Matéria Rumos Itaú Cultural

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A morte Guarani REPORTAGEM MARCELLE SOUZA Foto: Christina Rufatto Sem identidade cultural, guaranis-kaiowás têm no suicídio uma opção a uma vida de quase-nada.

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Ele foi encontrado em um caminho de terra batida, limitado pela mata, que conduzia à sua casa. A árvore era pequena, quase do seu tamanho, e os pés não chegaram a ficar suspensos. Quase sentado na terra, seu corpo já não tinha vida. O cadáver pendia de uma corda, a ferramenta que encontrou para emudecer o desespero. Calou-se, era o silêncio de mais uma alma.

Esse era Daniel Romero, índio da etnia guarani-kaiowá que se suicidou, há dois anos, na aldeia Jaguapiré, no sul de Mato Grosso do Sul. Uma semana antes de seu suicídio, Romero chorava a morte de um de seus melhores amigos. O velório foi triste, e as lágrimas que caíam eram não só pelo colega, mas por ele mesmo.

Tudo parecia confuso: ideias e sentimentos de dor, mágoa e tristeza se misturavam à perda de um grande amigo. O com-panheiro havia se enforcado, o motivo ninguém sabia ao certo. Esse também seria o destino de Romero.

A esposa deixara Romero para viver com outro. Ele voltou a morar com a mãe, Lurdes Ortiz, que já não sabia mais lidar com suas bebedeiras. Naquela manhã, chegou de uma longa noite de baile com amigos. Estava triste e bêbado. Logo depois, dirigiu-se à casa da família do amigo morto para a cerimônia de sétimo dia. Romero carregou a cruz até o cemitério, cho-rou mais um pouco e voltou para casa. A mãe conta que ele parecia atordoado e faminto. Apressou-se para preparar uma comida. Quando o reencontrou, Romero atirava roupas e objetos para o alto e gritava: “Eu não sei o que está acontecendo!”. Inquieta, Lurdes saiu para colher mandioca. Ao voltar, o filho já não estava lá. Nervosa, sua primeira atitude foi procurar a corda, que não encontrou mais em cima do armário. Romero caminhou alguns metros e resolveu que aquela era a hora. Com a frieza de quem realmente sabe o que quer, es-colheu uma árvore, amarrou a corda e colocou-a ao redor do pescoço. O galho baixo abria espaço para a desistência. Mas ele não iria ceder. Decidido, soltou as pernas e morreu sentado.

Quando percebeu sua ausência, Lurdes pegou um dos netos e saiu em busca do filho. Encontrou o corpo e arrancou a corda do pescoço. Romero preferiu o silêncio. Escolheu se enforcar ao invés de perder de vez o que tinha de mais precioso diante de sua cultura: a alma.

O silêncio do jejuvy

O método que usou é o mesmo adotado pela maioria dos índios kaoiwá: o enforcamento, conhecido entre eles como jejuvy, palavra que pode ser traduzida como ”aperto na garganta, sufocação”. Cordão do short, pedaço de pano, cadarço, alça de sacola de nylon e camiseta são alguns dos chocantes instrumentos usados pelos indíge-nas para cometer suicídio.

“O jejuvy é um ato complexo, um ato individual, individualizante, mas que obedece a uma forte motivação cultural”, explica o antropólogo Miguel Vicente Foti. Ele destaca que o suicídio assume uma postura silenciosa, já que poucos anunciam o ato antes de morrer. Trata-se de uma afirmação da própria individualidade por meio da negação extrema do individual.

Aspectos culturais estão na base de tantos suicídios entre os guaranis-kaiowás. Isso acontece porque os guaranis são conhecidos pela alma-palavra, o ayvu – isto é, pessoa cuja morada é a garganta. Falar e manter-se ereto são as duas princi-pais características de seu povo. São elas que os índios matam quando, num ato de desespero, se enforcam. O jejuvy seria então uma forma de calar, ou sufocar, a alma. O suicídio é uma maneira de responder culturalmente à situação em que vivem. A morte de Daniel Romero é um número a mais na assustadora estatística de suicídios entre os guaranis-kaiowás em Mato Grosso do Sul. Segundo levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em 2007 ocorreram 19 casos de suicídio, em uma população de aproximadamente 20 mil índios. Em 2006 foi ainda pior: 56 casos, número muito acima da média brasileira.

É verdade que há muito tempo os kaiowás praticam o jejuvy. “Antes, índio não tinha roupa nem corda, então se enforcava com o cipó”, afirma dona Emília Romero, a mulher mais velha da aldeia Jaguapiré. Contudo, ela acrescenta, os casos não

eram tão comuns quanto hoje e ocorriam de forma mais esporádica. Mesmo sendo uma prática antiga, o suicídio é encarado, hoje, como uma reação autodestrutiva. A mor-te voluntária surge em meio ao conflito entre a cultura não-índia e a tradição de sua etnia. É o resultado da perda de um de seus bens mais preciosos: a terra.

A perda do teoká

Teoká (teko = modo de ser; e ha = lugar onde) é a pa-lavra que representa o local em que vivem os kaiowás. Terra que é muito mais do que um espaço, significando uma fusão entre território, relações sociais, subsistên-cia e manifestações religiosas. Além da perda do teoká, esses índios estão sujeitos ao “aculturamento” imposto pela população não-índia. Os danos se manifestam no rompimento dos laços familiares e no esquecimento de rezas e danças.

As aldeias ficam, geralmente, na periferia das cidades. Sem transporte, saneamento básico ou recolhimento de lixo, os índios sobrevivem do subemprego e do auxílio do governo. A chegada de drogas e álcool e a prolifera-ção das igrejas neopentecostais desfiguram as aldeias. A utilização dos índios como mão-de-obra nas usinas de cana agrava, ainda mais, o problema. São fatores que se somam, aumentando o número de suicídios, resposta si-lenciosa a uma situação muito complexa.

Além dos suicídios, a morte de crianças por desnutrição e as brigas e os assassinatos entre os próprios índios são sintomas de que algo está errado com a etnia. Nesse ce-nário adverso, a cultura guarani-kaiowá se deteriora. Em algumas aldeias, as crianças já não falam guarani e nem sequer conhecem as danças tradicionais. Sem as antigas referências, os conflitos se tornam cada vez mais frequen-tes. As aldeias, hoje, estão cheias de jovens perdidos, que aspiram ao modo de vida dos brancos e não se reconhe-cem mais como kaiowás.

A adolescência guarani

Quando lhe perguntam o que é ser uma índia, a adoles-cente de 15 anos Aviane Arévalo abaixa a cabeça e res-ponde: “Não sei”. Abandonada muito cedo pelos pais, ela frequenta hoje uma igreja evangélica e já não conhece as rezas e as danças de sua cultura. Aviane foi criada por parentes com quem, aparentemente, não tem muita in-timidade. Diante da repórter, permanece distante, sem palavras ou movimentos expressivos. As características físicas e a timidez são traços reconhecidamente guaranis. Aviane permanece, quase imóvel, sentada em uma pe-dra no quintal. Olha para o lago e tem uma árvore como moldura. É uma adolescente dividida entre o mundo do branco e a cultura indígena.

Em intenso conflito interior vivia, também, o jovem Cláudio Fernandes. Aos 15 anos, ele parou de estudar por falta de dinheiro. Acabara de se casar com uma me-nina de apenas 12 anos e, diante da falta de perspectivas, encontrou na bebida alcoólica o alívio de que precisava. Depois, na morte, o silêncio que tanto queria. Em uma tarde, a mãe de Cláudio, Sunciona Fernandes, la-vava roupas em um açude próximo de casa, enquanto o filho dormia. Parecia um dia normal. Até que, sem chamar a atenção da família, o rapaz se levantou da cama e, sem dar explicações a ninguém, caminhou em direção à mata vizinha. Durante dez dias, a família o procurou inutilmen-te. No décimo dia, a avó Avelina Hara percebeu uma es-tranha movimentação de urubus em uma área um pouco distante da aldeia. Mostrou ao marido, que foi investigar. Ele logo reconheceu o corpo do neto, caído em uma vala por onde escorria um pequeno riacho. A camiseta que Cláudio usara para se enforcar, muito frágil, se rompera.

Não foi a primeira vez que Cláudio planejou se matar. Pelo menos em três outras vezes, diz a mãe, o adolescente já tentara acabar com a vida. Em todas elas, o avô chegou a

Cordão de short, pano, cadarço, alça de sacola

e camiseta são instrumentos usados pelos

indígenas para cometer suicídio

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combater esse mal. “É como o fogo”, ele compara. “Eu não tenho força para lutar contra ele.” Muitas vezes, o suicídio é atribuído a um feitiço, como se esses índios fossem “levados para a corda”. “Às ve-zes, um homem quer namorar uma menina, daí faz um feitiço para ficar com ela. Isso dá certo mesmo, mas pode ser que ela não consiga ficar com ele, então se enforca”, explica Edivaldo Benites, que es-tuda o fenômeno em sua etnia.

“A gente fica com a cabeça confusa, os pensamen-tos embaralhados, e pensa em se enforcar”, expli-ca a jovem Delmira Velário Borvão, indígena de 24 anos que já pensou em suicídio. “Eu acho que foi feitiço que alguém fez para mim”, continua ela, re-ferindo-se à tristeza que sentia após sua separação do marido. Delmira acredita que só não se matou por causa dos três filhos, gerados em um casa-mento que durou sete anos. Já Sunciona, a mãe de Cláudio, acredita que só a reza poderia ter salvado seu filho. Ela lamenta não tê-lo levado a tempo a um rezador, que poderia ter combatido o mal que o encaminhou para a morte.

Os mais velhos acreditam, em geral, que as rezas são a melhor arma de combate aos suicídios. “No ano passado, tivemos três enforcamentos em 15 dias. Reunimos todas as pessoas da aldeia para dois dias de reza. Chamamos, principalmente, os jovens. E nunca mais tivemos esse problema aqui”, conta, satisfeito, o rezador Luiz Borvão. A seu ver, o proble-ma maior está no afastamento da cultura guarani. “Jovem carregou muito pensamento do branco. Vai estudar, daí não quer mais falar guarani. Não sabe mais as danças do kaiowá. Perde cultura dele, mas não pode ser assim”, diz. E arremata com ênfase: “Riqueza de branco é papel. Então índio quer papel também. Mas a lei do índio está no mato”.

Em Mato Grosso do Sul, com rezas e conselhos, os guaranis tentam – infelizmente sem muito su-cesso – combater o mal que invade suas aldeias. É uma população que responde silenciosamente aos eventos da história. À perda da terra, da língua e das próprias tradições, ela dá uma resposta de mor-te e de autodestruição. O confinamento gera o si-lêncio. O impacto é mais forte entre os jovens, que se dividem entre a cultura não-índia e a kaiowá. São almas que não se salvam, mas que preferem morrer a ter de viver uma vida que não é a sua. Para o rezador Borvão, jovem carregou muito do pensamento do branco

tempo de cortar a corda e salvar a vida do neto. Dessa vez, porém, chegara tarde demais. “Uns dias antes, ele falou que ia morrer e que ninguém ia achar seu corpo”, conta a mãe, com uma objetividade assustadora, como se falasse do suicídio de um estranho.

A morte anunciada enfim se cumpriu. Ela calou não só a alma, mas também as esperanças do jovem de 15 anos. Sem manifestar muita tristeza, mãe e avó re-lembram detalhes da morte do menino. Os kaiowás preferem não comentar os suicídios, mas, quando enfim o rememoram, se esforçam para afastar a dor. Sunciona se limita a dizer que sente saudades do fi-lho. “Ele era um menino moreninho, bem bonito, você precisava ver”, lembra.

Um mal contagioso

Falar sobre o assunto não é fácil: as famílias prefe-rem ficar quietas, e mesmo os rezadores e os líderes indígenas optam pelo silêncio. Para eles, falar sobre o suicídio é atrair esse ”mal” para sua comunidade. O enforcamento é encarado como algo contagioso. Quanto mais é lamentado, mais pode se alastrar. O rezador explica que a demora no enterro do morto pode estimular outros índios ao suicídio. A amea-ça vem das almas desencarnadas. “Ali não tem só a alma do morto, mas tem também outras almas de gente que morreu do mesmo jeito. Então, que-rem pegar o corpo das outras pessoas”, conta Luiz Borvão, rezador kaiowá.

Para Borvão, foi a influência do amigo suicida que levou Daniel Romero a se enforcar. “Ele já foi para lá com a alma fraca. Daí, as almas pegaram o corpo dele e quiseram que fizesse o mesmo”, explica o re-zador. De acordo com a tradição kaiowá, o suicida não pode ser velado e a família não deve chorar sua morte. Antigamente, o corpo deveria ser enterra-do, o mais rápido possível, em um buraco cavado no lugar em que o índio se enforcara. Ainda hoje, as crianças são proibidas de ver o morto para que, mais tarde, não o imitem.

Os kaiowás acreditam que as almas dos suicidas não encontram o mesmo caminho seguido pelas outras. “O suicida é um espírito perdido”, diz Borvão. Ele afirma que alguns rezadores e pajés conhecem rezas específicas para ajudá-los. Mas se exalta ao tentar explicar por que ele mesmo não consegue

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