Medeiros carneiro faustini bate bola

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CARNAVAL, BEXIGA, FUNK E SOMBRINHA três visões Rogério Medeiros, Sandra de Sá Carneiro e Marcus Vinícius Faustini analisam e decumentário “Carnaval, bexiga, funk e sombrinha” sobre o mundo dos bate-bolas (ou clóvis) do car- naval de rua dos subúrbios cariocas Palavra chave: CARNVAL, BATE-BOLA, CLÓVIS

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Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, vol.4. n. 1, 2007.

CARNAVAL, BEXIGA, FUNK ESOMBRINHAtrês visões

Rogério Medeiros, Sandra de Sá Carneiro e Marcus ViníciusFaustini analisam e decumentário “Carnaval, bexiga, funk esombrinha” sobre o mundo dos bate-bolas (ou clóvis) do car-naval de rua dos subúrbios cariocas

Palavra chave: CARNVAL, BATE-BOLA, CLÓVIS

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Carnaval, bexiga, funk esombrinha: os venezianos da

Zona Oeste cariocaRogério Medeiros

MEDEIROS, Rogério. Carnaval, bexiga, funk esombrinha: os venezianos da Zona Oestre ca-rioca. Textos escolhidos de cultura e arte po-pulares, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 140-143,2007.

O filme começa com uma série de le-gendas intercaladas com algumas ima-gens, que visam a oferecer uma infor-mação clara aos espectadores sobre atemática que será abordada:

Na periferia do Rio há mais decem turmas de clóvis conhecidoscomo bate-bolas que invadem asruas com suas fantasias volumo-sas e coloridas, incorporando mo-dernidade e tradição num mistode alegria e fúria. Também co-nhecidos como bate-bolas, osclóvis se dividem em grupos desombrinhas e bexigas. Este filmeé o encontro com algumas turmasno carnaval de 2005.

Em seguida, entre uma seqüência eoutra, somos apresentados aos líderesdos diversos grupos, situados nos subúr-bios da Zona Oeste do Rio de Janeiro,como Jacarepaguá, Oswaldo Cruz, San-ta Cruz e Marechal Hermes. Natural-mente, todos tecem comentários entusi-asmados sobre as suas turmas de bate-bolas, mas o que fica evidente com mai-or nitidez é a grande empatia entre acâmera e os protagonistas, os foliões. São

eles os personagens de uma manifesta-ção que não ocorre apenas nos dias decarnaval, mas ao longo de vários meses,pois envolve longos e exaustivos prepa-rativos.

É assim que se desenvolve Carnaval,Bexiga, Funk e Sombrinha, documen-tário de média metragem, com direção,argumento e roteiro de Marcus ViniciusFaustini. Estamos no sábado de carna-val. O dia cinzento e a chuva que cainão são obstáculos. Os protagonistas daTurma da Foice, de Santa Cruz, ou daTurma da Praça, de Marechal Hermes,se concentram. Todos já estão com suasfantasias, fazem orações e saem pelasruas, entre a alegria e fúria, enquantoouvimos os fogos de artifícios. Os es-trondos se confundem com as bolas debexiga atadas a um cordão, que são ati-radas contra o chão, fazendo um baru-lho muito grande. Outros foliões surgi-rão posteriormente, como os da Turmado Caos, de Jacarepaguá, da Turma Fas-cinação, de Oswaldo Cruz, Turma doPâniko, da Comunidade Muquiço e Tur-mas da Cobra e da Praça, de MarechalHermes.

No filme, a festa propriamente ditacomeça quando ouvimos os acordes deuma música funk. A câmera desliza len-tamente em um movimento diagonal,captando o público, que aguarda a saídade uma turma de clóvis. No plano se-guinte, os foliões surgem animadamen-te, incentivados por gritos e barulhos defogos de artifício. A imagem seguinte élenta. A câmera faz um movimento sua-ve, seguindo um menino solitário quecaminha por uma rua semi-deserta fanta-

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siado de clóvis. Ele se aproxima de umgrupo de crianças. Nessa seqüência, re-produz-se uma encenação antiga, queestá nas origens remotas da festa – oclóvis infantil procurando assustar ascrianças.

De certa forma, a narrativa do filmelembra essa interação de alegria e fúria,sintoma sempre presente nos depoimen-tos e na gestualidade lúdica dos foliões.Nos primórdios, a fantasia de clóvis seassemelhava às roupas dos palhaços esupõe-se que o termo tenha derivado declown (palhaço). Com o tempo, a indu-mentária foi incorporando novas carac-terísticas. Atualmente, suas fantasiasextremamente cromáticas misturam, emseus desenhos e bordados, elementos dacultura popular e da cultura de massa,onde freqüentemente se destacam per-sonagens consagrados dos desenhos ani-mados de Walt Disney. Percebe-se ain-da o orgulho e o entusiasmo que os jo-vens foliões têm em ostentar o tênis demarca, que é assumido não só como maisum objeto que compõe a fantasia, vistoque reproduz valores subjetivos de iden-tificação e valores simbólicos. Os arqué-tipos da sociedade de consumo e da cul-tura de massa também surgem na esco-lha das denominações dos bate-bolas.Como afirma Léo, o líder da turma doCaos, de Jacarepaguá,

o nome da turma é uma das coi-sas mais importantes para osclóvis. Tem turma com nome deprograma de televisão. Eu já viTemperatura Máxima, já vi Ce-lebridade, que é tema de novela.

Os clóvis têm uma semelhança mui-

to grande com os palhaços: a maioriatem bochechas vermelhas, os cabelos delã arrepiados e as cores acentuadas desuas indumentárias. A roupa é uma es-pécie de macacão com bordados, acom-panhado de uma capa. O filme, ao abor-dar uma manifestação carnavalesca, se-gue a trajetória recente da redescobertaou revalorização do carnaval de rua doRio de Janeiro, sobretudo nas duas últi-mas décadas. O número de blocos espa-lhados pela cidade se amplia a cada car-naval. Nesse cenário, os clóvis tambémse expandem.

Faustini tem uma preocupação didá-tica pertinente. Quer introduzir o espec-tador na teia de signos e códigos dosbate-bolas, fazendo com que os depoi-mentos dos líderes de turmas possam, aum só tempo, oferecer dados para a com-preensão do seu significado enquantoexpressão da cultura popular e comomanifestação que contribui para a for-mação de identidade entre os componen-tes de um bairro ou de uma comunida-de. Dessa forma, o filme não é construídocom as fórmulas rotineiras que o espec-tador se acostumou a ver nos documen-tários que são produzidos em larga es-cala para difusão em circuitos de televi-são no mundo inteiro, em nossos dias.A câmera ora segue, ora observa essesanônimos e humildes foliões. Eles per-correm os cenários mestiços e suburba-nos do Rio. Lembram, por meio do im-proviso e do aspecto rústico de suas ale-gres e coloridas fantasias, que suas ori-gens remotas também podem estar nosarlequins medievais dos luxuosos car-navais de Veneza. Sabe-se que, às mar-

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gens do Grande Canal, nem tudo era li-rismo e encantamento: os arlequins usa-vam bastões para agredir os desafetos,algo que pode nos levar a comparaçõescom as bexigas barulhentas que ingenu-amente assustam as crianças nas perife-rias cariocas. Outra preocupação do fil-me é discutir a imagem que as turmasde bate-bolas sedimentaram na popula-ção, geralmente associada à prática daviolência. Os depoimentos esclarecemque, durante os anos 90, o carnaval fi-cou marcado pelas disputas agressivasentre os grupos. Hoje, a intenção dosgrupos é apagar essa imagem que todosconsideram negativa.

O documentário não tem um narra-dor que, com voz em off, possa descre-ver os acontecimentos apresentados ouorientar o espectador. De vez em quan-do, em poucos segundos, ouve-se a vozdo entrevistador, mas percebe-se que suafunção é dar uma ordenação temática aosdepoimentos. Do mesmo modo, surgemalgumas legendas que contribuem rapi-damente para dar uma informação adi-cional, que sedimenta o que a imagemvai mostrar. É assim que o filme come-ça; é assim que ele acaba. A câmera ob-serva sempre atentamente os protagonis-tas em diversos espaços e ambientes –sobretudo nas ruas, nos ambientes do-mésticos, nas oficinas, e no grande ce-nário carnavalesco da Cinelândia. Umaobservação que é construída por depoi-mentos e gesticulações dos componen-tes das turmas de bate-bolas.

O documentário é um gênero que temcomo objetivo produzir a representaçãode uma realidade, sem intervir em seu

desenvolvimento. Uma realidade que é,portanto, independente. Na prática, es-ses parâmetros não funcionam com tan-ta rigidez. É o que demonstra Faustini.O limite entre a objetividade e o pontode vista do cineasta é particularmentetênue. O cineasta revela também que umdocumentário responde a uma propostade seu autor e propõe uma visão parti-cular. Essa visão resulta da escolha, tantoao nível do tema tratado, como da abor-dagem. Carnaval, Bexiga, Funk e Som-brinha nos possibilita tecer reflexõessobre as formas do documentário, gêne-ro que é dominado historicamente pelaficção no mercado cinematográfico.

Entre os lugares-comuns que estãovinculados aos documentários encontra-se aquele da “neutralidade”, ou seja, odocumentário supostamente bom é aque-le que revela sua eficácia por meio doconceito de objetividade no tratamentodo assunto. Trata-se de uma ruptura en-tre duas propostas inconciliáveis de re-alização de filmes – a ficção e o docu-mentário. A primeira proposta está aber-ta à livre prática da fantasia e às estru-turas narrativas lapidadas pelo imagi-nário; a segunda está envolvida por re-gras de tratamento que impedem o jogodas metáforas e das conotações. Paraisso, o cinema clássico, por meio dosgêneros de ficção sedimentados pelo ci-nema americano desde a década de 1930,possibilitou que o espectador se envol-vesse com a trama de uma maneira mui-to especial a partir de determinados pro-cedimentos organizados pelos enquadra-mentos e movimentos de câmera.

No entanto, não podemos perder de

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vista as lições de Godard, que nos legouuma sólida teoria do cinema. Teoria quenasceu não só em textos significativos.Contribuíram para isso, de maneira du-radoura, os modelos de representação deseus filmes realizados durante e após anouvelle vague, movimento de renova-ção do cinema francês, que surgiu nofinal da década de 1950. Para ele, as di-ferenças entre ficção e documentário sãomenos nítidas do que suas interações.Com o tempo, a ficção torna-se uma es-pécie de documentário (sobre uma épo-ca, por exemplo), enquanto o documen-tário tende a se transformar em uma re-presentação ficcional.

Um dia, as práticas carnavalescas dosbate-bolsa passarão por outros (e inevi-táveis) processos de transformações ehibridismos culturais. Outros signos se-rão acrescentados às apropriações daiconografia de Walt Disney e dos ritmose sons originários dos bailes funk. Essesprocessos, que têm uma duraçãoefêmera, são comentados por Cássio, umlíder de turma, que se encontra na Ci-nelândia, poucos minutos antes do fil-me terminar:

Já passei várias fases de bate-bola. Já peguei várias gerações.O pessoal que está aqui comigohoje, eu peguei criancinha. Noinício era só a capa e a bexiga,que nós batíamos no chão. Como tempo, foi tudo melhorando,ficou tudo mais moderno.

Tradição e modernidade são dois ter-mos recorrentes. Em Santa Cruz, am-bos se encontram sintetizados no Vovôdos clóvis, que não usa nem sombrinha

nem bexiga. Ele se denomina, aos 62anos, “uma lenda viva, o mais antigoclóvis do Rio de Janeiro”, e também querser um “clóvis moderno”. A modernida-de pode se manifestar na hereditarieda-de: seus dois filhos confirmam sua pro-posta e preparam-se para sair na Turmado Restafari. Assim, a idéia de tradição– profundamente marcada pelo senti-mento de nostalgia, de “bons tempos”que não voltam mais – associa-se à demodernidade, no que tem de absorçãodos valores culturais das novas gerações,que interagem numa sociedade que so-fre as influências crescentes do proces-so de globalização.

Enfim, tradição e modernidade apa-recem nas derradeiras imagens do fil-me: um grupo de jovens assiste a umaprojeção de vídeo dos antigos carnavais.A festa agora ressurge como um eternoretorno de personagens, cores, sons, rit-mos e gestualidades. Transformada emmetalinguagem, em discurso sobre simesmo, o carnaval dos bate-bolas dopassado – ainda que seja um passadorecente – transforma-se em um docu-mento sentimental e saudosista e refor-ça os seus laços identitários na comuni-dade.

Rogério Medeiros é Professor do Programade Pós-Graduação em Artes Visuais da Es-cola de Belas Artes da UFRJ e doutor emSociologia pela Universidade de Paris VII.

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Carnaval na periferia: asturmas de clóvis

Sandra de Sá Carneiro

CARNEIRO, Sandra de Sá. Carnaval na peri-feria: as turmas de clóvis. Textos escolhidos decultura e arte populares, Rio de Janeiro, v. 4, n.1, p. 144-152, 2007.

Meu objetivo neste artigo é discutiralgumas questões abordadas por MarcusFaustini no filme Carnaval, Bexiga,Funk e Sombrinha1. Exploro alguns as-pectos que nos ajudam a entender me-lhor tanto as turmas de clóvis que inte-gram o carnaval carioca na periferia,quanto a dinâmica da vida social nesselocus, entendido como um espaço deconstrução social de um estilo de vida,ethos e visões de mundo particulares.

Nesse sentido, inicialmente, é impor-tante contextualizar a manifestação cul-tural objeto do filme, bem como delimi-tar o contexto social em que se situamos indivíduos e grupos que participamdas atividades ligadas às turmas declóvis2. Esse universo envolve um con-junto de relações sociais estabelecidasentre pessoas que valorizam coletiva-mente uma “tradição popular” quepermeia e dá significado ao projeto co-mum de se fantasiar no carnaval declóvis e, mais do que isso, de pertencera uma turma.

Mais do que uma tradição vinculadaao carnaval carioca, as turmas de clóvis,ou bate-bolas, como são normalmentedenominadas, representam uma forma

de expressão cultural engendrada, valo-rizada e vivenciada por um número bas-tante significativo de pessoas. Atualmen-te existem mais de 100 turmas de clóvis,sendo que em geral elas têm de 10 a 80componentes. Dentro desse contexto,essas turmas são particularmente impor-tantes como difusoras de uma modali-dade muito particular de “brincar o car-naval”.

No filme, Faustini descortina umafaceta muito pouco conhecida e estuda-da do carnaval carioca3, informando tan-to a matriz de significados culturais doreferido universo, quanto a organizaçãosocial das turmas de clóvis enquanto umconjunto que se mobiliza para atingir umobjetivo pré-determinado: o de vivenci-ar uma emoção única e de oferecer umespetáculo para a sua comunidade.Como diz um entrevistado no início dofilme, ali “o subúrbio se abre”, e pode-mos dizer que muita adrenalina, carna-val e funk se entrelaçam, como veremosmais adiante.

O “mundo” ou “universo” das turmasde clóvis define-se pela rede de relaçõessociais engendrada pelos indivíduos quedelas participam e que são decorrentesdas atividades que antecedem o carna-val, envolvendo as atividades de confec-ção das roupas, escolha do tema da ca-saca, escolha do tipo de sapato ou tênis,adereços (sombrinha, leque, bola, etc.),cujo agente aglutinador é a definição depertencimento a uma turma e a adesão aum projeto coletivo. No entanto, paraalém do carnaval carioca, as turmasenfocadas fazem parte da tradição po-pular, embora a história dos clóvis apa-

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reça sempre vinculada ao surgimentodaquele evento, desde os tempos da Co-lônia.

Um dos aspectos mais interessantesno filme é que existe uma preocupaçãodo diretor em analisar o significado queessa manifestação tem para determina-dos indivíduos e grupos específicos, semapresentar uma visão prévia do evento.Ou seja, pode-se perceber que o recorteutilizado é o de mostrar a estrutura sig-nificativa da experiência conforme elaé apreendida, atualizada e interpretadapelas pessoas que participam desseseventos num determinado período e con-texto social. Cabe ressaltar que tal pers-pectiva tem afinidade com a perspecti-va antropológica, que entende que de-terminadas práticas e significados cul-turais só podem ser compreendidos comrelação ao universo de significação pró-prio de cada grupo social.

Se entendermos que cultura é um pro-cesso dinâmico, recriado na ação con-creta dos homens, e que o significadonão é intrínseco aos objetos, atos, pro-cessos, mas lhes é atribuído, a explica-ção de suas propriedades deve ser pro-curada naqueles que conferem essa atri-buição – os homens que vivem em soci-edade (Geertz, 1978). E é justamente pormeio das narrativas dos entrevistadosque podemos perceber como essa mani-festação vem sendo permanentementeatualizada e recriada. Nos relatos sãoconstantes as referências a um tempopassado, às práticas culturais que se re-produzem e se transformam dentro dedeterminado processo histórico. As for-mulações apresentadas mostram como

esse espaço de solidariedade e congra-çamento, marcado por uma profunda“emoção”, pode ainda existir entre osmodernos foliões dos carnavais cariocas.

Nesse sentido, o diretor procura de-senhar essa dinâmica a partir de um re-curso metodológico muito caro aos an-tropólogos, ou seja, a valorização do“ponto de vista nativo”. Ou seja, ele fazum mergulho na vida social dos subúr-bios e da zona oeste da cidade, revelan-do o que um segmento particular de seusmoradores, unidos em torno de um pro-jeto específico, tem a dizer sobre os sig-nificados daquela experiência e sua re-lação com a vida social nessas localida-des.

A Antropologia tem ensinado que asclassificações nativas são cruciais tantopara compreender as experiências exis-tenciais dos chamados “nativos” (ex-pressa “em suas próprias palavras”)quanto para a compreensão da vida so-cial. Por isso mesmo, é muito interes-sante ver essa perspectiva defendida peloolhar de um cineasta, que busca priorizaro discurso e as narrativas dos chefes deturmas de clóvis, dos “artesãos” das fan-tasias, dos moradores, tentando enten-der o que eles próprios têm a dizer so-bre seu universo social. Não se trata,portanto, de cotejar as narrativas dosentrevistados com uma realidade defi-nida a priori, e sim de procurar com-preender e interpretar como as realida-des são socialmente construídas, em con-textos específicos, e, assim, compreen-der atualizações individuais de esque-mas simbólicos compartilhados.

No caso em questão, o olhar recai

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para um grupo de foliões do carnavalcarioca que vivenciam essa manifesta-ção popular de um modo muito particu-lar – são pessoas que se vestem de clóvisou bate-bola e pertencem a turmas quetêm de 10 a 80 integrantes, que são de-finidas por três sinais diacríticos bási-cos: a marca distintiva de suas indumen-tárias (bola ou sombrinha), o nome daturma e o local onde residem seus inte-grantes ou pelo menos a maioria deles.

Tendo por cenário os preparativos dasturmas para o carnaval de 2005, o filmeretrata essa antiga tradição do carnavalem toda a sua criatividade, espontanei-dade e beleza estética. Mostra os “basti-dores” da preparação: o processo de con-fecção da fantasia, as escolhas dos te-mas, a solidariedade e amizade entre osintegrantes, enfim, como é elaboradoesse projeto que agrega um grande nú-mero de participantes, além dos espec-tadores (platéia) que vão assistir a saídado grupo pelas ruas do bairro nos diasde carnaval.

Segundo os entrevistados, esse é omomento mais esperado, vivenciadocom grande expectativa e emoção; é omomento da consagração4. Portanto, énessa ocasião que a dimensão emocio-nal do projeto atinge seu clímax – o pra-zer de ver recompensados os sacrifíciosem termos de dedicação e dinheiro in-vestido (uma roupa completa custa emtorno de mil e duzentos reais). A grandeexpectativa e tensão que antecedem osdias carnavalescos emergem de modorecorrente nos discursos dos entrevista-dos. Em uma das cenas aparece umasenhora chorando de emoção na saída

de uma turma, e quando entrevistada,diz: “aqueles são os meninos do bairro,meninos que a gente viu nascer e cres-cer”.

Ao narrar a rotina de vários gruposde clóvis, de seus participantes e de pes-soas que contribuem para sua realiza-ção, o filme descortina o “mundo” (verBecker, 1977) das turmas dos clóvis,constituído de um conjunto de pessoas egrupos cuja ação é necessária à produ-ção do evento e dos objetos caracteristi-camente produzidos por aquele mundo.Essa definição inclui desde aquelas queconfeccionam ou idealizam as fantasi-as, desenham e montam as casacas, atéas que participam do evento há muitosanos, como é o caso da Turma do Vovô,antigo folião que sai de clóvis há mais40 anos.

O chamado “Vovô do Clóvis” tem 62anos, pertence a uma turma de SantaCruz e se autodefine como uma “lendaviva do carnaval”. Seus dois filhos ado-lescente já discutem quem vai ser o her-deiro “dessa tradição”: um quer seguiros passos do pai e não admite o uso detênis, pois acha que apenas a bota deveser válida naquele universo, enquanto ooutro fala da importância de o clóvis semodernizar, afirmando que, se for onovo líder, vai adotar o tênis.

Disputas à parte, todos os entrevista-dos parecem concordar que o clímax é asaída (normalmente as turmas se reú-nem em um local, onde vestem as fanta-sias e se preparam). Do lado de fora, hásempre uma multidão que se aglomerapara ver a saída de um grupo, de umaturma. As turmas mais numerosas são

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as mais concorridas, “tem saídas maisesperadas”, como diz um entrevistado.

Os vizinhos, amigos e público emgeral se aglomeram na porta. Lá den-tro, os membros da turma vão “se es-quentando” ao som de música funk. Se-gundo eles, porque “é a música do mo-mento, o ritmo anima, tem mais a verdo que o pagode”. Nesse sentido, o funkserve de suporte sonoro e é recorrente aidéia de que “sem esse tipo de músicanão há uma boa preparação”, Os entre-vistados acham que o ritmo “casa” comcarnaval: “não tem emoção sem o funk”.

Quando uma turma sai, é uma explo-são de cores, de fogos, de alegria conta-giante. As turmas em geral se reúnemno quintal da casa de um dos membros,normalmente do líder e, na hora da saí-da correm em fila em direção à rua,numa agitação, gritaria e balbúrdia bas-tante peculiares. Rodopiando com suasroupas multicoloridas, os clóvis mostramtoda a sua “raça”, “beleza”. Como dizum entrevistado no filme, “é uma tradi-ção que está na veia”.

Existem dois tipos de fantasia declóvis: uma tem como adereço de mão asombrinha, e a outra, a bola. A vesti-menta multicolorida (uma roupa seme-lhante à dos palhaços) é uma espécie demacacão bem largo, fechado nos punhose nos tornozelos, com uma casaca so-breposta onde normalmente é desenha-da alguma imagem, que pode ter temasdiversos – desde os personagens infan-tis, super-heróis, até temas mais religi-osos, como a imagem de uma Nossa Se-nhora. No rosto é comum o uso de umamáscara e, como adereço, usa-se uma

sobrinha ou um tipo bola de plástico pre-sa a um barbante (dizem que antigamen-te era feita de bexiga de boi cheia d’água)nas mãos. Conforme os Clovis andameles vão batendo com as bolas no chão,provocando um intenso barulho.

Uma questão importante que emergedos relatos é a da transformação das tur-mas e das indumentárias. Segundo umentrevistado, se no passado “a forçamaior dos clóvis era a sombrinha”, en-tão mais comum, hoje temos mais a bola.

De qualquer maneira, o nome da tur-ma (Cobra, Fascinação, Paniko, etc.), obairro onde residem e o fato de usaremsombrinha ou bola são os elementos quedefinem o tipo de turma, indicando tam-bém grupos rivais, sendo que os bate-bolas são considerados “mais briguen-tos”.

Do meu ponto de vista, três cenas deforte impacto marcam o filme: a explo-são das cores dos clóvis quando saem àsruas; as rezas antes da saída – aparecemturmas rezando o pai-nosso e a ave-maria – e uma passagem em que um ex-integrante de turma que se converteu sereúne com outros evangélicos e com aantiga turma de clóvis para fazer ora-ções. Segundo afirma, ele “agora traz amensagem de Deus” e procura “dar umaconscientização sobre a violência”, porisso vai lá dar a bênção aos seus antigoscompanheiros de turma. Em 1997 esseentrevistado levou um tiro e diz que apartir daí “começou a refletir sobre avida” e logo depois se “converteu”. Hoje“tem a palavra de Deus” e não tem maisvontade de sair no bate-bola. Diz quenão recrimina os amigos mas acha im-

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portante “levar a palavra de Deus”. Apa-rentemente não há censura, mas o atualevangélico frisa como sua vida “melho-rou após a conversão”.

Se por um lado há uma ênfase na va-lorização da amizade, do companheiris-mo entre os membros das turmas, tam-bém são mencionadas as freqüentes ri-xas entre turmas rivais, que disputam“uma certa respeitabilidade perante acomunidade”. A guerra, segundo uns, “ébola com bola”, “sombrinha com bola”,“é guerra de vaidade”, “de disputa pelogosto popular”.

Seja como for, esse é o lado menosenfatizado pelas turmas, que parecemnão ficar muito à vontade para falar so-bre o tema. De qualquer modo, existeuma indicação de que foi a partir dosanos 90 que “a violência entrou nas tur-mas”.

Os “sacrifícios” que envolvem os in-tegrantes das turmas são muitos – vãodesde o alto custo da fantasia até o fatode ter que agüentar, em um calor de qua-se 40 graus, uma roupa que chega a pe-sar mais de 10 quilos. Mas, depois “agente esquece”, diz um dos foliões en-trevistados; “a emoção é mais importanteque tudo”, diz um outro.

De fato, a vitalidade dos clóvis nocarnaval carioca sempre me impressio-nou, tanto pela beleza das indumentári-as, quanto pela lembrança que guardoda infância, quando corria de “medo”dos clóvis, devido às máscaras. Hoje, ficofascinada por sua dimensão ritual.

Como a Antropologia tem me ensi-nado, por vivermos em sociedade, tudoaquilo que fazemos tem um elemento

comunicativo implícito. Assim, ao nosvestirmos de determinada maneira, aoescolhermos determinadas roupas ouvestimentas, estamos comunicando pre-ferências, status, opções. Da mesmamaneira, como nos lembra Peirano(2003), falar também é uma forma deagir, como qualquer outro tipo de fenô-meno: falar e fazer têm, cada um, suaprópria eficácia e propósito, mas ambossão ações sociais.

Uma das definições mais estimulan-tes a respeito dos rituais foi formuladapor Tambiah (1985), conhecido por seusestudos contemporâneos sobre o tema.Para ele, o ritual é um sistema culturalde comunicação simbólica, constituídode seqüências ordenadas e padronizadasde palavras e atos, em geral expressospor múltiplos meios. O autor compre-ende que a ação ritual em seus traçosconstitutivos pode ser entendida comoperformativa em três sentidos: no senti-do de que dizer é também fazer algumacoisa como um ato convencional; de queos participantes experimentam intensa-mente uma performance que utiliza vá-rios meios de comunicação; de que va-lores são inferidos e criados pelos ato-res durante a performance.

Como podemos depreender dessascolocações, o ritual para Tambiah não éalgo definitivo (ver Peirano, 2003); eleretoma a idéia de eficácia, concordandocom Leach (1966), que inclui a açãocomo um meio de transmissão de conhe-cimento, mas acrescenta um elementofundamental, que esclarece de onde vema idéia de eficácia social. Sua principalcontribuição é introduzir a idéia de “ação

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performativa”, um atributo intrínsecotanto à ação quanto à fala, que permitecomunicar, fazer modificar, transformar.Se na formulação de Tambiah (1985) oritual assume os sentidos descritos maisacima, fica esclarecido como a eficáciase dá. Pois é por meio deles que vemoscombinadas as dimensões do viver e dopensar. Os rituais realizam, portanto,funções aparentemente diversas, porquesão performativos.

No universo brasileiro, Da Matta es-creveu vários trabalhos consideradosclássicos a respeito do carnaval, tendocomo fontes inspiradoras tanto os estu-dos de Turner quanto os de Leach. Sen-do que uma das maiores contribuiçõesdaquele autor é a de examinar as dimen-sões fundamentais da sociedade brasi-leira, explicitando valores, atitudes eidéias subjacentes à nossa identidade ou,como ele propõe, descobrir o que faz doBrasil, Brasil.

O carnaval é uma festa popular quecria a idéia de comunidade, que é reali-zado em dias e em espaços definidos,que favorece a formação de grupos soci-ais novos, reconfigurados logo depois.No filme, fica explícito como os domí-nios da casa e da rua se interpenetram.Pois o carnaval é sem dúvida um espaçoespecial em que esses dois domínios seentrelaçam, produzindo uma realidadeque desfaz o dia-a-dia em um processode individualização. Esse processo ocor-re em múltiplos planos e utiliza-se dediversos meios: vestimentas especiais(diferentes das roupas diárias), alegori-as grandiosas, comportamentos não ro-tineiros (com freqüência incluindo re-

versão de papéis sociais), músicas e le-tras específicas. Sendo que no tempo docarnaval há uma dramatização do coti-diano em que surgem novos significa-dos.

Durante o carnaval as turmas declóvis estão em franca competição (sobo princípio da igualdade). E, como nosensina Da Matta (1987), é no carnavalque a sociedade pode ter uma visão di-ferente de si mesma. No ritual como dra-ma, observam-se os conflitos, as ambi-güidades e os dilemas, mas também aspotencialidades, as alternativas e as uto-pias dos foliões.

A finalidade do carnaval é festiva,tratando-se de uma celebração explícitada sociedade. Já a brincadeira de clóvistorna-se assim em um fenômeno inte-ressante para análise justamente porque,no longo processo de reflexão sobre suascaracterísticas intrínsecas, reconheceu-se que ela tem o poder de ampliar, ilu-minar e realçar uma série de idéias evalores que, de outro modo, seriam difí-ceis de discernir. O que coloca essa ex-periência à parte do curso da vida coti-diana e a cerca com uma aura de impor-tância maior é seu poder de organizaros seres humanos, a existência e a emo-ção coletiva. De um ângulo muito par-ticular, as turmas de clóvis expressam oethos de um grupo, sua emoção, amiza-de, cooperação, solidariedade. Elas cri-am um espaço de sociabilidade que con-tribui para a consolidação de redes derelações que atravessam a estrutura for-mal das organizações e instituições; pos-suem uma dimensão de construçãoritualizada de símbolos coletivos e co-

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locam em ação múltiplas concepçõesrelativas à descontinuidade no universocotidiano entre o domínio do trabalho eo domínio do lazer. O que permite aosindivíduos uma participação social mai-or e mais livre, oferecendo-lhes novaspossibilidades de integração à vidasociocultural, agora com uma identida-de criada a partir de interesses comuns,constituída de códigos próprios.

Sabemos, conforme vários autorestêm mencionado, que o carnaval permi-te o encontro e a reunião de pessoasoriundas de diferentes segmentos soci-ais, com ocupações distintas e posiçõesdesiguais na estrutura social. Uma dasnarrativas mais densas é a de um polici-al militar que se dedica a confeccionaras casacas de sua turma e, profissional-mente, também as faz para várias ou-tras turmas. Embora ressalte que já fa-zia casaca antes de entrar para a PoliciaMilitar, é um dos muitos exemplos depessoas que desempenham ocupaçõesque poderiam ser entendidas como con-traditórias. Mas enquanto pertencente auma turma de clóvis, está unido aos ou-tros integrantes por “uma paixão co-mum”. Além disso, os entrevistados pro-curam legitimar a especificidade e qua-lidade da maneira de viver “na perife-ria”, como representando o modo autên-tico de “brincar o carnaval”.

Sabemos também que o carnaval ex-pressa um dos mecanismos básicos dasociabilidade carioca, isto é, a relaçãoentre hierarquia e individualismo queestá manifesta nas fantasias e desfiles5.Vemos também o entrelaçamento do sa-grado e do profano, como, por exemplo,

as orações feitas antes da saída, o ex-clóvis que dá a bênção a seus compa-nheiros e a escolha de temas religiosospara motivos das casacas. Aliás, essevínculo entre sagrado e profano já ha-via sido ressaltado por Gilberto Freyre,que nos diz:

O Carnaval é uma festa de que opovo do Brasil participa comgrande entusiasmo, e dura trêsdias seguidos, durante os quaisse dança nos clubes, nos teatros,nas praças e nas ruas. Em certasregiões, classes, raças, sexos eidades misturam-se de tal forma,com uma tão livre exuberânciademocrática e uma tal alegria deconfraternização, que ninguémpercebe até onde isso é pagão ouaté onde tudo isso é liricamentecristão. O fato é que embora lar-gamente pagão parece haver al-guma coisa de cristão nessa exu-berância e nessa alegria fraternal.(2001:182)

Durante o carnaval, o clima de ale-gria retorna periodicamente como inver-são de valores e suspensão de hábitos ecostumes da sociedade brasileira. Masserá que as turmas de clóvis – que aindaexistem em profusão na periferia do Rio– têm ainda o potencial de inverter va-lores e colocar em suspensão normas davida cotidiana?

A história da Cidade do Rio de Ja-neiro revela que ela passou por diversasreformas urbanas, mas na medida emque foi sendo modernizada, a popula-ção carente foi se fixando fora do centrourbano, nas periferias, surgindo assim aconfiguração bipartida que apresenta até

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hoje. O mesmo aconteceu com o carna-val, pois as brincadeiras populares fo-ram também expulsas do centro da ci-dade. Como nos lembra Myrian Santos:

As práticas do entrudo, que con-sistiam nas bolas de água-de-cheiro, farinhas, etc., vinhamsendo fortemente reprimidas porserem consideradas uma heran-ça porca e suja do período colo-nial. Da mesma forma, os “zé-pereiras”, manifestações de por-tugueses moradores do Centro dacidade que faziam grande estar-dalhaço com seus tambores gi-gantes, foram postos à margempelo novo modus vivendi, quelhes atribuía falta de espírito nasexibições grotescas. (2006:124)

A tradição dos clóvis pode ser enten-dida como setores da população que vi-vem na periferia e se expressam por meiode brincadeiras. Entendo o carnavalcomo um modo da ação coletiva, de na-tureza processual, que dispõe de padrõesartísticos e narrativos únicos e se confi-gura no contexto de amplos processossociais (Turner, 1974 e Da Matta, 1979).Portanto, como é mostrado no filme, asturmas de clóvis também podem sercompreendidas como uma manifestaçãoimportante dentro da vida social da pe-riferia, influenciando o desenvolvimen-to de certos padrões de sociabilidade einteração de um número significativo depessoas. Por isso, cabe lembrar a estrei-ta relação entre projetos individuais e oambiente social, na medida em que asturmas podem ser entendidas tambémcomo um comentário bastante signifi-

cativo de como determinados indivídu-os ou grupos orientam e organizam suasexperiências na vida diária. É nessamedida que o filme contribui para umaanálise bastante sutil das contradiçõesda cultura popular nos centros urbanose para a observação de aspectos que de-monstram que a periferia pode apresen-tar dinâmicas subjetivas contemporâneasque a diferenciam tanto da favela quan-to daquilo que podemos denominar va-gamente de zona norte.

Sair fantasiado de clóvis, pertencer auma turma, representa muito mais doque simples diversão e brincadeira: háum sentido de pertencimento bastantecomplexo que é importante salientar. Aemoção, o desafio e a tradição aparecemcomo aspectos significativos nesse con-texto, como também a questão estética evisual. Trata-se, portanto, de um fenô-meno em que estão entrelaçados muitosângulos e aspectos da realidade cujossentidos importam apreender.

NOTAS1 Este texto teve por base algumas reflexões

que apresentei na mesa-redonda de encer-ramento da 9ª Semana de Cultura Popu-lar, realizada pelo IART/UERJ no dia 24de novembro de 2006.

2 Clóvis, ou bate-bola, é o nome de uma fan-tasia carnavalesca muito utilizada pormoradores dos subúrbios, zonas norte eoeste da Cidade do Rio de Janeiro. Su-põe-se que tenha derivado de “clown” (pa-lhaço). Antigamente, a fantasia de clóvisse assemelhava muito à roupa dos palha-ços, mas contava com máscaras aterrori-zantes. Batendo suas bexigas de boi com

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água, os bate-bolas eram o terror da cri-ançada. Com o tempo, a indumentária foiincorporando novas características e, atu-almente, os grupos de clóvis podem serclassificados em diversos tipos, tais como“bola e sombrinha”, “leque e sombrinha”,“bicho e leque”, entre outros. Fonte: http:// p t . w i k i p e d i a . o r g / w i k i /C l%C3%B3vis_%28carnava l%29 ,acessado em 15/09/2007.

3 As referências dos estudos que conheçosobre o tema são ZALUAR, 1978; FARI-AS, 2004, embora tenha sido tratado, nocampo das artes, por Aloysio Zaluar, quefez uma bonita exposição intitulada “Oclóvis vem aí”.

4 É interessante destacar como esse univer-so tem aproximações com o mundo dosbalões, tema que explorei no livro Balãono céu, alegria na terra (Carneiro, 1986).

5 Algumas turmas concorrem nos desfilesrealizados no Centro do Rio, pela Prefei-tura e outras instituições. Disputam con-cursos de beleza e animação na AvenidaRio Branco, no Centro, junto a blocos tra-dicionais como o Bafo da Onça e o Caci-que de Ramos.

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS

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DA MATTA, R. Carnavais, malandros eheróis: para uma sociologia do dilema bra-sileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

FARIAS, Edson. Bate-bolas e “rodadões”:ambigüidade nas performances das turmasde clóvis no carnaval carioca. In: PROEN-ÇA, Rogério (org.): XI Encontro Norte eNordeste de Ciências Sociais. Aracaju(CD-ROM), 2004.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas.Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

LEACH, E. Ritual. In: Internationalencyclopedia of social science, vol. 13-14. New York: The Macmillan Company& The Free Press, 1972.

PEIRANO, Mariza. Rituais como estratégiaanalítica e abordagem etnográfica. In: Odito e feito . Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2002.

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TAMBIAH, S. A performative approach toritual. In: Culture thought and socialaction: an anthropological perspective.Cambridge/Massachussets: HarvardUniversity Press, 1985.

TURNER, V. O processo ritual: estrutura eanti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.

Sandra de Sá Carneiro é Doutora em An-tropologia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ e Pro-fessora Adjunta do Depto. de Ciências Soci-ais do IFCH/UERJ.

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Os clóvis inventam ocontemporâneo carioca

Marcus Vinícius Faustini

FAUSTINI, Marcus Vinicius. Os clóvis inven-tam o contemporâneo carioca. Textos escolhi-dos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro,v. 4, n. 1, p. 153-155, 2007.

Em uma seqüência do documentárioCarnaval, Bexiga, Funk e Sombrinha, olíder da Turma do Pânico apresenta àcâmera o tema dos sete pecados capitaisque irá nortear todos os desenhos dasfantasias de sua turma.

Para representar o tema eles escolhe-ram os personagens da Disney. Segue-se um pequeno plano–seqüência, acom-panhado da voz em off do líder da tur-ma, em que a câmera observa em váriosdesenhos pendurados numa corda as re-presentações dos pecados: para a luxú-ria, eles escolheram uma Minnie em ex-pressão levemente maliciosa e cercadapelos esquilos.

Essas imagens podem parecer, aojuízo de alguns, um forte argumento paracaracterizar a prática contemporânea damanifestação dos clóvis na periferia doRio de Janeiro como algo de baixa cul-tura, sintoma da invasão da indústriacultural, ou até mesmo alienante.

É um fim de tarde de um final de se-mana próximo do carnaval e estamos emcima de uma laje onde mais de 30 inte-grantes da turma acompanham as filma-gens. No entorno, Marechal Hermespode ser vista e reconhecida como su-búrbio carioca de pungente significado.

Depois que a câmera é desligada, todosos membros da equipe de filmagem sãoconvidados para participar do churras-co do grupo, que se seguiria.

Nesta pequena descrição de um mo-mento do processo fílmico do documen-tário em questão, reside toda a naturezateórica possível que faz, em minha opi-nião, da prática contemporânea da ma-nifestação dos clóvis na periferia cario-ca um importante elemento para com-preendermos a complexidade de umacidade muito cantada nos sambas e nasmarchinhas de carnaval, mas pouco ex-perimentada fora do eixo Centro–ZonaSul. Durante nossa pesquisa para inici-ar as filmagens, encontramos mais de70 turmas em atividade que articulamuma expressão estética capaz de pegarelementos da sociedade de consumo(Disney, Nike, etc.) e dar-lhes novos sig-nificados, criando também uma dinâmi-ca econômica que envolve várias redese códigos éticos que se constroem emtorno da territorialidade. A capacidadede gerar procedimentos estéticos livresde conceitos limitadores é tão instiganteque as turmas criam, sem nenhum cons-trangimento, seus hinos em cima de ba-ses funk.

Minha aproximação e desejo de merelacionar com essa expressão vão alémda observação intelectual sobre determi-nado tipo de manifestação. Nas férias deminha infância, entre as casas de mi-nha avó, no Jacarezinho, das tias, naBaixada Fluminense, e minha própriacasa, em Santa Cruz, sempre presencieias turmas de mascarados que invadiamas ruas e tentavam assustar a molecada,

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que se vingava cantando que o Bate-Bolaapanhava de mulher. Com o passar dosanos, comecei a perceber que aquela erauma manifestação desconhecida porgrande parte da cidade e que só saía desua invisibilidade por meio de um pro-cesso de criminalização muito presentena mídia durante os carnavais. O filmeusa como estratégia uma aproximaçãocom as ações dos personagens e os acon-tecimentos para dar uma resposta a esseoutro olhar jornalístico distanciado, des-crito acima, que de maneira bastantenebulosa reduz a prática cultural dosClóvis a uma dinâmica de vandalismo edescontrole juvenil.

O procedimento que usamos para essaestratégia foi a conversa no lugar daentrevista, a observação das imagens queapareciam no lugar de uma tese pré-de-terminada que busca nas imagens suasjustificativas. Por outro lado, no proces-so de montagem do filme, percebendo aforça social e a expressividade estéticados clóvis e ao mesmo tempo singulari-dades territoriais que diferenciavam emmuitos aspectos as turmas, resolvemospartilhar o filme territorialmente tam-bém, em seu espaço fílmico. De Mare-chal Hermes até Santa Cruz as turmasvão ganhando diferenças nas estratégi-as, procedimentos e práticas que obri-gam uma possível tarefa de radiografiaa ter que ser atenta e não generalizante.

Entretanto, o procedimento que acre-dito ter sido mais importante na cons-trução da diegese do filme foi a utiliza-ção do dispositivo de só filmar as tur-mas durante sua preparação para o car-naval de 2005, e não a inclusão de um

intelectual organizando teoricamente amanifestação em qualquer sistema defolclore ou cultura popular. O que ve-mos ao longo de todo o filme são os pró-prios membros das numerosas turmasdiscorrendo sobre suas práticas, estraté-gias, afetos e memórias de uma mani-festação que tem na emoção uma de suasbases principais. Dois momentos meparecem importantes para demonstraresse aspecto da emoção. Durante a pre-paração da saída da Turma do Cobra,que se esconde dentro de uma garagem,para que ninguém veja sua fantasia, arua vai ficando cheia de moradores dacomunidade do entorno, e no momentoda saída os quase 100 integrantes da tur-ma vão para a rua ao som de fogos inin-terruptos e batem suas bexigas no chãocom uma encenação de fúria que, paradesconhecidos, pode ser interpretadacomo manifestação de violência, masque toda a comunidade vê como belo eentusiasmante, o que fica bem definidona voz de uma senhora que passa na-quele momento e diz para a câmera: “sãoos nossos meninos, eu estou muito fe-liz!”. O que temos diante de nós é umgesto de significação contemporânea,pois o que vimos flerta diretamente coma idéia de performance muito presenteem trabalhos de artistas dos maisinstigantes de nossa época. Outro pro-cedimento bastante interessante e quepode, desta vez aos olhos de intelectu-ais insensíveis a essas expressões, pro-vocar um olhar preconceituoso e críti-co, é a incorporação do tênis de marcanas fantasias: Nike, Adidas, em mode-los que ao serem molhados expelem

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imediatamente a água, são agregados àfantasia sem nenhum sentimento de cul-pa associado a noções como consumismoou descaracterização da prática culturalem questão. No momento da história docapitalismo em que este deixa de serfordista e passa a ser cognitivo, procu-rando se apropriar e colocar na roda docapital produções imateriais, ver umamanifestação popular evocando algumasdas marcas mais importantes desse ca-pitalismo, e a sensação imaterial que elequer nos render, é uma provocação nomínimo interessante, pois o tênis nessemomento deixa de representar sua fun-ção primária (calçar) e também sua fun-ção na lógica do capital (o reconheci-mento como aquele que usa aquela mar-ca) e passa a ser incorporado como maisum elemento da fantasia. É como se elesdessem o seguinte recado: Esse têniscaro e difícil, nós podemos ter em gran-des quantidades, e podemos usá-lo atéem nossas brincadeiras, como quiser-mos, e não apenas como os comerciaisanunciam.

Esse elemento do tênis somado àenorme quantidade de pano necessáriapara fazer a fantasia e seu custo totaltrazem à cena a necessidade de redes eestratégias econômicas que as turmasrealizam durante o ano inteiro para pro-duzir a tão esperada saída no sábado decarnaval. É uma rede econômica com-plexa, com vários atores executando vá-rios papéis. O filme acompanha princi-palmente o policial Leonardo, que fazpinturas para as fantasias de várias tur-mas. A sutileza e a sofisticação são tan-tas que até as máscaras têm pinturas sin-

gulares e pessoas específicas que reali-zam esse trabalho.

Por fim, quero ressaltar a presen-ça das crianças nessas turmas, que nomeio de homens já ensaiam a continui-dade dessa história. O intrigante é pen-sar que esses meninos, invisíveis paragrande parte da cidade e da sociedade,colocam máscaras para serem vistos.

Marcus Vinícius Faustini é idealizadore diretor do filme Carnaval, Bexiga, Funk eSombrinha.

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