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ALICE NO PAS DO INCONSCIENTE: UMA ANLISE NO ENTREMEIO DA PSICANLISE COM A LITERATURA INFANTIL

Maurcio Eugnio MALISKA1 Renata Corbetta TAVARES2

RESUMO: O presente trabalho busca analisar os aspectos atravs dos quais a narrativa da obra Alice no Pas das Maravilhas permite a relao com o conceito psicanaltico de inconsciente. Para tanto, foi feita uma leitura prvia da obra Alice no Pas das Maravilhas com o intuito de correlacionar pontos de aproximao entre essa obra literria e a teoria psicanaltica. Foram utilizados como referenciais tericos os textos de Freud que discorrem sobre o Inconsciente [1914 1916], a Interpretao dos Sonhos [1900] e o conceito de Estranho [1919]. As consideraes, a partir da anlise, apontam que o sonho de Alice e a entrada no Pas das Maravilhas podem ser representativos do inconsciente, uma vez que aquilo que se passa no sonho de Alice correlativo s caractersticas inconscientes como atemporalidade, atos e criaturas bizarras, aluso ao absurdo, um sentido nico para o sonhador e, por fim, uma sensao de estranhamento naquilo que h de familiar, a saber, as suas prprias fantasias. A trajetria de Alice atravs do Pas das Maravilhas ilustra muito bem a dinmica analtica em geral bem como a interpretao dos sonhos pela psicanlise. As buscas realizadas por Alice ao longo do caminho percorrido pelo inconsciente (Pas das Maravilhas) correspondem ao contato que a herona estabelece com diferentes aspectos constituintes do seu sonho: diferentes personagens e situaes vivenciadas. Cada momento vivido por Alice dentro do Pas das Maravilhas parece servir como pista para norte-la no sentido de retorno ao mundo consciente. Desse modo, considera-se que o Pas das Maravilhas uma representao significativa daquilo que se passa no inconsciente freudiano, o que permite compreender o fascnio exercido pela obra sobre leitores de todas as idades ao longo de aproximadamente 140 anos.

PALAVRAS-CHAVE: Alice no pas das maravilhas. Inconsciente. Psicanlise. Literatura infantil.

1. Introduo

Alice no Pas das Maravilhas uma obra clssica da literatura infantil ocidental, escrita por Lewis Carroll em 1865, ela narra a histria de uma menina que, durante um sonho, explora um fantstico mundo onde vivem criaturas excntricas. O sonho de Alice compartilhado por leitores de todas as idades h 146 anos. Desde 1903 a histria teve inmeras adaptaes para a televiso e o cinema sendo o homnimo filme animado da Walt Disney a verso mais conhecida.

Tendo a teoria psicanaltica como enfoque e perspectiva de anlise, pode ser formulada uma hiptese para compreenso da atemporalidade observada na histria de Alice, atemporalidade por ser uma obra que atravessa o tempo, tangencia o cronos e segue imortalizada. Como sabido, a Psicanlise tem como objeto o inconsciente, que definido como a representao da qual aceitamos a existncia mediante indcios de seus efeitos sem, no entanto, tomar contato direto com o contedo de tal representao. (FREUD, [1914-196]1996). Dessa forma, seria possvel conceber que os aspectos presentes na obra de Carroll no correspondem diretamente s situaes inusitadas e aos personagens fantsticos visto que muitas fbulas e contos de fadas contam com tais aspectos, mas ao apelo que tais alegorias exercem sobre uma realidade que pouco acessamos conscientemente, ou seja, a realidade inconsciente. O prprio Freud dispe que o inconsciente constitui um ponto de partida comum aos processos psquicos, que podem ou no ter acesso conscincia atravs de aes e outras formas de manifestao como: atos falhos, chistes, sonhos, sintomas (FREUD, [1914-

1 Professor do Programa de Ps-graduao em Cincias da Linguagem (UNISUL).

2 Aluna do Curso de Graduao em Psicologia e bolsista PUIC (UNISUL).

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1916]1996). Nesse sentido, possvel verificar uma relao entre o fascnio exercido pelo conto Alice no Pas das Maravilhas e traos que restam latentes no inconsciente. Na histria de Alice, h ainda um outro aspecto que permite relao com a noo de inconsciente psicanaltico: o sonho. A teoria psicanaltica identifica o sonho como uma forma de manifestao do contedo inconsciente. Freud ([1900]1996) assinala que a origem dos contedos observados em sonho normalmente remonta a lembranas e experincias vividas na infncia o que indica que, em certa medida, todos possuem mais ou menos algumas experincias em comum a ser representadas atravs de sonhos.

Sendo assim, o presente texto visa responder seguinte questo: Quais as possveis relaes entre o conceito psicanaltico de inconsciente e a obra Alice no Pas das Maravilhas?

Diante dessa pergunta de pesquisa, delineou-se como objetivo geral, analisar sob que aspectos o conceito psicanaltico de inconsciente pode estar presente na obra Alice no Pas das Maravilhas. Como objetivos especficos de pesquisa, foram estabelecidos os seguintes: a) Definir, de acordo com a teoria psicanaltica, o conceito de inconsciente; b) Identificar elementos presentes na obra Alice no Pas das Maravilhas que possam estar relacionados ao conceito de inconsciente; c) Estabelecer possveis relaes entre o conceito de inconsciente e a obra Alice no Pas das Maravilhas.

2. Fundamentao terica

O inconsciente consiste no objeto de conhecimento e atuao da psicanlise. Segundo Freud, a noo de inconsciente faz-se necessria para compreender os processos psquicos na medida em que durante a vida consciente encontramos grandes lacunas que a prpria conscincia se exime de explicar. Para melhor compreenso do construto correspondente ao inconsciente (Ics.), na teoria freudiana, faz-se necessrio um esboo das instncias do aparelho psquico. O ato psquico, em sua dinmica, segue um curso que pode ocorrer em ambos os sentidos, entre inconsciente e consciente (Cs.). Dessa forma, podemos considerar que um ato psquico que se origina do Ics. tem como destino final o Cs. Contudo, a movimentao dos atos psquicos no ocorre livremente. Entre estas estruturas conceituais existem foras que atuam no sentido de reter os atos psquicos numa dimenso onde a conscincia lhes escapa (no Ics.). Dessa forma, ocorre que ao partir do Ics. o ato psquico passa por uma censura inicial que tem como funo filtrar e selecionar os contedos inconscientes que sero permitidos passar para a conscincia. A este filtro chamamos represso. A represso consiste ento na barreira que dever ser ultrapassada pelos atos psquicos oriundos do Ics. para que os mesmos cheguem ao Cs. Ela pode ser compreendida como a fora (anticatexia) exercida no sentido de bloquear o acesso de atos psquicos ao Cs.

Entretanto, no basta que os atos psquicos consigam ultrapassar esta barreira da represso para que sejam acessveis conscincia. A partir do momento em que se deslocam para alm da represso podemos dizer que esses atos tornam-se passveis de vir conscincia e, portanto, no so ainda necessariamente conscientes.

Ao romper com o bloqueio exercido por esta segunda represso, o contedo que se encontrava latente no Pcs. adquire fora suficiente para vir conscincia (Cs.) propriamente dita.

Este processo pode ocorrer nos dois sentidos, visto que os atos psquicos presentes no Ics. percorrem este trajeto at a chegada ao Cs., e os fatores externos percebidos pelo indivduo chegam atravs do Cs. instalando-se por fim no Ics. Contudo, este processo atravs

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do qual os estmulos externos so percebidos pelo Cs. sendo posteriormente registrados no Ics. no conta com barreiras da represso.

Para melhor compreender a dinmica que ocorre nos processos psquicos importante que seja destacado como se organiza o Ics. Este sistema consiste em impulsos carregados de desejo que so extremamente mveis e exercem sua fora (catexia) no sentido de ascender ao Cs. Estes impulsos coexistem sem influncia mtua, de maneira que podem ser contrrios entre si. Eles tambm no se relacionam noo de tempo e espao sendo indiferentes realidade. Estes impulsos orientam-se ao Cs. com o objetivo de descarregar as catexias que contm, de forma a satisfazer o desejo que os impulsiona. O desejo que move tais impulsos, como contedo do Ics., no respeita a realidade, de maneira que orienta-se pelo princpio do prazer, que determina que os atos psquicos sejam executados de maneira a obter a satisfao de um desejo e obteno de prazer atravs do alvio da presso psquica que exercem os impulsos sobre o pr-consciente na represso primeva.

Ocorre ento, que os impulsos oriundos do Ics. que exercem sua fora no sentido contrrio represso e adquirem fora suficiente para ultrapass-la, ascendem ao Cs. Esta ascenso no se d, porm, de forma literal. O impulso no se traduz conscincia exatamente como se mostrava no Ics. Dessa forma, o impulso ser representado no Cs. diferentemente, dependendo da forma adotada por ele diante da barreira da represso.

Para chegar conscincia, os impulsos devem associar-se a uma ideia. Porm, determinadas ideias associadas aos impulsos inconscientes no so permitidas conscincia pela represso, que exerce sobre estas uma censura evitando que tais idias ascendam ao Cs. O impulso dever associar-se ento, a outras idias, diferentes da idia original, com a finalidade de travestir-se possibilitando sua passagem pela represso. Pode ser dito que, dessa forma, os contedos do Ics. se organizam de maneira a transitar para o Cs. sem serem de fato percebidos como alvo de represso.

Os sonhos, chistes, atos falhos e sintomas propriamente ditos, consistem em representaes de impulsos oriundos do Ics., que associam-se a outras ideias para ultrapassar a represso. Dessa forma, a psicanlise opera diretamente sobre essas manifestaes do Ics., buscando retomar o caminho das mesmas com o objetivo de verificar a que ideia inicialmente estavam associados tais impulsos, antes de se disfararem para furar o bloqueio da represso.

A partir deste ponto, passamos a uma reflexo especificamente acerca da expresso de contedos inconscientes atravs do sonho. O sonho constitui uma forma de acesso aos contedos inconscientes, que, evidentemente, restam latentes no aparelho psquico. Isto se d devido ao fato de os sonhos corresponderem a uma atividade psquica presente em todos os seres humanos. Dessa maneira, a interpretao dos sonhos permite o contato com contedos dos quais o sujeito no tem conscincia, mas que, contudo, integram o funcionamento de seu aparelho psquico, alterando at mesmo os seus comportamentos e pensamentos conscientes. Nos sonhos, o desejo expresso e sua realizao representada atravs de experincias alucinatrias, que consistem em maneiras de vivenciar, manejar e elaborar conflitos relativos a estes desejos inconscientes. Estas experincias ocorrem, de maneira geral, atravs de imagens visuais e, ocasionalmente atravs de pensamentos e sentimentos.

Freud explica que o elemento onrico constitui um fragmento do material inconsciente de onde se origina, de maneira que, ao manifestar-se tal fragmento nos sonhos, o mesmo o faz de forma disfarada, atravs de aluses e simbolismos ([1915-1916]1996). Assim sendo, o que recordado aps o despertar, no corresponde exatamente ao contedo do sonho, visto que, tal contedo consiste em fragmentos inconscientes, impossveis de ser trazidos conscincia espontaneamente, e, por isso, travestidos ao longo do sonho. O contedo do

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sonho que o sujeito tem condies de relatar aps o despertar chamado de contedo manifesto do sonho e corresponde s imagens visuais que o compem. Ao passo que so chamados de pensamentos onricos os contedos provenientes do inconsciente que integram o sonho de forma simblica, no explcita, e somente so acessveis atravs de uma anlise aprofundada dos contedos manifestos narrados pelo sonhador. Dessa forma, possvel dizer que o contedo manifesto do sonho corresponde s imagens visuais que o compem de maneira a travestir a expresso de um pensamento onrico latente, que em geral encontra-se encerrado no inconsciente.

O trabalho da psicanlise incide exatamente neste ponto onde se cria um descompasso entre aquilo que o sonhador lembra e, o que de fato foi representado no sonho. Este mtodo de retrocesso das imagens visuais passveis de recordao por parte do sonhador aps o despertar, no sentido do contedo original do sonho, que resta latente, chamado de mtodo associativo. Tal empreitada consiste em, atravs das imagens manifestamente recordadas pelo sonhador, buscar associaes suficientes que o remetam ideia inconsciente, inicialmente representada no sonho.

Ao realizar este trabalho, porm, o analista (e o prprio sonhador) se depara com uma dificuldade: a resistncia. Tal fenmeno consiste na dificuldade de trazer conscincia materiais oriundos do inconsciente, visto que, na maior parte das vezes, ficam relegados ao inconsciente os desejos dos quais o sujeito deve abrir mo para integrar a civilizao. Estes desejos indecorosos so expulsos da vida consciente e manifestam-se apenas na vida onrica, de forma disfarada.

sabido que o material latente representado em um sonho parte do contedo que resta inconsciente, de maneira que, para manifestar-se durante o sono, devem ser devidamente deformados, travestidos, para ultrapassarem o filtro exercido pela censura do sonhador queles desejos inconscientes que se encontram em choque com o seu julgamento consciente.

Dessa maneira, a deformao onrica consiste no efeito exercido pela censura sobre o material inconsciente dos sonhos, de forma a transform-lo em imagens visuais mais aceitveis para o sonhador, para que o mesmo tenha seu sono preservado mesmo em contato com a realizao de desejos inconscientes, que durante a vida desperta possam lhe parecer perturbadores.

A deformao onrica pode ser verificada tambm atravs do simbolismo. Isto ocorre quando o contedo latente do sonho expresso atravs de smbolos que o representam. Quando isso ocorre possvel dizer que a coisa original representada por uma outra imagem visual, que somente atravs da anlise e interpretao cuidadosa do sonho pode ser associada quilo que realmente significava neste contexto. A significao dos fenmenos representados no sonho atravs de uma deformao onrica, invariavelmente corresponde realizao de um desejo inconsciente. Desta feita, a deformao onrica responsvel por fazer com que nos paream absurdos e estranhos aqueles contedos que, no sonho, so representados atravs de smbolos ou aluses.

3. Mtodo

O presente artigo foi realizado atravs de uma pesquisa bibliogrfica de cunho exploratrio cujo desenvolvimento compreendeu quatro etapas. Inicialmente foi realizado o levantamento de bibliografias que fornecessem informaes relevantes a respeito da noo psicanaltica de inconsciente conforme a perspectiva freudiana, bem como os documentos que permitissem uma relao do conto Alice no Pas das Maravilhas com esta noo psicanaltica, alm da prpria obra foco de anlise.

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A seguir, foi empreendida uma reviso dos documentos encontrados. Esta reviso foi pautada pelos seguintes critrios de incluso e excluso: foram mantidos como fontes de pesquisa, os documentos que se apresentaram em conformidade com o conceito de inconsciente enunciado por Freud ([1914-1916]1996) e aqueles documentos relacionados obra de Lewis Carroll utilizado como base para a pesquisa. Os documentos que inviabilizaram e/ou contradisseram a noo de inconsciente consoante quela enunciada por Freud, bem como os documentos que no permitiram uma relao entre a histria de Alice no Pas das Maravilhas e a Psicanlise foram considerados como integrantes do critrio de excluso para esta pesquisa.

Num terceiro momento, foram realizadas fichas-resumo acerca dos dados encontrados nos documentos que se apresentaram conforme o critrio de incluso.

Por fim, foi realizada uma anlise condensando os aspectos relacionados temtica da pesquisa que foram previamente investigados e fichados, de maneira que foram elaboradas hipteses com o intuito de responder ao problema de pesquisa.

4. Alice e a Psicanlise

Na edio comentada de Alice no Pas das Maravilhas (CARROLL, 2002) o autor conta que a histria de Alice foi criada com o intuito de divertir as filhas do dicono Liddell em uma tarde ensolarada. Ao longo de um passeio de barco, Carroll havia improvisado vrias histrias com a contribuio das meninas e algumas a partir de sua prpria inspirao. Estas histrias no foram registradas, contudo, a pedido de uma das meninas, a histria de Alice no Pas das Maravilhas foi registrada pelo prprio autor, que dedicou a ela alguns desenhos do mundo de Alice.

A histria inicia-se com o adormecer de Alice em uma tarde de vero. A menina, sonolenta, enxerga ao longe um coelho branco ao qual decide seguir. Ao segui-lo, Alice entra em um buraco na terra e sofre uma longa queda.

Esta queda sua entrada ao Pas das Maravilhas, onde a menina vivencia diferentes situaes inusitadas e fantsticas. Neste mundo, os animais falam, h alimentos e bebidas que fazem com que Alice cresa e diminua de tamanho e todos so loucos. Alice quer voltar para casa, contudo no sabe que caminho deve tomar. Ela segue rumo atravs do Pas das Maravilhas, encontrando criaturas fascinantes que a aconselham enigmaticamente. Por fim, Alice consegue retornar ao mundo real ao despertar de um sonho.

Atravs do breve resumo da histria de Alice apresentado acima, possvel verificar que alguns componentes do conto podem facilmente ser relacionados ao conceito de inconsciente freudiano. A prpria entrada de Alice no mundo fantstico do coelho branco indica aspectos psicanalticos importantes como o adormecer, visto que por tratar-se de um sonho, o pas das maravilhas corresponde a uma manifestao simblica do inconsciente de Alice. Dessa forma, compreender as personagens e situaes ocorridas neste sonho nos permite avaliar de forma direta contedos que podem ser interpretados como aspectos do inconsciente uma vez que o prprio pai da psicanlise dispe sobre o sonho como a via rgia de acesso ao inconsciente (FREUD, [1916 1915]1996).

Outro aspecto presente na aventura de Alice, que facilmente relaciona-se ao inconsciente, consiste na queda que assinala sua entrada no pas das maravilhas: [...] A queda nunca ia chegar ao fim? [...] Devo estar chegando ao centro da Terra [...]. (CARROLL, 2010, p. 16). Atravs desta fala podemos identificar a semelhana entre a entrada no mundo dos sonhos (do inconsciente) que corresponde ao pas das maravilhas, e o contato com a instncia inconsciente do aparelho psquico, na medida em que esta se encontra mais profundamente

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inscrita. No processo analtico, por exemplo, o exerccio consiste em uma verdadeira queda da percepo consciente, em direo quilo que corresponde ao inconsciente.

Os exemplos indicados demonstram a relevncia de uma anlise mais detalhada sobre alguns trechos do conto Alice no Pas das Maravilhas, na medida em que diversos aspectos da histria podem ser relacionados a aspectos do inconsciente psicanaltico. Dessa forma, alm de permitir uma visualizao simples de tal conceito, a obra de Carroll possibilita verificar mais uma vez a estreita ligao entre a literatura e a teoria psicanaltica.

5. O sonho do sonhador

A escolha do conto Alice no Pas das Maravilhas como obra foco de anlise do presente trabalho ocorreu devido abundncia de simbolismos e analogias expressas pelo autor ao longo da mesma, bem como ao fato de as aventuras vividas por Alice tratarem-se do contedo de um sonho da protagonista, o que permite a constatao de que tal conto encontra-se duplamente entrelaado noo psicanaltica de inconsciente.

Ao articular os conceitos da teoria freudiana da anlise dos sonhos, podemos considerar que as aventuras da herona, narradas por Lewis Carroll consistiriam no contedo manifesto do sonho de Alice, visto que tudo o que se passa no Pas das Maravilhas corresponde s lembranas que Alice tem ao despertar de um sonho. Dessa forma, ao incio de uma reflexo mais aprofundada sobre aspectos especficos narrados por Carroll como constituintes do Pas das Maravilhas parece importante delinear a relao definidora da pertinncia de tal anlise: a relao entre os acontecimentos e personagens do Pas das Maravilhas e os contedos inconscientes que so enunciados atravs dos sonhos. Sendo assim, estabelecer paralelos entre a obra literria e os postulados da teoria psicanaltica torna-se uma tarefa possvel na medida em que o Pas das Maravilhas nos fornece elementos simblicos suficientes para uma reflexo acerca do conceito de inconsciente.

Quando Freud nos diz:

[...] achamos acertado concluir que ele tambm antes sabia. Simplesmente lhe era inacessvel; ele no sabia que sabia, e pensava que no sabia. Ou seja, a situao era igual aquela que suspeitamos existir naquele nosso sonhador. ([1914-1916] 1996, p.108)

Podemos entender que o sonho manifesto apresenta-se muitas vezes de forma absurda e desordenada, contudo o sonhador possui as condies necessrias para compreend-lo, pois os contedos que se arranjam de forma a constituir o sonho so aspectos dos quais ele tem conhecimento, a nvel inconsciente (assim como na hipnose). Com isto possvel dizer que, mesmo sem conseguir reconhecer e dar sentido s lembranas que tem de um sonho, o sonhador o nico capaz de faz-lo, pois apenas ao se pr a trabalho contra uma censura que funciona no sentido contrrio do acesso ao inconsciente, que ele pode acessar o material (inconsciente) que se arranjou como sonho.

6. Forma bizarra e acontecimentos estranhos

Relacionando diretamente a histria de Alice com a teoria da interpretao dos sonhos de Freud ([1915-1916]1996), possvel compreender a protagonista como sonhadora e o Pas das Maravilhas como seu sonho manifesto, ou seja, a organizao de imagens que ilustram o contedo inconsciente disposto ao longo do sonho. sabido, entretanto, que tal contedo,

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devido censura, se manifesta atravs de disfarces, aluses e simbolismos no sonho de maneira que, ao ser trazido conscincia do sonhador, no cause a repulsa e o desconforto excessivos que ocorreriam caso o material inconsciente fosse acessado integralmente. Da a explicao para os eventos bizarros e absurdos que ocorrem no Pas das Maravilhas.

Freud ressalta a presena de significado nos eventos aparentemente sem sentido, constituintes dos sonhos manifestos, da seguinte forma:

Se fizermos uma srie de comparaes entre os pensamentos onricos e os sonhos manifestos que os substituem, encontraremos toda sorte de coisas para as quais estamos despreparados; por exemplo, que o disparate e o absurdo dos sonhos possuem seu significado. [...]. ([1915 1916]1996, p. 178).

Tal significado encontra-se relacionado a desejos proibidos sobre os quais atua a censura. Garcia-Roza (1991) caracteriza tais desejos como expresses do que existe de pior no homem de forma que a censura ocorre justamente no sentido de encerr-los na instncia inconsciente.

O estranhamento, por parte de Alice e do prprio leitor, que surge como consequncia diante dos acontecimentos fantsticos no sonho de Alice, no conto de Lewis Carroll, pode ser devido ao fato de que [...] o estranho [unheimlich] seja algo que secretamente familiar [heimlich-heimisch], que foi submetido represso e depois voltou [...] (FREUD, [1919]1996, p.262). Dessa maneira, o estranhamento experimentado diante dos aspectos que compem o Pas das Maravilhas serve como sinalizador de que, na realidade, o contedo original destes aspectos constitui grande parte da histria do sonhador (e at mesmo do leitor), estando, contudo, reprimido ao longo da vida desperta, e vindo manifestar-se atravs da reao do mesmo apario de tais contedos mediante disfarces, metforas e simbolismos.

7. A trajetria de Alice atravs do Pas das Maravilhas e o processo analtico

A trajetria de Alice atravs do Pas das Maravilhas ilustra muito bem a dinmica analtica em geral bem como a interpretao dos sonhos pela psicanlise. Levando em conta que o Pas das Maravilhas corresponde a um sonho de Alice, e desta forma, uma construo, um arranjo de contedos inconscientes dela mesma, num primeiro momento poderia nos parecer curioso o fato de ela encontrar-se perdida e desorientada dentro de seu prprio sonho. Contudo, o que marca o desenvolvimento da histria justamente a desorientao de Alice num pas desconhecido, e sua busca pelo caminho de volta para casa. Sendo assim, o conto de Carroll nos permite uma reflexo acerca da noo psicanaltica de inconsciente a partir do estranhamento que experimentado pelo sujeito quando deparado com aspectos que constituem seu prprio inconsciente. Ao relacionarmos a histria de Alice com a dinmica do inconsciente, e ainda, quela dinmica presente em situaes de anlise, possvel vislumbrar de forma alegrica, o distanciamento do sujeito em relao a uma instncia psicolgica que constitui seu prprio aparelho psquico. Dessa maneira, o conto de Carroll nos serve ainda, como ilustrao da justificativa de que, em anlise, o contedo emergente pode parecer alheio e bizarro ao sujeito. Contudo, tal reao pode ser considerada como normal na medida em que, assim como Alice, o prprio sujeito no reconhece imediatamente seu caminho atravs do contedo inconsciente que acessa, de maneira que se fazem necessrias investigaes, verdadeiras buscas nas profundezas do inconsciente (ou do Pas das Maravilhas) para alcanar um caminho de volta que lhe abra passagem de retorno conscincia aquele terreno j conhecido e seguro.

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Referncias

CARROLL, L. Alice no Pas das Maravilhas. Porto Alegre: L&PM, 2010 ______. Alice: edio comentada. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. FREUD, S. A interpretao dos sonhos (1900). Edio standard brasileira das obras psicolgicas completas de Sigmund Freud. v. 4. Rio de Janeiro: Imago, 1996. ______. O Inconsciente. (1914 1916) In: _____. v. 14. Rio de Janeiro: Imago, 1996. ______. Parte I. Parapraxias. (1916 [1915]) In: _____. v. 15. Rio de Janeiro: Imago, 1996. ______.O Estranho. (1919) In: _____. v. 17. Rio de Janeiro: Imago, 1996. GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introduo Metapsicologia Freudiana 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. v.2, 1991.