras imperiais ainda hoje existente, conduziadiretamente ao vo central da casa de vivenda. Com feies de palacete urbano,suas trs portas da entrada eram encimadas por arcos plenos com bandeirasde ferro, em uma composio bem ao gosto do estilo neoclssico corrente naCorte Imperial (Figuras 30, 31 e 32). O partido palladiano em U preenchidopelos dois terreiros de caf era obtido por meio dos edifcios voltados aoprocesso produtivo e morada dos trabalhadores. Assim, em seu brao esquerdo,estavam dispostas a casa do engenho e a tulha (Figura 9). O brao direito, porsua vez, era ocupado pela grande enfermaria da propriedade (Figura 33) epela morada dos trabalhadores cativos. Neste ponto, Palladio se encontravacom o trfico negreiro transatlntico: acoplada ala direita, estava a enormesenzala em quadra da Flores do Paraso (Figura 34). Quando do falecimentodo Visconde do Rio Preto, em 1868, residiam a cerca de 540 escravos, o quea aproximava dos maiores barraces de Cuba. No entanto, ao contrrio dacolnia espanhola, o contato visual entre moradia escrava e moradia senhorialera muito prximo (Figuras 35 e 36).

    Figura 29 Nicolau Facchinetti, Fazenda Flores do Paraso, 1875, leo sobre madeira. Coleo particular (MARTINS;PICCOLI, 2004, p.16).

  • 46 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

    Figura 30 Entrada da fazenda Flores do Paraso, Rio das Flores, RJ, julho de 2005, fotografia deAna Paula Gomes Marquese.

    Figura 31 Vista frontal da casa de vivenda da fazenda Flores do Paraso,fotografia de Pedro Osvaldo Cruz (PIRES, 1990, p. 67).

  • 47Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

    Figura 32 Viso oblqua da casa de vivenda da fazenda Flores do Paraso, fotografia de PedroOsvaldo Cruz (PIRES, 1990, p.67).

    Figura 33 Enfermaria da fazenda Flores do Paraso, Rio das Flores, RJ, julho de 2005, fotografiade Maria Ceclia Winter.

  • 48 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

    Sendo assim, as fazendas do Vale do Paraba combinaram algunselementos presentes nas grandes plantations do sul dos Estados Unidos comoas casas de vivenda monumentais que se destacavam no conjunto das edificaes com outros dos engenhos mecanizados cubanos como os enormes barracesdestinados ao confinamento rigoroso da escravaria. E, destoando de ambos,avizinharam de modo estreito casa-grande e senzala.

    A explicao para essa especificidade, uma vez mais, deve serbuscada no quadro social e poltico mais amplo. Para o exerccio do poder pelaclasse senhorial escravista, no Imprio Constitucional do Brasil (tal como no suldos Estados Unidos), o jogo eleitoral teve importncia decisiva. Por aqui, todavia,esse jogo foi, desde a Regncia (1831-1840), mediado por relaes declientelismo que atavam em redes assimtricas verticais todos os atores polticosenvolvidos, dos membros do gabinete ministerial aos eleitores de parquia. Paraexercer o mando no nvel do municpio e, por vezes, da provncia, os grandessenhores precisavam se apresentar como patriarcas capazes de obter a defernciade seus clientes (aliados polticos, parentes, agregados e demais dependentes),garantindo-lhes, em troca, proteo e espao para se inserirem positivamentenas hierarquias locais (FRANCO, 1983; MATTOS, 1987; GRAHAM, 1997).

    No Vale do Paraba fluminense (eixo Cantagalo-Resende) e no fundodo Vale paulista (eixo Bananal-Lorena), onde, como parte do movimento de formaoda zona cafeeira, quase todas as vilas e cidades foram criadas aps aindependncia, as grandes sedes das fazendas assumiram papel relevante na

    Figura 34 Senzala em quadra esquerda. Nicolau Facchinetti, Fazenda Flores do Paraso(detalhe), 1875, leo sobre madeira. Coleo particular (MARTINS; PICCOLI, 2004, p.16).

  • 49Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

    Figura 35 Fundos da enfermaria da fazenda Flores do Paraso, Rio das Flores, RJ, julho de2005, fotografia de Maria Ceclia Winter.

    Figura 36 Vista da casa de vivenda tomada do interior da quadra da senzala, fazenda Floresdo Paraso, Rio das Flores, RJ, julho de 2005, fotografia de Maria Ceclia Winter.

  • 50 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

    poltica calcada em prticas clientelistas. As casas de vivenda monumentais, somadasaos terreiros, instalaes produtivas e senzalas dispostas em quadra, constituamum conjunto arquitetnico com uma enorme carga de representao. As imagenselaboradas pelos viajantes europeus que percorreram o Vale so bastanteesclarecedoras quanto a isso. Veja-se, por exemplo, o relato de Augusto Zaluar,que, em setembro de 1859, visitou a fazenda do Ribeiro Frio, municpio de Pira:

    Assentada no meio de uma vasta plancie, circundada por um horizonte de montanhas cujorecorte se desenha com facilidade, a casa espaosa e branca avulta dentro de um terreirode trezentas e onze braas de circunferncia! o maior que tenho visto. Esta imensa praa fechada em torno pelas senzalas, engenho e mais oficinas, de modo que forma uma largacidadela para onde se entra por dois grandes portes laterais. As senzalas, caiadas todase construdas uniformemente, destacam-se, bem como a casa, do verde graduado dasflorestas, e do a esta propriedade um aspecto novo e agradvel. [...] Uma propriedaderural montada no p em que se acha, o Ribeiro Frio mais do que um prdio de simplesvivenda; uma cidade em ponto pequeno, onde se cultivam muitos ramos de indstria e sepem em movimento todas as gradaes do trabalho (ZALUAR, 1975, p. 29).

    Essas cidades em ponto pequeno imagem que derivava diretamentede Alberti e Palladio (BENTMANN; MLLER, 1975, p. 51-52) funcionavam,ao fim e ao cabo, como um dos principais vetores do poder social e poltico deseus senhores sobre as comunidades locais. A associao visual que osproprietrios pretendiam estabelecer entre suas fazendas e a cidade do Rio deJaneiro por meio de alamedas de palmeiras imperiais ou de pinturas murais,como a da sala de jantar da Flores do Paraso (Figura 37) operava dentro

    Figura 37 [Jos Maria Villaronga], Pintura mural da sala de jantar da fazenda Flores do Paraso,Rio das Flores, RJ, julho de 2005, fotografia de Maria Ceclia Winter.

  • 51Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

    dessa mesma lgica. A mensagem a se transmitir era a de que a fazenda norepresentava uma cidade qualquer, mas nada mais nada menos do que a prpriaCorte Imperial (REIS FILHO, 2004, p. 122-124). No por acaso, a primeiraonda de construo das vivendas monumentais no Vale do Paraba coincidiuexatamente com a primeira leva de ttulos nobilirquicos concedidos por D.PedroII aos potentados cafeeiros (STEIN, 1990; PANG, 1988).

    Resta entender o confinamento dos escravos nas senzalas em quadrae sua posio contgua s casas-grandes. A chave para tanto se encontra nateoria coeva da gesto escravista. As razes que levaram os produtores de cafdo Vale do Paraba a adotarem tal arranjo arquitetnico foram as mesmas quemotivaram os sacarocratas cubanos a transplantarem pelo Atlntico o modelodos barraces de embarque de cativos da Costa dfrica. Ambas as classessenhoriais, que tinham conexes estreitas com os traficantes que operavam nailegalidade, pretendiam, com isso, aumentar o controle sobre uma escravariamajoritariamente africana em um contexto de sobreexplorao do trabalho e deincremento da resistncia cativa (MARQUESE, 2005).

    No Imprio do Brasil, contudo, o modelo do barraco teve de seajustar ao paternalismo que informava os valores ideolgicos senhoriais. Asfazendas vale-paraibanas foram uma clara manifestao disso: os escravos eramentendidos como parte da famlia extensa ou mesmo como prolongamento fsicode seus senhores e, por essa razo, cabia aproximar as quadras das senzalasdas casas de vivenda. Mas, como se viu em item anterior, no sul dos EstadosUnidos, onde as relaes escravistas tambm foram apreendidas pela grade dopaternalismo, os casebres escravos ficavam distantes das casas-grandes.Voltamos, aqui, ao clientelismo. Por conta da dinmica da alforria e da contnuaproduo de dependentes, algo evidente na paisagem cafeeira, com o avultadonmero de stios e fazendolas que rodeavam as grandes unidades e que noraro pertenciam a grupos sociais egressos do cativeiro (LARNE, 1885, p. 278),os escravos eram concebidos como participantes da clientela de seus senhores.

    Tal concepo encontrou expresso em uma componente importanteda arquitetura das fazendas de caf que, em geral, passa despercebida aosespecialistas. Refiro-me s capelas, invariavelmente inscritas no corpo da casade vivenda e sempre voltadas para o lado das senzalas (Figuras 38 e 39). Op-direito duplo de muitas delas traduzia, por si s, a hierarquia e o poder queregiam as relaes escravistas, j que o acesso ao balco superior era restrito famlia branca, enquanto o acesso ao piso trreo, onde ficavam os escravos,era feito por uma entrada independente. Cabe lembrar, todavia, que nessascapelas eram realizados batismos e casamentos no apenas da escravariapertencente ao dono da fazenda, mas igualmente dos cativos de seus vizinhos.Com isso, multiplicavam-se as hierarquias: pequenos proprietrios que levavamseus escravos para serem batizados em capelas de grandes fazendas/senhoresque os recebiam; senhores que promoviam casamentos e batismos de seusescravos/conjunto da escravaria; os que ficavam no andar superior/os queficavam no inferior. As capelas, enfim, no s expressavam as redes de clientelismoque cortavam de cima a baixo a sociedade escravista no Vale do Paraba, como

  • 52

    Figura 38 Vista oblqua da casa de vivenda da fazenda Resgate, Bananal, SP, fotografia de Pedro Osvaldo Cruz(PIRES, 1990, p. 83).

    Figura 39 Interior da capela da fazenda Resgate, Bananal, SP, maio de 2005, fotografiade Rafael de Bivar Marquese.

    Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

  • 53

    tambm funcionavam como vetores na criao de novas relaes sociais, deresto algo vlido para todo ambiente construdo das plantations escravistas doNovo Mundo. Isto, no entanto, assunto para outro texto.

    REFERNCIAS

    ACKERMAN, J. S. The Villa: form and ideology of country houses. Princeton, N.J.: Princeton

    University Press, 1990.

    AGUIAR, Pe. J. J. F. de. Pequena memria sobre a plantao, cultura e colheita do caf. Rio de

    Janeiro: Imprensa Americana de I. P.da Costa, 1836.

    AIKEN, C. S.The evolution of cotton ginning in the Southeastern United States. Geographical

    Review, v. 62, n. 2, p. 196-224,April 1973.

    ALEGRIO,L.V. Janelas e portas do caf:Vale do Paraba fluminense.Rio de Janeiro: SESC-RJ, 2004.

    ASHWORTH, J. Slavery, capitalism and politics in the Antebellum Republic: commerce and

    compromise, 1820-1850. v. 1. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

    BENTMANN,R.;MLLER,M.La Villa como arquitectura del Poder.Traduo Espanhola.Barcelona:

    Barral, 1975.

    BERBEL, M.; MARQUESE, R. B. A escravido nas experincias constitucionais ibricas, 1810-1824.

    In: Seminrio Internacional Brasil, de um Imprio a Outro (1750-1850). So Paulo:

    Departamento de Histria, Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de

    So Paulo, 2005.

    BERLIN, I. Many thousands gone: the first two centuries of slavery in North America.Cambridge,

    Mass.: Belknap, 1998.

    CANTERO,J.;LAPLANTE,E.Los Ingenios:coleccin de vistas de los principales ingenios de azcar

    de la Isla de Cuba. Havana: Impr. Lit. Lus Marquier, 1857.

    CARANDINI,A. (Ed.) Settefinestre: una villa schiavistica nellEtruria romana. v.1. Modena: Panini,

    1984, p. 198. 3v.

    CARRILHO, M. J. As fazendas de caf no Caminho Novo da Piedade. Dissertao (Mestrado em

    Arquitetura)Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de So Paulo, So Paulo, 1994.

    CASTRO, A. B. Escravos e senhores nos engenhos do Brasil. Tese (Doutorado em

    Economia)Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, 1976.

    Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

  • CHAPLIN, J. An anxious pursuit: agricultural innovation & modernity in the Lower South, 1730-

    1815. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1993.

    COOPER JR.,W. Liberty and slavery: southern politics to 1860. Columbia: University of South

    Carolina Press, 2000.

    COSTA, L. A arquitetura dos jesutas no Brasil. Revista do Servio do Patrimnio Histrico e

    Artstico Nacional, n. 5, p. 9-100, 1941.

    DALZELL JR., R. F. Constructing Independence: Monticello, Mount Vernon, and the men who built

    them. Eighteenth-Century Studies, vol. 26, n. 4, p. 543-580, Summer 1993.

    DIDEROT; D. (Ed.). Encyclopdie, ou diccionnaire raisonn des sciences, des arts et des mtiers

    (1751-1766). New York: 1969

    EPPERSON,T. Constructing difference: the social and spatial order of the Chesapeake plantation.

    In: SINGLETON,T. (Ed.). I, Too, An America: Archeological Studies of African-American Life.

    Charlottesville: University Press of Virginia, 1999.

    FARIA, S. S. C. Fortuna e famlia em Bananal no sculo XIX. In: CASTRO, Hebe Maria Mattos de;

    SCHNOOR, Eduardo (Org.). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro:Topbooks,

    1995.

    FRADERA, J. Gobernar colonias. Barcelona: Pennsula, 1999.

    FRAGINALS, M. M. O engenho: complexo scio-econmico aucareiro cubano. Traduo Snia

    Rangel; Rosemary C.Ablio. So Paulo: Hucitec; Editora da Unesp, 1987, 2v.

    FRANCO, M. S. C. Homens livres na ordem escravocrata. 3. ed. So Paulo: Kairs, 1983.

    GAMA, R. Engenho e tecnologia. So Paulo: Duas Cidades, 1983.

    GARCA,A.; ZANETTI, O. Sugar and Railroads.A Cuban History, 1837-1959. Traduo Franklin

    Knight & Mary Todd. Chapel Hill:The University of North Carolina Press, 1998.

    GENOVESE, E. Roll, Jordan, roll: the world the slaves made. New York:Vintage, 1974.

    GLEASON, D. K. Plantation Homes of Louisiana and the Natchez Area. Baton Rouge: Louisiana

    State University Press, 1982.

    GRAHAM, R. Clientelismo e poltica no Brasil do sculo XIX. Traduo Celina Brandt. Rio de

    Janeiro: Editora de Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997.

    GRAY, L.W. History of Agriculture in the Southern United States to 1860. Gloucester: Peter

    Smith, 1958. 2v. (1 ed.:1933).

    GUARINELLO, N. L. Runas de uma paisagem: arqueologia das casas de fazenda da Itlia antiga

    (VIII a.C.-II d.C.).Tese (Doutorado em Antropologia Social)Departamento de Antropologia,

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 1993.

    54 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

  • HARRIS, D. S. The nature of authority: villa culture, landscape, and representation in eighteenth-

    century Lombardy. University Park, Penn.: Penn State, 2003.

    HOBSBAWM,E.;RANGER,T.(Org.).A inveno das tradies.Traduo Celina Cardim Cavalcante.

    Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1984.

    LABORIE, P. J. The coffee planter of Saint Domingo. London: [s.n.], 1798.

    LARNE, C. F. D. Brazil and Java: report on coffee-culture in America,Asia, and Africa. London:

    Martinus Nijhoff, 1885.

    LEMOS, C. Casa paulista: histria das moradias anteriores ao ecletismo trazido pelo caf. So

    Paulo: Edusp, 1999.

    LENHARO,A. As tropas da moderao: o abastecimento da Corte na formao poltica do Brasil,

    1808-1842. 2. ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura e TE-Prefeitura da Cidade do Rio

    de Janeiro, 1993.

    MARQUESE, R. B.Acar, representao visual e poder: a iconografia sobre a produo caribenha

    de acar nos sculos XVII e XVIII. Revista USP, n. 55, p. 152-184, set.- nov. 2002.

    _______. Feitores do corpo, missionrios da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos

    nas Amricas, 1660-1860. So Paulo: Companhia das Letras, 2004.

    _______. Moradia escrava na era do trfico ilegal: senzalas rurais no Brasil e em Cuba no sculo

    XIX. Anais do Museu Paulista: histria e cultura material, So Paulo, Museu Paulista, Nova Srie

    v. 13, n. 2, jul.-dez. 2005.

    MARTINS, C.; PICCOLI,V. Facchinetti. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2004.

    MARX, K. El Capital: crtica de la economa poltica. v. 1.Traduo Wenceslao Roces. Mxico:

    Fondo de Cultura Econmica, 1990.

    MATTOS, I. R. O tempo saquarema: a formao do Estado imperial. So Paulo: Instituto Nacional

    do Livro; Hucitec, 1987.

    MENESES, U.T. B. Morfologia das Cidades Brasileiras: introduo ao estudo da iconografia urbana.

    Revista USP. Dossi Brasil dos Viajantes, n. 30, p. 144-155, jun.-ago. 1996.

    MILLER, J. C. O Atlntico escravista: acar, escravos e engenhos. Afro-sia, n. 19-20, p. 9-36, 1997.

    _______. Cuba / Espaa, Espaa / Cuba: Historia Comn. Barcelona: Crtica, 1995.

    MORGAN, E. American slavery, American freedom: the ordeal of colonial Virginia. New York:

    W.W. Norton, 1975.

    MORGAN, P. Slave counterpoint: black culture in the eighteenth-century Chesapeake &

    Lowcountry. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1998.

    55Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

  • MUNIZ, C. M. L. Os donos da terra: um estudo sobre a estrutura fundiria do Vale do Paraba

    Fluminense, sculo XIX. Dissertao (Mestrado em Histria)ICHF, Universidade Federal

    Fluminense, Niteri, 1979.

    OAKES, J.Slavery and freedom: an interpretation of the Old South. New York:W.W. Norton, 1990.

    PANG, E. In pursuit of honor and power: noblemen of the Southern Cross in nineteenth century

    Brazil.Tuscaloosa:The University of Alabama Press,1988.

    PARISH, P. Slavery: history and historians. New York: Harper & Row, 1989.

    PIRES,F. T.F.Fazendas: solares da regio cafeeira do Brasil imperial.Rio de Janeiro:Nova Fronteira,

    1990. Fotos de Pedro Osvaldo Cruz.

    REIS FILHO, N. G. Quadro da arquitetura no Brasil. 10. ed. So Paulo: Perspectiva, 2004.

    RODRIGUES, P. C. O caminho novo: povoadores do Bananal. So Paulo: Governo do Estado de

    So Paulo, 1980.

    SCHMIDT-NOWARA, C. Empire and antislavery: Spain, Cuba, and Puerto Rico, 1833-1874.

    Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1999.

    SETUBAL,M.A.(Coord.).Modos de vida dos paulistas: identidades, famlias e espaos domsticos.

    So Paulo: Cenpec; Imprensa Oficial, 2004. (Coleo Terra Paulista: histrias, arte, costumes,V.2)

    SITTERSON,J.C.(1953).Sugar country: the cane sugar industry in the South,1753-1950.Westport,

    Conn.: Greenwood Press, 1973.

    STEIN, S. J. Vassouras: um municpio brasileiro do caf, 1850-1900. Traduo Vera Bloch Wrobel.

    Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

    TAUNAY,A.de E.Histria do caf no Brasil.Rio de Janeiro:Departamento Nacional do Comrcio,

    1939. 15 v.

    TOMICH, D. Through the prism of slavery: labor, capital, and world economy. Boulder, Co.:

    Rowman & Littlefield, 2004.

    _______. Material process and industrial architecture: innovation on the Cuban sugar frontier,

    1818-1857. In: CICCANTELL, Paul S.; SMITH, David A.; SEIDMAN, Gay (Ed.). Research in rural

    sociology and development: nature, raw materials, and political economy [Amsterdam], n. 10, p.

    287-397, 2005a.

    _______. Between image and text:clues,documentation and representation of the Cuban Ingenio,

    1820-1860.Texto apresentado ao Seminrio Place,Event,and Narrative Craft:method and meaning

    in microhistory. Santa Fe, New Mexico: School of American Research, 2005b.

    TORRES-CUEVAS, E. De la Ilustracin reformista al Reformismo liberal. In: Historia de Cuba: La

    Colonia: evolucin socioeconmico y formacin nacional. La Habana: Poltica, 1994.

    56 Anais do Museu Paulista. v. 14. n.1. jan.- jun. 2006.

  • VALVERDE,O.A fazenda de caf escravocrata no Brasil.In:Estudos de geografia agrria brasileira.Petrpolis:Vozes, 1985.

    VELLOSO, Frei J. M. C. (Org.). O fazendeiro do Brazil. Lisboa:Tip.Arco do Cego, 1798-1806. 11 v.

    VENEGAS,C.El libro de los Ingenios. In:MALPICA CUELLO,Antonio (Ed.).Agua, trabajo y azcar:actas del VI Seminario Internacional de Caa de Azcar (Motril, 19-23 de septiembre de 1994).Granada: Diputacin Provincial de Granada, 1996.

    VLACH,J.M.Back of the big house:the architecture of plantation slavery.Chapel Hill:The Universityof North Carolina Press, 1993.

    WALLERSTEIN,I.The modern world-system I:capitalist agriculture and the origins of the Europeanworld-economy in the sixteenth century. New York:Academic, 1974.

    WATTS, D. Las Indias Occidentales: modalidades de desarrollo, cultura y cambio medioambientaldesde 1492. Traduo Rosendo Gallego. Madrid:Alianza, 1992.

    WERNECK, F. P. L. Memria sobre a fundao de uma fazenda na Provncia do Rio de Janeiro(1847).Organizador Eduardo Silva.Rio de Janeiro:Fundao Casa de Rui Barbosa;Senado Federal,1985.

    WHARTENBY, F. G. Land and labor productivity in United States cotton production, 1800-1840. New York:Arno, 1977.

    WRIGHT, G. Political economy of the cotton south: households, markets, and wealth in thenineteenth century. New York:W.W. Norton, 1978.

    ZALUAR, A. E. Peregrinao pela Provncia de So Paulo (1860-1861). Belo Horizonte: Itatiaia;So Paulo: Edusp, 1975.

    57Annals of Museu Paulista. v. 14. n.1. Jan.- June 2006.

    Artigo apresentado em 11/2005. Aprovado em 04/2006.