MATOS, Rafael Leal. Bebendo No Cajueiro.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE CENTRO DE HUMANIDADES UNIDADE ACADÊMICA DE CIÊNCIAS SOCIAIS BACHARELADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS HABILITAÇÃO EM ANTROPOLOGIA RAFAEL LEAL MATOS BEBENDO NO CAJUEIRO UM ENSAIO ETNOGRÁFICO SOBRE O CONSUMO DE BEBIDAS ALCOÓLICAS NA ALDEIA POTIGUARA DO FORTE CAMPINA GRANDE – PB Junho de 2013

Transcript of MATOS, Rafael Leal. Bebendo No Cajueiro.

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDECENTRO DE HUMANIDADES

    UNIDADE ACADMICA DE CINCIAS SOCIAISBACHARELADO EM CINCIAS SOCIAIS

    HABILITAO EM ANTROPOLOGIA

    RAFAEL LEAL MATOS

    BEBENDO NO CAJUEIRO

    UM ENSAIO ETNOGRFICO SOBRE O CONSUMO DE BEBIDAS ALCOLICAS NA

    ALDEIA POTIGUARA DO FORTE

    CAMPINA GRANDE PB

    Junho de 2013

  • RAFAEL LEAL MATOS

    BEBENDO NO CAJUEIRO

    UM ENSAIO ETNOGRFICO SOBRE O CONSUMO DE BEBIDAS ALCOLICAS NA

    ALDEIA POTIGUARA DO FORTE

    CAMPINA GRANDE PB

    Junho de 2013

    Monografia apresentada comorequisito para obteno do ttulode Bacharel em CinciasSociais, com habilitao emAntropologia.

    Orientador: Prof. Dr. Rodrigo deAzeredo Grnewald.

  • BANCA EXAMINADORA

    Dr. Rodrigo de Azeredo Grnewald (Orientador - UFCG)

    Dr. Estvo Martins Palitot (Examinador - UFPB)

    Dr. Mrcio de Matos Caniello (Examinador - UFCG)

  • Ana Lcia, minha Me.

    Beta, minha parceira.

    E aos ndios Potiguara.

  • AGRADECIMENTOS

    No acho que sou bom nesse tipo de agradecimento, prefiro agradecer pessoalmente.

    Mas vai aqui uma tentativa.

    Agradeo Ana Lcia, minha me. Ana Carla e Venceslau, que fizeram brotar a

    mais linda flor de que tenho notcia: Ana Flor, minha sobrinha. A Biro e Jnior, meus irmos.

    A Cau, meu sobrinho. Tia Lcia e Tia Emlia, que me incentivaram ao longo da

    graduao.

    Sou grato tambm Mabel, Joo e Seu Braz meus vizinhos de bairro, por terem me

    cedido abrigo nas minhas primeiras investidas no campo de pesquisa. Sem essa ajuda minha

    pesquisa no seria possvel.

    Agradeo Beta, minha parceira, tradutora, revisora, conselheira, amante, amiga...

    Quando estou com ela ocorre um fenmeno idntico ao que ocorreu com Maiakovski, que

    disse o seguinte: Nos demais, todo mundo sabe, o corao tem moradia certa, fica bem aqui,

    no meio do peito. Mas comigo a anatomia ficou louca. Sou todo corao - em todas as partes

    palpita. Voc a mulher que muda minha anatomia por completa!

    Deixo agora registrado o nome d@s amig@s importantes nessa minha odisseia

    monogrfica. Darlan (devolva meu isqueiro!) e Illian, um casal um pouco bairrista, mas gente

    boa. Lgia (Favelita) e a Bruno (Capotado), casal charme das Cincias Sociais. Mylle,

    Matchella e Tiago, o amigo que no escolhi. Agradeo tambm @s amig@s que fiz ao longo

    da graduao: Carol, Aldo(us Huxley) Manoel, Luis Henrique (professor importante na minha

    formao), Carlos (Castaeda) Boemia, Lulinha, Valdnio e Joo Matias. Agradeo tambm

    Snarfelezonildo (valeu pelas fotos!), Tito Law, Joani, Rennaly, Romero Curtis, Fabricio,

    Rodolfo, Bruna e Sidney.

    Seguindo a onda da amizade, agradeo aqui ao meu orientador, Rodrigo Grnewald,

    que ao longo do processo monogrfico se mostrou mais que um simples orientador

    acadmico. Valeu pelo estmulo! Agradeo tambm a Estvo Palitot, que me ajudou como

    uma espcie de coorientador, com textos e conversas, alm ter me levado pela primeira vez

    at os Potiguara.

    Por fim, mas no menos importante, quero registrar os meus agradecimentos aos

    Potiguara, em especial D. Amlia, Abrao (Braia), Iremar (Mazinho), Clvis, Caboquinho,

    Neguinho, Ronaldinho, Abrao de Zinho, Ju, Nenm, Joca, Demir, Seu Antnio e Seu Biu. A

    vocs sou grato de uma maneira que no tenho nem como dizer. Devo essa a vocs!

  • SUMRIO

    Resumo ....................................................................................................................................01

    Introduo ...............................................................................................................................03

    Captulo I - Reflexes Crticas e Tericas sobre o Uso de lcool ......................................09

    Sobre como o Consumo de lcool Abordado na Contemporaneidade .....................09

    lcool e/ Droga ..........................................................................................................11

    Sobre o Consumo de lcool em Comunidades Indgenas: estudos antropolgicos ....13

    Captulo II - Os Potiguara e a Aldeia do Forte ...................................................................21

    ndios do Nordeste .......................................................................................................21

    O Povo Potiguara do Litoral Paraibano .......................................................................24

    A Aldeia do Forte ........................................................................................................37

    Captulo III - Na Sombra do Cajueiro do Forte .................................................................44

    O Cajueiro e sua Turma ...............................................................................................44

    A Turma do Cajueiro: uma histria de lazer ................................................................49

    Sentimento de Propriedade e Autoridade Associado s Prticas Etlicas ....................53

    Marginais e Desviantes? ...............................................................................................60

    Consideraes Finais ..............................................................................................................63

  • 1RESUMO

    Esta monografia nasceu de uma investigao acerca do consumo de bebidas alcolicas entre

    os ndios Potiguara residentes no municpio de Baia da Traio, Paraba. A pesquisa foi

    realizada na aldeia do Forte, onde h um Cajueiro que serve de ponto de encontro para um

    grupo de homens, identificados como a Turma do Cajueiro. Entre estes homens, o uso de

    bebidas etlicas (principalmente cachaa) ocupa um papel central em sua sociabilidade. Neste

    sentido, utilizando-se de uma metodologia qualitativa (a etnografia) baseada na observao

    participante (ou direta), com a utilizao de dirio de campo e a realizao de entrevistas

    formais e informais, alm da captao de registros fotogrficos usados mais de maneira

    ilustrativa do que analtica explicito aqui quais prticas, significados e representaes

    sociais esto vinculadas ao consumo de bebidas realizado no Cajueiros Bar, modo como a

    turma chama o locus desta pesquisa. Por fim, pude perceber que a criao do Cajueiro

    enquanto um espao de lazer est fortemente associada constituio do grupo enquanto tal, e

    que, por isso, eles nutrem um sentimento de propriedade perante o local. Este sentimento

    reafirmando nos encontros etlicos do grupo, uma rede social de amigos que faz do Cajueiros

    Bar um espao social de poltica informal dentro da rea indgena.

    Palavras-chave: ndios Potiguara, Bebidas Alcolicas, Redes Sociais, Poltica Informal.

    ABSTRACT

    This monograph results from an investigation regarding the consumption of alcohol among

    the Potiguara, indigenous residents in the municipality of Baia da Traio, Paraba. The

    research was conducted in the community of Forte, where there is a cashew tree that serves as

    a meeting point for a group of men, identified as Turma do Cajueiro (cashew tree team).

    Among these men, the use of alcoholic beverage (particularly cachaa) occupies a central role

    in their sociability. In this sense, using a qualitative methodology (ethnography) - based on

    participant (or direct) observation, with the use of a field diary and conducting formal and

    informal interviews, in addition to capturing photographic records used in a more illustrative

    way than an analytical I explicit here what practices, meanings and social representations

    are linked to alcohol use conducted in Cashew's Bar, how the team calls the place. Finally, I

    realized that the creation of cashew as a leisure is strongly associated with the formation of

    the group as such, and that, therefore, they nourish a sense of ownership to the site. This

  • 2feeling is reassured in the alcoholic meetings of the group, a social network of friends making

    the Cashew's Bar a social space for informal policy within the indigenous area.

    Key Words: Potiguara Indians, Ethylic Drinks, Social Networks, Informal Politic.

  • 3INTRODUO

    Esta monografia fruto de uma pesquisa etnogrfica sobre a ingesto de bebidas

    alcolicas entre o grupo indgena Potiguara, localizado no litoral norte do estado da Paraba.

    O estudo das prticas e representaes ligadas ao consumo de lcool torna-se importante pelo

    fato de que a manipulao e a ingesto de bebidas desse gnero, por parte dos agrupamentos

    humanos, transportam-nos a tempos dos mais remotos. Alm disso, o uso de bebidas

    alcolicas pode revelar-se como uma peculiar porta de entrada para a compreenso de

    dinmicas socioculturais, na medida em que elas permeiam vrias esferas do mundo social

    uma vez serem usadas em rituais religiosos, em comemoraes festivas das mais diversas,

    como alimento cotidiano, como remdio ou veneno, ou apenas como uma forma de lazer e

    entorpecimento.

    Pela impossibilidade de etnografar todos os espaos de consumo de bebidas alcolicas

    existentes dentro das Terras Indgenas Potiguara, pelo simples fato de que so quase que

    incontveis, centrei-me numa nica aldeia e, dentro desta, num espao especfico conhecido

    pelos frequentadores como Cajueiros Bar. Desse modo, a partir de uma tica antropolgica,

    procurei compreender como alguns indivduos da etnia Potiguara se relacionam com as

    substncias alcolicas e quais as prticas e representaes implicadas nesta relao.

    A pesquisa foi realizada entre o ms de novembro do ano de 2012 e o ms de janeiro

    de 2013, com quatro idas e vindas. Em 2012 fiz trs investidas ao campo: a primeira viagem

    se deu nos dias 24 e 28 de novembro; a segunda foi do dia 30 de novembro at o dia 02 de

    dezembro; a terceira foi nos dias 15 e 16 de dezembro. J no corrente ano de 2013 fiz a quarta

    e ltima viagem, que perdurou do dia 11 de janeiro at o dia 20 do mesmo ms. Assim, foi um

    total de 20 dias no campo de pesquisa1.

    importante ressaltar que apenas na ltima viagem, que compreendeu em dez dias

    seguidos, que fiquei alojado na casa de uma famlia indgena. Nas viagens anteriores

    permaneci hospedado numa casa de veraneio bem prxima rea indgena, gentilmente

    cedida por uma amiga. Vale dizer aqui tambm que o contato com os ndios desta pesquisa se

    deu j no primeiro dia em que estive em campo e que, desde ento, a nossa relao foi se

    estreitando na medida em que nos encontramos todos os dias de pesquisa que se sucederam: o

    1 Vale salientar que a primeira vez que estive em terras Potiguara foi a partir do contato com o antroplogoEstvo Martins Palitot (UFPB), que gentilmente me levou at uma reunio entre lideranas indgenas e algunsprofessores da UFPB. Porm, neste contato eu no conheci nenhum sujeito dessa pesquisa, nem mesmo conhecia aldeia do Forte. Por isso, elejo como primeiro contato a minha segunda ida, quando conheci os rapazes daturma do Cajueiro.

  • 4que possibilitou a minha estadia mais densa, citada no incio deste pargrafo, da qual emergiu

    a maioria dos meus dados.

    A pesquisa se centrou num grupo de amigos que se renem de maneira frequente na

    sombra de um Cajueiro da aldeia do Forte e que compartilham o gosto por bebidas etlicas e

    um estilo de vida em comum. A escolha do local se deu pelo seguinte: ao elaborar o projeto

    de pesquisa meu orientador logo me sugeriu que procurasse o atual Cacique do Forte2, com a

    alegao de que este, por ser uma pessoa bem relacionada com vrios segmentos da aldeia,

    poderia ser uma porta de entrada para a minha pesquisa.

    Ao desembarcar na Baa da Traio, na primeira vez em que estive l, fiz um lanche e

    logo me dirigi para a aldeia do Forte em busca do contato sugerido, mas tambm querendo

    encontrar o Cacique Geral do Povo Potiguara, com o qual havia marcado de entregar um

    ofcio em que havia uma solicitao de permisso de pesquisa, requerido por ele3. J na

    aldeia, segui andando pela rua principal como uma forma de conhecer o local e tentar

    encontrar quem procurava. Neste nterim percebi algumas pessoas em frente ao Posto

    Indgena da Fundao Nacional do ndio (FUNAI), outros em frente s suas casas, alguns

    passando a p ou de moto, uns turistas nos canhes situados na barreira do forte, algumas ocas

    de artesanato, etc.

    Na volta, j desanimado por no ter encontrado quem procurava, fui dar uma olhada

    nos canhes localizados na ponta da barreira que da uma tima vista para o mar e para a

    cidade de Baa da Traio. Foi quando percebi alguns indivduos, notadamente nativos, de

    baixo do Cajueiro ao lado de onde eu estava. Adentrei este Cajueiro e, para minha surpresa,

    logo notei uma mesa com uma garrafa de cachaa, alguns cajus e uns copos em cima.

    Aproveitei a oportunidade e perguntei sobre o Cacique Geral e o Cacique do Forte. Este

    ltimo se encontrava presente e estava, junto com seus amigos, se preparando para fazer a

    limpeza do Cajueiro. Da, me apresentei como estudante e desde ento passei a frequentar o

    ambiente do Cajueiros Bar, que logo percebi ser um local de encontros etlicos.

    Decorrente desses encontros, me propus apresentar aqui, apesar do curto espao de

    tempo no campo de pesquisa, um ensaio etnogrfico acerca de quais so as prticas etlicas do

    grupo chamado por eles mesmo de turma do Cajueiro o que elas significam para eles,

    2 Aqui importante ressaltar que a estrutura poltica dos Potiguara composta por um Cacique Geral mais osCaciques especficos de cada aldeia.

    3 No dia 09/11/2012 houve em Joo Pessoa-PB uma manifestao em favor do povo indgena Guarani-Kaiow.Nesta ocasio, em que estiveram presentes algumas lideranas Potiguara, foi que, ao conversar com o CaciqueGeral no intuito de demonstrar minha inteno de pesquisa, este ofcio foi solicitado.

  • 5como eles se percebem no que tange ao consumo de lcool e como eles percebem o local.

    Neste sentido todas as consideraes que teo nesta monografia acerca da turma do Cajueiro

    levam em conta a percepo deles sobre eles mesmos. Com isso espero demonstrar como eles

    se constroem como uma rede de amigos que tem no uso do lcool uma atividade importante

    de socializao, para compartilhar experincias. Saliento aqui que minha abordagem se

    distancia da perspectiva do estigma de Goffman (1975). Neste sentido, no apresento este

    grupo e os indivduos que dele fazem parte como portadores de um estigma, nem como

    desviantes. Isso porque no estive preocupado com o modo como os outros os veem, apesar

    de que esta discusso entra de maneira incipiente nesta monografia. Minha preocupao foi

    mesmo a de descrev-los a partir de como eles se percebem.

    Assim pude perceber, que a histria do grupo descrito aqui como turma do Cajueiro

    esta estritamente ligada criao do Cajueiro do Forte como um espao de lazer dentro da

    aldeia. Ao recuperar a histria da criao do Cajueiros Bar o grupo se reafirma atravs de um

    sentimento de propriedade e autoridade em relao a este espao. Neste sentido, ao

    compartilharem dessa histria e de um estilo de vida em comum, no qual as bebidas

    alcolicas ocupam um papel importante, a turma do Cajueiro se constitui como uma rede

    social de amigos que transcende a questo do lazer e adentra na questo poltica local, o que

    faz do Cajueiro um espao social de poltica informal dentro da rea indgena Potiguara. Alm

    disso, pode-se perceber que na interao e atravs do discurso o grupo define o que eles

    pensam ser o jeito certo de se relacionar com as bebidas alcolicas, negando a condio de

    alcolatras, ou seja, de um grupo anmalo.

    Perspectiva terico-metodologia, tcnicas de pesquisa e disposio dos captulos

    Heath (1987) quando discute a emergncia de estudos sobre lcool na antropologia no

    perodo da dcada de 1970, faz algumas constataes e generalizaes que serviram de

    pressupostos epistemolgicos para a minha pesquisa:

    a) apesar de se tratar de uma substncia nica (o etanol), o consumo humano apresenta uma

    enorme diversidade, ou seja, no um consumo que segue um padro universal; b) a prtica

    alcolica considerada um ato social, isso quer dizer que est inserida num contexto

    sociocultural onde esto presentes uma srie de outras prticas, valores e normas; c) este

    contexto sociocultural, independentemente dos fatores bioqumicos e fisiolgicos, constitui-se

  • 6como de fundamental importncia para a compreenso dos efeitos do consumo de lcool; d) o

    consumo de bebidas etlicas constitudo de uma srie de regras e restries que se

    relacionam diretamente s emoes e a uma srie sanes sociais, como: quem pode beber,

    quando beber, em quais contextos beber, em quais companhias beber, dentre outras; e) o

    lcool como promotor da sociabilidade e do relaxamento enfatizado por muitas culturas; f) a

    associao entre consumo de lcool e problemas fsicos, econmicos, psicolgicos e sociais

    algo raro entre as culturas ao longo da histria; g) quando problemas relacionados ao uso de

    bebidas ocorrem, eles esto ligados a certas modalidades de beber, que incluem valores,

    prticas e normas; h) tentativas de proibio nunca foram bem sucedidas, exceto quando

    expressas em termos de regras sagradas ou sobrenaturais.

    Partilho das posies do autor citado mais acima e com isso, pretendo que esta

    monografia seja uma maneira de quebrar a hegemonia do discurso biomdico vulgar que

    enfatiza apenas o uso problemtico das drogas (praticado pela minoria dos usurios) e que, na

    maioria das vezes, no ajuda a compreender as prticas e as representaes que circundam o

    uso de substncias que alteram o comportamento, o temperamento e a conscincia humana,

    como o caso das bebidas alcolicas.

    Desse modo, para compreenso dos fatores econmicos e histricos a pesquisa

    bibliogrfica se mostrou de fundamental importncia. Pesquisei, assim, sobre o lugar do

    lcool no contato intertnico entre o grupo Potiguara - PB e a sociedade envolvente ao longo

    da histria, de maneira no exaustiva, como uma forma de ampliar a compreenso de como as

    relaes etlicas se do no contexto atual.

    J para submergir nos fatores socioculturais, que so os mais importantes nesta

    monografia, utilizei da observao participante (MALINOWSKI, 1980), que alguns preferem

    chamar de observao direta. Ela serviu para compreender e, posteriormente, descrever como,

    na interao (GOFFMAN, 2004), os atores sociais atribuem sentidos s suas aes. De acordo

    com Chauchat (1985),

    no modelo da interao, que se insere em um procedimentoconstrutivista, a pesquisa de campo possibilita dar conta de umarealidade, menos pelo fato de que o pesquisador chega a sentir o meiodos atores presentes, do que por ele interagir enquanto ator social. Nestaconcepo, no s o distanciamento objetivo impossvel, como amanuteno de uma posio de exterioridade pelo observador paralisa apesquisa (CHAUCHAT, 1985, p. 92 apud JACCOUD, MAYER, 2010).

    Nesta forma de abordagem o controle das impresses (GOFFMAN, 2004) se

    mostrou um instrumento metodolgico indispensvel, pois compreendo, como Berreman

  • 7(1980), que a pesquisa etnogrfica um sistema de interao entre o etngrafo e seus sujeitos.

    No encontro com os sujeitos da pesquisa, estive a todo o momento avaliando e sendo avaliado

    por eles. Segundo Berreman o pesquisador avalia os sujeitos da pesquisa de acordo com

    quantidade de informaes sobre a regio interior que lhe revelam, j ele [o pesquisador]

    avaliado por eles base do seu tato em no intrometer-se desnecessariamente na regio

    interior (Ibid, p.142). Neste sentido, para adentrar na regio interior que me pretendia,

    estabeleci um jogo onde o controle das impresses foi fundamental para o estabelecimento de

    uma relao de confiana reveladora.

    Assim, pude penetrar no circuito alcolico da turma do Cajueiro ao participar das

    atividades referentes a esse circuito. Foi assim que defini a situao de maneira favorvel ao

    ponto de conseguir penetrar em algumas das instncias mais profundas das representaes

    feitas pelos sujeitos da minha pesquisa. Desse modo, ao longo desse estudo procurei ser

    admitido no encontro dos rapazes e, para que isso fosse possvel, tive que ingerir, de maneira

    moderada, bebidas alcolicas junto com eles. Esse experimentalismo aliado s entrevistas

    informais, para alguns mais moralistas ou ortodoxos, pode ser visto como um problema em si,

    mas aqui ele visto como uma fonte (das mais ricas). Isso porque a defesa do

    experimentalismo emprico de substncias psicoativas como uma possvel ferramenta para a

    compreenso do fenmeno das drogas nos parece legtima (LABATE, FIORI, GOULART,

    2008, p. 28).

    Neste sentido, a subjetividade um fator preponderante da pesquisa, por se constituir

    como uma fonte de dados, tendo sempre em vista a posio social por mim ocupada no campo

    da pesquisa. A anotao exaustiva dos fatos ocorridos aliada observao atenta em campo,

    foram outras tcnicas de pesquisa que exerceram um papel central para que eu pudesse

    construir um quadro interpretativo e passvel de anlise.

    Essas anotaes de campo, seguindo a orientao de Schatzman e Strauss (1955, apud

    JACCOUD e MAYER, 2010), foram feitas de maneira sistemtica e separadas nas seguintes

    modalidades: metodolgicas, tericas e descritivas. Alm delas, o uso de gravador, de

    mquina fotogrfica e de entrevistas4 formais semiestruturadas foi acionado assim que obtive

    a receptividade dos sujeitos, que autorizaram (mesmo que informalmente) os usos das

    imagens e das entrevistas apresentadas nessa monografia.

    A diviso dos captulos se deu da seguinte forma:

    4 importante dizer que ao longo desta monografia omitirei os nomes dos sujeitos dessa pesquisa, assim comoos rostos destes, no caso dos registros fotogrficos, para no exp-los como usurios contumazes de bebidasalcolicas.

  • 8O primeiro apresenta algumas discusses tericas e metodolgicas sobre o uso de

    lcool. Nele mostro como esse uso vem sendo abordado na contemporaneidade. Alm disso,

    reassumo minha posio epistemolgica frente s abordagens dominantes, discuto um pouco

    sobre o porqu de as substncias alcolicas ora serem consideradas drogas e ora no serem

    consideradas como tal e apresento alguns estudos antropolgicos que tratam da temtica do

    lcool em geral e do uso dele por grupos indgenas em particular.

    No segundo captulo apresento o grupo Potiguara. Assim, situo a comunidade

    Potiguara entre os grupos indgenas que se convencionou chamar na etnologia atual de ndios

    do Nordeste. Posteriormente apresento dados histricos e atuais do grupo, incluindo dados

    demogrficos e no final deste apresento a aldeia do Forte e suas caractersticas j

    apresentando alguns dados sobre o Cajueiro do Forte, locus desta pesquisa.

    O terceiro captulo consiste na anlise etnogrfica de fato. Aqui falo sobre Cajueiro do

    Forte de maneira mais detalhada, bem como do grupo que se rene sob sua sombra para

    consumir bebidas alcolicas. Com isso demostro a relao da turma do Cajueiro com o local

    (relao histrica), com as bebidas alcolicas e quais as prticas e significados associados ao

    consumo de lcool.

    Por fim, como de praxe, apresento as consideraes finais da monografia, no intuito de

    enfatizar os principais pontos desta, bem como algumas concluses a cerca dos dados

    apresentados.

  • 9Captulo I

    REFLEXES CRTICAS E TERICAS SOBRE O USO DE LCOOL

    1. Sobre como o Consumo de lcool Abordado na Contemporaneidade

    Tratar do uso de substncias que alteram o humor, o agir, o emocional, o pensar e a

    percepo humana uma tarefa delicada por ser um tema tabu na sociedade contempornea.

    A partir da primeira metade do sculo XIX a abordagem dada a esse tema tem sido, de

    maneira geral, norteada por um discurso moralista que passou a maximizar aspectos negativos

    do consumo de drogas, com o intuito de combat-las. Nesse nterim, do incio dito at os

    dias atuais, o ponto de vista biomdico foi se estabelecendo como sendo o discurso

    autorizado para falar sobre a ingesto de substncias desse gnero, como o caso do lcool

    (LABATE, FIORI e GOULART, 2008).

    Assim, a partir do sculo XIX que uma forma negativa de abordar os usos de

    substncias (licitas e ilcitas), apoiada em cincias positivas (como a biomedicina), foi cada

    vez mais se estabelecendo como discurso norteador de grande parte das produes cientficas,

    dos debates pblicos, das polticas pblicas e veiculaes miditicas com relao s drogas.

    Isso fez com que a questo do uso de substncias psicoativas passasse a ser considerado um

    problema de sade pblica e a ser combatido como um mal em si mesmo. Assim, no mundo

    contemporneo se estabeleceu uma crena naturalizada de que o uso de substncias

    psicoativas uma prtica essencialmente negativa. Mesmo o lcool no sendo uma substncia

    ilcita, ele passou a ser comumente visto e abordado a partir dessa lgica (Ibid.).

    De acordo com Fiori (2002),

    ... as substncias passaram a ser percebidas como portadoras depotencialidades malficas [...] justamente nesse perodo [incio do sc.XIX] que os esforos norte-americanos para um controle legal da

    O gosto frentico do homem por todas assubstncias, ss ou perigosas, que exaltem suapersonalidade, testemunha sua grandeza. Ele aspirasempre a reavivar sua esperana e a elevar-se aoinfinito.

    C. Baudelaire Do Vinho ao Haxixe 1961

  • 10

    produo, venda e consumo destes produtos comea a obter vitriasinternacionais (Ibid.: 5).

    Devido a fatores dos mais diversos (culturais, polticos, econmicos, sociais,

    psicolgicos, biomdicos, etc.), essa maneira de lhe dar com os usos de substncias

    psicoativas que tem como pano de fundo a medicalizao e a criminalizao (Ibid.)

    tornou-se o discurso preponderante quando as drogas entram em pauta.

    Calcada numa lgica da negatividade (LABATE, FIORI e GOULART, 2008) foi

    estabelecida, ento, uma forma de olhar o consumo de lcool, que vigora at os dias atuais,

    tendo como base uma epistemologia que, quase que exclusivamente, v o uso de lcool

    apenas como uma interao entre indivduo e substncia, potencializando os malefcios desta.

    Para os partidrios desse modo de olhar, os fatores culturais, histricos, sociais e econmicos

    tendem a ser negados como varveis de explicao para o comportamento alcolico.

    Dessa maneira, como uma forma de se distanciar desse ponto de vista simplista

    descrito mais acima, torna-se necessrio recuperar e reafirmar um ponto de vista

    antropolgico. A forma de abordagem que serviu de base para todos os instrumentos

    metodolgicos usados no encaminhamento desta pesquisa teve como base o fato de que o

    fenmeno do consumo sistemtico de substncias psicoativas vai muito alm do contato fsico

    entre indivduos e determinadas molculas (Ibid.: 27). Com isso, espero ter conseguido me

    afastar do ponto de vista talhado pelo proibicionismo, que reverbera at nas formas de ver

    as substncias psicoativas legais, como o caso do lcool.

    Assim,

    Seja qual for a ligao entre o objeto de estudo e o pesquisador, assumirposicionamentos polticos parece ser, desde que no acarrete nocomprometimento da objetividade dos trabalhos, no apenas inevitvel, masdesejvel. O pressuposto da neutralidade cientfica j foi h muito superadoe achamos, sim, que a experincia acumulada em pesquisas acadmicas deveinfluenciar o debate, enriquecendo-o (LABATE, FIORI e GOULART,2008: 28).

    Nesse sentido, o uso de lcool deve ser (e foi aqui) encarado como um consumo que

    no segue um padro universal. Pois, h uma diversidade na prtica alcolica decorrente do

    contexto sociocultural, histrico e econmico, que incluem normas e valores compartilhados

    socialmente. Independendo dos fatores bioqumicos, adentar nessas variveis torna-se crucial

    para a compreenso dos comportamentos etlicos coletivos.

  • 11

    2. lcool e/ Droga

    Embora seja uma droga, no sentido de que toda e qualquer substncia que altere a

    conscincia, a conduta e o temperamento humano possa ser englobada por este conceito, irei

    ao longo do trabalho me referir ao lcool tambm de outras formas, como por exemplo:

    substncia psicoativa, etlica, alcolica, inebriante. Isso se deve ao fato de que o termo

    droga se encontra envolto de significados pejorativos que podem prejudicar um melhor

    entendimento sobre o tema.

    Embora a expresso substncia psicoativa [assim como as outrascitadas acima] no seja[m] de todo neutra[s], na medida em que tambmengendra[m] um ponto de vista nitidamente biomdico, sem dvida,carrega[m] menos pressupostos morais, permitindo que hajadistanciamento dos sentidos, muitas vezes contraditrios, que o termodroga normalmente remete (narctico, entorpecente, txico, coisa ruim,etc.) (LABATE, FIORI e GOURLAT, 2008: 24).

    Sobre a etimologia da palavra droga h uma srie de controvrsias. Vrias so as

    origens atribudas ao termo: bret, francesa, grega, holandesa e irlandesa. A verso holandesa

    a mais aceita perante os que debatem tal etimologia. De acordo com Carneiro (1993), o

    termo surgiu a partir da palavra droog (seco), que era usada pelos holandeses em meados do

    sculo XVI para se referir aos carregamentos de peixe seco que chegavam Europa, muitas

    vezes em mal estado, aplicando-se por extenso s mercadorias e substncias qumicas de

    gosto diferente e provenincia estrangeira (Ibid.: 56).

    Sabe-se que hoje, que a palavra droga no comumente utilizada pelo senso comum

    para se referir s bebidas alcolicas. Acredito que isso se deve ao fato de ser uma substncia

    psicoativa de grande aceitao social e que, apesar de ser a primeira droga psicoativa proibida

    com o advento da poltica proibicionista internacional, iniciada nos EUA, no permaneceu no

    rol das substncias proibidas e criminalizadas.

    De acordo com Rodrigues (2008), o Volsted Act (a Lei Seca) instituiu no ano de 1919

    a primeira lei proibicionista contempornea ao criar uma norma constitucional que visava

    proibir a produo, circulao, armazenagem, venda, importao, exportao e consumo de

    lcool em todo territrio estadunidense (Ibid.: 93). Ainda segundo este autor, a proibio no

    conseguiu acabar com o consumo de bebidas, conseguiu foi inventar um crime e novos

    criminosos, j que a demanda permanecia e havia pessoas dispostas a produzir e

    comercializar o lcool de maneira clandestina (Ibid.). Contudo, por questes das mais

  • 12

    diversas, o lcool voltou legalidade nos EUA no final dos anos 1930 e, desde ento, o termo

    droga passou a ser mais fortemente associado s substncias tornadas ilegais com o fim da

    Lei Seca, como: maconha, cocana. LSD, herona, etc.

    Percebe-se assim que o conceito de droga, como demonstra Carneiro (2004),

    ... extremamente polissmico. Seus significados abrangem tudo o quese ingere e que no constitui alimento, embora alguns alimentos tambmpossam ser designados como drogas: bebidas alcolicas, especiarias,tabaco, acar, ch, caf, chocolate, mate, guaran, pio, quina,ipecacuanha assim como inmeras outras plantas e remdios (Ibid.2004: 1).

    O que fica claro que na percepo do senso comum as bebidas etlicas so retiradas

    do conceito de droga. Isso notvel em vrias situaes, seja em veiculaes miditicas

    (jornais, revistas, sites, etc.) sobre o tema, seja numa conversa informal. Comumente se escuta

    uma afirmao do tipo jovens so encontrados com bebidas e drogas. J no sentido

    especializado no h duvidas de que as bebidas alcolicas so drogas, como se percebe na

    citao acima.

    Para deixar claro, essa divergncia de sentidos acontece porque, segundo Fiori (2002),

    o sentido comum do termo drogas est relacionado s substnciaspsicoativas ilegais, como a cocana e maconha, o que diferesensivelmente do sentido farmacolgico original da palavra. Grossomodo, o conjunto de significados presente no senso comum opera daseguinte forma: drogas = cocana, maconha, crack, etc (substnciaspsicoativas ilcitas); lcool e tabaco = cigarro (substncias psicoativasilcitas); remdios = medicamentos (substncias de qualquer tiporeceitadas pelo mdico) (Ibid.: 8).

    Para a definio farmacolgica o conceito mais usado atualmente o de substncia

    psicoativa, por excluir a ambiguidade suscitada pelo conceito de droga. Este conceito de

    substncias psicoativas incluem as substncias legais (frmacos, bebidas alcolicas, tabaco) e

    ilegais (como a cocana, maconha, etc.). Essa definio se sustenta pelo fato de que todas

    essas substncias agem no sistema nervoso central, sendo este parmetro tomado pela

    farmacologia moderna para a definio do conceito de droga. Porm, existem substncias

    que alteram o sistema nervoso central, mas que no so consideradas substncias psicoativas

    pela farmacologia atual. (FIORI, 2002).

    Sendo assim, como no pretendo esgotar as discusses sobre os usos dos termos

    droga e substncia psicoativa, j que o intuito dessa pequena discusso apenas o de

    tecer apenas algumas consideraes e reflexes a cerca destes temas, irei me referir s bebidas

  • 13

    alcolicas das mais diversas formas, como sugerido no incio desta sesso. Porm, peo ao

    leitor que, quando a expresso droga aparecer no decorrer da monografia no confundi-la

    com o sentido dado pelo senso comum, ou seja, tenha em mente que as bebidas etlicas so

    abarcadas por este conceito, assim como pelo termo farmacolgico substncias psicoativas.

    O importante aqui deixar claro que os usos das substncias alcolicas permeiam a

    histria da humanidade. A manipulao e a ingesto de bebidas desse gnero, por parte dos

    agrupamentos humanos, nos transportam a tempos dos mais longnquos. Fernandes (2004)

    chega a afirmar que estas substncias foram universalmente desenvolvidas para suprir uma

    das necessidades mais bsicas da humanidade: a explorao da verdadeira terra incgnita que

    o inconsciente humano (Ibid.: 11) sugerindo que o consumo de lcool acompanha o

    desenrolar histrico de tal maneira que impossvel precisar desde quando essas substncias

    inebriantes tm sido usadas. Segundo McKenna (1995),

    O lcool tem suas razes no estrato mais profundo das atividadesculturais arcaicas. As civilizaes antigas do Oriente Prximo erampreocupadas com a feitura da cerveja; muito cedo no desenvolvimento dacultura humana, se que no antes, se devem ter sido percebidos osefeitos intoxicantes do mel e dos sucos de frutas fermentados (Ibid.:186).

    Este fato, por si s, demonstra a importncia de se investigar as mais diversas questes

    ligadas ao consumo dessas substncias. Dito isso, passarei agora para o prximo ponto, que

    discorre sobre as pesquisas atuais sobre o consumo de lcool entre grupos indgenas

    brasileiros.

    3. Sobre o Consumo de lcool em Comunidades Indgenas: Estudos

    Antropolgicos

    Os estudos referentes ao consumo do lcool dentro da Antropologia ganharam volume

    e destaque em meados da dcada de 1970. O livro organizado por Mary Douglas (1987),

    intitulado Constructive Drinking: perspectives on drink from anthropology, constitui-se como

    um marco dentre os estudos desse gnero. Dentre os artigos deste livro, dou destaque ao de

    Heath (1987), A Decade of Development in the Anthropological of Study of Alcohol Use:

    1970 1980, que mostra de maneira concisa e clara o desenvolvimento desta temtica na

    antropologia. Ao fazer isso, este autor demonstra a peculiaridade dos estudos antropolgicos

  • 14

    sobre as bebidas, contrastando estes com estudos realizados por uma biomedicina vulgar, que

    considera apenas o consumo de lcool levando em conta apenas a interao entre sustncia e

    indivduo. Assim, fica claro que, desde o incio, a perspectiva antropolgica se difere de

    outras por considerar variantes diversas no tocante ao consumo de lcool pelas sociedades

    humanas, especialmente o contexto cultural de consumo, com suas questes prticas e

    simblicas.

    Sendo assim, as prticas alcolicas se constituem como um aspecto fundamental da

    vida de grupos dos mais diversos. Antes do contato colonial grande parte dos grupos

    indgenas brasileiros j conheciam o lcool e a experincia da embriaguez devido ao consumo

    de fermentados alcolicos obtidos atravs das seivas vegetais e dos arbustos, do mel

    (hidromel) e dos sucos de frutas. Mas, foi s aps o contato colonial que o uso de bebidas

    destiladas5 (com maior poder de embriaguez) se difundiu entre os povos indgenas do

    territrio brasileiro (FERNANDES, 2004).

    bom lembrar que, de acordo com o Estatuto do ndio, as bebidas etlicas, mesmo

    sendo legalizadas no Brasil, so proibidas entre as comunidades indgenas consideradas no

    integradas pela Lei Federal n 6.001 de 1973. No terceiro pargrafo do segundo captulo

    desta lei, que versa sobre os crimes contra o ndio e a cultura indgena, consta que propiciar,

    por qualquer meio, a aquisio, o uso e a disseminao de bebidas alcolicas, nos grupos

    tribais ou entre ndios no integrados. Pena - deteno de seis meses a dois anos (FUNAI

    Estatuto).

    Como veremos mais adiante este rotulo de no integrados no cabe comunidade

    Potiguara do litoral paraibano. Inclusive, dentro dos limites de terras Potiguara existem vrios

    pontos comerciais de bebidas alcolicas de tal forma que o uso destas disseminado entre os

    ndios locais h bastante tempo.

    O uso dessas substncias por parte desses grupos frequentemente visto de maneira

    pejorativa pela sociedade envolvente. Como coloca Langdon (2005) no incio do seu texto

    sobre o abuso de lcool entre povos indgenas:

    Talvez o esteretipo mais comum que o brasileiro faa do ndio o deum bbado, afirmao vlida particularmente para os brancos que vivemperto de reas indgenas. Esta imagem negativa, juntamente com outrassemelhantes que o brasileiro tem do ndio, tais como indivduo sujo,ignorante e preguioso, expressa a representao estigmatizada que

    5 O lcool foi a primeira droga altamente concentrada e purificada, a primeira droga sinttica (McKenna 1995:189).

  • 15

    experimentada frequentemente pelos ndios quando interagem com asociedade envolvente. (Ibid.: 104).

    De acordo com Pacheco de Oliveira (1999), essas representaes estigmatizadas,

    difusas e estereotipadas sobre os ndios brasileiros, mais especificamente sobre os ndios do

    Nordeste, impedem a atuao desses grupos e indivduos como agentes polticos em questes

    como o reconhecimento identitrio, demandas territoriais e at mesmo criao de programas

    de preveno e promoo de sade ligados ao consumo problemtico de lcool.

    Essa imagem do ndio bbado tem por base pesquisas pseudocientficas que

    legitimam esse preconceito. Segundo Saggers e Gray (1998 apud Langdon 2005), existem

    cientistas que acusam as populaes indgenas so de serem mais susceptveis ao consumo

    abusivo de lcool por questes genticas. Porm, segundo Langdon (2005),

    estudos comparativos de antropologia demostram que os ndios, de fato,nem sempre bebem mais, alm do mais, as taxas de alcoolismo variamentre diferentes grupos da mesma etnia, grupos caracterizados pordiferenas tais como idade, gnero ou religio (Ibid.: 106).

    Essas afirmaes da autora sugerem abordagens que tirem um pouco o foco das

    questes genticas e biomdicas, que de to ressaltadas, suscitam associaes errneas por

    deixar de fora variantes sociais, culturais, econmicas e histricas.

    Na antropologia brasileira o estudo das prticas alcolicas de grupos indgenas

    tambm tem se tornado uma constante. Caux (2011), em sua dissertao, faz uma reviso da

    literatura antropolgica brasileira sobre o consumo de bebidas etlicas tendo como foco a

    discusso acerca do consumo regular e excessivo de lcool por parte de grupos indgenas

    nacionais. A autora explicita quais os recursos usados pelos estudiosos do tema para analisar o

    que se pretendem. Segundo ela, a noo de cultura, o contato colonial e a interveno

    sanitria so pontos focais e constantes nos estudos sobre o consumo de lcool. Desses a

    noo de cultura e o contato colonial so de fundamental importncia para nossa anlise.

    No que concerne noo de cultura, a literatura antropolgica enfatiza a existncia de uma

    grande variao nos estilos de beber indgena e, com isso, passa a negar uma afirmao de

    que os efeitos do lcool so fruto apenas da interao indivduo/substncia, ou seja, de acordo

    com a abordagem antropolgica o contexto cultural de cada grupo tem uma relao estrita

    com os efeitos produzidos pelo consumo de bebidas etlicas. A questo do contato colonial

    frisa a importncia da compreenso das consequncias que as frentes nacionais tiveram no

    que diz respeito ao consumo de lcool (Ibid.).

  • 16

    Um forte aspecto de parte dessa literatura a frequente associao, feita tambm por

    especialistas da sade, entre o uso de lcool e problemas de sade quando no a

    associao, o prprio consumo abusivo de lcool considerado problema de sade. O

    consumo alcolico problemtico colocado como um agravador da morbimortalidade dessas

    populaes sendo relacionado com outros problemas como: violncia, acidentes, DST / AIDS,

    hipertenso, obesidade.

    O j citado artigo de Langdon (2005), intitulado O Abuso de lcool entre os Povos

    Indgenas no Brasil: uma avaliao comparativa, traz a discusso acerca do consumo abusivo

    de lcool em comunidades indgenas brasileiras e mostra um pouco dessa relao falada mais

    acima. Para isso, a autora discute e critica a noo biomdica de alcoolismo, que considera

    o abuso de lcool como uma doena sem cura, de caractersticas e causas universais e que, por

    isso, tem um tratamento universal. Em oposio a esta viso, ela lana mo de uma

    abordagem antropolgica que considera o uso (e abuso) de lcool como um fenmeno

    heterogneo que sofre influncia do contexto sociocultural. O artigo traz uma breve

    comparao de estudos epidemiolgicos relacionados ao tema, uma relao entre contexto e

    consumo fazendo uma dicotomia entre um contexto tradicional, caracterizado pelo uso de

    bebidas fermentadas, e um contexto atual, com a presena de bebidas destiladas a questo

    do contato intertnico e o local das bebidas nesse processo e, por fim, algumas consideraes

    com o intuito de dar subsdios para programas que tentam reverter as altas taxas de consumo

    abusivo entre grupos indgenas. Assim, a autora afirma que importante quebrar a ideia de

    que o alcoolismo uma doena incurvel e que, para isso, fundamental que se percebam

    as especificidades socioculturais associadas ao consumo de lcool. Por fim, ela diz ser

    imprescindvel que haja o envolvimento da comunidade no processo de reduo do consumo

    excessivo.

    O artigo intitulado O Uso de Bebidas Alcolicas nas Sociedades Indgenas: algumas

    reflexes sobre os Kaingng da Bacia do rio Tibagi, Paran de Souza, Oliveira e Koahutsu

    (2005) outro texto importante que enfoca a associao entre uso de bebidas,

    morbimortalidade e certos tipos de violncia entre grupos indgenas, tendo como estudo de

    caso, como o ttulo deixa claro, os ndios Kaingng. Este texto faz um movimento muito

    semelhante ao texto anterior: traz reflexes sobre o conceito biomdico de alcoolismo e

    apresenta a (j falada) abordagem antropolgica em oposio a esta abordagem simplista; faz

    a dicotomia bebidas fermentadas (consumo tradicional, no malfico, onde se consumia kiki)

    e bebidas destiladas (advindas do contato intertnico, que traz consigo alguns malefcios);

  • 17

    identifica diferentes padres de comportamento alcolico ligados a diferenas de idade, sexo

    ou religio; fala um pouco do consumo de lcool nas festas e de como este consumo est

    ligado com a intensificao das relaes sociais e de troca, assim como est ligados a

    episdios de violncia; traz tambm algumas referncias de estudos epidemiolgicos sobre o

    alcoolismo; e por fim, traz alguns apontamentos que ajudaro programas de preveno e

    reduo de danos, bem similares ao texto anterior (identificao dos diversos estilos de beber

    que h numa mesma comunidade, a necessidade da realizao de estudos epidemiolgicos

    para mapear a situao do consumo de lcool, o envolvimento da comunidade no tratamento e

    preveno e a necessidade de se atender os usurios e suas famlias nas reas indgenas, o que

    implica um treinamento dos agentes de interveno). A grande peculiaridade desse texto que

    ele um estudo de caso, enquanto que o de Langdon (2005) um estudo comparativo geral.

    Oliveira (2004), em A Interveno como um Processo em Construo: notas para a

    reduo do uso de bebidas alcolicas e alcoolismo entre os Kaingng, fala sobre o consumo

    abusivo de lcool entre os indgenas desta etnia que habitam a Terra Indgena (TI)

    Apucaraninha, tendo como base as experincias adquiridas a partir de uma interveno feita

    por uma equipe interdisciplinar (que estava em processo quando o texto foi publicado).

    Oliveira faz primeiro um diagnstico dos problemas de morbimortalidade apresentados entre

    esta populao indgena e mostra a sua estrita relao com o uso abusivo de lcool (mortes

    por fatores externos, DST/AIDS, hipertenso, diabetes, distrbios hepticos, doenas

    cardacas). A violncia domestica tambm associada a este consumo abusivo.

    Posteriormente, a autora fala sobre o processo de implantao do projeto de interveno que

    visava reduzir este quadro, dando enfoque as atividades que foram sendo realizadas, como:

    seminrios, oficinas, reunies, etc. destacando a participao de antroplogos neste

    trabalho. Seguindo a linha dos trabalhos anteriores, este traz tona a necessidade de uma

    assistncia diferenciada, que leve em conta o contexto sociocultural do grupo, no apenas as

    causas biolgicas do consumo de lcool. Assim, ao texto trazer algumas especificidades do

    ato de beber entre os Kaingng a autora destaca que h uma diversidade de formas de beber

    dentro do grupo (beber problemtico, beber sucessivo, beber excessivo e o abuso

    episdico do lcool) e afirma que deve haver um melhor aprofundamento na compreenso

    desses estilos para que haja uma melhor interveno tanto preventiva quanto no sentido de

    controlar o uso abusivo j existente.

    Outro texto consultado que traz essa relao entre o consumo de lcool e os problemas

    de sade o de Souza (2012), intitulado Da Preveno Promoo de Sade: reflexes a

  • 18

    partir do uso de bebidas alcolicas por populaes indgenas. Nele o autor fala inicialmente

    sobre a emergncia da demanda, por parte de grupos indgenas, da realizao de atividades de

    preveno de doenas crnico-degenerativas (agravadas pelo consumo excessivo de lcool),

    j que historicamente as intervenes so feitas focando as doenas infecciosas. Neste quadro

    de doenas crnico-degenerativas o lcool figura como um agravador ou ento como a prpria

    doena, no caso do uso abusivo. O fio condutor da discusso do autor a diferenciao entre

    preveno e promoo de sade nos casos de uso problemtico de substncias etlicas.

    Segundo ele, as aes de preveno so baseadas geralmente em medidas repressivas e

    regulatrias de cunho universal, pois, no consideram as especificidades dos diferentes grupos

    indgenas, como: o aumento dos preos das bebidas, delimitao dos pontos de venda, idade

    mnima, restrio de horrios de venda e at a proibio do consumo. Estas aes no tem

    muita possibilidade de xito em reas indgenas, podendo engendrar um mercado ilcito e

    violento de vendas de lcool. J as aes de promoo de sade6 parecem mais efetivas por

    deixar de lado o conceito de alcoolismo que estigmatiza o usurio e no considera as

    peculiaridades socioculturais de consumo, por envolver a comunidade visando reduo do

    uso problemtico e por ampliar a questo ao levar em considerao outros aspectos que no o

    uso de lcool (como de uma identidade positiva dos grupos).

    Ferreira (2004), no seu texto O Fazer Antropolgico em Aes Voltadas para a

    Reduo do Uso Abusivo de Bebidas Alcolicas entre os Mby-Guarani, no Rio Grande do

    Sul, apesar de no dar tanto enfoque na questo da relao entre morbimortalidade do grupo

    Mby-Guarani e sua relao com uso de uso de bebidas, deixa claro que o consumo excessivo

    destas encarado como um problema pelos membros da comunidade e, ainda mais, que o

    consumo destas bebidas est associado aos agentes patolgicos da cosmologia local mboga e

    aa que afastam o indivduo do esprito divino e so responsveis por atos de violncia,

    acidentes, doenas e mortes. Em linhas gerais, o texto bem interessante por fala sobre o

    processo de interveno para a reduo do uso abusivo de substncias alcolicas, enfatizando

    o papel do antroplogo como mediador entre dois universos (o indgena e o burocrtico-

    administrativo) e a necessidade de se envolver a comunidade (no como meros participantes,

    mas como autores) neste processo. Neste sentido, a autora mostra que se deve respeitar e

    valorizar os conhecimentos e as prticas locais (no caso dos Mby-Guarani o aconselhamento

    por meio das boas palavras prtica tradicional dentre o grupo que estava enfraquecida),

    assim como a organizao sociocultural, reconhecendo as lideranas locais (os kra e os

    6 O autor utiliza o texto de Langdon (2005) para falar sobre a promoo de sade.

  • 19

    Xondaro Margatu), que foram decisivas no diagnstico, na pesquisa e nas aes de reduo

    do consumo.

    Maciel, Cordeiro de Oliveira e Melo (2012) fizeram um artigo que eu gostaria de

    destacar aqui. Ele importante para a compreenso sobre a relao entre problemas de sade

    e abuso de lcool entre os Potiguara. Ele mais importante ainda por demonstrar as

    representaes sociais que os profissionais de sade, que trabalham na rea indgena

    Potiguara, tm em relao ao alcoolismo entre os indgenas. Alm de perceberem que o

    consumo excessivo de lcool esta associado a uma srie de problemas de sade, estas autoras

    demostram o despreparo dos profissionais de sade em relao ao problema.

    Voltando ao foco desta monografia, sem querer negar a dimenso do uso de lcool

    relacionado aos problemas de morbimortalidade, o que analiso centralmente a dimenso do

    uso de lcool tido como normal e no o consumo compulsivo. Isto porque os padres

    compulsivos de consumo de substncias psicoativas [...] so menos recorrentes do que formas

    mais controladas. Isso pode ser dito tanto a respeito das substncias psicoativas lcitas quanto

    das ilcitas (LABATE, FIORI e GOULART, 2002: 26). De acordo com Douglas (1987)

    mesmo nos Estados Unidos, onde h tanta preocupao com o abuso de lcool, a estimativa

    mais pessimista que os problemas relacionados ao lcool afligem menos de 10 % das

    pessoas que bebem (Ibid.:3).

    Desse modo, o foco dado aqui no intuito de se distanciar das abordagens mdicas e

    da sade (que procuram logo o consumo problemtico) no no sentido de neg-las, mas por

    compreender que o uso normal (bem como o que considerado o abuso) constitui uma

    parcela indiscutivelmente importante para a compreenso das nuances apresentadas pela

    ingesto de bebidas etlicas, inclusive para o entendimento do uso problemtico que posso vir

    a estudar posteriormente.

    Neste sentido, outras formas de se abordar o uso do lcool, que no do tanto enfoque

    a essa relao entre o ato de beber e morbimortalidade, me parecem mais fecundas para as

    minhas pretenses, como o caso de Dias (2004). Este autor em seu artigo sobre os usos e

    abusos de bebidas alcolicas entre os povos indgenas do Ua, d enfoque aos significados

    simblicos dessa prtica cultural e revela padres de consumo. Assim, este autor desvela

    quais os contextos em que as bebidas alcolicas so usadas, quais os valores simblicos que

    esto envoltos nestes usos, para da definir o que vem a ser o excesso (consumo inadequado).

    Com isso ele demonstra que:

  • 20

    Existe uma noo culturalmente construda de quantidade, de situaes eespaos adequados para beber, de atitudes que podem ser tomadas eoutras que devem ser evitadas. [E que] O consumo torna-se indesejvelna medida em que no se atende s expectativas sociais da boaconvenincia, da participao condizente nas atividades rituais eprodutivas, ou quando h o envolvimento em acidentes e desavenas(Ibid.: 214).

    De todo modo, gostaria de deixar claro que mesmo os estudos que falam sobre a

    relao entre consumo de lcool e sade e que tm como centro a questo do abuso sero

    importantes na minha anlise por se utilizarem do mtodo antropolgico, como o caso de

    Langdon (2005) que, ao falar sobre abuso de lcool entre populaes indgenas no Brasil,

    mostra que para entender regimes etlicos dos povos indgenas preciso compreender a

    relao entre o meio social e o comportamento ligado ingesto de lcool, estar atento e

    explorar valores culturais, o processo histrico, o contexto scio-poltico e as situaes nas

    quais se apreende a beber, como o costume mantido e as nuances do contato intertnico com

    a sociedade envolvente.

  • 21

    Captulo II

    OS POTIGUARA E A ALDEIA DO FORTE

    1. ndios do Nordeste

    Os grupos indgenas situados nos limites geogrficos do que se convencionou chamar

    de Nordeste7 brasileiro na etnologia atual, como o caso dos ndios Potiguara do litoral norte

    paraibano, no figuraram entre os povos estudados pela etnologia clssica. De acordo com

    Joo Pacheco de Oliveira (1999), isso se deve ao fato de que o indigenismo oficial e as

    principais correntes tericas da etnologia clssica que estudavam os povos indgenas da

    Amrica do Sul (o evolucionismo cultural norte-americano e o estruturalismo francs)

    deslegitimaram, principalmente antes da dcada de 1980, o estudo dessas populaes. Uma

    das razes para isso que as correntes tericas citadas estabeleceram como objeto as

    populaes distantes no mbito geogrfico e, principalmente, no mbito cultural por

    possibilitarem o to procurado distanciamento que permitiria uma objetividade cientfica.

    Soma-se a isso o fato de que as populaes indgenas do Nordeste eram vistas pelos signos da

    aculturao, das perdas culturais e da mestiagem pelos tericos dessas correntes e

    pelos indigenistas do Brasil8 (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998; 2005).

    Esse modo de ver os ndios do Nordeste, colocando-os como sendo povos integrados

    sociedade nacional, por muito tempo impediu o reconhecimento identitrio de muitas etnias.

    At os dias atuais as representaes do senso comum em relao aos povos indgenas entram

    em choque com a realidade indgena do Nordeste. Muitas pessoas tendem a negar a identidade

    destes grupos por estes no estarem de acordo com uma imagem indgena estereotipada, que

    7 Sempre que este termo for usado neste trabalho ser no sentido de uma unidade virtual baseada na atuaopoltica dos povos indgenas, mas tambm baseado no fato histrico de que os grupos indgenas abarcados poreste termo foram os que primeiramente sofreram com a chegada impactante dos grupos colonizadores entre ossculos XVI e XVIII, como coloca Pacheco de Oliveira (2011).

    8 Pacheco de Oliveira (1998) cita Robert Lowie, Alfred Mtraux e Curt Nimendaju como exemplos doevolucionismo norte americano; Lvi-Strauss como exemplo do estruturalismo francs; Eduardo Galvo e DarcyRibeiro como exemplos do indigenismo oficial.

    POTIGUARA, NICO POVO QUEPERMANECEU NO SEU TERRITRIO!

    ndios Potiguara

  • 22

    baseada nos livros de histria, nos ndios do passado julgando-os como menos ndios por

    terem passado por processos de hibridizao cultural (CANCLINI, 2006) devido ao antigo

    contato com as frentes coloniais.

    Em minha primeira estadia em campo houve vrias situaes ilustrativas dessa

    representao do senso comum em relao aos ndios Potiguara. Fiquei alojado numa casa de

    veraneio em Baa da Traio, municpio mais prximo aldeia Potiguara do Forte, onde fiz a

    pesquisa. Esta casa pertence a uma vizinha e amiga da minha famlia que reside em Campina

    Grande e que gentilmente cedeu-me abrigo para as primeiras investidas no campo de

    pesquisa.

    Passei cinco dias nesta primeira ida a campo. Trs destes dias eu literalmente

    transitava entre dois mundos: a casa de veraneio, ocupada por uma extensa famlia com pai,

    me, filhos, primos, av e netos; e a aldeia do Forte, centro poltico, econmico e turstico

    dentre as aldeias Potiguara, que ser descrita adiante de maneira mais detida. Todas as

    manhs eu acordava e seguia para a aldeia do Forte. Passava o dia por l. Quando voltava para

    a casa de veraneio era bombardeado por perguntas e comentrios do tipo: Como eles so?

    Eles andam nus? Eles se pintam?. Da, quando tentava explicar um pouco da realidade que

    estava presenciando alguns logo retrucavam: E eles so ndios mesmo?.

    As representaes compartilhadas por enorme parte da populao brasileira, pelas

    elites nacionais e difundidas nas escolas e pela mdia, que Oliveira (1999) chama de sentido

    no-especializado do termo ndio, mostram que os povos indgenas so pensados de forma

    generalizada, sem que sejam consideradas suas diversidades e particularidades. Tais

    representaes so compostas por imagens profundamente arraigadas na nossa cultura em

    relao a tais povos, como: primitivo, profundamente distinto do homem civilizado e

    habitante da mata, anlogos a uma criana sem a razo desenvolvida, com certos costumes e

    caractersticas fsicas estereotipadas para citar algumas. Estas imagens fazem parte de uma

    forma de pensamento que retira os povos indgenas dos processos histricos e que, por vezes,

    embaa o olhar de quem pretende se debruar sobre as realidades desses grupos, muitas vezes

    at desvirtuando as aes polticas dos indgenas acerca dos seus direitos. como se eles no

    tivessem mudado, e se mudaram tem sua identidade em xeque.

    Segundo Souza Lima (1995),

    h estruturas cognitivas profunda e longamente inculcadas na maneirade pensar a histria brasileira que orientam a percepo, e permitem areproduo, de um certo universo imaginrio em que os indgenaspermanecem como povos ausentes, imutveis, dotados de essncias a-

  • 23

    histricas e objeto de preconceito: nunca saem dos primeiros captulosdos livros didticos; so, vaga e genericamente, referidos como um doscomponentes do povo e da nacionalidade brasileira, algumas vezes tidoscomo vtimas de uma terrvel "injustia histrica", os verdadeirossenhores da terra. No surgem enquanto atores histricos concretos,dotados de trajeto prprio (Ibid.: 408).

    Desse modo, h uma incompatibilidade entre as formas de representaes no-

    especializadas e a realidade de certas populaes indgenas, principalmente das situadas na

    regio Nordeste do Brasil. Uma regio ocupada por povos no-indgenas desde os tempos

    mais remotos da colonizao, o que fez com que esses grupos passassem por processos de

    dominao e de hibridizao cultural (CANCLINI, 2006) com outros quilombolas,

    brancos, outras etnias indgenas, fazendeiros, etc.

    Dentre as mais variadas formas de preconceitos dirigidos aos grupos indgenas

    brasileiros, gostaria aqui de destacar uma que diz respeito ao tema desta monografia e que foi

    colocado no captulo anterior, uma que se refere ao uso de bebidas alcolicas. Os indgenas

    geralmente so vistos como alcolatras pela sociedade envolvente, como pessoas vulnerveis

    aos problemas trazidos pelo lcool. Em muitos casos ouvi afirmaes generalizadas sobre a

    relao dos ndios com as substncias alcolicas que vieram a confirmar esta representao

    estereotipada e estigmatizante. Certa vez, ao falar para uma tia que iria fazer pesquisa entre os

    Potiguara, mesmo sem explicitar o tema do meu trabalho, ela logo me alertou falando sobre o

    nvel elevado de consumo de lcool que havia entre os ndios, insinuando que eles eram

    alcolatras (assim mesmo, de maneira generalizada), chegando a estender sua afirmao aos

    ndios de maneira mais ampla possvel, dizendo: geralmente ndio bebe muito mesmo n.

    Como se beber demasiadamente fosse algo caracteristicamente indgena. Da, quando falei

    sobre o tema da minha pesquisa e a questionei de onde ela tinha retirado essa ideia, ela logo

    respondeu que uma amiga havia trabalhado como agente de sade na cidade de Baa da

    Traio e tinha comentado com ela que l existem muitos ndios alcolatras.

    Essa imagem do ndio bbado, como afirmei anteriormente, legitimada por

    pesquisas pseudocientficas que reafirmam esse tipo de preconceito. Em alguns estudos, as

    populaes indgenas so frequentemente acusadas de serem mais susceptveis ao consumo de

    lcool por questes genticas (SARGGERS E GRAY, 1998 apud LANGDON, 2005).

    Segundo Langdon (2005), estudos comparativos de antropologia demonstram a no

    veracidade dessa relao direta, feita entre populaes indgenas e consumo de lcool, j que

    dentro da mesma comunidade indgena existem diferenas no consumo de lcool, que varia

    conforme diferena de idade, religio, gnero, etc. Seguindo esse raciocnio, fica claro a

  • 24

    importncia de uma anlise sobre o consumo de bebidas etlicas que desvie um pouco o foco

    das questes genticas e biomdicas, que tendem a universalizar os efeitos do lcool, e que se

    centre um pouco nas questes de ordem sociocultural, mais especficas.

    Antes de passar para uma contextualizao histrica, sociocultural e econmica do

    povo Potiguara, gostaria aqui de sublinhar novamente que este trabalho no se centra no uso

    problemtico das bebidas alcolicas, mas sim nas prticas e representaes ligadas ao

    consumo de lcool por parte de ndios que no so vistos pela comunidade como doentes ou

    problemticos nem mesmo cheguei a conhecer pessoalmente indivduos considerados

    assim. Esta opo, que j foi justificada e esmiuada na introduo e no primeiro captulo.

    2. O Povo Potiguara do Litoral Paraibano

    Etnicamente organizados e imersos num contexto social e histrico que implicou e

    implica relaes e interaes sociais com a sociedade envolvente desde tempos mais remotos

    da colonizao brasileira, a etnia Potiguara o nico grupo indgena oficialmente reconhecido

    no estado da Paraba que tem suas terras demarcadas at o presente momento9.

    Como parte dos grupos indgenas do Nordeste, o povo Potiguara no ganhou ateno

    da etnologia clssica brasileira de maneira sistemtica, como j foi dito na seo anterior. Este

    grupo era percebido pela escola clssica como aculturado, ou seja, era tido como um

    resqucio de uma antiga nao, portanto, como ndios j assimilados pela sociedade nacional.

    S a partir da dissertao de Paulo Marcos Amorim (1970) que os Potiguara passaram a ser

    foco de abordagens mais srias. Este autor procurou defender a tese de que os ndios estavam

    em processo de proletarizao rural. Neste sentido Amorim priorizou a relao entre a o grupo

    indgena e a sociedade nacional tendo como base a teoria de frico intertnica de Cardoso de

    Oliveira (1964).

    Outro estudo significante sobre os Potiguara o de Azevedo (1986). Em sua

    dissertao a autora teve como foco a ao do Estado no tocante ao estabelecimento das terras

    indgenas, tendo os Potiguara como estudo de caso, com o processo de demarcao de terras

    na dcada de 1980. Assim, se sobressai na anlise desta pesquisa a relao de

    9 Existe tambm o grupo indgena Tabajara, que desde 2006 vm lutando por reconhecimento tnico e,consequentemente, pela demarcao do seu territrio. Esta etnia encontra-se situada na Microrregio Litoral Sulda Paraba, espalhada nos municpios de Alhandra, Pitimbu e Conde, alm de ocuparem periferias dosmunicpios de Joo Pessoa, Bayeux e Santa Rita (ARAUJO et. al. 2012).

  • 25

    interdependncia entre comunidade indgena e o Estado-Nao presentes nesse momento

    histrico, dando uma ateno especial s noes construdas dentro do grupo Potiguara.

    (MAGALHES, 2004; PALITOT, 2005).

    Glebson Vieira redigiu trs escritos sobre o povo Potiguara: sua monografia da

    graduao, sua dissertao de mestrado e sua tese de doutorado. Vieira (1999), em sua

    monografia, discorre sobre os mecanismos de construo e manipulao da identidade tnica

    do grupo. Ao apresentar uma etnografia dos Potiguara, o autor fala de como como dois

    segmentos distintos da mesma comunidade (evanglicos e no evanglicos) percebem e se

    colocam frente a discusso sobre a identidade indgena. Alm disso, o autor tenta traar a

    forma como atores sociais externos a Universidade Federal da Paraba (UFPB), a

    Fundao Nacional de Sade (FUNASA), a Procuradoria Geral da Repblica e o rgo

    Indigenista (SPI/FUNAI) percebem esse grupo indgena.

    Vieira (2001) na sua dissertao de mestrado, fala sobre a organizao social dos

    Potiguara e como estes se relacionam com o outro, tendo como enfoque a maneira como eles

    se pensam e se percebem a partir do contato intertnico, que tem sua prpria leitura nativa.

    Neste sentido, o autor discorre sobre como os ndios se definem a si mesmos e quem no

    Potiguara, ou melhor, como eles concebem e constroem as distines internas, entre geraes,

    e as distines externas, em ralao ao outro.

    Vieira (2012) em sua tese, como no poderia deixar de ser, realizou um trabalho de

    maior flego no qual discorre sobre a realidade poltica vivida pelo povo Potiguara. Neste

    trabalho, ele fala sobre a ao poltica local enfatizando as categorias nativas de turma e

    parentagem, dissertando mais especificamente sobre o papel da amizade, da camaradagem e

    da feitiaria nos processos e dinmicas sociopolticas de produo de lideranas Potiguara.

    Alm do mais, ele dedica uma parte especial sobre o consumo de lcool se insere nesse

    processo poltico e no modo de ser caboclo, que servir de referencia para a parte etnogrfica

    desta monografia.

    Outra monografia consultada foi a de Silva (2004), que versa sobre turismo tnico

    entre os Potiguara. Neste escrito, o autor discorre sobre a emergncia desse fenmeno turstico

    em terras potiguaras e suas implicaes. Neste sentido, ele demostra como a comunidade se

    prepara para exibir sua cultura para os visitantes na arena turstica (Grnewald apud Silva

    2004) e como esse processo vem ajudando a fortalecer a identidade Potiguara na medida em

    que, ao suscitar uma promoo tnica, h uma redefinio dos valores de pertencimento do

    grupo, que passa a se ver de maneira positiva.

  • 26

    O trabalho de Moonen e Maia (1992), e os j citados Magalhes (2004) e Palitot (2005)

    com destaque para este ltimo so outras fontes importantes para um melhor conhecimento

    da realidade Potiguara. O primeiro por trazer dados histricos relevantes. O segundo por

    analisar os processos tnicos da sociedade potiguara a partir do vis religioso. E o terceiro por

    se mostrar a monografia mais completa sobre os potiguaras por apresentar aspectos histricos,

    tnicos e culturais deste povo. Neste trabalho, Palitot (2005) fala sobre os Potiguara de Baa da

    Traio e Monte-Mor dando enfoque aos processos de constituio de fronteiras tnicas, de

    territorializao, de produo cultural e a conformao das formas de organizao social tendo

    como fio condutor a relao intertnica deste grupo com os outros segmentos da sociedade

    nacional (grupos agroindustriais, industrias e rgos estatais).

    Alm destes, h a tese de Caniello (2001) que, a partir de uma abordagem scio

    histrica, toma como recorte o perodo histrico de 1500 1654 para discorrer sobre o

    processo de formao do estado-nao brasileiro. Apesar de no ser um trabalho que versa

    exclusivamente sobre o povo Potiguara, ele de fundamental importncia por apresentar,

    mesmo que de maneira incipiente, o consumo de cauim10, nos momentos festivos conhecidos

    como cauinagens, como parte do ethos dos grupos indgenas Tupi, grande tronco lingustico

    do qual os Potiguara faziam parte. Alm do mais, o autor dedica uma sesso importante da sua

    tese para discorrer sobre a pacificao dos potiguaras.

    De acordo com Moonen e Maia (1992), no sculo XVI os ndios Potiguara habitavam

    os limites territoriais que figuram entre o que hoje se conhece como sendo a cidade de Joo

    Pessoa, na Paraba, e So Luis do Maranho o que consiste numa extensa parte de terra do

    litoral nordestino. Desde ento, com a chegada de colonos franceses, portugueses e

    holandeses com idas e vindas, continuidades e descontinuidades a histria desse povo

    passou a ser marcada por trocas comerciais, chacinas, guerras e misses religiosas que

    visavam o aldeamento fenmenos que se estenderam at o sculo XVIII.

    Segundo Caniello (2001), o processo de pacificao dos Potiguara levado a cabo pela

    Coroa Portuguesa foi de fundamental importncia para a configurao do estado nao

    brasileiro. Isto porque esse grupo indgena era uma etnia inimiga para os colonizadores

    lusitanos, devido associao destes com os franceses e holandeses, e que ameaavam

    constantemente a soberania portuguesa em terras tupiniquins. Neste sentido, o precesso de

    pacificao, descrito detalhadamente por este autor, se configurou como um divisor de

    guas para a formao da nao brasileira por ter sido um episdio que demarcou a

    10 Bebida tradicional dos povos indgenas Tupi, feitas a partir do suco de frutas, principalmente do caju(Fernandes, 2004).

  • 27

    proeminncia portuguesa frente aos franceses e holandeses, alm de possibilitar a perpetuao

    do povo Potiguara.

    Ao se falar em colonizao, quando o assunto em foco so povos indgenas e suas

    relaes com bebidas alcolicas, h algumas questes imprescindveis a se considerar antes de

    dar prosseguimento com a caracterizao acerca dos Potiguara.

    No processo de colonizao as bebidas etlicas ocupam um espao importante.

    Comumente elas so colocadas como armas colonizadoras que serviram para desfigurar e

    dizimar culturas indgenas. Porm, esse um ponto de vista simplista que coloca os indgenas

    como sujeitos passivos de sua histria. Um melhor olhar proposto por Fernandes (2004)

    enfatiza o papel ativo de resistncia s adversidades da colonizao, em que ele afirma que

    as formas pelas quais os ndios responderam aos desafios que lhes foramcolocados pelo contato intertnico so fundamentais para a compreensodos regimes etlicos nativos atuais (inclusive no que diz respeito presena dos destilados) e mesmo aos regimes etlicos presentes nasociedade nacional que se desenvolveu a partir do processo decolonizao (Ibid.: 9).

    De acordo com este autor,

    os ndios no Brasil possuam maneiras de se relacionar com as bebidasalcolicas seja na escolha dos tipos de bebidas, seja nos contextossociais em que estas eram consumidas que lhes eram prprias, e queeram dependentes de uma formao tnica e cultural e de um processohistrico determinado (Ibid. p.9).

    Os ndios da nao Tupi faziam uso de bebidas etlicas conhecidas como cauim, feita a

    partir do suco de frutas fermentadas. Vainfas (1995) mostra, de maneira breve e sem se

    aprofundar no assunto, que esses cauins eram consumidos nas santidades11. Baseado no

    relato do cronista Andr Thvet, este autor fala que no ritual das santidades havia o

    isolamento do caraba numa choa nova [...], onde lhe armavam uma rede branca e limpa e

    armazenavam vveres e cauim para seu consumo (Ibid.: 55). Posteriormente tendo por base

    relatos de diversos cronistas, este mesmo autor fala sobre as caractersticas gerais dessas

    cerimnias tidas pelos colonizadores como profanas e herticas, afirmando que eram

    cerimnias inseparveis de bailes e cantos que congregavam a aldeia inteira, regadas a cauim

    e a petim. Bailes especiais, convm frisar, grandes solenidades (Mtraux) que no se

    confundiam com as danas executadas corriqueiramente nas cauinagens noturnas, nos

    11 Ritos festivos, registrados no perodo colonial atravs de relatos de cronistas. Esses ritos representavam umamarca de resistncia e rebeldia frente colonizao e era protagonizado pelos Carabas, lideres espirituais.

  • 28

    sacrifcios antropofgicos ou nos ritos fnebres (Ibid.: 60). Mesmo com essas colocaes, o

    uso do cauim parece que no era algo central nas santidades, isso porque o autor no

    desenvolve o tema ao longo do seu livro. A nica substncia psicoativa que Vainfas (1995)

    coloca e descreve como central para esses rituais era o petum, um fumo tido como uma erva

    santa que embriagava os usurios com sua fumaa.

    Outros autores destacam o uso de bebidas fermentadas entre os povos indgenas do

    litoral, oriundos da grande nao indgena Tupi12. Viveiros de Castro (2002) fala sobre

    o lugar central que o cauim de milho ou mandioca ocupava no complexoguerreiro. O significado das bebidas fermentadas nas culturas amerndiasainda est espera de uma sntese interpretativa. Ele mantm relaesestreitas com o motivo do canibalismo, e aponta para a importnciadecisiva das mulheres na economia simblica dessas culturas. Osmateriais tupinamb sugerem, alm disso, uma vinculao entre as festasde bebida e a memria, mais especificamente a memria da vingana. OsTupinamb bebiam para no esquecer, ai residia o problema dascauinagens grandemente aborrecidas pelos missionrios, que percebiamsua perigosa relao com tudo que queriam abolir. J vimos que Anchietapunha como um dos impedimentos converso do gentio seus vinhosem que so muito contnuos e em tirar-lhos ha ordinariamente maisdificuldade que em todo o mais... (1584:333). Foi mais difcil acabar comos vinhos que com o canibalismo; mas as bebderias traziam sempre oespectro desta abominao (Ibid.: 148).

    Sztutman (2004) e Fernandes (2004) parecem suprir essa lacuna denunciada na citao

    acima, acerca dos significados das bebidas fermentadas entre os grupos indgenas do sul da

    Amperica. Sztutman (2004), fala sobre o consumo do cauim em comunidades amerndias13

    baseado numa etnologia americanista e tendo forte influncias de autores como Lvi-Strauss e

    Viveiros de Castro. Assim o autor disserta sobre os sentidos que a embriaguez tem para estes

    povos, tendo como pano de fundo as reflexes que eles tem acerca da natureza das

    substncias fermentadas. Sztutman fala sobre o carter personificado que o caum tem para

    estas culturas, ou seja, sobre propriedades subjetivas de agncia que estes grupos indgenas

    atribuem as bebidas desse gnero. Neste sentido, Sztutmam discorre sobre a questo da

    12 Alguns linguistas, historiadores e antroplogos, devido aos relatos dos cronistas, se referem aos antigos Tupida costa brasileira como Tupinamb, como o caso de Castro (2002) e Fernandes (2004). Neste caso o termoTupi se equivale ao termo Tupinamb, englobando de maneira genricas Tupinamb, Tupiniquim, Tamoio,Tabajara, Potiguara, Caet, Tupina, Aricob, Amoipira, Tupinambarana, etc.

    13 importante dizer que sobre a alcunha de amerndios, o ator trata apenas sobre o uso do caum por parte degrupos indgenas antigos da costa brasileira (com base nos relatos dos cronistas quinhentistas e seiscentistas) ede grupos contemporneos situados desde o Chaco at a Amaznia Setentrional (baseado em observaesetnogrficas). No figuram entre as anlises do autor grupos indgenas do Nordeste etnogrfico.

  • 29

    transubstanciao, que a forte realao entre o caum e uma persona humana ou animal que,

    uma vez ingerido ele passa a ter agencia prpria; sobre as ambguas concepes de que estas

    bebidas oscilam entre um alimento supremo ou um veneno extremo; sobre o caum como

    um canal de comunicao entre outros mundos; e, por fim, sobre a histrica associao entre o

    uso de bebidas fermentadas e a resistncia aos processos coloniais.

    Fernandes (2004), em Selvagens Bebedeiras: lcool, embriaguez e contatos culturais

    no Brasil colonial, faz um estudo mais completo sobre os sentidos das bebidas fermentadas

    nas sociedades indgenas, falando sobre o lugar delas no processo colonial. Ele adentra nas

    mesmas questes do autor citado anteriormente, mas de maneira mais detida e aprofundada

    (transubstanciao, alimento divino, veneno e smbolo de resistncia). Neste sentido,

    Fernandes fala sobre as bebedeiras indgenas do perodo colonial como uma expresso social

    dos grupos indgenas daquela poca: elas serviam para demarcar difenas de status e gnero

    dentro do grupo, serviam para demarcar alianas e desavenas com outros grupos e eram uma

    forte expresso da resistncia e da memria social deste grupos. O autor acrescenta sua

    reflexo o processo de formao dos regimes etlicos modernos que chegaram em terras

    brasileira juntos com a o processo de colonizao. Esses novos modos de beber, junto com

    as aes Jesuitas contra as cauniagens vieram a dar fim aos regimes etlicos antigos das

    comunidades indgenas e a dar surgimento a novas formas de se relacionar com as substncias

    alcolicas.

    No caso especfico dos Potiguara, haviam bebidas fermentadas feitas a partir da coleta

    de frutas, a exemplo do caju e da mangaba (MOONEN, 1992: 14), que foram sendo

    suplantadas pelas bebidas destiladas no decorrer da colonizao14. Estes indgenas consumiam

    principalmente os fermentados do caju, conhecido como cauim, o mais afamado e apreciado

    vinho de frutas do Brasil, segundo Fernandes (2004.: 68). Ainda segundo este autor, os

    Potiguaras detinham as melhores reas de cajuais, entre Itamarac e o Rio Grande do Norte, e

    faziam vinhos de diferentes espcies de caju, mas, principalmente de uma espcie em

    particular: o caju-pir, avermelhado e mais cido que os demais (Ibid.).

    No bojo desse processo colonial houve conflitos entre diferentes regimes etlicos

    (Ibid.), nativos e europeus, que acabaram com prticas etlicas antigas, mas tambm deram

    surgimento a novas formas de beber e se relacionar com as substncias alcolicas.

    14 Alguns processos de fermentao ainda so feitos nos dias de hoje, como o caso do Mocoror (bebidafermentada de caju). Apesar de no ter presenciado o consumo de tal bebida, os ndios desta pesquisa, queconsumiam quase que exclusivamente cachaa, vez ou outra comentavam comigo sobre a existncia doMocoror e seu processo de fermentao. Alguns diziam saber fazer, mas no faziam devido ao trabalho quedemandava, sendo menos custoso comprar cachaa.

  • 30

    Neste sentido o que houve, portanto, foi mais um processo de conflito entre distintos

    regimes etlicos, que resultou numa hibridizao cultural (CANCLINI, 2006) dos modos

    de beber, do que em uma introduo do lcool por parte dos colonizadores, vista apenas como

    maligna, j que os Potiguara j conheciam a experincia etlica. O que Fernades (2204) quer

    no negar que houve aspectos negativos com advento das bebidas destiladas que tinham

    como pano de fundo a violenta ao colonial, mas sim ampliar o olhar sobre o lcool na

    relao intertnica para alm de uma viso superficial. Vale salientar que este autor demonstra

    que neste sentido, seu estudo limitado, pois no problematiza a questo da entrada das

    bebidas destiladas entre os grupos indgenas. De acordo com ele, h uma

    necessidade de se estudar a prpria cachaa, bebida que permeia, hsculos, a vida das camadas populares da sociedade nacional, quepresentou um dos principais produtos comercializados durante o perodocolonial, que servou como estopim de vrios conflitos em torno de suatributao e prvilegios de comrcio, e que jmais foi estudada de formaaprofundada, permanecendo o pequeno livro de Cmara Cascudo,Preldio da Cachaa, como uma pea solitria (Ibid.: 370).

    Mesmo o livro de Cmara Cascudo, que trata deste tema, no fala a cerca do uso de

    cachaa entre os indgenas do Brasil, mas apenas entre os negros escravizados, que

    trabalhavam nos engenhos de acar. Outro livro sobre o tema que segue na mesma linha o

    de Souto Maior (1970), intitulado de Cachaa, que apesar de tratar de vrios aspectos dessa

    bebida no toca no assunto da relao entre os ndios brasileiros e a cachaa. Dito isso,

    voltemos para a caracterizao dos Potiguara.

    Nos idos do sculo XIX, apesar de diversas questes de conflitos territoriais mesmo

    perdendo pedaos de terras para no-ndios interessados no patrimnio territorial Potiguara

    com a Lei de Terras de 1850 criada pelo imprio brasileiro, os Potiguara comearam a se

    fincar nos limites territoriais em que se encontram nos dias atuais.

    Caracterizao socioeconmica atual dos Potiguara.

    Dividida em trs reas de terras contiguas (a TI Potiguara, a TI de Jacar de So

    Domingos e a TI Potiguara de Monte Mor) localizadas na parte norte do litoral paraibano,

    ocupando uma faixa de terra de pouco mais de trinta e trs mil hectares, a Terra Indgena

    Potiguara esta situada nos municpios de Baa da Traio, Marcao e Rio Tinto. De acordo

    com o Etnomapeamento dos Potiguara da Paraba (CARDOSO et. al., 2012) a populao

  • 31

    indgena estimada em dezenove mil pessoas. J segundo o cadastramento feito pelo

    SIASI/SESAI/MS (2012), a populao Potiguara de pouco mais de quatorze mil indgenas.

    Essa diferena se justifica porque o Etnomapeamento leva em considerao uma estimativa de

    indgenas residentes em outras cidades e estados como: Mamguape, Joo Pessoa, Rio de

    Janeiro e Rio Grande do Norte. J o SIASI/SESAI/MS tem seus dados baseados nos registros

    que os indgenas fazem nos polos base de sade dos municpios de Baa da Traio, Marcao

    e Rio Tinto.

    Sabe-se que a populao Potiguara encontra-se distribuda entre trinta e duas aldeias

    mais seis outras localidades chamadas de lugarejo, pequeno povoado, comunidade ou

    aldeia sem cacique (VIEIRA, 2012). Como as terras indgenas no condizem com os limites

    dos municpios nos quais esto inseridas, existem ento dois pontos de referncia que podem

    ser usados para localizar as aldeias: um que leva em conta as divisas dos municpios e outro

    que se baseia no nas fronteiras das TIs.

    Tomando como referncia as divisas municipais existentes entre Baa da Traio,

    Marcao e Rio Tinto, criei a tabela a seguir, tendo como base os dados da SIASI/SESAI/MS

    (2012):

  • 32

    Tabela 1. Relao Municpios-Aldeias.

    Municpio Aldeias

    BAA DA TRAIO

    AkajutibirBemficaBento

    CumaruForte

    GalegoLagoa do Mato

    LaranjeiraSanta Rita

    So FranciscoSo Miguel

    SilvaTracoeira

    MARCAO

    BrejinhoCaeira

    CamurupimCndidoCarneira

    CoqueirinhoEstiva velha

    GrupiunaJacar de Csar

    Jacar de so DomingosLagoa Grande

    TramataiaTrs rios

    ValYbykara

    RIO TINTO

    JaraguMata EscuraMonte Mr

    Silva de Belm

    De acordo com os dados da SIASI/SESAI/MS (2012), o municpio de Baia da traio,

    que possui treze aldeias, conta com 5.549 indgenas; nos limites municipais de Marcao,

    onde esto localizadas quinze aldeias, residem 5.780 ndios; e em Rio Tinto habitam 2.700

    ndios espalhados em quatro aldeias. Num total de 14.029 indgenas Potiguara, distribudos

    em trinta e duas aldeias.

  • 33

    No que diz respeito s divisas das TIs, de acordo com os dados obtidos no

    Etnomapeamento dos Potiguara da Paraba (Cardoso et. al., 2012), fiz a seguinte tabela

    sobre as terras indgenas e suas respectivas aldeias:

    Tabela 2. Relao Terras Indgenas-Aldeias.

    Terra Indgena Aldeias

    TI POTIGUARA

    AcajutibirBenficaBento

    BrejinhoCaeira

    CamurupimCarneira

    CoqueirinhoCumar

    Estiva VelhaForte

    GalegoGrupina

    Jacar de CsarLagoa do Mato

    LaranjeirasMata Escura (Boreu)

    Santa RitaSo FranciscoSo Miguel

    SilvaSilva Belm

    TracoeiraTramataia

    Val

    TI JACAR DE SO DOMINGOSGrupina dos CndidosJacar de so Domingos

    TI MONTE MR

    JaraguLagoa Grande

    Monte MrTrs RiosYbycoara

    No Etnomapeamento citado mais acima consta que: na TI Potiguara, que conta com

    vinte e cinco aldeias, existem um total de 8.109 indgenas; j na TI Jacar de So Domingos

  • 34

    habitam 449 pessoas distribudos nas duas aldeias; e, por fim, a TI Potiguara de Monte Mr

    conta com uma populao de 4.447 pessoas espalhados nas cinco aldeias. Assim, h um total

    de 13.005 indgenas espalhados nas 32 aldeias.

    A localizao das terras, dos municpios e das aldeias podem ser percebida no mapa a

    seguir, levando-se em considerao que nele existe uma aldeia a mais do que as citadas mais

    acima, que est localizada fora das terras indgenas, que a aldeia de Itaepe:

    Figura 1. Localizao das Terras Indgenas e Aldeias Potiguara PB. Fonte: FUNAI, 2012.

    Apesar da diferena entre a contagem do Etnomapeamento da FUNAI e do Cadastro

    da SISAI/SESAI/MS, que so respectivamente de 13.005 e de 14.029, podemos afirmar a

    grandeza da comunidade Potiguara, que se se configura como sendo o maior grupo indgena

    do Nordeste etnogrfico, comparando-se apenas ao grupo Xucuru, do Sero de Pernambuco, e

    aos indgenas Patax do Sul da Bahia, como mostra o mapa abaixo:

  • 35

    De acordo com Palitot (2005), as principais atividades econmicas dos ndios so a

    pesca no mar e no mangue, o extrativismo vegetal, a agricultura de subsistncia, a criao de

    animais, o plantio de cana de acar, a carcinicultura, o assalariamento rural e urbano, o

    funcionalismo pblico e aposentadorias para os idosos no geral a economia da regio

    baseada no turismo, na explorao de cana-de-acar e na carcinicultura. Podem-se perceber

    de maneira mais detalhada quais os usos feitos das terras potiguaras na atualidade no

    etnomapa a seguir:

    Figura 2. Mapa que demonstra as maiores populaes indgenasdo Leste-Nordeste do Brasil. Fonte: FUNASA, 2008.

  • No tocante organizao poltica, ainda segundo Palitot (2005), cada aldeia

    representada perante os rgos oficiais do estado como a FUNAI, FUNASA e prefeitura

    por um representante, geralmente chamado de cacique, que tambm encabea a resoluo de

    Figura 3. Etnomapa dos usos atuais das Terras Indgenas Potiguara. Fonte: FUNAI, 2012.36

    outros problemas locais da sua comunidade. Acima destes est o cacique geral que exerce o

    papel de representante geral, como o nome sugere, frente s instituies oficiais e justia.

    Por fim, oportuno dizer aqui que toda a rea indgena permeada por bares, biroscas,

    restaurantes, mercados, dentre outros estabelecimentos onde se vende e/ou se consome

    bebidas alcolicas, ou seja, muitas pessoas vivem da venda dessas bebidas. Alm desses

    estabelecimentos existem tambm lugares pblicos onde este consumo praticado, como o

    caso do cajueiro da aldeia do Forte lugar chave desta pesquisa, por ter sido o espao de

    interao primordial da minha anlise sobre as prticas etlicas, seus sentidos e

    representaes, que ser exposto no prximo captulo. Dito isto, passemos agora para uma

    caracterizao da aldeia do Forte.

  • 37

    3. A Aldeia do Forte

    H indcios de que a histria de ocupao da localidade hoje conhecida como aldeia do

    Forte remete a um perodo anterior ocupao colonial, quando era chamada de Alto do

    Tambar. Foi nesta localidade, com vista privilegiada para a Baa da Traio, que os primeiros

    colonos foram avistados pelos nativos que ali habitavam. Com o processo colonial, estes

    habitantes foram afastados para o interior, o que deu origem a outras aldeias (So Francisco,

    Estiva Velha, Monte-Mr, dentre outras). Com isso, os colonizadores edificaram uma

    fortificao no local para garantir-lhes o controle da regio: da o nome atual da aldeia.

    (VIEIRA, 2012).