Matrizes Antropologicas Prob Da Natureza e Graça Em Rahner

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Matrizes antropológicas para a compreensão do problema da natureza e da graça em Karl Rahner

131Horizonte, Belo Horizonte, v. 3, n. 5, p. 131-141, 2º sem. 2004

Matrizes antropológicas para a compreensão doproblema da natureza e da graça em Karl Rahner

José Carlos Aguiar de Souza*

RESUMO

Para evitar tanto o externalismo como as dificuldades ine-rentes ao desejo natural de Henri De Lubac, Rahner in-troduz o conceito de “existencial sobrenatural”. Junta-mente com as noções de “natureza pura” e “potência deobediência”, a noção de “existencial sobrenatural permi-te que Rahner salvaguarde a gratuidade da graça e afirmesimultaneamente o ordenamento intrínseco da existênciahumana para a visão de Deus.

Palavras-chave: Natureza; Graça; Existencial sobrenatu-ral; Externalismo; Rahner.

I

PARA A TEOLOGIA CATÓLICA, a graça é um puro dom de Deus e oobjeto das mais profundas aspirações do ser humano. O proble-ma da natureza e da graça é central para a teologia cristã. Aquestão é como conciliar a transcendência e a gratuidade dagraça com a natureza humana, que de algum modo anseia e sesente atraído por ela?

Na tradição católica, encontramos duas posições em confli-to. A primeira, seguindo Santo Agostinho, afirma que a próprianatureza humana possui um desejo de Deus, como expresso noinício das Confissões: “Vós nos criastes para Vós e o nosso co-ração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós”. A segundaposição surge no decorrer da Idade Média, quando o problemada natureza e da graça estava sendo elaborado de forma explíci-ta, e o tema do desejo natural da visão beatífica de Deus ganhoupapel proeminente na teologia tomista.

* Doutor em Filoso-fia, professor da PUCMinas e do Ista,Vice-diretor de Pós-graduação CES-JF.

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Santo Tomás de Aquino declara que o fim último da pessoahumana é a visão beatífica de Deus, mas que isso está para alémdas possibilidades da criatura espiritual. Assim sendo, o ser hu-mano busca simultaneamente um fim natural e outro sobrena-tural. O primeiro é a beatitude terrena de que nos fala o filósofo,e a outra é o objeto da revelação de Deus. Enquanto o primeiroé proporcional à natureza humana, o segundo é impossível sema ajuda divina.

A clarificação da doutrina de Santo Tomás do desejo naturalda alma para Deus gerou diversidade de interpretações no tomis-mo subseqüente – uma delas ficou conhecida como externalis-mo (DUMOND, 1932, p. 16). Essa corrente da teologia neo-escolástica, para proteger a gratuidade da graça, nega a existên-cia de qualquer tendência natural do ser humano para o destinosobrenatural da visão beatífica de Deus. Como resultado, a gra-ça é uma realidade sobreposta à natureza, dando a ela novo fimsobrenatural. Segundo essa corrente de interpretação, a graçatem que ser concebida como algo imposto à natureza humanapor um decreto divino extrínseco a ela e, que se faz conhecidopor meio da revelação. A natureza humana por si mesma nãomanifesta nenhuma tendência para a vida sobrenatural da gra-ça. Possui apenas uma “potência de obediência” (Potentia Obo-edientialis), que se expressa simplesmente em termos de umanão repugnância ao destino sobrenatural da nossa existência.Para salvaguardarmos a gratuidade da graça, é preciso negarque Deus seja o fim último da natureza humana enquanto tal.Assim sendo, o único fim que o ser humano naturalmente desejatem que ser aquele proporcional à sua natureza. Conseqüente-mente, a graça é uma supra-estrutura imposta à natureza humana.

O objetivo do nosso artigo é examinar de forma breve o modocomo Rahner buscou desenvolver uma posição intermediária parasuperar as dificuldades envolvidas na problemática da naturezae da graça.

II

Na formulação da Doutrina do Desejo Natural da Alma paraDeus, a teologia da graça de Santo Tomás recebeu influênciasde Agostinho e de Aristóteles. Do primeiro ela recebeu a idéia deque a natureza humana inclui um desejo pelo sobrenatural, a vi-

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são beatífica de Deus, que é o fim último de toda criatura racio-nal. Entretanto, o natural e o sobrenatural não estão claramentedistintos na tradição agostiniana. A natureza é um conceito poli-valente. Ele pode se referir à condição da humanidade após aqueda, que, em razão do pecado, se acha privada da graça. Anatureza pode se referir, também, à condição da humanidade li-vre do pecado. De Aristóteles a teologia de Tomás de Aquino re-cebeu a noção de natureza, entendida em termos substantivos.Para o filósofo, a natureza de todos os seres é a sua própria es-sência, concebida como um princípio permanente que faz umacoisa ser o que ela é. Cada ser age segundo um fim proporcionalà sua natureza.

Com a doutrina do desejo natural da alma de ver a Deus,Santo Tomás busca conciliar essas duas posições. Na SummaContra Gentiles (AQUINO, livro 3, parte I, cap. 25), ele afirmaque o fim de toda criatura racional se encontra no conhecimen-to de Deus. O homem deseja naturalmente conhecer a causaprimeira de tudo o que existe. Já que Deus é o primeiro princi-pio de tudo, o fim último do ser humano é conhecer a Deus. En-tretanto, Santo Tomás declara que tal fim se encontra para alémdas possibilidades humanas e que, por isso mesmo, o ser huma-no busca simultaneamente dois fins últimos: o natural e o sobre-natural (De Veritate q. 14, a. 2). O primeiro diz respeito à beati-tude aqui na terra, sendo proporcional à natureza humana. Elese refere ao que Aristóteles identificou como a felicidade últimado ser humano e que se liga à atividade contemplativa mais ele-vada do intelecto. Santo Tomás defende aqui uma visão mode-rada de intelectualismo já que o intelecto não vê a Deus direta-mente. O segundo é o objeto da revelação e, conquanto tal, éinacessível sem a ajuda divina e implica a alegria futura de ver aDeus como Ele é (Summa Teológica Ia q. 62 a. 1).

Entretanto, se o fim sobrenatural da visão beatífica de Deusencontra-se para além das possibilidades naturais da criaturahumana, como pode o ser humano desejar naturalmente a Deus?A grande dificuldade reside em determinar o sentido exato dedesejo natural em Santo Tomás de Aquino. O problema enfren-tado pelos intérpretes de Santo Tomás é como conciliar as afir-mações tomistas de que a natureza possui um desejo natural porDeus com a insistência enfática de que tal fim sobrenatural nãopode ser atingido pelos próprios meios naturais do ser humano?

Algumas interpretações subseqüentes da doutrina tomista le-

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varam a uma posição conhecida como externalismo (VASS, 1985,p. 61). Segundo essas correntes, o desejo natural surge do co-nhecimento naturalmente adquirido dos efeitos sobrenaturais.Em outras palavras, não existe em última instância nenhum dese-jo natural pela visão beatífica de Deus, na medida em que a or-dem puramente natural apenas pode desejar um fim que lhe sejanaturalmente apropriado. O fim sobrenatural se encontra paraalém da capacidade humana. Deus não pode, pois, ser nem ofim nem a perfeição última da pessoa humana em sua condiçãonatural. O desejo de Deus é algo sobrenatural, já que a ordempuramente natural não pode transcender sua capacidade, nãoexistindo nenhuma tendência natural intrínseca pelo destino so-brenatural do ser humano.

Desse modo, a graça é concebida como algo que transcendetotalmente os poderes humanos, não havendo nenhum ponto decontato com ela, já que o único fim que a pessoa humana podebuscar naturalmente tem que ser apropriado à sua própria capa-cidade. A natureza existe primeiramente por si mesma e apenassubseqüentemente se encontra ordenada para a vida sobrenatu-ral desejada por Deus e conhecida mediante a revelação divina.A graça é relegada a algo imposto de fora sobre a natureza huma-na que se encontra fechada em si mesma. A natureza, por suavez, não evidencia nenhuma tendência para uma vida e um des-tino sobrenaturais.

Esse posicionamento leva a uma divisão intransponível entreas ordens natural e sobrenatural. O ponto central de críticas àvisão externalista da graça é que ela nos leva a uma espécie denominalismo, em que a visão de Deus como nosso fim últimonão possuiria nenhum ponto de contato com a profundidade donosso ser, nada mais sendo do que um decreto divino puramen-te jurídico e externo à nossa natureza humana (KENNY, 1953,p. 280).

Os teólogos modernos, entre eles Henri De Lubac, rejeita-ram essa concepção extrínseca da graça, dando nova interpreta-ção à teoria do desejo natural da visão beatífica, ao enfatizar queDeus é o fim intrínseco da pessoa humana (LUBAC, 1949, p. 80-121). Na interpretação de De Lubac, Santo Tomás permaneceusubstancialmente fiel à doutrina dos Padres da Igreja, segundo aqual a pessoa humana possui o desejo de Deus porque o próprioDeus implantou tal desejo em suas criaturas. E, por isso mes-mo, o fim último do ser humano é a visão beatífica de Deus,

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muito embora essa seja inatingível sem a graça. Apenas os meiospara atingir tal fim é que são acrescentados à natureza e não odesejo da visão beatífica enquanto tal. Para De Lubac, Santo To-más nunca concebeu uma natureza pura, sendo tal conceito umanoção forjada pela teologia moderna. Para ele, apenas por umato gratuito de Deus pode o ser humano possuir os meios so-brenaturais para atingir o seu fim último. O desejo que o espíri-to humano possui da visão beatífica é o mais absoluto de todosos desejos; é desejar a comunicação divina como um puro dom,como uma iniciativa livre e gratuita. Esse é o fim que Deus tra-çou para o ser humano, não existindo nenhum outro que não avisão beatífica. Assim sendo, não se é possível conceber um esta-do de natureza pura. Entretanto, se a natureza humana possuium desejo natural de caráter absoluto, como salvaguardar a gra-tuidade do sobrenatural? Esse é apontado como um dos princi-pais problemas da interpretação oferecida por De Lubac com ateoria do desejo natural da alma por Deus.

III

Karl Rahner entra no debate sobre o problema da natureza eda graça ao criticar um artigo publicado em 1950, na revistasuíça Orientierung (1950, p. 138-141), em que um autor anô-nimo defende a teoria do desejo natural de De Lubac, segundo aqual a existência humana em sua própria essência encontra-seintrinsecamente direcionada para o seu destino sobrenatural, queé a visão beatífica de Deus, negando, assim, que possa existirum destino puramente natural para o homem.

Em resposta, Rahner publica um artigo intitulado “Eine an-twort”1 (Uma resposta), no qual aponta para os perigos da teo-ria de De Lubac, que compromete a gratuidade da graça, aomesmo tempo em que busca superar a visão expressa pelo exter-nalismo. Pelo conceito de existencial sobrenatural, Rahner ex-plica a ordenação do ser humano para a visão beatífica de Deus.Ele apela para a noção de natureza pura como condição neces-sária para se preservar a gratuidade da graça. Para explicar arelação entre a natureza e a graça, ele faz uso da noção de po-tência de obediência entendida como uma receptividade positi-va para graça e não apenas como mera não resistência da natu-reza à graça divina.

1 Orientierung, n.14, p. 141-145,1950. Este artigo foirepublicado com otítulo “Concerningthe relationship be-tween nature andgrace”. Theologicalinvestigations I. Lon-don: Darton Long-mann & Todd, 1974,p. 297-317.

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Rahner é influenciado pela filosofia crítica transcendental deKant, por Marechal e pelo neotomismo que interpreta a metafí-sica de Santo Tomás à luz do cogito kantiano e, ainda, pela onto-logia fundamental heiddegeriana, que estabelece a diferença on-tológica entre Ser e seres. Digno de nota é a sua metafísica doconhecimento. Para Rahner, o ser humano é o único ser que le-vanta a questão a respeito do ser. Isso revela que o ser humanojá possui a priori conhecimento do ser; caso contrário, seria im-possível para ele levantar uma questão sobre algo absolutamentedesconhecido. Existe, pois, uma unidade fundamental entre o co-nhecimento e o ser. A presença do homem para o ser, entretanto,não é absoluta mas finita e, por isso mesmo, o ser é análogo. Emoutras palavras, a unidade entre ser e conhecimento varia de serpara ser e, por esse motivo, ao levantar a questão sobre o ser, ohomem não pode ser uma unidade inquestionável com o pró-prio ser, objeto de suas interrogações. Não existe uma identida-de perfeita entre o conhecer e o ser conhecido. O homem é assimuma abertura absoluta para o ser. O ser humano é espírito, sendocapaz de se distanciar da materialidade das coisas particularesconhecidas para o reconhecimento da não-restrição imposta pelaparticularidade. Esse reconhecimento permite a Rahner formularo “pré-conceito (Vorgriff), que servirá de base para a noção centralde ser pensamento, denominada de ‘existencial sobrenatural’”.

O preconceito é a condição de possibilidade do conceito uni-versal. Ë o movimento do espírito na direção da totalidade deseus possíveis objetos. Não se trata de um conhecimento a prio-ri do objeto, mas de um horizonte a priori de percepção de umobjeto que se apresenta a posteriori. Trata-se, pois, de uma con-dição a priori do conhecimento de uma aparência a posteriori(RAHNER, 1968, p. 143-145). Ou seja, valendo-nos desse hori-zonte ilimitado, podemos estabelecer a existência de Deus. Nãose trata de nenhuma demonstração a priori da Sua existência oude representá-lo como um objeto do intelecto. A realidade deDeus pode ser conhecida e afirmada apenas pelo conhecimentoa posteriori da própria coisa como condição necessária do co-nhecimento. Para Rahner, o ser absoluto de Deus tem que ser ofim último do preconceito (RAHNER, 1968, p. 64).

Considerando que o homem é uma abertura absoluta para oSer, e Deus só pode ser conhecido no horizonte ilimitado dopreconceito, o espírito humano possui uma “potência de obedi-ência” para a possibilidade da revelação. Na medida em que o

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ser humano, em seu ato de cognição, direciona-se para Deus,ele se encontra aberto para a possível comunicação divina. En-tretanto, apesar da abertura humana para a transcendência, Deuspermanece para sempre desconhecido, sendo objeto de possívelrevelação. Trata-se da liberdade divina que não pode ser esgota-da pela capacidade humana de conhecê-Lo. O ser humano com-posto de corpo e espírito é um ser histórico, e nos confins daHistória é que a revelação se dá na forma da palavra humana. Oser humano é um ser ouvinte da palavra de Deus na História(RAHNER, 1968, p. 160-161). A compreensão do homem comopossuindo uma potência de obediência é fundamental para o en-tendimento da relação entre natureza e graça em Karl Rahner.

IV

Mediante o conceito de “existencial sobrenatural”, Rahnerbusca salvaguardar a gratuidade da graça, mantendo simultane-amente um ordenamento intrínseco da existência humana paraa visão de Deus. O termo existencial foi tirado da filosofia heid-degeriana para significar a estrutura permanente do ser do ho-mem anterior a qualquer ato livre. Para Rahner, anteriormente aqualquer decisão livre, todo ser humano encontra-se intrinseca-mente ordenado, pela graça, para a visão de Deus. Se a humani-dade encontra-se sempre no desejo salvífico de Deus (1Tm. 2,4),todos são chamados para um fim sobrenatural, e esse chamadoafeta a totalidade da condição humana. O existencial sobrenatu-ral é a concretização no ser humano da oferta incessante da gra-ça oferecida por Deus para toda a humanidade.

O desejo salvífico de Deus tem de possuir uma realidade onto-lógica correspondente na pessoa humana. O chamado de Deuspara a visão beatífica tem de estar inscrita na própria estruturado ser do homem. Esse chamado que nos faz objetos de uma fi-nalidade sobrenatural não pode ser algo externo à realidade maisprofunda da nossa existência (RAHNER, 1974, p. 302-303).

Para Rahner, o ser humano é uma realidade complexa queconsiste tanto da natureza pura como do existencial sobrenatu-ral. A pura natureza é um postulado necessário para explicar asituação do ser humano fora do existencial sobrenatural. Con-tudo, nunca nos experimentamos a nós mesmos como naturezapura separada do existencial sobrenatural. Em outras palavras,

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muito embora a noção de natureza pura seja necessária do pon-to de vista teológico, na prática, entretanto, nunca poderemosprecisar o conteúdo exato de tal natureza.

Esses dois conceitos permitem que Rahner explique o cará-ter gratuito da ordenação do ser humano para a visão de Deus.Todavia, eles não resolvem o problema da relação da natureza eda graça. Para tal, precisamos retornar ao conceito de potênciade obediência, que denota uma transcendência natural ilimitadado ser humano, em conhecimento e liberdade, para a autoco-municação de Deus. Trata-se da própria natureza humana, comoum todo, que é capaz de se abrir para a comunicação divina. Talpotência não é algo externo, mas uma ordenação interna incon-dicional de união do ser humano com Deus no existencial so-brenatural. Para Rahner, existe, pois, em cada ser humano umaorientação positiva e incondicional para a visão de Deus. Entre-tanto, ele se recusa a admitir que tal ordenação seja parte cons-titutiva da natureza humana, pois, se a natureza manifestasseem sua essência essa ordenação, Deus seria obrigado a realizá-la, e isso comprometeria a gratuidade da graça. O existencialsobrenatural orienta a existência humana para a visão beatífica.Rahner, todavia, concebe uma natureza pura hipotética comoelemento necessário para se preservar a graça como um purodom. Não existe nenhuma obrigação imposta a Deus pela natu-reza humana.

Subjacente à concepção de Rahner, encontramos a definiçãodo ser humano em termos da natureza e do existencial sobrena-tural. O ser humano acha-se aberto ao horizonte infinito do ser,que é condição de possibilidade para todo conhecimento e liber-dade do homem. O ser humano é caracterizado por uma potên-cia de obediência que torna possível a revelação divina. Deusnão é alguém distante da própria transcendência humana, já quea pessoa humana é dotada de um existencial sobrenatural. Ohorizonte infinito do homem foi modificado de modo sobrena-tural. Deus é alguém próximo e sempre presente pela sua graça.O ponto central da solução oferecida por Rahner para o proble-ma da natureza e da graça consiste no fato de que a ordenaçãohumana para a visão beatífica de Deus é parte constitutiva desua própria historicidade, e não de sua essência como espírito.Aqui Rahner se distancia de De Lubac, que essencialmente con-cebe o homem como um espírito finito que evidencia o desejo dever a Deus. O ser humano é constituído pela pura natureza e pe-

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lo existencial sobrenatural. O desejo que a pessoa humana pos-sui pela vida da graça é atribuída ao existencial sobrenatural,enquanto que a natureza pura hipotética é elemento logicamen-te necessário para se preservar a gratuidade da graça. A nature-za do existencial sobrenatural é o próprio Deus presente na natu-reza humana em termos de que causalidade quase-formal, nãodevendo ser entendido como entidade intermediária entre a graçade Deus e a natureza humana.

V

A utilização do método da filosofia transcendental para abor-dar o problema da natureza e da graça é um dos pontos maiscontroversos do pensamento de Rahner. Com base na análiseda transcendentalidade do ser humano, ele afirma que Deus éparte constituinte da transcendência humana. Entretanto, o cará-ter infinito da curiosidade humana é um processo indefinido, e équestionável até que ponto ele nos leva a afirmar a existência deum ser absoluto e transcendente, como afirma Rahner.

Por outro lado, se tomarmos a concepção da natureza purado ser humano, temos o problema de como conciliar a graça,como elemento constitutivo da existência humana, com a possi-bilidade de que a natureza do homem possa ter sido criada des-tituída de qualquer fim sobrenatural. Em outras palavras, comopensar a possibilidade de uma natureza pura separada do exis-tencial sobrenatural, se ele é a realidade mais íntima e autênticado ser humano? O que sobraria da identidade humana, se sub-trairmos a sua raiz mais central e profunda? (KOTTUKAPALLY,1974, p. 123-124) Essas dificuldades permanecem mesmo seconsiderarmos que para Rahner a natureza humana separadado existencial sobrenatural continuaria sendo orientada para Deus,muito embora Ele não se fizesse presente para o ser humano nocaráter imediato e absoluto da sua graça. Deus seria apenas umtermo distante do horizonte infinito do conhecimento humano(RAHNER, 1969, p. 89-90). Entretanto, se a natureza pura,dotada de uma potência de obediência, é um conceito ligado aoexistencial sobrenatural, possuindo apenas função hipotética,qual o sentido de se conceber tal natureza hipotética quando naordem histórica atual tal potencialidade nunca será realizada?(SHEPHERD, 1969, p. 90).

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Apesar de algumas dificuldades persistirem, a abordagem deRahner é a que melhor articula o problema da natureza e dagraça. O externalismo salvaguarda a gratuidade da graça, masessa se torna algo secundário e adventício no que tange à natu-reza humana. Henri De Lubac concebe a natureza humana in-trinsecamente orientada para a vida da graça, mas é incapaz deoferecer explicação adequada da gratuidade da graça. Rahnerconsegue salvaguardar a graça como puro dom e, ao mesmotempo, afirmar uma ordenação intrínseca da existência humanapara a graça de Deus.

Referências

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LUBAC, Henri de. Lê mysteere du surnaturel. Recherces de ScienceReligieuse, Paris, v. 26 p. 80-121, 1949.

ABSTRACT

In order to avoid both externalism and the difficulties in-herent to Henri de Lubac’s natural desire, Rahner intro-duces the concept of ‘supernatural existential’. Togetherwith the notions of ‘pure nature’ and ‘obedience poten-cy’, that of ‘supernatural existential’ allows Rahner to sa-feguard the gratuity of Grace and to affirm, simultane-ously, the intrinsic ordination of human existence to god’sview.

Key words: Nature; Grace; Supernatural existential; Ex-ternalism; Rahner.

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