Marta Soares
-
Upload
pauloaurelianodamata -
Category
Documents
-
view
212 -
download
0
description
Transcript of Marta Soares
1
Ano 3 | Nº 13 | Jan 2015 ISSN 2316-8102
A PERMANÊNCIA DA FORMA DAS SETAS:
NOVE TENTATIVAS A PARTIR DE
"DESLOCAMENTOS", DE MARTA SOARES por Renan Marcondes
I.
Como falar sobre esse embate furioso entre a visão e o visível?
Circundo a cabeça pela sala na qual escrevo esse texto e meus olhos
percorrem toda a extensão visível do quarto no qual me encontro. Os ângulos e
linhas retas das paredes e armários vão se deslocando sutilmente conforme minha
visão transita de um lado para outro. Não há mais surpresa nenhuma nas formas,
eu já as reconheço como tal, já as nomeio faz tempo com nomes convencionais
que me possibilitam falar sobre essas formas mesmo sem a presença delas. Não
diferenciarei nas linhas a seguir definições e diferenciações entre forma, imagem,
modelo etc. Nesse momento, não me interessa discutir as especificidades de
nomeação do que nos rodeia, mas sim pensar em como o processo de apreender
algo com o olhar e entendê-lo como externo ao nosso corpo compreende um
processo de dominação, que talvez seja próprio da nossa cognição humana.
(Ou talvez seja o único meio de sobrevivência disso que nos circunda, seja
sua fonte de energia...)
II.
Até que ponto podemos tensionar uma forma?
2
III.
∆s = s - s0
Na física, o deslocamento de um corpo é medido a partir da relação
estabelecida de distância e proximidade que ele exerce sobre um determinado
referencial. A variação da posição de um corpo, nesse intervalo de tempo dado,
gera uma grandeza vetorial, definida geralmente como Vetor Deslocamento (d),
que se configura como uma seta, que se direciona de um ponto a outro.
(residem aqui setas que se configuram pela dureza, estrutura e
espacialidade abstrata. Um corpo que se relaciona com elas opera pela via do
domínio: compreendendo-o, enquadrando-o, equalizando o que se idealiza dessa
relação e obtendo delas o que necessita. Essas setas resultam).
Cito Rosalind Krauss: Isso porque temos uma tendência a pensar que o
ato de descobrir como é determinada coisa significa conferir a ela uma forma,
propor para ela um modelo ou imagem capaz de organizar o que, visto
superficialmente, parece um arranjo incoerente de fenômenos [1].
Vamos nos propor um exercício: deformemos essa linha reta, presente nas
paredes erguidas, nas casas habitadas, nas equações matemáticas, no teclado no
qual digito, nas linhas-guias desse texto. Até que ponto podemos tensionar uma
forma?
IV.
3
Pausa para a incessante pergunta sobre a dominação dos corpos. Há
metodologias possíveis para a reversibilidade desse processo? Passando
lentamente pelos portões da casa modernista, novamente se apodera do meu corpo
uma vaga e recorrente expectativa de se deparar com a rara sensação de perder o
controle dos corpos, de encontrar possibilidades de deformar as equações
decoradas por anos. Penso que tratar de arte pode ser variar sobre esse mesmo
tema: destituir dos corpos, nem que seja um pouco, lógicas de dominação,
estabelecer territórios livres onde não seja mais possível medir o deslocamento.
Não sendo mais possível a medição, resta-nos senti-lo.
Uma vez dentro da casa, sei que devo pensar sobre determinadas coisas.
Porém, além do caráter escultórico, além do tempo distendido, além da
problemática das infinitas nomeações de linguagem, além de todas as referências
e justificativas sobre o trabalho que leio no programa que me é entregue, penso
em uma coisa ao olhar para aqueles corpos que vagueiam por imagens sem
destino: há um treinamento quase militar do meu olhar em impor formas. Nos
exercícios da Gestalt – que, lembremos, define seus princípios como leis –, o olho
promove a percepção mental de agrupamentos, distanciamentos, relações,
estruturas, o que leva seus pensadores ao conceito de transponibilidade, no qual,
independente do material que constitui o objeto, é sua forma que se sobressai.
Perfeito: lidemos agora com formas que surgem e se perdem a todo
momento.
V.
(Não impor não impor não impor não impor não impor não impor não impor não
impor não importar)
Algo se forma. Interrompo o processo. Perdi.
Nota mental: uma vez que se reconhece a forma, ela se impregna. A forma é
parasita.
4
VI.
Cito Gonçalo Tavares: Se olharmos, de fato, atentamente para uma casa, para a sua constituição, poderemos quase ver o corpo para o qual foi construída. Como se em vez de estarmos a olhar para uma casa estivéssemos a olhar para um mapa da anatomia humana. As suas dependências: a cozinha (alimentação), a casa de banho, o quarto com a cama que o sono exige etc. etc. A casa é o retrato das nossas dependências físicas [2].
Subo as escadas da casa e vejo os inúmeros círculos de vidro na parede
que refletem o Sol. Vou ao jardim e vejo o círculo de observadores que se forma
ao redor dos homens que moldam dois corpos femininos. São momentos em que
saio do jogo incessante dessas formas que fogem do meu olhar e começo a pensar
sobre dominadores e dominados.
Numa proposta cuja forma corporal nos possibilita uma fuga desse
controle imagético do corpo, há um problema em ocupar uma casa da forma como
essa ocupação foi realizada? Talvez nenhum, porém paira o inevitável e obtuso
peso que a própria forma da casa exerce sobre as próprias imagens, como se
impusesse àqueles corpos (que performam ou observam) que sua forma também
seja dissolvida de algum jeito, que ela também pereça.
Ao adentrarmos a casa modernista, só o nome do espaço já nos relembra
uma certa utopia essencialista própria do período que a adjetiva. O que significa
colocar aqueles corpos dentro daquele espaço? Seria o interesse colocar em
embate a própria forma impositiva de uma casa sobre a subjetividade de quem a
habita? Com a casa, além de uma ambientação que possibilita o trânsito de quem
observa e concede um caráter afetivo às imagens propostas, seria possível um
diálogo mais imbricado entre as formas corporais e a arquitetura da casa
(polarizadas entre a impossibilidade da forma e sua estruturação máxima) do que
em uma espécie de encaixe do corpo no espaço, que é o que vemos ocorrer. É
curioso notar como, por exemplo, os corpos que habitam a casa possuem um grau
de desenvolvimento maior (no que tange à coreografia, colocação espacial,
presença cênica etc.) e, em seu entorno, existem propostas mais rascunhadas,
como se houvesse uma ênfase poética nesse espaço interno e uma simples
necessidade de ocupar a região ao seu redor, para que não haja um vazio. Uma
vez que o espaço externo não contém, estrutura e comporta os corpos como o
5
espaço interno arquitetônico moderno, o que são esses corpos rascunhados ao
redor da casa?
É possível observar certo grau de domínio nessa relação com o espaço,
que pode ser vista repetida na relação que os dois homens na casa têm com uma
dupla. Nesses exemplos é possível ver linhas retas, setas, uma objetividade na
ação e na relação que – felizmente – não consegue se formar no resto do trabalho.
Nesses casos, é possível que haja um elemento ativo e um passivo, que um exerça
sua vontade sobre o outro. O que resta saber é como isso está dialogando com
tantas outras imagens que compõem o trabalho e parecem apontar para outros
caminhos, mais horizontais.
Proporia nesse momento que, ao falar sobre dominadores e dominados,
enquanto na relação com a casa há uma (boa) questão a ser pensada, na imagem
com os dois homens que mobilizam os corpos femininos há um problema. Já é, de
antemão, uma imagem que pode ser lida por um viés de dominação de gênero,
objetificação das relações afetivas etc., mas na verdade isso não importa muito. O
que parece estranho é a própria possibilidade de se ler e se crer entendendo um
“algo a dizer” da imagem, pois lá ocorre um processo de formação de sentido,
muito específica e muito delicada, que fornece possibilidades de leitura, ou seja,
comunica algo. Isso por si só poderia ser uma escolha estética, mas, em relação ao
trabalho como um todo, vai de contramão a esse gesto de resistência ao domínio
operado pelas outras imagens.
Lembro-me da palestra clássica de Deleuze sobre cinema e a cito: a obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência. Poderíamos dizer então, de forma mais tosca, do ponto de vista que nos interessa, que a arte é aquilo que resiste, mesmo que não seja a única coisa que resiste. Daí a relação tão estreita entre o ato de resistência e a obra de arte. Todo ato de resistência não é uma obra de arte, embora de uma certa maneira ela faça parte dele. Toda obra de arte não é um ato de resistência, e no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo [3].
VII.
Cito Lepecki: e aqui voltamos à concretude não metafórica do que a
6
dança pode fazer politicamente: destrambelhar o sensório, rearticular o corpo, suas velocidades e afetos, ocupar o espaço proibido, dançar na contramão num chão rachado, difícil. É assim que ela cumpre a promessa coreo-política a que se propõe, quando ativada para a verdadeira ação [4].
A pergunta que nos fica é: que imagens são possíveis captar, se é que
captamos algo nesse trânsito infinito de imagens? Em outros termos: algo resiste?
Dessas massas que lembram blocos de argila em processo de criação, pouco se
pode dizer. Outros índices de permanência e repetição nos corpos não são claros,
e por vezes, quando detectados, parecem quase risíveis: seria proposital os três
rostos das imagens dentro da casa possuírem cabelos longos e loiros e as duas
únicas figuras masculinas serem muito parecidas fisicamente, além de usarem a
mesma roupa? Provavelmente não. Mas essas repetições, reforçadas com o fato de
percorrermos uma casa inteira e vermos sempre essas mesmas tentativas de
constituir outras formas corporais parece uma pulsão para se chegar não somente
ao corpo, mas a um indivíduo, que se reconheceria como único. Somos, a cada
nova forma, relembrados de que tentamos constituir uma forma reificada e
impossível de nós e do outro, e que esse exercício é também uma forma sutil e
silenciosa de dominação.
Isso que denominamos corpo é apenas uma forma?
VIII.
Um microcosmo. O universo numa reta que termina no seu começo.
Ampliar as possibilidades da forma e esgarçar suas fronteiras para apenas se ver
observando, nomeando e delimitando as arestas dessa outra forma. Pensamos
dominá-la, mas a forma se alimenta de nós.
7
(a forma é parasita)
IX.
Não é preciso escrever mais nada, por enquanto. Fracassamos. Mas há
movimento no fracasso.
Notas
[1] KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes,
1998, p. 297.
[2] TAVARES, Gonçalo. Atlas do corpo e da imaginação. Portugal: Editora Caminho,
2013, p. 63.
[3] DELEUZE, Gilles. O que é o ato de criação. Palestra de 1987. Edição brasileira:
Folha de São Paulo, 27/06/1999. Disponível em: <http://artes.ucp.pt/artesdigitais/?p=578>. Acesso
em: 07 mai 2014 – 3h32.
[4] LEPECKI, André. "Coreo-política e coreo-polícia". Ilha R. Antr., Universidade
Federal de Santa Catarina - UFSC, Florianópolis, SC, Brasil, p. 13
Revisão de Marcio Honorio de Godoy
© 2015 eRevista Performatus e o autor