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Coração cheio mente vazia Não há caminho para a verdade, ela tem que vir até você. A verdade só pode vir até você quando sua mente e seu coração são simples, limpos, e existe amor em seu coração; não se seu coração estiver cheio com as coisas da mente. Quando existe amor em seu coração, você não fala sobre organizar fraternidade; você não fala sobre crença, você não fala sobre divisão ou sobre os poderes que criam as divisões, você não precisa buscar reconciliação. Então, você é simplesmente um ser humano sem um rótulo, sem um país. Isto significa que você precisa despir-se de todas aquelas coisas e deixar a verdade surgir; e ela só pode vir quando a mente está vazia. Então, ela virá sem ser convidada. Ela virá tão repentinamente como o vento. Ela vem sem que você a espere, não quando você está observando, querendo. Ela está lá tão de repente quanto a luz do sol, tão pura quanto a morte; mas para recebê-la o coração deve estar cheio e a mente vazia. Agora você tem a mente cheia e o coração vazio. Mudança deliberada não é mudança nenhuma Na própria ação da mudança individual, certamente o coletivo também mudará. Elas não são duas coisas separadas uma oposta a outra, o individual e o coletivo, apesar de certos grupos políticos tentarem separá-las e tentarem forçar o indivíduo a se adaptar ao assim chamado coletivo. Se nós pudéssemos desembaraçar todo o problema da mudança, como produzir uma mudança no indivíduo e o que aquela mudança implica, então, talvez, no próprio ato de escutar, participar na investigação, poderia surgir uma mudança que ocorre sem sua vontade. Para mim, uma mudança deliberada, uma mudança que é compulsória, baseada em disciplina, em conformidade, não é mudança nenhuma. Força, influência, alguma nova invenção, propaganda, um temor, um motivo que o compele a mudar - isto não é mudança nenhuma. E, apesar de que você possa intelectualmente concordar muito facilmente com isto, eu lhe afirmo que penetrar na natureza real da mudança sem um motivo é muito extraordinário. Fora do campo do pensamento Você mudou suas idéias, mudou seu pensamento, mas o pensamento é sempre condicionado. Seja o pensamento de Jesus, Buda, X, Y ou Z, 1

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Coração cheio mente vazia

Não há caminho para a verdade, ela tem que vir até você. A verdade só pode vir até você quando sua mente e seu coração são simples, limpos, e existe amor em seu coração; não se seu coração estiver cheio com as coisas da mente. Quando existe amor em seu coração, você não fala sobre organizar fraternidade; você não fala sobre crença, você não fala sobre divisão ou sobre os poderes que criam as divisões, você não precisa buscar reconciliação. Então, você é simplesmente um ser humano sem um rótulo, sem um país. Isto significa que você precisa despir-se de todas aquelas coisas e deixar a verdade surgir; e ela só pode vir quando a mente está vazia. Então, ela virá sem ser convidada. Ela virá tão repentinamente como o vento.

Ela vem sem que você a espere, não quando você está observando, querendo. Ela está lá tão de repente quanto a luz do sol, tão pura quanto a morte; mas para recebê-la o coração deve estar cheio e a mente vazia. Agora você tem a mente cheia e o coração vazio.

Mudança deliberada não é mudança nenhuma

Na própria ação da mudança individual, certamente o coletivo também mudará. Elas não são duas coisas separadas uma oposta a outra, o individual e o coletivo, apesar de certos grupos políticos tentarem separá-las e tentarem forçar o indivíduo a se adaptar ao assim chamado coletivo.

Se nós pudéssemos desembaraçar todo o problema da mudança, como produzir uma mudança no indivíduo e o que aquela mudança implica, então, talvez, no próprio ato de escutar, participar na investigação, poderia surgir uma mudança que ocorre sem sua vontade. Para mim, uma mudança deliberada, uma mudança que é compulsória, baseada em disciplina, em conformidade, não é mudança nenhuma. Força, influência, alguma nova invenção, propaganda, um temor, um motivo que o compele a mudar - isto não é mudança nenhuma. E, apesar de que você possa intelectualmente concordar muito facilmente com isto, eu lhe afirmo que penetrar na natureza real da mudança sem um motivo é muito extraordinário.

Fora do campo do pensamento

Você mudou suas idéias, mudou seu pensamento, mas o pensamento é sempre condicionado. Seja o pensamento de Jesus, Buda, X, Y ou Z, ainda é pensamento e, portanto, um pensamento pode estar em oposição a outro pensamento; e quando há oposição, um conflito entre dois pensamentos, o resultado é uma continuidade modificada do pensamento. Em outras palavras, a mudança ainda está dentro do campo do pensamento, e mudança dentro do campo do pensamento não é mudança nenhuma. Uma idéia ou conjunto de idéias foi meramente substituído por outro. Vendo todo este processo, é possível largar o pensamento e produzir uma mudança fora do campo do pensamento? Toda a consciência, certamente, seja ela do passado, do presente, ou do futuro, está dentro do campo do pensamento, não dentro dele, e a mente só pode ocorrer fora do campo do pensamento, não dentro dele, e a mente só pode largar o campo quando ela vê as fronteiras, os limites do campo, e entende que qualquer mudança dentro do campo não é mudança nenhuma. Esta é a meditação real.

A mudança real

Uma mudança só é possível do conhecido para o desconhecido, não do conhecido para o conhecido. Por favor, reflitam sobre isto comigo. Na mudança do conhecido há autoridade, há uma visão hierárquica da vida - "você sabem eu não sei. Portanto, eu venero você, eu crio um sistema, eu sigo um guru, eu sigo você porque você está me dando uma certeza de conduta que irá produzir o resultado, o sucesso". O sucesso é o conhecido. Eu sei o que é ter sucesso. Isto é o que eu quero. Assim, nós procedemos do conhecido para o conhecido no qual a autoridade tem que existir - a autoridade da sanção, a autoridade do líder, garantir o sucesso, o sucesso em meu esforço, na

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mudança, de modo que eu serei feliz, eu terei o que eu quero. Não é este o motivo que a maioria de nós tem para mudar? Por favor, observem de fato seu próprio pensar, e vocês verão os caminhos de sua própria vida e conduta... Quando vocês olham para isto, acham que é mudança? Mudança, revolução, é algo do conhecido para o desconhecido na qual não há autoridade, na qual pode haver fracasso total. Mas, se você tem certeza do que você irá alcançar, você terá sucesso, você será feliz, você terá vida eterna, então, não há problema. Então, você busca o bem conhecido curso de ação, que é você próprio estando sempre no centro das coisas.

Pode um ser humano mudar?

Já devemos nos ter perguntado, estou bem certo, se de fato mudamos. Eu sei que circunstâncias exteriores mudam; nós casamos, divorciamos, temos filhos; há a morte, um emprego melhor, a pressão de novas invenções, e assim por diante. Exteriormente há uma tremenda revolução em andamento na cibernética e na automação. Já devemos nos ter perguntado se é de fato possível mudarmos, não em relação aos eventos exteriores, não uma mudança que seja uma mera repetição ou uma continuidade modificada, e sim uma revolução radical, uma mutação total da mente. Quando compreendemos, como devemos ter notado dentro de nós mesmos, que de fato não mudamos, ficamos terrivelmente deprimidos, ou fugimos de nós mesmos. Assim, surge a inevitável questão: pode de fato haver mudança? Nós retornamos a uma época em que éramos jovens e aquilo retorna para nós de novo. Há de fato uma mudança nos seres humanos? Você mudou de fato? Talvez tenha havido uma modificação na periferia, mas profundamente, radicalmente, você mudou? Talvez nós não queiramos mudar, porque estamos bem confortáveis.

Eu quero mudar. Eu vejo que sou terrivelmente infeliz, deprimido, feio, violento, com um ocasional lampejo de algo diferente do mero resultado de um motivo; e eu exercito minha vontade para fazer algo a respeito disto. Eu digo que devo ser diferente, eu devo largar este ou aquele hábito, eu devo pensar de modo diferente; eu devo agir de um modo diferente, eu devo ser mais isto e menos aquilo. Fazemos um tremendo esforço e no final ainda é um artigo inferior; deprimidos, feios, brutais, sem nenhum senso de qualidade. Assim, nós então nos perguntamos se há de fato mudança. Pode um ser humano mudar?

Transformação sem motivo

Como vou me transformar? Eu vejo a verdade - pelo menos, eu vejo algo nisto - que uma mudança, uma transformação, deve começar num nível que a mente, tanto a consciente quanto a inconsciente, não pode alcançar, porque minha consciência como um todo está condicionada. Assim, o que devo fazer? Eu espero estar tornando claro o problema. Se eu puder colocá-lo de uma maneira diferente... Pode a mente, tanto a consciente quanto a inconsciente, ser livre da sociedade? - sociedade sendo toda a educação, a cultura, a norma, os valores, os padrões. Porque se ela não for livre, então, qualquer mudança que ela tentar produzir dentro daquele estado condicionado ainda será limitada e, portanto, não será mudança nenhuma.

Assim, posso olhar sem qualquer motivo? Pode minha mente existir sem nenhum incentivo, sem nenhum motivo para mudar ou não mudar? Porque qualquer motivo é o resultado da reação de uma cultura particular, nasceu de um condicionamento particular. Assim, pode minha mente ser livre de uma dada cultura na qual eu fui criado? Esta é realmente uma questão muito importante. Porque se a mente não for livre da cultura na qual ela foi nutrida, certamente o indivíduo nunca poderá estar em paz, nunca poderá ter liberdade. Seus deuses e seus mitos, seus símbolos e todos os seus esforços são limitados, pois eles ainda estão dentro do campo da mente condicionada. Não importa que esforços ele faz, ou não faz, dentro daquele campo limitado, eles são realmente fúteis no sentido mais profundo desta palavra. Pode haver uma decoração melhor da prisão, mais luz, mais janelas, comida melhor, mas ainda é a prisão de uma cultura particular.

The book of Life - Daily Meditations with Krishamurti

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A verdade é um estado de ser

Assim, não há caminho para a verdade, e não existem duas verdades. A verdade não é do passado nem do presente, ela é atemporal; e o homem que cita a verdade do Buda, do Shankara, do Cristo, ou que meramente repete o que eu estou dizendo, não encontrará a verdade, porque repetição não é a verdade. A repetição é uma mentira. A verdade é um estado de ser que surge quando a mente - que procura dividir, ser exclusiva, que só pode pensar em termos de resultados, de realização - findou. Somente então existirá a verdade.

A mente que está se esforçando, disciplinando-se de modo a alcançar um fim, não pode conhecer a verdade, porque o fim é sua própria projeção, e a busca daquela projeção, não importa quão nobre, é uma forma de auto-adoração. Tal pessoa está adorando a si próprio, e, portanto, não pode conhecer a verdade. A verdade só pode ser conhecida quando nós entendemos todo o processo da mente, ou seja, quando não há luta.

A verdade não tem moradia

A verdade é um fato e um fato só pode ser entendido quando as várias coisas que foram colocadas entre a mente e o fato são removidas. O fato é sua relação com as propriedades, com sua esposa, com os seres humanos, com a natureza, com as idéias; enquanto você não entender o fato das relações, sua busca por Deus meramente aumenta a confusão, porque ela é uma substituição, uma fuga, e, portanto, não tem significado. Enquanto você dominar sua esposa ou ela o dominar, enquanto você possuir e for possuído, você não pode conhecer o amor; enquanto você estiver suprimindo, substituindo, enquanto você for ambicioso, você não pode conhecer a verdade. Só conhecerá a verdade aquele que não está buscando, que não está lutando, que não está tentando alcançar um resultado... A verdade não é contínua, ela não tem moradia, ela só pode ser vista de momento a momento. A verdade é sempre nova, portanto, atemporal. O que foi verdade ontem não é verdade hoje, o que é verdade hoje não é verdade amanhã. A verdade não tem continuidade. É a mente que quer tornar a experiência que ela chama verdade contínua, e tal mente não conhecerá a verdade. A verdade é sempre nova; ela é ver o mesmo sorriso, e ver aquele sorriso de maneira nova; ver a mesma pessoa, e ver aquela pessoa de maneira nova, ver as mesmas palmeiras oscilantes de maneira nova, relacionar-se com a vida de maneira nova.

Não há guia para a verdade

Será Deus encontrado através do buscá-lo? Pode você procurar o que não pode ser conhecido? Para encontrar, você precisa saber o que está procurando. Se você busca para encontrar, o que você encontrar será uma autoprojeção; será o que você deseja, e a criação do desejo não é a verdade. Buscar a verdade é negá-la. A verdade não tem moradia fixa, não há caminho, nenhum guia para ela, e a palavra não é a verdade. A verdade será encontrada numa estrutura particular, num clima especial, entre certas pessoas? Ela está aqui e não lá? É aquela pessoa o guia para a verdade e não uma outra? Existe absolutamente um guia? Quando a verdade é buscada, o que é encontrado só pode ser fruto da ignorância, pois a própria busca nasce da ignorância. Você só pode procurar a realidade; você deve cessar para a realidade existir.

A verdade é encontrada de momento a momento

A verdade não pode ser acumulada. O que é acumulado está sempre sendo destruído; ele perde o viço. A verdade não pode nunca perder o viço, porque ela só pode ser encontrada momento a momento em cada pensamento, em cada gesto, num sorriso, em lágrimas. E se você e eu pudermos encontrá-la e vivê-la - o próprio viver é encontrá-la - então nós não nos tornaremos propagandistas; nós seremos seres humanos criativos - não seres perfeitos, mas seres humanos criativos, o que é amplamente diferente.

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O verdadeiro revolucionário

A verdade não é para aqueles que são respeitáveis, nem para aqueles que desejam auto-expansão, autopreenchimento. A verdade não é para aqueles que estão buscando segurança, permanência, pois a permanência que eles buscam é meramente o oposto da impermanência.

Estando presos na rede do tempo, eles buscam aquilo que é permanente, mas a permanência que eles buscam não é a real, porque o que eles buscam é o produto de seu pensamento. Portanto, um homem que deseja descobrir a realidade deve parar de buscar - o que não significa que ele deve se contentar com o que é. Pelo contrário, um homem que está decidido a descobrir a verdade deve ser interiormente um verdadeiro revolucionário. Ele não pode pertencer a nenhuma classe, a nenhuma nação, a nenhum grupo ou ideologia, a nenhuma religião organizada; pois a verdade não está no templo nem na igreja, a verdade não é para ser encontrada nas coisas feitas pela mão ou pela mente. A verdade só surge quando as coisas da mente e da mão são colocadas de lado, e este colocar de lado as coisas da mente e da mão não é uma questão de tempo. A verdade vem para aquele que está livre do tempo, que não está usando o tempo como um meio de auto-expansão. Tempo significa a memória de ontem, a memória de sua família, de sua raça, de seu caráter particular, da acumulação de sua experiência que caracteriza o "eu" e o "meu".

Ver a verdade no falso

Você pode concordar superficialmente quando ouve dizer que o nacionalismo, com toda sua comoção e interesse revestido, conduz à exploração e à colocação do homem contra o homem; mas realmente libertar sua mente da mesquinhez do nacionalismo é outro assunto. Ser livre, não apenas do nacionalismo, mas também de todas as conclusões de religiões organizadas e sistemas políticos, é essencial se a mente quer ser jovem, nova, inocente, isto é, estar num estado de revolução; e somente uma tal mente pode criar um novo mundo - não os políticos, que estão mortos, não os sacerdotes, que estão presos em seus próprios sistemas religiosos.

Assim, feliz ou infelizmente para você, você ouviu algo que é verdadeiro; e se você meramente o ouviu e não está ativamente perturbado de modo que sua mente começa a se libertar de todas as coisas que a estão tornando estreita e torcida, então, a verdade que você ouviu se tornará um veneno. Certamente a verdade se torna um veneno se ela é ouvida e não atua na mente, como o infeccionar de uma ferida.

Mas, descobrir por si próprio o que é verdadeiro e o que é falso, e ver a verdade no falso, é deixar esta verdade operar e gerar sua própria ação.

O DESCOBRIMENTO DO AMOR

Mas, a beleza pura não pode ser partilhada, porque vós não podeis possuí-la, nem eu também. Ela não é nenhum objeto de uso pessoal; não é um artigo que vós ou eu possamos possuir e repartir com o outro. A beleza está simplesmente presente, como o poente, como a montanha, como o rolar do rio, como a quietude vespertina. Porque a beleza está presente, podeis olhá-la e deleitar-vos com ela; mas não podeis reparti-la com outra pessoa, que deve achar-se também num profundo estado de percebimento, ser igualmente sensível, inteligente. Porque a beleza não pode ser partilhada, porém existe para ser admirada, para a fruirmos. Existe para regalo, deleite, de cada um de nós.

Assim, quando empregarmos a palavra "compartilhar", ela geralmente que um possui e outro não possui, que eu tenho uma coisa e outro não a tem. Essa atitude, esse sentimento de divisão reflete a atitude hierárquica ante a vida: o comandante e o soldado raso; o Papa e o sacerdote comum; o Cardeal de vestes suntuosas e o simples monge, coberto de um pano preto; o homem que sabe e o homem que não sabe. É essa atitude que cria a autoridade, a ambição, a luta, que causa infinitos sofrimentos e atribulações.

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Escutai com toda atenção, porque vamos tratar de algo que não pode ser repartido e, por conseguinte, não admite co-participação. Deveis compreender verdadeiramente esse mal terrível - se posso usar tal palavra – da divisão hierárquica da vida, em virtude da qual um sabe e outro não sabe. A verdade de modo nenhum pode ser dividida em "superior" e "inferior"; por conseguinte, não admite autoridade, não admite nenhuma atitude hierárquica. A divisão hierárquica da vida é uma coisa venenosa, aterradora.

Assim, o que nesta manhã vamos fazer não é compartilhar, porém, sim, investigar - vós e eu; vamos penetrar juntos numa coisa que desconhecemos.

Peço-vos não fiqueis na expectativa do que eu vá ensinar-vos alguma coisa, ou repetir convosco alguma coisa que não tendes; não espereis de minha parte o esclarecimento ou a liberdade. Ninguém pode dar-vos liberdade, ninguém pode reparti-la convosco. Mas, quase todos estamos habituados a essa atitude, segundo a qual uns dão e outros recebem, atitude essa que cria uma divisão na vida e, por conseguinte, a autoridade com todos os males concomitantes.

Em verdade, não existe seguidor e guia, não há instrutor nem discípulo; e essa é uma coisa maravilhosa se nós mesmos a compreendemos. Nela há grande beleza, liberdade, o fim do sofrimento - porquanto significa que devemos trabalhar, investigar, penetrar, destruir tudo o que é falso e, desse modo, descobrir diretamente.

Do livro "O DESCOBRIMENTO DO AMOR", de Krishnamurti, Ed. Cultrix.

Cortando as raízes da Mediocridade

É sempre difícil manter-me simples e claro. O mundo adora o sucesso, quanto maior, melhor; quanto maior a audiência, maior o orador; os edifícios colossais, os carros, os aviões, e as pessoas. A simplicidade se perdeu. As pessoas de sucesso não são as que estão construindo um mundo novo. Ser um revolucionário real requer uma mudança completa de coração e mente, e tão poucos querem se libertar. A pessoa corta as raízes superficiais; mas para cortar as profundas raízes que alimentam a mediocridade, o sucesso, é preciso algo mais que palavras, métodos, compulsões. Parece que esses revolucionários são poucos, mas eles são os construtores reais - o resto trabalha em vão.

"Cartas a uma jovem amiga", pela editora Terra sem Caminho – página 21

Quando há escuta

Nós estamos conversando como dois amigos, sentados em um bosque, na quietude, pássaros cantando, a luz atravessando a folhagem e salpicando o chão, um senso de apreciação da beleza, e quando você escuta dessa maneira, o milagre acontece - quando você escuta.

É como lançar sementes, e se a semente é forte, cheia de vida, saudável, e se o terreno está preparado adequadamente, ela inevitavelmente cresce.

"Cartas a uma jovem amiga", pela editora Terra sem Caminho – página 77

A compreensão de nossas ânsias e desejos ocultos

Como é estranho o desejo de se exibir, de ser alguém! Invejar é odiar, e a vaidade corrompe. Como é difícil a simplicidade e a autenticidade! A autenticidade é, em si, uma tarefa das mais

árduas, ao passo que o desejo de se tornar alguém oferece pouca dificuldade.É muito mais fácil fingir ou representar (personalidade = mascara), mas é extremamente

complexo sermos aquilo que somos; e isso, porque estamos sempre mudando, nunca somos o mesmo (fluidez psicológica = movimento do desejo = pensamento), e a cada instante revela uma nova faceta, uma nova dimensão e profundidade. Não podemos ser todas estas coisas ao mesmo

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tempo, pois cada instante trás consigo algo novo. Portanto, se formos inteligentes, abriremos mão da pretensão de sermos alguém ou alguma coisa. Podemos estar certos que somos muito sensíveis e eis um acidente ou um pensamento fugaz nos mostra o contrário; ou, então, podemos considerar-nos talentosos, cultos, e agudo sento estético e dignos, mas, de repente, ao dobrarmos uma esquina, percebemos o quanto somos ambiciosos, invejosos, carentes, brutais e ansiosos. Somos tudo isso, de momento a momento, e, no entanto, desejamos a continuidade e a permanência daquilo que nos traga lucro e prazer. E enquanto buscamos o lucro e o prazer todas as demais formas do nosso ego não cessam de exigir preenchimento.

Tornamo-nos assim um campo de batalha onde a ambição, trazendo prazer e dor, sai vitoriosa, com sua inveja e medo. (...)

Portanto é extremamente difícil sermos o que somos; se estivermos despertos, sabemos o quanto isso e doloroso e verdadeiro. Ao percebermos este fato, entregamo-nos ao trabalho, a uma crença, a nossos fantásticos ideais e meditações. Aquelas alturas, já estão velhos e prontos para morrer, se é que ainda não morremos interiormente. Deixar tudo isso de lado, libertando-nos da contradição e do eterno sofrimento e renunciar a qualquer forma de preenchimento ou realização pessoal, é o que de mais natural e inteligente nos cumpre fazer. Mas, para que procedamos assim, para que deixemos de ser alguém, é preciso desvendar a nossa face oculta, expô-la sem medo, a fim de a compreendermos. A compreensão de nossas ânsias e desejos ocultos vem da plena consciência deles, o que é também indispensável perante a morte; desta forma, o puro ato de ver destrói aquela estrutura psicológica, libertando-nos do sofrimento e do desejo de ser alguém. Não ser alguém não significa um estado interior negativo; o próprio ato de negarmos aquilo que somos é uma atitude realmente positiva, e não uma reação, que em verdade é inação; é desta inação que se origina o sofrimento. Em tal negação reside a própria liberdade. Desta ação positiva nasce incrível energia; idéias e pensamentos dissipam energia. Idéia é tempo (é ego, é estrutura psicológica), e viver no tempo é viver na desintegração e no sofrimento.

Diário de Krishnamurti – Ed. Cultrix - Madrasta 27.11.61 pág. 165/166

O importante é a destruição

O importante é a destruição, não a mudança; esta é apenas uma continuidade modificada do que foi. Todas as reformas sociais são meras reações, uma continuidade modificada do que sempre existiu. Essa mudança não destrói as raízes do egocentrismo. A destruição no sentido em que empregamos a palavra, é sem motivo; é uma ação que não visa objetivos nem resultados. (página 10) ... A destruição é essencial. Não de edifícios e coisas, mas de todos os mecanismos de defesa psicológica adotada pelo homem, dos seus deuses, de suas crenças, da dependência de cunho religioso, das experiências, do conhecimento, etc. A criação só é possível quando tudo isso deixar de existir. Ela surge do estado de liberdade. Ninguém pode ajudar-nos a destruir essas defesas; isso só é possível através do autoconhecimento. Reformas sociais ou econômicas acarretam mudanças superficiais de maior ou menor alcance, mas sempre dentro do limitado campo do pensamento. Para que ocorra a revolução total, o cérebro tem de renunciar à sua intima e secreta estrutura de autoridade, de inveja, do medo, e assim por diante (que é a mesma estrutura psicológica da sociedade) (página 11).

Diário de Krishnamurti – Ed. Cultrix - Madrasta 27.11.61

Não se pode definir o sagrado

Uma pedra no templo, uma imagem na igreja, ou o símbolo, dada disso é sagrado. Eles são santificados pelo homem, como objetos de adoração, nascida de seus intrincados anseios, temores e

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aspirações. Tal idolatria, porém, ainda se encontra no campo do pensamento; provém dele, mas no pensamento nada existe de novo ou santificado. O pensamento pode reunir um emaranhadode sistemas, dogmas, crenças, imagens e símbolos, porém suas projeções são tão sagradas quanto os projetos para construção de uma casa, ou o desenho de um novo avião. Tudo isso se acha na área dopensar e nada existe de sagrado ou místico nesta atividade. O pensamento é matéria e pode ser transformado em qualquer coisa bela ou feia. Existe, porém, o sagrado que não vem do pensamento, nem de um sentimento por ele reavivado. Não é reconhecível pelo pensar, nem pode ser por ele utilizado ou concebido. A palavra ou o símbolo, não pode definir o sagrado. Ele é incomunicável. É um fato.Um fato para se ver, mas o ato de ver não se processa através da palavra. Quando se interpreta um fato, ele deixa de ser um fato; torna-se algo inteiramente diferente. O "ver" é da mais alta importância. Encontra-se fora do tempo-espaço, é imediato e instantâneo. E, o que se vê é sempre novo. Não existe repetição nem processo gradual do tempo. O sagrado prescinde do adorador, do observador que sobre ele medita.

Diário de Krishnamurti – Ed. Cultrix - Roma 28.06.61 pág. 15)

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AUTOCONHECIMENTO

Em meio a tanta confusão e sofrimento, é essencial encontrar um entendimento criativo de nós mesmos, pois sem ele nenhum relacionamento é possível. Somente através do pensar correto pode haver entendimento. Nem líderes, nem um novo conjunto de valores, nem um projeto pode produzir este entendimento criativo; somente através do nosso próprio esforço correto pode haver entendimentocorreto.

Como é possível então encontrar este entendimento essencial? De onde começaremos a descobrir o que é real, o que é verdadeiro, confusão e miséria? Não é importante descobrirmos por nós mesmos como pensar corretamente sobre a guerra e a paz, sobre a condição econômica e social. sobre nosso relacionamento com os nossos companheiros? Certamente existe uma diferença entre o pensar correto e o pensamento correto e condicionado. Podemos ser capazes de produzir em nós mesmos pensamento correto imitativamente, mas tal pensamento não é o pensar correto. O pensamento correto / condicionado é não-criativo. Mas quando soubermos como pensar corretamente por nós mesmos - que é ser vivo, dinâmico - então é possível produzir uma cultura nova e mais feliz.

Gostaria de, durante estas palestras, desenvolver o que me parece ser o processo do pensar correto, para que cada um de nós seja realmente criativo - e não meramente fechado em uma série de idéias e preconceitos. Como vamos então começar a descobrir por nós mesmos o que é o pensar correto? Sem o pensar correto não é possível a felicidade. Sem o pensar correto, nossas ações, nosso comportamento, nossos afetos, não têm base.

O pensar correto não é para ser descoberto através dos livros, através do assistir a umas poucas palestras, ou por escutar meramente algumas idéias de pessoas sobre o que é o pensar correto. O pensar correto é para ser descoberto por nós mesmos através de nós mesmos. O pensar correto vem com o autoconhecimento. Sem autoconhecimento não existe pensar correto. Sem conhecer-se a si mesmo, o que você pensa e o que sente não pode ser verdadeiro.

A raiz de todo entendimento encontra-se no entendimento de si mesmo. Se você pode descobrir quais são as causas de seu pensamento-sentimento, e a partir desta descoberta, saber como pensar-sentir, então existe o começo do entendimento. Sem conhecer-se a si mesmo, a acumulação de idéias, a aceitação de crenças e teorias não têm base. Sem conhecer-se a si mesmo, você sempre será pego na incerteza, dependendo do humor, das circunstâncias. Sem entender-se a si mesmo completamente, você não pode pensar corretamente. Com certeza isto é óbvio. Se eu não sei quais são os meus motivos, minhas intenções, meu "background" (fundo), meus pensamentos-sentimentos particulares, como é que posso concordar ou discordar de outra pessoa? Como posso avaliar ou estabelecer minha relação com outra pessoa? Como posso descobrir qualquer coisa da vida se não

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conheço a mim mesmo? E conhecer a mim mesmo é uma tarefa enorme, que requer observação constante, uma vigilância meditativa.

Esta é nossa primeira tarefa, mesmo antes do problema da guerra e da paz, dos conflitos econômicos e sociais, da morte e da imortalidade. Estas questões vão surgir, elas hão de surgir, mas na descoberta de nós mesmos, no entendimento de nós mesmos, estas questões serão respondidas corretamente. Assim, aqueles que são realmente sérios nestas questões devem começar por eles mesmos, a fim de entender o mundo do qual são uma parte. Sem entender-se a si mesmo você não pode entender o todo.

O autoconhecimento é o começo da sabedoria. É cultivado pela busca individual de si mesmo. Não estou colocando o indivíduo em oposição à massa (ao coletivo).

Eles não são antíteses. Você, o indivíduo, é a massa, é o resultado da massa. Se entrar dentro disto profundamente, você irá descobrir por si mesmo. que você é tanto o coletivo quanto o individual. É como um córrego que está constantemente fluindo, deixando pequenos redemoinhos, e a estes redemoinhos chamamos de individualidade, mas eles são o resultado desse constante fluxo de água. Seus pensamentos-sentimentos, aquelas atividades mentais-emocionais, não são o resultado do passado, do que chamamos a multiplicidade? Você não tem pensamentos-sentimentos similares aos do seu vizinho?

Assim, quando falo de indivíduo, não o estou colocando em oposição à massa, ao coletivo. Ao contrário, quero remover este antagonismo. Este antagonismo que coloca em oposição a massa e você, indivíduo, cria confusão e conflito, crueldade e miséria. Mas se pudermos entender como o indivíduo, você, é parte do todo, não apenas misticamente, mas realmente, então nos libertaremos de modo feliz e espontâneo, da maior parte do desejo de competir, de ter sucesso, de iludir, de oprimir, de ser cruel, ou de se tomar um seguidor ou um líder. Então veremos o problema da existência de modo diferente. E é importante entender isto profundamente. Enquanto nos virmos como indivíduos, separados do todo, competindo, obstruindo, em oposição, sacrificando o coletivo pelo particular, ou sacrificando o particular pelo coletivo, todos aqueles problemas que surgem deste conflitante antagonismo não terão solução feliz e duradoura, pois são o resultado do pensar-sentir incorreto.

Agora, quando falo sobre o indivíduo, não o estou colocando em oposição à massa.O que eu sou? Sou um resultado - sou o resultado do passado, de inúmeras camadas do

passado, de uma série de causas-efeitos. E como posso estar em oposição ao todo, ao passado, quando sou o resultado daquilo tudo? Se eu, que sou a massa (o coletivo), se não entender a mim mesmo, não apenas entender o que está fora da minha pele, objetivamente, mas subjetivamente, dentro da pele, como posso entender outra pessoa, o mundo? Entender a si mesmo requer desapego amável e tolerante. Se você não entender a si mesmo, não entenderá nada mais. Pode ter grandes ideais, crenças e fórmulas, mas elas não terão realidade. Serão enganos.

Assim, você deve conhecer-se a si mesmo para entender o presente - e através do presente, o passado. Do presente conhecido, as camadas escondidas do passado são descobertas, e esta descoberta é libertadora e criativa.

O autoconhecimento requer um estudo objetivo, amável, desapaixonado de nós próprios – nós próprios sendo o organismo como um todo, nosso corpo, nossos sentimentos, nossos pensamentos. Eles não estão separados, mas interligados. É somente quando entendemos o organismo como um todo que podemos ir além – e podemos descobrir coisas mais adiante, maiores, mais vastas. Mas sem este entendimento primário, sem colocar o alicerce correto para o pensar correto, não podemos prosseguir para alturas maiores.

Torna-se essencial produzir em cada um de nós a capacidade de descobrir o que é verdadeiro, pois o que é descoberto é libertador, criativo. Pois o que é descoberto é verdadeiro. Ou seja, se meramente nos conformarmos a um padrão do que deveríamos ser, ou cedermos a um anseio, produziremos certos resultados conflitantes, confusos. Mas no processo do nosso estudo de nós mesmos, estamos numa viagem de autodescoberta, o que traz alegria.

Existe uma certeza no pensar-sentir negativo em vez do pensar-sentir positivo.De uma maneira positiva supomos o que somos, ou cultivamos positivamente nossas idéias em

relação a outras pessoas, ou em relação a nossas próprias formulações.

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E, portanto, dependemos de autoridade, de circunstâncias, esperando com isto estabelecer uma série de idéias e ações positivas. Ao passo que se você examina, verá que existe concordância na negação; existe certeza no pensar negativo, que é a mais alta forma de pensar. Quando você descobrir a negação verdadeira e a concordância na negação, então poderá construir mais adiante no positivo.

A descoberta que reside no autoconhecimento é árdua, pois o começo e o fim estão em nós. Buscar felicidade, amor, esperança fora de nós, leva-nos à ilusão, ao sofrimento; encontrar felicidade, paz, alegria dentro (de nós) requer autoconhecimento. Somos escravos das pressões imediatas e exigências do mundo, e somos desviados por tudo isso e dissipamos nossas energias em tudo isso, e assim temos pouco tempo para estudar a nós mesmos. Estarmos profundamente cientes de nossos motivos, de nossos desejos de alcançar, de vir-a-ser, exige constante atenção interna. Sem o entendimento de nós mesmos, mecanismos superficiais de reforma social e econômica, mesmo que necessários e benéficos, não irão produzir unidade no mundo, mas somente maior confusão e miséria.

Muitos de nós pensamos que a reforma econômica de uma ou outra forma vai trazer paz ao mundo; ou que a reforma social, ou uma religião especializada conquistando todas as outras vai trazer felicidade ao homem. Acredito que haja algo como oitocentas ou mais seitas religiosas neste país, cada uma competindo, fazendo proselitismo. Vocês pensam que uma religião competitiva vai trazer paz, unidade e felicidade à humanidade? Pensam que qualquer religião especializada seja o Hinduísmo, o Budismo ou o Cristianismo, vai trazer paz? Ou devemos colocar de lado todas as religiões especializadas e descobrir a realidade por nós mesmos? Quando vemos o mundo explodido por bombas e sentimos os horrores que estão acontecendo nele; quando o mundo está fragmentado por religiões, nacionalidades, raças e ideologias separadas, qual é a resposta a tudo isso? Não podemos apenas continuar vivendo uma vida curta e morrendo - e esperar que algum bem, advenha disso. Nós não podemos deixar isso para os outros – trazer felicidade e paz à humanidade, pois a humanidade é nós mesmos, cada um de nós.

Aonde se encontra a solução, senão em nós mesmos? Descobrir a resposta real requer profundo pensamento-sentimento e poucos de nós estão dispostos a resolver essa miséria. Se cada um de nós considerar esse problema como jorrando de dentro - e não ser meramente conduzido nessa confusão e miséria pavorosa, então iremos encontrar uma resposta simples e direta.

No estudo e, assim, no entendimento de nós mesmos, virá claridade e ordem. E só pode haver claridade no autoconhecimento, que nutre o pensar correto. O pensar correto vem antes da ação correta. Se nos tornarmos conscientes de nós mesmos e assim cultivarmos o autoconhecimento de onde jorra o pensar correto, então criaremos um espelho em nós que refletirá, sem distorções, todos os nossos pensamentos-sentimentos. Estar assim autoconscientes é extremamente difícil, já que nossas mente estão acostumadas a divagar e a estar distraídas. Suas divagações, suas distorções são de seu próprio interesse, suas próprias criações. No entendimento disto - e não meramente colocando isto de lado - vem o autoconhecimento e o pensar correto. É apenas por inclusão e não por exclusão, não por aprovação ou condenação ou comparação, que vem o entendimento.

Palestra de Krishnamurti realizada em Ojai, Califórnia, EUA, 1944. Trad. de Rachel Fernandes

* * *

UMA DIMENSÃO DIFERENTE

Temos estado a falar sobre o caos no mundo, a extrema violência, a confusão, não só exterior mas também interiormente. A violência é resultado do medo, mas já tratamos da questão do medo. Penso que devíamos agora tratar de algo que poderá ser um pouco estranho para a maioria de vós, mas que terá de ser considerado, e não meramente rejeitado, afirmando-se que é uma ilusão, uma fantasia, ou outra coisa qualquer.

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Através da História, o homem -- vendo que a sua existência é muito curta, cheia de acidentes, dor, morte inevitável -- sempre formulou uma idéia a que chamou Deus. Percebeu, como nós agora, que a vida é transitória e quis experienciar algo que fosse imenso, supremo; algo não elaborado pela mente ou pela emoção.

Quis penetrar num mundo completamente diferente, que transcendesse este mundo, -- que estivesse para além de toda a infelicidade e aflição. E esperava encontrar esse mundo transcendente através da busca. Devemos investigar este assunto de haver, ou não, uma Realidade -- não importa o nome que se lhe possa dar -- que seja uma dimensão inteiramente diferente. Para penetrarmos na sua profundidade, temos naturalmente de perceber que não chega só uma simples compreensão ao nível verbal -- porque a descrição nunca é o descrito, a palavra nunca é a coisa. Poderemos nós entrar no mistério -- se é que é um mistério isso a que o homem tem tentado chegar, invocando-o, agarrando-se a isso, adorando-o, devotando-se a ele?

Sendo a vida aquilo que é -- muito superficial, vazia, tortuosa, sem grande sentido -- tenta-se inventar um significado, dar-lhe um sentido. Se se tem uma certa habilidade mental, o significado e o sentido dessa invenção tornam-se bastante complicados. E ao não encontrarmos a beleza, o amor, ou o sentido da imensidade, isso pode tornar-nos cépticos, descrentes de tudo. É claro que é absurdo e ilusório, sem significado, inventar uma ideologia, uma fórmula, afirmar que há Deus ou que não há, quando a vida não tem qualquer significado -- o que é verdade, vivendo nós como vivemos. Assim, não vamos nós agora inventar-lhe um sentido.

Era bom que pudéssemos fazer esta pesquisa juntos e descobrirmos, por nós próprios, se há, ou não, uma Realidade que não seja uma mera invenção intelectual ou emocional, uma fuga. O ser humano, através da História, tem afirmado que há uma Realidade para a qual temos que nos preparar, pela qual temos de fazer certas coisas (disciplinarmo-nos, resistir a qualquer forma de tentação, autocontrolar-nos, controlar o sexo, ajustarmo-nos a determinado padrão estabelecido pela autoridade religiosa, pelos santos, etc.); ou devemos rejeitar o mundo, afastando-nos para um mosteiro ou para alguma gruta onde possamos meditar, isolando-nos, para estarmos sozinhos e não termos, assim, tentações.

Vê-se, naturalmente, o absurdo de uma tal luta, e que não temos possibilidade de fugir do mundo, daquilo que é, do sofrimento, da loucura, e de tudo o que o homem tem descoberto no campo científico.

Obviamente que temos de pôr de lado todas as teologias e crenças. Se assim procedermos, então deixa de haver qualquer forma de medo.

Sabendo que a moralidade social não é moral mas imoral, percebemos que temos de ser extraordinariamente morais porque, afinal, moralidade é apenas criar ordem, tanto dentro como fora de cada um de nós; mas esta moralidade deve estar na ação, não sendo uma moralidade meramente baseada em idéias ou conceitos, mas termos uma conduta verdadeiramente moral.

Será possível disciplinarmo-nos sem repressão, sem controle, sem fugas? A raiz da palavra "disciplina" é "aprender", e não conformarmo-nos nem tornarmo-nos discípulos de alguém; não é imitar ou reprimir, mas aprender. O próprio ato de aprender exige disciplina – uma disciplina que não é imposta nem é acomodação a qualquer ideologia, nem é a dura austeridade do monge. Contudo, sem uma profunda austeridade, a nossa conduta na vida diária apenas leva à desordem.

Podemos ver como é essencial ter completa ordem dentro de nós, tal como a ordem matemática, que não é relativa, que não é comparativa, nem resulta da influência do meio.

Tem de se estabelecer uma conduta correta, para que a mente esteja em completa ordem. Uma mente torturada, frustrada, moldada pelo que a rodeia, que se conforma à moral social estabelecida é, em si própria, confusa; e uma mente confusa não pode descobrir o que é a Verdade. Para a mente descobrir esse estranho mistério -- se tal coisa existe - - ela precisa de construir as bases de uma conduta moral, o que não tem nada a ver com a moralidade social, uma conduta sem medos e, portanto, livre. Só então -- depois de lançada esta base profunda -- a mente poderá prosseguir no sentido de descobrir o que é meditação, essa qualidade de silêncio, de observação, no qual o "observador" não existe. Se esta base de conduta correta não está presente na existência de cada um, na sua ação, então a meditação tem muito pouco significado.

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No Oriente há muitas escolas, muitos sistemas e métodos de meditação - - incluindo o Zen e o Yoga -- e que foram trazidos para o Ocidente.

Temos de compreender muito claramente esta idéia de que através de um método, de um sistema, ou do ajustamento a certo padrão ou tradição, a mente é capaz de descobrir essa Realidade. Podemos ver como isso é absurdo, seja importado do Oriente ou inventado aqui no Ocidente.

Método implica conformismo, repetição; sugere que alguém alcançou uma certa "iluminação", que manda: "Faz isto, não faças aquilo". E nós, que estamos ansiosos por atingir essa Realidade, seguimos, conformamo-nos, obedecemos, praticamos aquilo que nos disseram, dia após dia, como se fôssemos máquinas. Uma mente embotada e insensível, que não é muito inteligente, é capaz de praticar um método tempo sem fim; vai-se tornando cada vez mais insensível, estupidificada. Terá a sua própria "experiência" dentro dos limites do seu próprio condicionamento.

Alguns de vós talvez tenham estado no Oriente e ali estudado meditação. Existe toda uma tradição por detrás disso. Na Índia, e por todo a Ásia, essa tradição "explodiu" nos tempos mais antigos. Ainda hoje, ela prende a atenção. Livros sem fim têm sido escritos sobre ela. Mas qualquer forma de tradição -- trazida do passado --, que é utilizada para se saber se existe uma Grande Realidade, é obviamente um esforço perdido. A mente tem de estar liberta de toda a espécie de tradição e preceitos espirituais; caso contrário, ficamos completamente privados de verdadeira inteligência.

Então, o que é meditação, se ela não é uma meditação tradicional? -- e ela não pode ser tradicional, ninguém no-la pode ensinar; não podemos seguir um determinado caminho e dizer: "Ao longo deste caminho, ficarei a saber o que é meditação". Todo o sentido da meditação reside na mente que se torna completamente quieta; quieta, não apenas no nível consciente, mas também nos níveis mais profundos, secretos e escondidos da consciência; tão completamente quieta que o pensamento fica silencioso e não anda a vaguear por todo o lado. Um dos ensinamentos da tradição relativa à meditação, a abordagem tradicional de que estamos a falar, diz que o pensamento deve ser controlado; mas isso tem que ser totalmente posto de lado, observando tudo isso de muito perto, objetivamente e de modo não emocional. A tradição diz que temos de ter um guru, um instrutor, para nos ajudar a meditar, que nos diga o que temos de fazer. O Ocidente tem a sua própria forma de tradição, -- prece, contemplação e confissão. Mas em todo o princípio de que alguém sabe e nós não sabemos, e que esse que sabe nos vai ensinar, nos vai dar a iluminação, nisso está implícita a autoridade, o mestre, o guru, o salvador, o Filho de Deus, etc. Eles sabem, e nós não; dizem: "Segue este método, este sistema, pratica-o todos os dias, e eventualmente chegarás "lá" -- se tivermos sorte. Isto quer dizer, que estamos em luta conosco próprios durante todo o dia, tentando conformarmo-nos a um padrão, a um sistema, tentando reprimir os nossos desejos, apetites, invejas, ciúmes, ambições. E assim surge o conflito entre aquilo que somos e o que "deveríamos ser" de acordo com o sistema; isto significa que há esforço; e a mente que está fazendo esforços nunca poderá estar quieta; através do esforço a mente nunca pode tornar-se completamente tranqüila.

A tradição também diz que devemos concentrar-nos, para controlarmos o pensamento. Concentrar-se é meramente resistir, é construir um muro à volta de si mesmo, para proteger uma focagem sobre uma idéia, um princípio, uma imagem, ou o que quer que seja, excluindo tudo o mais.

A tradição afirma que temos de passar por isso, para encontrarmos aquilo que desejamos. Ela também diz que não se deve ter relações sexuais, que não devemos olhar para este mundo, tal como todos os santos, mais ou menos neuróticos, sempre aconselharam. E quando compreendemos (não meramente ao nível verbal e intelectual, mas de fato) o que está envolvido em tudo isso -- e só podemos compreendê-lo se não estivermos apegados a isso, e pudermos olhá-lo objetivamente -- então, abandonamo-lo completamente. E precisamos de fazê-lo porque, então, a mente, no próprio ato de abandonar, se torna livre e, portanto, inteligente, atenta, não susceptível de se deixar prender em ilusões.

Para meditar, no sentido mais profundo da palavra, temos de ser íntegros, morais. Não se trata da moralidade de um padrão, de uma prática, ou da ordem social, mas sim da moralidade que brota naturalmente, inevitavelmente, suavemente, quando começamos a compreender-nos a nós próprios, quando estamos atentos aos nossos pensamentos e sentimentos, às nossas atividades, desejos, ambições, etc. -- atentos sem qualquer escolha, observando apenas.

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Dessa observação nasce a ação reta, que não tem nada a ver com conformismo ou com uma ação de acordo com um ideal. Então, quando isso existe profundamente em nós, com a sua beleza e austeridade na qual não há nenhuma rigidez -- rigidez só existe quando há esforço -- quando tivermos observado todos os sistemas, todos os métodos, todas as promessas e olhado para eles objetivamente, sem gostar ou não- gostar, então podemos recusar tudo isso completamente, para que a mente fique liberta do passado; então podemos prosseguir na descoberta do que é meditação.

Se não tivermos construído, de fato, os alicerces, podemos entreter-nos com a meditação, mas isso não tem qualquer significado -- é como aquelas pessoas que vão para o Oriente à procura de um instrutor que lhes diga como devem sentar-se, como respirar, o que fazer, etc., e que regressam e escrevem um livro, o que é tudo uma pura insensatez.

Cada um tem de ser mestre e discípulo de si próprio -- não há nenhuma autoridade, há apenas compreensão. A compreensão só é possível quando há observação sem um centro, o observador. Já alguma vez observastes, olhastes bem, procurando descobrir o que é compreender? Compreender não é um processo intelectual, não é uma intuição ou um sentir. Só se pode dizer "compreendo muito claramente" quando há uma observação nascida de um silêncio total -- só então há verdadeira compreensão. Quando afirmamos: "Compreendo isto ou aquilo", queremos dizer que a mente escuta, em silêncio, sem concordar ou discordar; nesse estado escuta-se de uma forma completa -- e só então há compreensão, e essa compreensão é ação interior. Não há compreender primeiro e só depois ação; é algo simultâneo, é um só movimento. Assim, meditação – esta palavra está pesadamente carregada de tradição -- é levar, sem esforço, sem qualquer forma de compulsão, a mente, incluindo o cérebro, à sua mais alta capacidade, que é inteligência, que é ser extremamente sensível. O cérebro fica silencioso; esse repositório do passado, que evoluiu durante milhares de anos e que está incessantemente ativo -- esse cérebro fica tranqüilo. Será mesmo possível para o cérebro, que está continuamente em reação, respondendo ao mais pequeno estímulo, de acordo com o seu condicionamento, ficar tranqüilo? Os tradicionalistas dizem que ele pode ser aquietado, através de uma respiração adequada e praticando "vigilância". Mas, de novo, isto levanta a questão: "Quem é a entidade que controla, que pratica, que molda o cérebro?" Não será o pensamento, que diz, "Eu sou o observador e vou controlar o cérebro, parar o pensamento"? O pensamento cria o pensador.

Será possível o cérebro estar completamente quieto? Faz parte da meditação descobrir isso, em vez de sermos ensinados; ninguém nos pode dizer como fazê-lo. O nosso cérebro -- que está tão pesadamente condicionado pela cultura, por toda a espécie de experiências, que é resultado de uma longa evolução -- poderá ele estar tranqüilo? -- porque sem isso, seja o que for que ele veja ou experiencie será distorcido, será traduzido de acordo com o seu condicionamento.

Que parte tem o sono na meditação, na vida? É uma questão muito interessante; se investigarmos nós próprios, faremos grandes descobertas. Como dissemos no outro dia, os sonhos são desnecessários. A mente, o cérebro, precisam de estar completamente despertos durante o dia -- atentos ao que se está a passar tanto dentro como fora de nós, sensíveis às reações interiores, ao que se passa no exterior, com as suas tensões que provocam reações, atentos aos sinais do inconsciente -- e, no fim do dia, o cérebro precisa de considerar tudo isso. Se assim fizermos quando estivermos a dormir, estaremos a aprender numa dimensão totalmente diferente; e isso faz parte da meditação.Se assim não procedermos no fim do dia, o cérebro terá de trabalhar durante a noite, quando estivermos a dormir, para trazer ordem a si próprio -- o que é óbvio.

Há a construção das bases da conduta, cuja ação é amor. Há o abandonar de todas as tradições, para que a mente fique inteiramente livre e o cérebro completamente quieto. Se fizermos isso, veremos que o cérebro é capaz de aquietar-se, não através de qualquer truque ou droga, mas sim por meio dessa ativa e também passiva atenção que tivermos durante o dia. E se, no fim do dia, examinarmos cuidadosamente o que aconteceu e assim criarmos ordem, então, durante o sono, o cérebro está em silêncio, aprendendo, com um movimento diferente.

Assim, todo o corpo, o cérebro, a mente estão calmos, sem qualquer forma de distorção. E se há, de fato, uma Realidade, só então a mente é capaz de a receber. Essa Imensidade, esse Inominável, esse Transcendente -- se é que existe -- não pode ser convidado. E só uma mente assim poderá ver a falsidade ou a verdade dessa Realidade.

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Podemos perguntar: "Que tem tudo isto a ver com a nossa vida? Tenho de viver todos os dias, ir para o escritório, lavar pratos, viajar num autocarro barulhento e a abarrotar de pessoas -- o que tem a meditação a ver com tudo isto?" Mas, meditação e´, afinal, compreender a vida, a vida de todos os dias, com toda a sua complexidade, aflição, sofrimento, solidão, desespero, medo, inveja, vontade de se ser famoso, de ter sucesso -- compreender tudo isto é meditação.

Sem essa compreensão, a mera tentativa de um encontro com o mistério é totalmente infrutífero, sem valor. É como uma vida e uma mente em desordem, a tentar chegar à ordem matemática. A meditação tem tudo a ver com a vida; não é um mergulho num qualquer estado emocional e "extático". Há um êxtase que não é prazer e que acontece apenas quando em nós próprios há essa ordem matemática, que é total. A meditação é uma maneira de viver, todos os dias -- só então aquilo que é imperecível, que não tem tempo, poderá surgir.

Interlocutor: Quem é esse observador que está consciente das suas próprias reações? Que energia é usada?

Krishnamurti: Será que já olhamos para alguma coisa sem reação? Será que já olhamos uma árvore, um rosto de mulher, uma montanha, uma nuvem, ou a luz sobre a água, só observando, sem traduzir isso em "gosto" ou "não gosto", em prazer ou dor -- observando apenas? Numa tal observação, quando se está mesmo atento, há algum observador? Fazei isso, não me pergunteis -- se o fizerdes, descobrireis. Observai as reações, sem as julgar, sem as avaliar ou distorcer, estando completamente atentos a todas as reações. Nessa atenção, vereis que não há nenhum observador, nem pensador, nem experienciador.

Agora a segunda questão: para mudarmos alguma coisa em nós, para provocarmos uma transformação, uma revolução na psique, que energia é precisa? Como se tem essa energia?

Habitualmente, temos energia mas em tensão, em contradição, em conflito; há energia no confronto entre dois desejos, entre o que tenho de fazer e o que "deveria" fazer -- tudo isto consome muita energia. Mas se não houver contradição de qualquer espécie, então teremos energia em abundância.

Olhemos a nossa própria vida, olhemos, de fato, para ela: ela é contraditória; queremos ser pacíficos, mas odiamos alguém; queremos amar, mas somos ambiciosos. Esta contradição cria conflito, luta; esta luta é um desperdício de energia. Se não há qualquer contradição, temos imensa energia para nos transformarmos.

Perguntamos: "Será possível não haver contradição entre "observador" e "observado", entre o "experienciador" e a "experiência", entre amor e ódio? Será possível viver sem estas dualidades?" É possível quando há apenas o fato, e nada mais -- o fato de que se odeia, de que se é violento, e não o seu oposto, como idéia. Quando temos medo, desenvolvemos o oposto, a coragem, que é resistência, contradição, esforço e tensão. Mas quando percebemos completamente o que é o medo e não fugimos para o oposto, quando damos a nossa completa atenção ao medo, então não há apenas a sua cessação, psicologicamente, mas também temos a energia que é precisa para o enfrentar.

Os tradicionalistas dizem: "Devemos ter esta energia, portanto, não tenhamos atividade sexual, não sejamos mundanos, concentremo-nos, pensemos em Deus, fujamos do mundo, não nos deixemos tentar" – tudo para se ter esta energia. Mas cada um de nós continua a ser uma criatura humana, com apetites, ardendo com desejos sexuais, tendo necessidades biológicas, querendo passar por isso, controlando, forçando, e tudo o mais -- portanto, dissipando energia. Mas se convivermos com o fato e nada mais; se somos coléricos, compreendamos isso e não pensemos em "como não sermos coléricos", investiguemos o fato, estejamos com ele, convivamos com ele, dando-lhe total atenção -- veremos, então, que temos energia em grande quantidade. É esta energia que mantém a mente lúcida e o coração aberto, havendo, assim, abundância de amor -- em vez de idéias ou de sentimentalismo.

I.: O que quer dizer com êxtase, pode descrevê-lo? Disse que êxtase não é prazer; amor não é prazer?

K.: Que é êxtase? Quando olhamos uma nuvem, a luz que a ilumina, há beleza. Beleza é paixão. Para se reparar na beleza de uma nuvem ou na beleza da luz numa árvore, tem de haver paixão, intensidade. Nesta intensidade, nesta paixão, não há qualquer sentimento de gostar ou não gostar. O êxtase não é pessoal; não é teu nem meu, assim como o amor. Quando há prazer, ou é teu

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ou é meu. A mente meditativa tem o seu próprio êxtase -- que não pode ser descrito, nem ser posto em palavras.

I.: Está a dizer que não há bom nem mau, que todas as reações são boas -- é isso?K.: Eu não disse isso. Disse: "Observemos as nossas reações, não lhes chamemos boas ou

más". Quando dizemos que são boas ou más, estamos a criar contradição. Cada um de vós já alguma vez olhou realmente a sua mulher -- desculpai a minha insistência -- sem a imagem que dela tem, a imagem que foi construindo durante trinta ou mais anos? Cada um tem uma imagem um do outro; são estas imagens que estão em relação, e não as pessoas. Estas imagens formam-se quando não se está atento ao relacionamento -- é a desatenção que cria imagens. Poderá cada um de vós olhar a sua mulher sem condenar, sem julgar, sem dizer que ela está certa ou errada, somente observar, sem a intromissão de preconceitos? Então, vereis que há uma ação de natureza completamente diferente, que nasce dessa observação.

Krishnamurti - Paris, Abril 24, 1969

* * *

A COMPREENSÃO DOS PROBLEMAS

Estamos interessados nos problemas humanos e não em filosofias e crenças. Preocupa-nos o sofrimento do homem, sofrimento que atinge a maior parte de nós, a ansiedade, o medo, a esperança e o desespero e a enorme desordem que existe por todo o mundo. Tudo isto nos diz respeito como seres humanos porque, como tal, somos responsáveis por este caos colossal do mundo, somos responsáveis pela desordem, pelos tumultos, pela guerra. Como seres humanos a viver neste mundo em diferentes países e sociedades, somos realmente responsáveis por tudo o que se está a passar. Penso que não compreendemos como esta responsabilidade é séria. Alguns de nós podem senti-la e então querem fazer alguma coisa, juntar-se a um grupo particular ou a uma seita ou crença determinada e dedicar as suas vidas a essa ideologia, a essa ação particular. Mas isso não resolve o problema, nem anula a nossa responsabilidade.

Temos portanto de preocupar-nos primeiro com a compreensão de qual é o problema e não com o que fazer; isso vem depois. Geralmente queremos fazer alguma coisa, vincular-nos a uma determinada corrente de ação, e infelizmente isso conduz a um caos maior, a maior confusão e maior desumanidade. Penso que temos de olhar para o problema como um todo e não para um dos seus aspectos particulares, não para um dos deus fragmentos, para todo o problema do viver, o que implica o emprego, a família, o amor, o sexo, o conflito, a ambição, a compreensão do que é a morte; e também se existe algo chamado Deus, Verdade, ou qualquer outro nome que se lhe dê. Temos de compreender a totalidade desta questão. Vai ser essa a nossa dificuldade porque estamos muito acostumados a agir e a reagir perante um problema determinado e não a compreender que todos os problemas humanos estão interligados. Assim, provocar uma completa revolução psicológica parece muito mais importante do que uma revolução de caráter econômico ou social - derrubar um determinado sistema, quer neste país, quer na França ou na Índia - porque os problemas são muito mais vastos, muito mais profundos do que meramente tornar-se um ativista, ligar-se a um grupo particular, ou recolher-se a um mosteiro para meditar, para aprender Zen ou Yoga.

Antes de fazerem perguntas, vamos primeiro olhar o problema. Não se trata de um assunto que se vem ouvir durante uma hora e depois se esquece. Vamos ocupar-nos de problemas humanos. Vós e eu teremos de trabalhar intensamente esta tarde. Não estais aqui meramente para colher algumas idéias com que podeis estar ou não de acordo, nem para tentardes saber o que o orador tem para dizer. Vereis que ele tem muito pouco para dizer, porque o que vamos fazer todos é examinar os problemas, sem chegar a juízos definitivos, mas compreendendo esses problemas; e esse mesmo compreender produzirá a sua ação própria.

Assim, se me permitem sugeri-lo, ouçam atentamente, sem concordar nem discordar, sem tirar nenhuma conclusão. Ouçam sem pré-juízos, sem idéias preconcebidas, porque durante séculos temos jogado dessa maneira, com palavras, com idéias, com ideologias, e tudo isso não levou a lado

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nenhum - ainda sofremos, ainda estamos em plena confusão, ainda andamos à procura de uma felicidade que não seja prazer. Como dissemos, vamos considerar o problema do viver na sua totalidade e não apenas uma parte dele. Portanto, vejamos em que consistem os nossos problemas, em vez de como resolvê-los, ou o que fazer a seu respeito, porque no momento em que compreendemos o problema, essa mesma compreensão traz consigo a sua ação própria; penso que é muito importante tomar consciência disto.

Geralmente olhamos para os problemas com uma conclusão, com uma suposição; não estamos livres para ver, para observar o que realmente é. Quando estamos livres para olhar, para investigar em que consiste o problema, então, desse observar, desse explorar, vem a compreensão. E essa mesma compreensão é ação, e não uma conclusão levando à ação. Vamos examinar isso e talvez nos compreendamos uns aos outros à medida que formos avançando. Como sabemos, onde quer que se vá por esse mundo, os seres humanos são mais ou menos semelhantes. Os costumes, os comportamentos e padrões exteriores de ação podem ser diferentes, mas psicologicamente, interiormente, os seus problemas são os mesmos. Por todo o mundo o homem está confuso, esta é a primeira coisa que se observa. Incerto, inseguro, anda às apalpadelas, a perguntar, a procurar, em busca de uma saída deste caos. Assim, dirige-se aos yoguis, aos filósofos, aos mestres, aos gurus; em toda a parte procura uma resposta e é provavelmente por isso que a maior parte de vós está aqui, porque queremos encontrar uma saída para esta armadilha em que nos vemos prisioneiros, sem perceber que, como seres humanos, somos nós que a fazemos - é obra nossa e de mais ninguém. A sociedade em que vivemos é o resultado do nosso estado psicológico. A sociedade é nós próprios - este mundo não é diferente de nós. Assim como somos assim fazemos o mundo, porque estamos confusos, porque somos ambiciosos, ávidos, à procura de poder, de posição, de prestígio. Somos agressivos, desumanos, competitivos, e damos origem a uma sociedade igualmente desumana, competitiva e violenta. Parece-me pois que a nossa responsabilidade é primeiro compreender-nos a nós próprios, porque nós somos o mundo. Não se trata de um ponto de vista egocêntrico, limitado, como se há-de ver, quando começarmos a examinar estas questões. Quando observamos o mundo atual à nossa volta e em nós mesmos, que problema é que vemos? Será um problema econômico, racial, brancos e negros uns contra os outros, tal como os comunistas e os capitalistas, uma religião em oposição a outra religião - é esse o problema? Ou ele é muito mais vasto, muito mais profundo, um problema psicológico? Com certeza não se trata meramente de uma questão exterior, mas mais de um problema interior. Como dissemos, o homem é por natureza agressivo, violento, competitivo, dominador; podeis ver isso em vós mesmos, se vos observardes. E, se me é permitido sugeri-lo, o que vamos considerar juntos não será uma série de idéias que uma pessoa se dispõe a ouvir. O que o orador tem para dizer é um fato psicológico que podeis observar em vós próprios. Assim, se quiserdes, utilizai o orador para vos observardes a vós mesmos. Utilizai-o como um espelho em que vos vedes sem distorção nenhuma, aprendendo desse modo o que realmente sois. É muito importante aprender acerca de nós próprios, não segundo algum especialista, mas aprender por uma verdadeira observação de nós mesmos. E descobriremos, assim, que somos o mundo: os ódios, o nacionalismo, o sectarismo religioso, o homem que crê em certas coisas e descrê de outras, o homem que tem medo, e assim por diante. Pela observação do problema aprenderemos acerca de nós próprios. Que problema então é esse com que se confronta cada um de nós? Será um problema separado, particular, um problema econômico ou racial, o problema de alguma neurose ou de algum medo específico, o de crer ou não crer em Deus ou o de pertencer a uma determinada seita - religiosa, política ou qualquer outra? Será que olhamos o problema da vida como um todo, ou selecionamos uma determinada questão e a ela dedicamos toda a nossa existência, toda a nossa energia e pensamento? Consideraremos nós a vida como um todo? A vida inclui os nossos condicionamentos, produzidos pelas pressões econômicas, pelas crenças e dogmas religiosos, pelas divisões nacionais, pelos preconceitos de raça, etc. A vida é esta ansiedade, este medo, esta incerteza, estatortura, este esforço penoso. A vida inclui também o amor, o prazer, o sexo, a morte, e a pergunta que sem cessar o homem tem feito: Haverá uma outra Realidade, alguma coisa "para além dos montes", algo que seja possível encontrar através da meditação? Desde sempre o homem tem feito esta pergunta e não podemos meramente pô-la de lado, considerando-a sem validade, só porque apenas estamos interessados em viver o dia-a-dia; queremos saber se há algo eterno, uma Realidade

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intemporal. Tudo isto constitui o problema. Não existe um problema particular. Quando se observa, vê-se que todos os problemas estão relacionados entre si. Se se compreende completamente um problema, compreendem-se então todos os problemas. Como seres humanos a olhar para este mapa da vida, vemos que um dos maiores problemas é o medo.

Não um medo particular, mas o medo: medo de viver, medo de morrer, medo de não ser capaz de conseguir, medo de fracassar, medo de ser dominado, reprimido, medo da insegurança, da morte, da solidão, medo de não ser amado. Onde há medo, há agressão. Quando a pessoa tem medo torna-se ativa, não apenas para fugir do medo, mas porque o medo produz uma atividade agressiva. Podeis observar isso em vós mesmos, se estiverdes interessados. O medo é um dos maiores problemas da vida. Como poderemos resolvê-lo? Poderá o homem ficar para sempre livre do medo, não só a nível consciente, mas também nos níveis ocultos, secretos, da mente? Poderá esse medo ser resolvido pela análise? Poderemos fazê-lo desaparecer fugindo-lhe? A questão é, portanto: Como é que uma mente que tem medo de viver, que tem medo do passado, do presente, do futuro, como é que uma mente assim há de ficar completamente livre do medo? Libertar-se-á dele gradualmente, pouco a pouco - levará tempo? Se levar tempo - muitos dias, muitos anos - ficar-se-á velho e o medo lá estará ainda... Assim, como poderá a mente libertar-se do medo, não só do medo físico, mas também da estrutura do medo na psique, dos medos psicológicos? Compreendem a minha pergunta? Poderemos dissolver completamente o medo, libertar-nos instantaneamente, ou terá o medo de ser compreendido gradualmente e resolvido pouco a pouco? Esta é a primeira questão. Poderá a mente, que está condicionada para pensar que pode resolver o medo pouco a pouco, com o tempo, através da análise, através da observação introspectiva, ficar livre do medo gradualmente? Esse é o ponto de vista tradicional. É como aquelas pessoas que, sendo violentas, têm a ideologia da não-violência. Dizem: "Chegaremos gradualmente a esse estado de não-violência, quando a mente não for violenta." Mas isso levará tempo, talvez dez anos, talvez a vida inteira, e entretanto é-se violento, está-se a semear os germes da violência. Tem de haver pois uma maneira - por favor, ouçam isto com muita atenção - tem de haver uma maneira de acabar de todo com a violência, imediatamente; sem ser por meio do tempo, sem ser por meio da análise, de outro modo estaremos condenados, como seres humanos, a ser violentos para o resto da vida. Da mesma maneira, poderemos pôr termo ao medo de maneira completa? Poderá a mente ficar totalmente liberta do medo? Não no fim da vida, mas agora? Não sei se já alguma vez fizeram a si próprios esta pergunta. E se a fizeram, talvez tenham dito "não é possível" ou "não sei como fazê-lo". E, assim, vive-se com o medo, com a violência e cultiva-se a coragem, ou então o recalcamento, a resistência, a fuga; ou adere-se a uma ideologia de não-violência.

Mas todas as ideologias são insensatas, porque quando se vai atrás de uma ideologia, de um ideal, está-se a fugir do que é, e quando se está a fugir, não se pode compreender o que é. Assim, a primeiracoisa para compreender o medo é não fugir, e isso é dificílimo. Não tentar evadir-se por meio da análise, que leva tempo, por meio do álcool, do ir à igreja ou de outras espécies de atividades. É o mesmo, quer a fuga seja por meio de uma droga, da bebida, do sexo ou de "Deus". Será então possível deixarmos de fugir? É este o primeiro problema na compreensão do que é o medo,e na sua dissolução, para que se fique inteiramente livre dele. Como sabem, liberdade é algo que a maior parte de nós não quer. Desejamos libertar-nos de determinada coisa, das necessidades ou das pressões imediatas, mas ser livre é completamente diferente. Liberdade não é licenciosidade, não é fazer o que nos apetece - a liberdade exige uma disciplina tremenda, que não é a disciplina do soldado, ou a disciplina da repressão e do conformismo. A palavra "disciplina", na sua raiz, significa aprender. E para aprender acerca de alguma coisa - não importa o quê – é preciso disciplina, a própria aprendizagem é disciplina; não se trata de nos disciplinarmos primeiro e depois aprendermos. O próprio ato de aprender é disciplina, o que liberta de toda a repressão, de toda a imitação. Portanto, seremos nós capazes de ficar livres do medo, do qual nasce a violência, do qual brotam todas estas divisões religiosas e nacionalistas, de "o meu clã" e "o teu clã"? Quem conhece o medo sabe como ele é terrível. Cobre tudo de escuridão, roubando completamente a lucidez, de tal modo que a mente com medo não é capaz de compreender o que é a vida nem quais são os problemas reais. Assim, parece-me que a primeira coisa a fazer é perguntar a nós mesmos se alguém

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pode ficar realmente livre do medo, tanto físico como psicológico. Quando estais perante um perigo físico, reagis e isso é inteligência; não é medo, de outro modo destruir-vos-eis. Mas quando há medos psicológicos - medo do amanhã, medo do que se fez, medo do presente - a inteligência não funciona. Se examinarmos isto psicologicamente, interiormente, veremos por nós mesmos que toda a nossa estrutura social está baseada no princípio do prazer, porque a maior parte de nós procura prazer, e onde existe essa procura existe também medo. O medo acompanha o prazer. Isto é bem evidente, se o examinarmos. Como poderá a mente estar tão completamente livre do medo que seja capaz de ver tudo com grande lucidez? Vamos investigar se a mente é capaz de se libertar dele, de maneira total. Percebem a questão? Aceitamos o medo e vivemos com ele, tal como aceitamos a violência e a guerra, como fazendo parte da vida. Temos tido milhares e milhares de guerras e estamos constantemente a falar de paz; mas o modo como vivemos a nossa vida diária é guerra, conflito, um campo de batalha. E aceitamos isso como inevitável. Nunca perguntamos a nós mesmos se podemos viver uma vida de completa paz, sem qualquer espécie de conflito. Há conflito porque há contradição em nós. Isto é bem simples. Há em nós diferentes desejos contraditórios, exigências opostas, e isso traz conflito. Aceitamos todas estas coisas como inevitáveis, como parte da nossa existência; nunca as pomos em causa.

Temos de estar livres de toda a crença, o que quer dizer de todo o medo, para sabermos se existe uma Realidade, um estado intemporal.

Para o descobrir é preciso estar liberto - liberto do medo, da avidez, da ambição, da inveja, da competição, da desumanidade; só então a mente estará lúcida, sem obstáculos, sem conflito nenhum. Só uma mente assim é serena e apenas a mente serena pode descobrir se existe o eterno, o inominável. Mas não se pode chegar a essa serenidade por meio de qualquer prática ou de qualquer "disciplina".

Essa serenidade só acontece quando se está livre - livre de toda esta ansiedade, medo, ciúme, violência, desumanidade. Portanto, poderá a mente ser livre - não eventualmente, não daqui a dez ou cinqüenta anos, mas imediatamente? Se fizerdes esta pergunta a vós próprios, pergunto-me qual será a vossa resposta. Direis que isso é possível ou não? Se dizeis que é impossível, estais então a bloquear-vos e não podereis ir mais além; e se dizeis que é possível, isso também tem o seu risco. Só se pode examinar o possível, se se sabe o que é o impossível - não é verdade? Estamos a pôr a nós mesmos uma questão tremenda: Poderá a mente condicionada através de séculos, politicamente, economicamente, pelo clima, pelas igrejas, por várias influências, poderá uma mente assim mudar imediatamente? Ou precisará de tempo - intermináveis dias de análise, de sondagem, de explicação, de pesquisa? Um dos nossos condicionamentos é que aceitamos o tempo, um intervalo em que uma revolução, uma mutação, possa ter lugar. Precisamos de mudar completamente: isso é a maior das revoluções - não é atirar bombas para nos matarmos uns aos outros. A maior de todas as revoluções é a mente ser capaz de se transformar a si mesma de modo imediato e de ser inteiramente diferente amanhã. Talvez se diga que isso não é possível. Se encararmos realmente a questão sem qualquer fuga e tivermos chegado àquele ponto em que dizemos que é impossível, então descobriremos o que é possível; mas não podemos pôr essa questão, "o que é possível?", sem compreendermos o que é impossível. Estamos a comunicar? Perguntamos portanto se a mente que tem medo, que está condicionada para ser violenta, para ser agressiva, poderá transformar-se imediatamente. E só podemos fazer essa pergunta - atentem nisto um pouco, por favor – quando compreendemos a impossibilidade e a inutilidade da análise (psicológica). Essa análise implica aquele que analisa, quer ele seja um analista profissional, quer seja o próprio a analisar-se. Quando uma pessoa se analise a si mesma, há várias coisas a considerar.

Primeiro, há que saber se o analisador é diferente da coisa que analisa. Será diferente? Torna-se evidente, quando observamos, que o analisador é o analisado. Não há diferença entre o analisador e aquilo que vai analisar. Não reparamos nisso, e portanto começamos a análise. Digo "estou zangado, sou ciumento", e começo a analisar por que é que sou ciumento, quais são as causas desse ciúme, dessa cólera, dessa violência, mas o analisador faz parte daquilo que está a analisar. O observador é o observado, e quando vemos isso, quando compreendemos a inutilidade do que estamos a fazer, deixamos definitivamente a análise. É muito importante compreender, ver realmente a verdade disto, mas não verbalmente: a compreensão verbal não é compreensão, é como ouvir uma

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quantidade de palavras e dizer "sim, compreendo as palavras". Mas ver realmente que o analisador, o observador é o observado é um fato extraordinário, uma realidade tremenda; não há então divisão entre o analisador e a coisa analisada e portanto não há conflito. O conflito só existe quando o analisador é diferente da coisa que analisa; nessa divisão há conflito. Estão a acompanhar? Talvez depois queiram fazer perguntas.

A nossa vida é um conflito, um campo de batalha. Mas uma mente livre não tem conflito, e estar livre de conflito é observar o fato do "observador", do "analisador", do "pensador". Há medo e o observador diz: "Tenho medo." Reparem um momento, por favor, e verão a beleza disso - há assim uma divisão entre o observador e a coisa observada. Então, o observador atua e diz: "Tenho de ser diferente,o medo tem de acabar." Procura a causa do medo e assim por diante; mas o observador é o observado, o analisador é o analisado. Quando ele compreende isto não verbalmente, o fato do medo sofre uma mudança completa. Reparem, não tem nada de misterioso. Uma pessoa tem medo, é violenta, dominadora, ou é dominada. Tomemos como exemplo uma coisa muito mais simples. Uma pessoa sente inveja, ciúme. Será o observador diferente desse sentir a que chama ciúme? Se for diferente então poderá agir sobre o ciúme e essa ação tornar-se-á um conflito.

Porém, se a entidade que sente ciúme não é diferente do ciúme, que pode ela fazer então? "Sou ciumento", e enquanto o ciúme for diferente de "mim", estou num estado de conflito, mas se o ciúme é eu, se não é diferente de mim, então que hei de fazer? Não o aceito e digo: "Sou ciumento." Isso é um fato. Não o afasto, não fujo dele, não tento reprimi-lo. O que quer que eu faça é ainda uma forma de ciúme. Que acontece, portanto? A inação é a ação total. A inação em relação ao ciúme, por parte do observador que é o observado, é o cessar do ciúme. Compreendem? Estamos a comunicar?

Participantes - Sim.Krishnamurti - Devagar, não digam já "sim". Isto é muito difícil... Mas se realmente se

compreender isto, fica-se livre do ciúme, não mais se será ciumento. É por isso que é muito importantecompreender a totalidade do conflito, da luta que se está a passar interiormente e que externamente se exprime como violência. Poderá então a mente estar completamente livre dessa inveja que é o ciúme?Só poderá estar livre quando existir a consciência de que o observador é o observado, não havendo portanto divisão. Compreendem? Reparemos, há conflito no que chamamos relacionamento entre aspessoas, até entre os mais próximos. Toda a relação tal como existe agora é conflito - não é assim? Penso que é bastante evidente. As nossas relações uns com os outros, as relações entre os seres humanos, em todo o mundo, são baseadas numa imagem que construímos acerca de nós mesmos ou acerca do outro. O marido tem uma imagem da mulher e a mulher tem uma imagem do marido - uma imagem de prazer, sofrimento, censuras, insultos, domínio, ciúme, irritação, seja o que for. Gradualmente, através dos anos, foi-se construindo uma imagem do marido ou da mulher. E são essas duas imagens que estão em relação. Mas relação significa contacto real. Estar em relação quer dizer estar em contacto com alguma coisa, e não podemos estar em relação com o outro se temos uma imagem a seu respeito - evidentemente. Será então possível viver sem essa imagem e no entanto estar em relação? O relacionamento origina conflito porque não estamos em relação; o nosso relacionamento é entre as imagens. Será então possível a mente estar liberta de toda essa construção de imagens? Compreendem a pergunta? Vou mostrar-vos como isso é possível. Não o aceiteis verbalmente mas experimentai-o; vereis então o que realmente significa relacionamento. Estar em relação é a coisa mais extraordinária. Não há sofrimento, não há conflito. Qual é o maquinismo que constrói essas imagens, a respeito do nosso vizinho, do presidente, da nossa mulher, de Deus, ou seja do que for? Qual é a estrutura e a natureza dessa imagem que temos de nós mesmos ou do outro? Se eu for casado - não o sou - construo uma imagem da minha mulher: o que ela diz, o que faz, o prazer que me proporciona sexualmente, ou de outra maneira, os medos, o domínio, as discussões, tudo isso. Gradualmente, dia após dia, construo uma imagem dela e ela constrói uma a meu respeito. Isso é um fato, não uma suposição; e estou agora a perguntar a mim mesmo se poderei libertar-me destas imagens. Só se pode estar livre da imagem quando a pessoa, seja o que for que lhe digam - por irritação, por ciúme, por cólera, quer a insultem, quer a elogiem - está completamente atenta no

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momento de isso ser dito, para ver a verdade que há no elogio, ou no insulto, e ficar liberta dele. Isso significa que a mente deve estar inteiramente atenta, para que não retenha a experiência particular de prazer ou de dor que cria a imagem; ou seja, atenta no momento em que (por exemplo) a mulher ou o marido diz uma coisa agradável ou desagradável. Essa atenção, esse estar consciente sem escolha dá liberdade para olhar, para ver a verdade ou a falsidade do que está a ser dito; então a mente já não o registra como memória. Não sei se alguma vez experimentastes isso - provavelmente não. A mente torna-se extraordinariamente ativa, acordada, sensível. Então o relacionamento, que é na verdade um dos maiores problemas da vida, tem um sentido completamente diferente. Então, sem a imagem, o relacionamento é a beleza do amor. Embora muitas vezes se diga "amo-te", o amor está ausente. O amor é algo inteiramente diferente, o amor não é prazer, o amor não é desejo. Para se compreender o amor, tem de se compreender o prazer, e o prazer é acompanhado pelo medo, pelo sofrimento - não se pode ter um sem o outro. Estes são, pois, os nossos problemas. São os problemas de todo o ser humano, quer ele viva numa sociedade desenvolvida quer numa primitiva. O homem está em grande provação e sofrimento e a nossa pergunta, o nosso problema, é saber se a mente é capaz de se transformar a si própria completamente, originando assim uma profunda revolução psicológica - que é a única revolução. Uma tal revolução é capaz de criar uma sociedade diferente, um relacionamento diferente, uma outra maneira de viver. Querem fazer algumas perguntas? Como sabem, pôr questões é das coisas mais difíceis. Há milhares de perguntas que temos de fazer; precisamos de pôr tudo em causa. Não devemos obedecer, ou aceitar seja o que for, temos de descobrir, de ver a verdade por nós mesmos e não através de outra pessoa. E para ver a verdade tem de se estar inteiramente livre. Tem de se pôr a questão correta para se encontrar a resposta correta, porque se se põem questões erradas, recebem-se inevitavelmente respostas erradas. Portanto, pôr a questão correta é das coisas mais difíceis - o que não significa que o orador vos esteja a impedir de fazer perguntas. É preciso fazê-las, com profundeza e grande seriedade, porque a vida é tremendamente séria. Pôr questões assim significa que a pessoa já está a explorar a sua própria mente e a penetrar muito profundamente em si mesma.

Portanto, só a mente inteligente, que se conhece a si própria, é capaz de pôr a questão correta, e nesse perguntar está já a resposta. Temos de reparar nisto com muita seriedade, porque esperamos sempre que outro nos diga o que havemos de fazer. Queremos sempre acender a nossa candeia na luz de outrem. Nunca somos uma luz para nós próprios. E para sermos uma luz para nós próprios, temos de libertar-nos de toda a tradição, de toda a autoridade, incluindo a deste orador, para que a nossa mente seja capaz de ver, de observar, de aprender. Aprender é das coisas mais difíceis. Assim, fazer uma pergunta é bastante fácil, mas fazer a pergunta certa é uma coisa totalmente diferente. E agora, qual é a pergunta?

Krishnamurti - 1ª Conferência na Universidade de Berkeley, Califórnia

Que significa ser livre?

Que significa ser livre? Será liberdade fazer o que vos convém, ir onde vos agrada, pensar o que vos apetece? De qualquer modo, é isso o que fazeis. Ter independência, simplesmente significará liberdade? Muitas pessoas no mundo são independentes, mas poucas são livres. Liberdade implica uma grande inteligência, não é? Assim, ser livre é ser inteligente, mas a inteligência não vem apenas pelo desejo de ser livre. Ela vem só quando começais a compreender totalmente o meio que vos rodeia, as influências sociais, religiosas, familiares e tradicionais que vos estão constantemente pressionando. Mas para compreender as várias influências do meio cultural a que pertenceis, das crenças e superstições, da tradição à qual vos conformais sem pensar - para as compreenderdes todas, e vos libertardes delas, é precisa uma visão profunda. Mas geralmente submeteis-vos a elas porque interiormente estais com medo. Tendes medo de não obter uma boa posição na vida; tendes medo do que os outros poderão dizer; tendes medo de não seguir a tradição,

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de não fazer a coisa certa. Mas liberdade é, verdadeiramente, um estado de espírito em que não há medo ou compulsão, nem ansiedade de estar seguro.

Não querem muitos de vós estar em segurança? Não queremos que nos digam que somos pessoas maravilhosas, que somos encantadores ou que temos uma inteligência extraordinária? Toda esta espécie de coisas nos dá autoconfiança, um sentimento de importância. Queremos ser pessoas famosas - mas, no momento em que o desejamos, já não somos livres.

Mas por favor, reparai nisto, porque é a verdadeira chave para a compreensão do problema da liberdade. Quer neste mundo de poder, posição e autoridade, quer no chamado mundo espiritual, onde se aspira a ser virtuoso, nobre, santo, no momento em que tendes a ambição de alguma coisa (embora mais subtil), já não sois livres. Mas o homem ou a mulher que vê o absurdo de tudo isso e cujo coração está, assim, inocente e portanto não movido pelo desejo ou pela ambição - essa pessoa é livre. Se compreenderdes a simplicidade disso, vereis também a sua extraordinária beleza e profundidade.

A função da educação é a de vos ajudar, desde a infância, não a imitar alguém mas a serdes vós mesmos, a toda a hora. E isto é o mais difícil de fazer: quer sejais, ou não, invejosos ou ciumentos, ser sempre aquilo que na realidade sois, mas compreendendo-o. Se olhardes para o que realmente sois e o compreenderdes, então, na própria compreensão há transformação. Assim, a liberdade reside, não em tentardes tornar-vos algo diferente, nem em fazerdes o que vos apetece, nem em seguirdes a autoridade de uma tradição, mas em compreender aquilo que sois, momento a momento.

Não sois educados para isto; a vossa educação encoraja-vos a tornar-vos isto ou aquilo - mas isso não é a compreensão de vós mesmos. O vosso "eu" é algo muito complexo. Não é apenas a entidade que vai à escola, que discute, que joga, que tem medo, mas é também algo escondido, além do que aparece. É feito, não apenas dos pensamentos que tendes, mas também de todas as coisas que foram postas na vossa mente por outras pessoas, pelos livros, pelos políticos, pelos jornais. E só é possível compreender tudo isto quando não sois ambicioso, quando não imitais, quando não seguis. Esta é a única revolução verdadeira, que leva à extraordinária liberdade. Cultivar esta liberdade é a verdadeira função da educação.

Krishnamurtiin THIS MATTER OF CULTURE

ESCUTAR E APRENDER

Como vamos realizar dez palestras, poderemos considerar os nossos problemas com vagar e paciência, e inteligentemente. Aos que sentem verdadeiro empenho e não vieram por mera curiosidade ouvir uma ou duas palestras, é muito importante que compreendam todas as complicações e problemas que afligem cada ente humano, porquanto, compreendê-los é resolvê-los e deles libertar-se completamente.

Há certas coisas que devem desde já ficar assentada.Primeiro, temos de compreender o que é "comunicação", o que esta palavra significa para

cada um de nós, o que implica, qual a estrutura, a natureza da comunicação. Para que dois de nós, vós e eu, possamos comunicar-nos um com o outro, deve haver não só compreensão verbal do que se diz, no nível intelectual, mas também, e conseqüentemente, o ato de escutar e de aprender.

Estas duas coisas são, a meu ver, essenciais, para que possamos comunicar-nos uns com os outros: escutar e aprender.

Em segundo lugar, cada um de nós tem, decerto, o seu fundo de conhecimento, de preconceito e experiências, e também seus sofrimentos e os inúmeros e complexos problemas inerentes à vida de relação.

Tal é o nosso conteúdo, e com ele pretendemos escutar.Afinal de contas, cada um de nós é o resultado de nossa complexa vida cultural - resultado de

toda cultura humana, com a educação e as experiências não só de uns poucos anos, mas de séculos.Não sei se alguma vez examinastes a maneira como escutais, não importa o quê - uma ave, o

vento entre as folhas, a correnteza das águas; ou como escutais um diálogo que travais com vós

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mesmos, as conversações que tendes em vossas relações com amigos íntimos, vossa mulher ou marido. Quando tentamos escutar, achamo-lo muito difícil, porque estamos sempre a projetar nossas opiniões e idéias, nossos preconceitos, nosso fundo, nossas inclinações, nossos impulsos; quando esse fundo predomina, dificilmente escutamos o que se diz.

Nesse estado nenhum valor existe.Só se pode escutar e, por conseguinte, aprender, quando nos achamos num estado de atenção,

num estado de silêncio em que todo aquele fundo está em suspenso, quieto; então, parece-me, há possibilidade de comunicação.

Há várias coisas a considerar.Se escutais com o fundo ou imagem que formastes a respeito do orador, se o escutais

atribuindo-lhe uma certa autoridade - que o orador, pode ter ou não - então é bem evidente que não estais escutando. Estais escutando a "projeção" que à vossa frente colocastes, e esta vos impede de escutar.

Assim, mais uma vez, é impossível a comunicação.Evidentemente, a verdadeira comunicação ou comunhão só pode verificar-se quando há

silêncio. Quando duas pessoas desejam seriamente compreender uma certa coisa, aplicando por inteiro a mente, o coração, os nervos, os olhos, os ouvidos, a compreendê-la, então, nessa atenção, existe um certo silêncio; verifica-se então a verdadeira comunicação, a verdadeira comunhão.

Aí, não há apenas aprender, mas também completa compreensão - e essa compreensão não difere da ação imediata.

Isto é, quando uma pessoa escuta sem nenhuma intenção, sem nenhuma barreira, deixando de parte todas as opiniões, conclusões, etc., toda a experiência - então, nesse estado, não só se compreende se o que se está dizendo é verdadeiro ou falso, mas, ainda, se verdadeiro, há ação imediata e, se falso, não há ação nenhuma.

Nestes estudos, não só iremos aprender a respeito de nós mesmos - o que é de importância primária - mas também ver que no próprio processo de aprender há ação. Não se trata de primeiro aprender e depois agir, porém, antes, o próprio ato de aprender é ação.

Para nós, como atualmente somos, o aprender implica acumulação de idéias - e as idéias são pensamento racionalizado e cuidadosamente elaborado.

À medida que aprendemos vamos formulando uma estrutura de idéias e, uma vez estabelecida a fórmula de idéias, ideais ou conclusões, atuamos.

A ação, portanto, está separada da idéia. Assim é nossa vida: primeiro formulamos e, depois, tratamos de agir em conformidade com o

formulado. Mas, estamos considerando uma coisa muito diferente, ou seja, que o ato de aprender é ação;

que no próprio processo de aprender, a ação está se verificando e, por conseguinte, não há, conflito algum.

Acho importante compreender desde já que não estamos formulando nenhuma filosofia, nenhuma estrutura intelectual de idéias, ou de conceitos teológicos ou puramente racionais.

Interessa-nos promover em nossa vida uma revolução total, sem nenhuma relação com a estrutura da sociedade, tal como existe. Ao contrário, se não compreendemos a inteira estrutura psicológica da sociedade de que fazemos parte estrutura que formamos através de séculos, e dela nos libertamos inteiramente, não haverá revolução, total.

E uma revolução dessa espécie é absolutamente necessária.Deveis saber do que está ocorrendo no mundo; desse enorme e transbordante

descontentamento que se manifesta de diferentes maneiras - os hippies, os "beatniks", os "provos" da América - e das guerras que se estão travando, e pelas quais somos responsáveis.

Não são apenas os americanos e os vietnamitas, porém cada um de nós, os responsáveis por essas guerras monstruosas.

Não estamos empregando superficialmente a palavra "responsáveis".Nós somos responsáveis, não importa se a guerra está no Oriente Médio, ou no Extremo

Oriente, ou noutra parte qualquer. Há fome, em grande escala, governos ineptos, acumulação de

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armamentos, etc. Observando tudo isso, somos natural e humanamente levados a exigir uma mudança, uma revolução em nossas maneiras de pensar e de viver.

Quando começará essa revolução?Os comunistas, os nacionalistas, e todas as autoridades religiosas sempre pensaram que o

indivíduo não tem importância nenhuma, que pode ser persuadido a seguir em qualquer direção. Embora garantam a libertação para o homem em geral, tudo fazem para impedir essa libertação. As religiões organizadas de todo o mundo põem "em branco" a mente das pessoas a fim de fazê-las adaptar-se a determinado padrão a que chamam "idéias e ritos religiosos". Os comunistas, os capitalistas, os socialistas não se importam em absoluto com o indivíduo, embora tanto falem a respeito dele; mas, não vejo como possa verificar-se uma revolução radical, A NÃO SER através do indivíduo.

Pois o ente humano individual é o resultado da experiência, do conhecimento e da conduta totais do homem; tudo isso está em nós. Somos o depósito de todo passado, da experiência racial, familiar e individual da vida; somos isso e, a menos que em nossa própria essência haja uma revolução, uma mutação, não vejo possibilidade de nascer uma sociedade boa.

Falando do indivíduo, não o estamos opondo ou colocando contra a coletividade, a massa, o todo da humanidade. A menos que sintais assim, o que acabo de dizer se tornará um mero conceito intelectual. A menos que cada um de nós reconheça o fato central, ou seja, que nós, como indivíduos humanos, representamos o todo da humanidade, não importa se vivemos no Oriente ou no Ocidente – não saberemos agir.

Nós, entes humanos, somos totalmente responsáveis pelo estado que se acha o mundo. As guerras - por elas somos responsáveis, por causa da nossa maneira de viver, pois somos nacionalistas, alemães, franceses, holandeses, ingleses, americanos, russos; somos católicos, protestantes, judeus, budistas, pertencemos ao Zen, a esta ou àquela seita, dividindo-nos, disputando, lutando uns contra os outros.

Nossos deuses, nossas nacionalidades nos dividiram.Ao perceberdes, não intelectualmente, porém realmente tão realmente como sentis que tendes

fome, que vós e eu, como entes humanos, somos responsáveis por todo este caos, por toda esta aflição - pois estamos contribuindo para essa situação, dela somos parte – ao percebermos isso, não emocionalmente, nem intelectualmente, nem sentimentalmente, porém de maneira real, o problema se tornará então sumamente sério.

Ao tornar-se verdadeiramente sério esse conhecimento, então agireis.Só quando isso acontecer, quando vos sentirdes inteiramente responsável por esta monstruosa

sociedade, com suas guerras, suas divisões e tantas outras coisas horríveis - brutalidades, ambições, etc; só quando cada um de nós perceber bem isso poderemos agir. E só se pode agir quando se sabe que esta estrutura, não só a exterior, mas também a interior, foi reunida peça por peça. Eis porque devemos conhecer-nos, pois quanto mais uma pessoa se conhece, tanto mais amadurecida está.

Só há falta de maturidade na ignorância de si mesmo.O que vamos fazer é aprender a respeito de nós mesmos - não de acordo com este que vos

fala, ou de acordo com Freud ou Jung ou um certo analista ou filósofo, porém aprender o que realmente somos. Se aprendermos a respeito de nós mesmos de acordo com Freud, aprenderemos a respeito de Freud e não de nós mesmos.

Para aprendermos a respeito de nós mesmos, toda autoridade deve deixar de existir - toda e qualquer autoridade, a autoridade da igreja, do pároco de nossa freguesia, ou do analista famoso, dos maiores filósofos, com suas fórmulas intelectuais, etc. etc. A primeira coisa, portanto, que se precisa compreender, quando nos tornamos sérios e exigimos uma revolução total na estrutura de nossa própria psique - a primeira coisa que devemos compreender é que não existe autoridade de espécie alguma.

Isso é dificílimo, porquanto não só existe a autoridade externa, fácil de rejeitar, mas também a autoridade interna, a autoridade interior da experiência, dos conhecimentos acumulados, das opiniões, idéias, ideais de cada um que lhe guiam a vida e de acordo com os quais o indivíduo procura viver. Libertar-se dessa autoridade é dificílima - não só da autoridade que seguimos em

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relação às coisas exteriores, mas também da autoridade de ontem, da experiência de ontem que nos ensinou alguma coisa; o que ensinou se torna a autoridade de hoje.

Por favor, compreenda isso, sua sutileza, sua dificuldade.Há não só a autoridade do conhecimento acumulado como tradição, a autoridade das

experiências  que nos deixaram sua marca, mas também a autoridade de ontem, tão destrutiva como a de mil anos. A compreensão de nós mesmos não requer nenhuma autoridade de ontem nem de um milênio atrás, porque cada um de nós é uma força viva, sempre em movimento, nunca, em repouso, em perene fluir.

Quando nos olhamos com a autoridade de ontem, o que tem importância é a autoridade e não o movimento da vida, que somos nós, e por essa razão não compreendemos o movimento, a fluidez, a beleza e a natureza desse movimento: só compreendemos a autoridade que acumulamos e com a qual estamos examinando, observando. Libertar-se dessa autoridade é morrer para todas as coisas de ontem, para que a mente se conserve sempre juvenil, inocente, cheia de vigor e de paixão; só neste estado uma pessoa observa e aprende.

Essa liberdade já não é então um instrumento que pode ser manejado pela autoridade, a nosso gosto ou contragosto. Para tanto, requer-se muito percebimento, percebimento real do que se passa em nosso interior, sem o corrigirmos, sem lhe dizer o que deve ser ou não deve ser; porque, se corrigis, está estabelecida a autoridade, o censor.

Se sentis disposição, seriedade, se não me estais ouvindo superficialmente ou por mera curiosidade, penetremos em nós mesmos, passo a passo, sem perder um só movimento. Isso não significa que o orador vai ser "o analista", porquanto não há analista nem ninguém para ser analisado; o que há é tão - somente o fato – o que é.

Quando sabemos olhar o que é, o analista deixa de existir, totalmente.Por conseguinte, nestes estudos vamos entrar em comunhão, não há respeito do que "deveria

ser", ou do "que foi", porém a respeito do que está realmente acontecendo em nós; não sobre como sobre alterar o fato ou o que ou o que devemos fazer com ele, porém como observar e ver o que realmente é.

Isso exige intensa energia. Nós nunca olhamos aquilo que é - nunca olhamos a árvore "tal qual é", as sombras, a

densidade da folhagem "tal com é", totalmente - nunca olhamos a sua beleza. Isso acontece porque temos conceitos sobre a beleza e temos fórmulas de como devemos olhar a árvore, ou porque desejamos identificar-nos com ela. Temos primeiramente uma idéia sobre a árvore e depois é que a vemos.

A idéia, a fórmula, o ideal impede-nos de olhar a árvore tal como é.As idéias, as fórmulas, os ideais encerram a cultura em que vivemos; essa cultura sou eu, sois

vós, e com essa cultura nós olhamos e, por conseguinte, isso não é olhar, em absoluto. Ora bem, se estais escutando o que se está dizendo, escutando-o realmente, então a cultura, a

autoridade, desaparecerão de todo e não tereis mais necessidade de lutar contra esse fundo, contra essa cultura da sociedade em que fostes criados; compreendereis que é isso o que vos está impedindo de olhar.

Só quando olhais realmente, estais em comunhão, tendes o contato correto, não só com a árvore, com a nuvem, com a montanha, com a beleza da Terra, mas também estais em contato direto com a realidade existente em vós mesmo. E quando há contato direto, não há problema de espécie alguma . Só quando não há contato, quando vós sois o "observador", e a "coisa observada" diferente de vós, é só então que surge o problema, que há conflitos, aflições, dores e ansiedades.

Durante estes estudos iremos ajudar-nos mutuamente a aprender e, portanto, a estar em contato com o que realmente é; isso significa que está acabado o "observador" e que olhar, escutar, compreender, agir, é uma só coisa.

Vamos conversar sobre o que estivemos dizendo ou sobre outro assunto que preferirdes? Considero muito importante fazer perguntas, fazê-las não só a outrem, mas também a nós mesmos. Nunca fazemos uma pergunta fundamental e, quando a fazemos, falta-nos tempo, inclinação ou capacidade para achar a resposta correta.

O perguntar requer muita seriedade.

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Quanto mais profunda a questão, tanto mais difícil achar-lhe a resposta.Mas, no próprio ato de perguntar, se a pergunta é feita seriamente, encontra-se a resposta. É necessário fazer perguntas!INTERROGANTE: Não entendo o que dizeis sobre "ação imediata".KRISHNAMURTI: Que é ação?O significado real dessa palavra é "fazer".A ação implica um presente ativo.Mas, nossa ação é o resultado dos maneirismos, conhecimentos, experiências, idéias,

fórmulas, de ontem, que se firmaram e estabilizaram, e de acordo com os quais agimos. A lembrança de ontem, modificada, etc., atua no presente e este cria o futuro. Por conseguinte não há, nessa ação, um presente ativo; estou atuando em conformidade com uma coisa morta. É claro que necessito da memória, em certas categorias de atividade técnicas, etc.. Mas o agir de acordo com a memória só produz ação que nenhuma ação é, porém uma coisa morta; por conseqüência, o amanhã é também uma coisa morta.

Assim, que se deve fazer?Preciso aprender a respeito de uma ação que seja totalmente diferente da ação da memória.

Para tal, preciso perceber, não intelectual, verbal ou sentimentalmente, o que realmente sucede. Tive, por exemplo, uma experiência de cólera ou de prazer, e essa experiência permanece como memória e minha ação se realiza em conformidade com essa memória. Essa ação oriunda da memória aumenta a cólera, ou o prazer, e está sempre a acumular o passado; tal ação do passado é virtualmente, inação. Pode a mente libertar-se dessas "memórias" de ontem e ficar vivendo no presente?

Esta pergunta não requer uma resposta intelectual. Tampouco pode a mente, que é coisa do tempo, sujeita a uma infinidade de caprichos,

libertar-se das lembranças de ontem, procurando "viver no presente", conforme preceitua uma certa filosofia que nos diz que não há futuro, que não há passado, que não há esperanças e, por conseguinte, devemos viver no presente e dele tirar o melhor proveito possível.

Não posso viver no presente, se o presente está ensombrado pelo passado. Para compreender isso, a mente deve ser capaz de olhar, e só pode olhar quando não há condenação, identificação, julgamento; olhar - assim como se olha uma árvore, uma nuvem - simplesmente. Antes de poderdes olhar a estrutura altamente complexa da memória, deveis ser capaz de olhar uma árvore, uma formiga, ou o movimento do rio.

Olhar - em verdade nunca o fazemos! É importantíssimo olhar o passado, como memória, e isso não sabemos fazer.A ação em conformidade com a memória é inação total e, conseqüentemente, não há

revolução alguma.INTERROGANTE: Pergunto se há contradição entre o dizerdes que o indivíduo é o

"coletivo", resultado do passado, e o dizerdes que não deve haver nenhuma autoridade vinda do passado.

KRISHNAMURTI: Afinal de contas, essa autoridade do passado, que conferimos a outrem - o sacerdote, o analista, o chefe militar, ou a esposa ou marido – dessa autoridade eu necessito para minha própria segurança, minha própria proteção.

Tal autoridade, o homem a vem aceitando há séculos e séculos. Ora, o homem instituiu a autoridade, deseja a autoridade, porque, quanto mais confuso está, quanto mais infeliz se sente, tanto mais deseja ter quem lhe diga o que deve fazer. A autoridade de que ele revestiu outra pessoa, ou a autoridade que em si próprio criou, para guiá-lo, torna-se um empecilho.

Como vedes, é sobremodo complexa esta questão da autoridade e do indivíduo. Para compreendermos o indivíduo, temos de compreender o "coletivo", pois neste se encontra toda estrutura da autoridade. Todos andamos em busca de segurança, nesta ou naquela forma. Segurança em nossos empregos, segurança no ter dinheiro, segurança na continuidade de um certo prazer, sexual ou outro, e a exigência de segurança total, comum a todos nós.

Essa ânsia de segurança procuramos expressar de diferentes maneiras. No momento em que existe a exigência de segurança, torna-se necessária a autoridade, é bem

de ver; tal é a estrutura psicológica e cultural de nossa sociedade. Alguma vez indagamos se essa

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segurança que tanto buscamos existe deveras? Temos por certa a sua existência. Sempre buscamos a segurança através das igrejas, dos líderes políticos, das relações, mas já a achamos alguma vez - já a achastes?

Alguma vez a encontrastes nas vossas relações? Existe segurança em alguma relação, alguma igreja, algum governo, salvo a segurança física?

Podeis achar segurança numa crença, em certos dogmas, mas essa segurança é uma simples idéia que pode ser despedaçada pela lógica, pela dúvida, pelo indagar, pela necessidade de liberdade. Quando se compreende - não como idéia - que tal coisa, a segurança, a permanência, não existe, então a autoridade perde toda a sua importância.

INTERROGANTE: Parece-me que dissestes que nós somos responsáveis pelo todo da sociedade. Não interpretei exatamente o que queríeis dizer. Somos responsáveis pelas guerras, etc?

KRISHNAMURTI: Pensais que não somos responsáveis pelas guerras? Nossa maneira de vida indica que somos brutais, agressivos, que temos preconceitos violentos, que nos dividimos em nacionalidades, em grupos religiosos que se odeiam uns aos outros, que nos destruímos mutuamente nos negócios. Isso tudo só pode expressar-se em guerras, em ódio, está visto. Viver em paz significa viver pacificamente, todos os dias, não achais?

INTERROGANTE: Eu diria que certas pessoas são mais responsáveis do que outras.KRISHNAMURTI: Ah! Diz esse senhor que certas pessoas são mais responsáveis por esses

horrores do que vós e eu. Eis aí uma saída cômoda e feliz. Mas, quando vós sois alemão e eu sou russo, quando sois comunista e eu capitalista, não estamos em luta um com o outro?

Não somos antagonistas? Quereis que tudo fique como está, sem perturbações, porque tendes algum dinheiro, tendes

um filho, tendes uma casa e pelo amor de Deus não desejais ser perturbado; e tudo quanto vos perturba vos é odioso. Não sois responsável quando fazeis questão de não serdes perturbado? E quando dizeis "Minha religião, meu Buda, meu Cristo, meu isto ou aquilo - eis o meu Deus" - desse Deus fizestes depender tudo, toda a vossa segurança e aflição; não desejais ser perturbado. Se outro homem pensa diferentemente, o odiais.

Viver pacificamente, em cada dia significa, com efeito, não ter nenhuma nacionalidade, nenhuma religião, nenhum dogma, nenhuma autoridade.

Paz significa amar, ser bondoso; se não a tendes, sois então responsáveis por toda a confusão existente.

__Estudo da 1ª palestra realizada por Krishnamurti em 9 de julho de 1967 em Saanen, Suíça,

págs 7/17 do livro "COMO VIVER NESTE MUNDO" – ICK 1976 – tradução Hugo Veloso

* * *

O FIM DO SOFRIMENTO E DA DOR

Estudo da palestra de KRISHNAMURTI realizada na Índia, Bombaim em 10/02/1985 – publicado do K. Bulletin 54 (1988) – e na Carta de Noticias – Janeiro-Dezembro de 1991 pela ICK – Mensagem no Kportal de Quinta –feira 23 de setembro de 2003 postada por Bardorck/Junior.

Nesta noite, vamos percorrer um longo caminho.Ontem estivemos tratando do sofrimento e do findar do sofrimento.Quando o sofrimento chega ao fim, há paixão.Pouquíssimos de nós realmente compreendem a questão do sofrimento ou nela penetram

profundamente.Será possível liquidar, de vez, o sofrimento?Todos os seres humanos têm feito essa pergunta, embora, talvez, não muito conscientemente,

mas, no fundo, todos querem saber se a dor e o sofrimento humano podem acabar. Enquanto o sofrimento não termina, não pode haver amor.

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O sofrimento é um violento golpe no sistema nervoso, como um soco no corpo e na psique. E geralmente tentamos escapar dele através de drogas, bebida, diversão, movimentos religiosos – ou, então, acabamos cínicos ou passamos a aceitar as coisas como inevitáveis.

Será que podemos investigar, a fundo e com seriedade, se é possível ficar com o problema sem fugir dele?

Suponhamos que perca meu filho e, sofrendo com isso um grande choque, experimentando uma dor imensa, descubra que sou um ser humano extremamente solitário. Não consigo encarar nem suportar a situação e, por isso, fujo dela.

Há inúmeras formas de fuga – religiosas, mundanas ou filosóficas. Mas será que posso permanecer como que aconteceu, com essa coisa chamada sofrimento, sem procurar, de modo algum, fugir da dor, da angústia, da solidão, da aflição, do abalo? Será que podemos observar um problema, observá-lo apenas, sem procurar resolvê-lo, olhar para ele como se fosse uma jóia preciosa, de fino acabamento?

Para uma coisa bonita olhamos sem parar, sem qualquer desejo de fugir dela; sua beleza nos atrai tanto e tanto prazer nos proporciona que ficamos olhando para ela o tempo todo. Se, da mesma forma, pudermos observar nosso sofrimento, sem um movimento sequer de julgamento ou fuga, ficar com a tristeza, nesse caso, a própria ação de ficar com o fato nos liberta completamente daquilo que produziu a dor.

Voltaremos a isso depois.Desejamos também considerar o que é a beleza – NÃO a beleza de uma pessoa NEM de

quadros e estátuas de museus, NEM os mais remotos esforços do homem para transmitir seus sentimentos através da pedra, da pintura ou de um poema, mas INDAGAR DE NÓS MESMOS o que é a beleza. Talvez a beleza seja a VERDADE. Talvez seja o AMOR. Sem compreendermos a natureza e a profundidade dessa coisa extraordinária que é a beleza, JAMAIS chegaremos ao que é SAGRADO. Examinemos, portanto, a questão da beleza.

O que acontece quando vemos algo grandioso como a montanha coberta de neve contra o céu azul? Por um segundo a majestade da montanha, com sua imensidão, com seu elo recorte contra o céu azul APAGA toda nossa preocupação com nós mesmos. Nesse segundo, NÃO HÁ ninguém a olhar.

Por um segundo, a grandiosidade da montanha afasta todo sentimento egocêntrico do nosso viver. Certamente que já devem ter notado isso.

Já observaram uma criança com um brinquedo? Durante o dia inteiro ela fez travessuras, o que é normal, e então damos um brinquedo a ela. Agora, por um bom tempo, até que escangalhe o brinquedo, ela permanece tranqüila; o brinquedo dissipou sua agitação, absorveu-a. Assim também quando vemos algo extremamente belo – a beleza nos absorve. Significa isso que só há beleza quando cessa a luta do eu, quando não existe mais egocentrismo. Compreendem isso?

Se não ficamos absorvidos nem impressionados por algo muito belo, como uma montanha ou um vale cheio de sombras; se não somos arrebatados pela montanha, podemos compreender a beleza sem o ego? Quando o eu está presente, não há beleza; quando existe egocentrismo, não há amor; e o amor e a beleza estão sempre juntos – não são duas coisas separadas.

Temos de tratar também da morte. Isso é uma coisa que todos precisamos encarar.Sejamos ricos ou pobres, ignorantes ou eruditos, jovens ou velhos, a morte é inevitável para todos nós; todos vamos morrer. E nunca fomos capazes de compreender a natureza da morte; estamos sempre com medo de morrer, não estamos? Para compreender a morte temos de indagar o que é viver, o que é a nossa vida, pois estamos desperdiçando a nossa vida, estamos desperdiçando nossas energias de muitas maneiras, nas muitas profissões especializadas.

Pode ser que sejam ricos, muito competentes, que sejam especialistas, um grande cientista ou um homem de negócios; pode ser que tenham poder, posição, mas, no fim da vida, será que tudo isso não foi um desperdício?

Toda essa lida, sofrimento, essa enorme ansiedade e insegurança, as tolas ilusões que o homem acumulou, deuses, santos, etc., não será tudo isso um desperdício?

Por favor, essa é uma pergunta séria, que cada um tem de fazer a si próprio. Ninguém pode responder por nós.

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Costumamos separar o viver do morrer. A morte fica lá no fim da vida; nós a colocamos o mais longe possível – depois de muito tempo. Mas, ainda que seja uma longa jornada, temos de morrer.

E o que é isso a que chamamos viver – ganhar dinheiro, ir ao escritório das nove às cinco? E com isso sofremos interminável conflito, temor, ansiedade, solidão, desesperança, depressão. Mas será que toda essa existência a que chamamos vida, viver essa imensa vicissitude do homem com seu conflito sem fim, decepção, degradação – será osso viver?

Mas é a isso que chamamos viver; é isso que conhecemos, é como isso que estamos familiarizados, essa é a nossa existência diária. E a morte significa o fim de tudo, o findar de tudo que pensamos, acumulamos e gozamos. E vivemos apegados a tais coisas.

Estamos apegados à família, ao dinheiro, conhecimentos, às crenças com as quais temos convivido, aos ideais. Estamos apegados a tudo isso. E a morte vem e diz: Esse é o fim de tudo, meu velho!

Tememos morrer, isto é, deixar tudo que conhecemos, tudo que experimentamos e reunimos – nossa encantadora mobília e a bela coleção de quadros de pintura. A morte chega e diz: nada mais lhe pertence. É por isso que nos apegamos ao conhecido e tememos o desconhecido.

Podemos inventar a reencarnação, que devemos renascer numa próxima vida.Mas NUNCA indagamos o que nasce na vida seguinte.A pergunta, portanto, é esta: por que o cérebro separou o viver do morrer? Por que essa

divisão? Existe essa divisão quando há apego. Podemos viver no mundo moderno com a morte?Não estamos falando de suicídio, mas em acabar com o apego enquanto vivemos. Estou

apegado a casa em que vivo – comprei a casa por um bom dinheiro e apego-me ao mobiliário, aos quadros, à família, a todas essas memórias. Então chega a morte e acaba com tudo. Mas será que podemos conviver diariamente com a morte, dando um fim a tudo no fim de cada dia, eliminando todo nosso apego?

Isso é o que significa morrer.Como costumamos separar o viver do morrer, estamos sempre com medo. Quando levamos

juntos, contudo, a vida e a morte, o viver e o morrer, então descobrimos que há um estado cerebral em que cessa todo o conhecimento como memória.

Precisamos do conhecimento para escrever uma carta, vir até aqui, falar inglês, fazer a contabilidade, ir para casa etc. Mas será que podemos usar o conhecimento sem sobrecarregar a mente? Poderá o cérebro usar o conhecimento quando necessário, mas estar livre de todo conhecimento? Nosso cérebro está sempre registrando; agora mesmo estão registrando o que se está dizendo. O registro torna-se memória e a memória, nesse registro, é necessária em certos domínios, no domínio da atividade física.

Por conseguinte, pode o cérebro usar o conhecimento quando necessário, mas estar livre do velho conhecimento?

Pode o cérebro estar livre de funcionar perfeitamente noutra dimensão?Todos os dias, portanto, quando forem dormir, eliminem tudo que acumularam; morram no

fim do dia. E então ouvimos uma declaração como esta: viver é morrer; - viver e morrer não são duas coisas diferentes.

Se não ouvirem essa declaração com os ouvidos apenas, se estiverem escutando com muita atenção, perceberão a verdade do fato, perceberão a realidade.

E, imediatamente, verão como isso é claro. Assim, será que, no fim do dia, podemos morrer para tudo que não for necessário? Morrer para a lembrança de nossas mágoas, nossas crenças, temores, ansiedades, infortúnios – será que podemos por fim a tudo isso diariamente?

E aí descobrimos que estamos vivendo com a morte o tempo todo, pois a morte é o fim.Precisamos, de fato, investigar essa questão do findar. Nunca terminamos, definitivamente,

coisa alguma; só quando conseguimos alguma vantagem com isso, alguma recompensa. Mas, será que podemos viver assim no mundo de hoje – liquidando tudo voluntariamente, sem pensar no futuro, sem esperar por algo melhor, ter portanto, uma maneira holística de viver, vivendo e morrendo a cada momento?

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Estamos tratando juntos de coisas que o homem se vem ocupando há um milhão de anos – o viver e o morrer.

Temos, portanto, de examinarmos juntos o problema e reagir a ele, dizendo: É, mas eu creio na reencarnação – pois, nesse caso, termina o diálogo entre nós. Estamos apegados a um mundo de coisas – ao nosso guru, ao conhecimento acumulado, ao dinheiro, às crenças com que temos vivido, aos ideais, à memória de nosso filho ou filha e por aí afora.

Nós somos a memória. Nosso cérebro é todo memória – não somente a memória dosconhecimentos recentes mas também a dos remotos, a memória profunda que conserva o que foi o animal, o macaco. Fazemos parte dessa memória e estamos apegados a toda essa consciência. Certo?

Isso é um fato.Aí chega a morte e diz: acabou seu apego. E nós tememos tal coisa, tememos ficar

completamente libertos disso tudo.A morte, no entanto, retira de nós tudo que adquirimos. Podemos inventar e dizer: Sim, mas

eu continuo na próxima vida. Mas o que é que continua?Compreendem a pergunta?Que significa o desejo de continuar? Haverá alguma espécie de continuidade a não ser a da

sua conta bancária, ir diariamente ao escritório, a rotina do culto e a continuidade das crenças - tudo que o pensamento criou?

O pensamento é limitado e, assim, cria conflito – já vimos isso. E o eu, o ego, a "persona" é um complicado feixe de memórias, antigas e recentes. Vivemos de memórias. Vivemos do conhecimento, adquirido ou herdado; somos o produto do conhecimento.

O eu é o conhecimento resultante das experiências passadas, dos pensamentos etc. Isso que é o eu. O eu pode inventar tudo que há algo divino em nós; mas isso ainda é atividade do pensamento. E o pensamento é sempre limitado.

Podem ver isso por si mesmos; não precisam ler livros nem estudar as filosofias; podem perceber por si próprios que são um feixe de memórias. E a morte põe fim a toda memória. Eis porque ficamos atemorizados.

A questão, portanto, é esta: podemos conviver com a morte no mundo moderno?Agora devemos também examinar juntos, o que é o amor. Será que o amor é sensação? Será

desejo? Será prazer? Será coisa criada pelo pensamento? Será que amam a esposa ou o marido ou os filhos? Será que o amor é ciúme? Não digam que não. Será que o amor é medo, ansiedade, sofrimento e tudo mais?

O que é o amor? E sem esse "quê", esse perfume, essa chama, ainda que sejam ricos, tenham poder, posição, importância, sem amor, serão apenas uma concha vazia. Precisamos, por conseguinte, aprofundar essa questão do amor. Se amassem seus filhos, haveria guerras? Se amassem seus filhos, permitiriam que eles matassem outros? Pode haver amor quando existe ambição? Por favor, enfrentem tudo isso! Mas não conseguimos porque estamos presos a uma rotina, à sensação repetida de sexo etc.

O amor nada tem haver, com prazer com sensação.O amor não provém do pensamento; não faz parte, por isso, da estrutura do cérebro.É algo que está completamente fora do cérebro, pois o cérebro, por sua própria natureza, é

instrumento da sensação, das reações nervosas etc.Quando há sensação, não existe amor.O amor não É coisa da memória. E temos que discutir sobre a vida religiosa e a religião.Essa é uma questão muito complexa. Os seres humanos vêm buscando alguma coisa que

esteja além do mundo físico, além da existência diária do sofrimento, dor ou prazer. Têm buscado algo transcendente, primeiro nas nuvens, sendo o trovão a voz de deus. Depois, cultuaram árvores, pedras – e os aldeões que vivem longe desta feia e detestável cidade (Bombaim) ainda veneram pedras, árvores, pequenas imagens. O homem deseja saber se existe alguma coisa sagrada e, então, chega o sacerdote e diz: Vou-lhe mostrar – é exatamente o que faz o guru.

Os sacerdotes do Ocidente possuem seus rituais, frases de repetição, roupas ornamentadas e o culto a imagens. E os daqui também têm suas próprias imagens. Há os que não acreditam em nada disso; são ateus e se dizem humanitaristas.

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Mas os que ouvem a este que fala querem descobrir se há algo fora do tempo, além do pensamento.

Vamos, portanto, investigar juntos, exercitar nosso cérebro, nossa razão, nossa lógica para averiguar o que é religião, o que é vida religiosa e se é possível viver uma vida religiosa neste mundo moderno.

Investiguemos, por conseguinte, para descobrir o que, de fato e verdadeiramente, é a vida religiosa. E só podemos descobrir isso quando compreendemos o que são as religiões e as descartamos totalmente – não quando pertencemos a uma religião, a uma organização, um guru ou determinada autoridade que se diz espiritual.

Não há autoridades espirituais; esse é um dos crimes que cometemos: inventar um mediador entre nós e a verdade.

Quando indagamos o que é religião, nessa própria indagação já estamos vivendo religiosamente; não no fim dela.

No processo mesmo de olhar, observar, discutir, duvidar, objetar, não ter crença nem fé, nessa própria investigação já estamos levando uma vida religiosa. Vamos fazer isso agora.

Tratando-se de assunto religioso, parece que pede a razão, a lógica, o bom senso.Precisamos, portanto, ser lógicos, racionais, descrentes, indagadores em relação a tudo que o

homem criou – deuses, salvadores, gurus e toda a sua autoridade; precisamos eliminar, completamente, tudo isso. Nada disso é religião; é apenas autoridade que alguns poucos assumem. Nós é que lhes conferimos autoridade.

Já notaram que, sempre que há desordem social e política nas relações humanas, aparece um déspota, um ditador? Temos recentes exemplos disso. Sempre que há desordem em nossa vida, criamos uma autoridade; somos responsáveis pela autoridade e existem pessoas prontas a aceitar essa autoridade. Sempre que há medo, inevitavelmente o homem procura um meio de se proteger, de se manter em segurança, uma vez que ele se sente atemorizado. E é por causa desse medo que inventamos deuses,crenças, mitos, filosofias. Por causa desse medo é que inventamos os rituais e todo esse circo a que damos o nome de religião.

Todos os templos neste país, todas as igrejas e mesquitas, tudo isso foi o pensamento que criou. Podem afirmar que há uma revelação sem jamais duvidarem de tal coisa. Mas ponham em dúvida essa revelação.

Acontece que aceitam; se usarem, contudo, a lógica, a razão, o bom senso, perceberão como acumulam superstições - e nada disso, obviamente, é religião.

Será que podem descartar tudo isso para descobrir a essência da religião, qual é a mente, o cérebro, capaz de viver religiosamente?

Será que podem, como seres humanos cheios de temor, viver sem inventar nada, sem criar ilusões, e enfrentar o medo?

O medo psicológico pode desaparecer completamente quando ficamos com ele, sem fugir dele, dando a ele total atenção. É como lançar um jato de luz sobre o medo, um forte jorro de luz; o medo se extingue por completo. E, quando não há medo, já não há mais deuses, já não mais rituais, pois tudo isso se torna desnecessário, estúpido. As coisas que o pensamento inventa nada tem que ver com religião, pois o pensamento não passa de um processo material resultante da experiência, do conhecimento e da memória. É o pensamento que inventa todo palavrório e estrutura das religiões organizadas, que já perderam totalmente a significação.

Será que, voluntariamente, podem rejeitar tudo isso sem esperar por uma recompensa? Será que querem fazer isso?

Se fizerem, então ninguém mais perguntará o que é religião. E haverá alguma coisa que ultrapasse o tempo e o pensamento? Podem fazer essa pergunta, mas, se o pensamento inventar que existe algo transcendente, isso ainda constitui um processo material.

O pensamento é um processo material que acumula o conhecimento nas células cerebrais. O orador não é cientista, mas podem ver isso em si mesmos, podem observar em seu próprio cérebro a atividade do pensamento. Desse modo, se puderem desfazer-se de tudo isso voluntariamente, sem oposição nem resistência, nesse caso, inevitavelmente, indagarão: existirá algo que esteja além do tempo e do espaço?

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Haverá algo jamais visto antes por qualquer outro homem? Haverá algo imensamente sagrado? Haverá algo jamais tocado pelo cérebro? E é isso que vamos descobrir, se é que já deram o primeiro passo, o de varrer completamente toda essa baboseira chamada religião.

Quando usam o cérebro e a lógica, podem duvidar, indagar. Assim, o que significa a meditação que faz parte da religião? O que é meditação? Será fugir do tumulto, ter uma mente silenciosa, uma mente tranqüila e pacífica?

E, para ficarem atentos, para manterem os pensamentos sob controle, praticam um sistema, um método, um processo. Sentam-se de pernas cruzadas e repetem um "mantra" qualquer.

Disseram-me que essa palavra, etimologicamente, significa ponderar, não "vir a ser", absorver eliminar toda atividade egocêntrica. Mas nós repetimos, repetimos, repetimos e continuamos vivendo egocentricamente, egoisticamente, pois "mantra" perdeu o significado.

O que é, pois, meditação? Será um esforço consciente? Costumamos meditar conscientemente, praticar a fim de conseguir alguma coisa – uma mente ou um cérebro tranqüilo, um estímulo para o cérebro. Mas qual é a diferença entre esse meditador e o homem que diz: Quero dinheiro e vou trabalhar para obtê-lo? Qual é a diferença entre os dois?

Ambos estão buscando alguma coisa. O que a busca de um, classificamos de espiritual e a do outro, de mundana. Não obstante, ambos estão buscando algo. Assim, para o orador, isso não é meditação; meditação nada tem que ver com qualquer desejo consciente e deliberado como produto da vontade.

Precisamos indagar, portanto, se há alguma espécie de meditação que não seja produzida pelo pensamento. Haverá alguma espécie de meditação da qual não estejamos consciente? Compreendem isso?

Nenhum processo deliberado de meditação é meditação. Isso é tão claro! Podem sentar-se de pernas cruzadas pelo resto da vida, meditar, respirar e praticar tudo mais sem que cheguem sequer perto da outra coisa, pois isso não passa de uma ação intencional para conseguir um resultado – causa e efeito. Mas o efeito torna-se a causa e, assim, acabam presos num círculo. Haverá uma espécie de meditação que não resulte do desejo, da vontade, do esforço?

O orador afirma que há. Mas não precisam acreditar nisso; pelo contrário, devem duvidar, indagar, assim como o orador indagou, duvidou, rejeitou.

Haverá uma espécie de meditação não planejada nem organizada? Para examinar isso, precisamos compreender o cérebro condicionado, o cérebro limitado, o cérebro que tenta alcançar o ilimitado, o imensurável, o atemporal, se é que existe esse atemporal. E, para isso, é necessário compreender o som.

Som e silêncio são inseparáveis. Costumamos separar o som do silêncio. O som é o mundo; o som é a batida do coração; o universo está repleto de sons; os céus, as milhares de estrelas, todo o firmamento está cheio de som. E consideramos o som uma coisa intolerável. Mas, quando escutamos o som, o próprio ato de escutar é silêncio. O silêncio não se separa do som.

A meditação, portanto, não é algo planejado, organizado. A meditação apenas é.Começa com o primeiro passo que é o estar livre de todos os ressentimentos, livre de tudo que já acumulamos – temores, ansiedades, solidão, desespero, sofrimento. Essa é a base, o primeiro passo e o primeiro passo é o último passo.

Se derem o primeiro passo, termina tudo. Mas não estamos com vontade de dar esse primeiro passo porque não queremos ser livres. Queremos depender – do poder, de pessoas, do meio-ambiente, de nossa experiência, do conhecimento. Nunca nos libertamos da dependência, do medo. No findar do sofrimento está o amor. E nesse amor há compaixão.

A compaixão tem a sua própria inteligência. E quando age a inteligência, atua a própria verdade. Quando essa inteligência está presente, não há conflito. De tudo já ouviram falar – da cessação do medo, do findar do sofrimento, da beleza e do amor. Mas uma coisa é ouvir, e outra, agir.

Ouvem tudo isso que é verdadeiro, lógico, sensato, racional, mas não agem de acordo com isso.

Vão para casa e começa tudo de novo – as preocupações, os conflitos, toda a miséria. Assim, perguntamos: Qual a finalidade de tudo isso?

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Que adianta ouvir este orador e não viver o que ele diz? Quando ouvimos e não agimos, desperdiçamos nossa vida; se ouvirem algo verdadeiro e não agirem, estarão desperdiçando a vida. E a vida é algo muitíssimo precioso – é a única coisa que temos. E acontece que perdemos também contato com a natureza, o que significa que perdemos contato com nós mesmos, parte que somos da natureza.

Não amamos as árvores nem os pássaros nem as águas nem as montanhas. Estamos a nos destruirmos uns aos outros. E tudo isso é desperdício de vida. Quando percebemos toda essa coisa não apenas intelectualmente nem verbalmente, então vivemos uma vida religiosa.

Botar uma tanga, tornar-se pedinte ou entrar para um mosteiro, nada disso é vida religiosa. A vida religiosa começa quando cessa o conflito, quando existe amor. Podemos amar uma pessoa, esposa ou marido, mas aquele amor é para todos os seres humanos, não se destina a uma só pessoa, não é restritivo.

Portanto, se empenharem coração, mente e cérebro haverá algo que transcende otempo. E aí estará a benção - não nos templos, nas igrejas nem mesquitas. Essa benção estará onde estivermos.

QUE IREMOS FAZER DAS NOSSAS VIDAS?

Esta tarde gostaria de falar sobre várias coisas relacionadas entre si, exatamente como todos os problemas humanos estão também relacionados. Não podemos considerar um problema separadamente e tentar resolvê-lo sozinho; cada problema contém todos os outros problemas, se soubermos penetrar nele em profundidade e compreensivamente.

Gostaria, em primeiro lugar, de perguntar o que irá acontecer a todos nós, jovens e velhos - que iremos fazer das nossas vidas? Deixar-nos-emos absorver por esta voragem da respeitabilidade convencional, com a sua moralidade social e econômica, tornar-nos-emos parte da chamada "sociedade culta", com todos os seus problemas, a sua confusão e as suas contradições? Ou iremos fazer da nossa vida uma coisa inteiramente diferente? Este é o problema que está perante a maior parte das pessoas.

Somos educados, não para compreender a vida como um todo, mas para desempenhar um papel particular nesta totalidade que é a existência. Estamos pesadamente condicionados desde a infância para "alcançar" alguma coisa nesta sociedade, para ter sucesso e para nos tornarmos burgueses completos. O intelectual sensível geralmente revolta-se contra um tal padrão de existência. Na sua revolta pode fazer várias coisas: ou se torna anti-social e contra a política, toma drogas e vai atrás de qualquer crença religiosa, estreita e sectária, ou se torna um ativista político, ou ainda, dá-se inteiramente a alguma religião exótica como o budismo ou o hinduísmo. E tornando-nos sociólogos, cientistas, artistas, escritores ou, se tivermos capacidade para isso, filósofos, fechamo-nos num círculo e pensamos ter resolvido o problema. Imaginamos então ter compreendido a totalidade da existência e ditamos aos outros o que deveria ser a vida, de acordo com a nossa tendência particular, a nossa idiossincrasia, e segundo o ângulo do nosso conhecimento especializado.

Quando observamos o que é a vida com a sua enorme complexidade e confusão, não apenas nas esferas econômicas e social, mas também na esfera psicológica, temos de perguntar-nos - se somos realmente sérios - que papel vamos ter em tudo isto. Que vou eu fazer como ser humano a viver neste mundo, e não a fugir para alguma existência de fantasia ou para algum mosteiro?

Ao vermos todos este quadro com toda a clareza, qual vai ser então o nosso comportamento, o que vamos fazer da nossa vida? Esta questão tem sempre de pôr-se, quer estejamos bem dentro do sistema quer apenas à beira de entrar nele. Por isso, parece-me, temos inevitavelmente de perguntar: Qual a finalidade da vida? E como ser humano razoavelmente saudável, do ponto de vista psicológico, que não é totalmente neurótico, que está vivo e ativo: Que papel terei em tudo isto? Que papel ou parte me atrai? E se me sinto apenas atraído para um fragmento ou uma secção determinados, tenho então de ter consciência do perigo de tal atração, porque assim regressamos de novo à mesma velha divisão, que gera esforço, contradição e guerra.

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Poderei então tomar parte na totalidade da vida e não apenas num segmento dela? Tomar parte na totalidade da vida não significa obviamente ter um conhecimento completo das ciências - sociologia, matemática, etc. - da filosofia e assim por diante; isso seria impossível a não ser que se fosse um gênio.

Poderemos portanto criar psicologicamente, interiormente, um modo de viver totalmente diferente? Isto significa, como é óbvio, que todas as coisas exteriores nos interessam, mas que a revolução fundamental, radical, se realiza no campo psicológico.

Que podemos fazer para provocar em nós próprios uma tão profunda mudança? Porque cada um de nós é a sociedade, é o mundo, é tudo o que está contido no passado. Assim, o problema é: Como podemos nós, vós e eu, implicar-nos na totalidade da vida e não apenas numa das suas partes? Este é um dos problemas. Mas há também os problemas da conduta, do comportamento, da retidão, e o problema do amor - o que é o amor, e o que é a morte.

Quer sejamos novos ou velhos, temos de pôr-nos estas questões, porque elas fazem parte da vida, fazem parte da nossa existência; e esta tarde temos de examinar juntos, se acharem bem, todos estes problemas. Vamos aprofundá-los juntos - vós não estais à margem de tudo isto, como se cada um fosse apenas um espectador, um ouvinte a observar por mera curiosidade e com um interesse casual. Quer nos agrade quer não, estamos todos implicados nesta pesquisa: O que fazer da nossa vida? O que é uma conduta reta? O que é o amor - se ele realmente existe? Qual é o sentido desta coisa extraordinária a que se chama morte, que a maioria das pessoas não quer examinar? Assim, ao compreendermos isto na sua totalidade, temos então de perguntar qual é a finalidade de toda a existência.

A vida que elevamos presentemente tem na realidade muito pouco significado - passar nalguns exames, tirar um curso, encontrar um bom emprego e lutar o resto da vida, até morrer. E inventar uma explicação para esta desordem completa é igualmente desastroso. Então, o que é que nos é possível fazer, vendo tudo isto e sabendo que tem de haver uma revolução psicológica profunda que faça surgir uma ordem diferente, uma sociedade diferente, e ao mesmo tempo não dependendo de ninguém para nos iluminar ou tornar lúcidos - que é que nos é então possível?

Para descobrirmos o que é possível temos, em primeiro lugar, de descobrir o que é impossível. Ora, o que é que é impossível ou parece ser impossível? Parece ser impossível para uma mudança completa que uma revolução psicológica integral tenha lugar imediatamente, quer dizer, amanhã acordais e estais completamente diferentes, a vossa maneira de olhar, de pensar, de sentir é tão nova, tão viva, tão apaixonada, tão verdadeira, que não existe mais qualquer sombra de conflito ou hipocrisia. Diz-se que é impossível porque se aceita ou se está acostumado à idéia da evolução psicológica, uma mudança gradual que pode levar cinqüenta anos; assim o tempo é necessário, não só o tempo cronológico, mas o tempo psicológico. Essa é a maneira de pensar que tradicionalmente se aceita: para mudar, para provocar uma revolução psicológica radical, o tempo é necessário. Se alguém sugere, como faz agora este orador, que é possível mudar imediatamente, direis que é impossível, não é verdade? Assim, para vós, isso é impossível; agora, a partir do que sabeis ser impossível, podeis encontrar o que é possível. Então a possibilidade não é o que era antes: é completamente diferente. Estamos a entender-nos?

Quando dizemos "isto é possível, aquilo é impossível", a possibilidade é mensurável, mas quando compreendemos alguma coisa que é impossível, então vemos, em relação ao impossível, o que é possível; e essa possibilidade é então inteiramente diferente daquilo que era possível antes.

Por favor, escutai cuidadosamente, não compareis isto com o que outro qualquer disse - observai-o apenas, em vós mesmos, e vereis que acontece uma coisa extraordinária.

Essa possibilidade agora, tal como somos, é muito pequena; é possível ir à Lua, é possível um homem tornar-se rico, tornar-se professor universitário, ou seja o que for, mas esta possibilidade é muito trivial. Agora quando sois confrontado com uma questão como esta, que cada um de vós deve mudar completamente, e portanto tornar-se um ser humano totalmente diferente, estais então em face do impossível. Quando compreendeis a impossibilidade disso, então, relativamente ao impossível, descobrireis o que é possível, que é algo inteiramente diferente; portanto uma possibilidade completamente diferente tem lugar na vossa mente. E é desta possibilidade que estamos a falar, não da possibilidade trivial.

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Assim, tendo em mente tudo isto - o impossível, e o possível em relação ao impossível, e vendo todo este modo de existir, que posso eu fazer? O "impossível" é amar, sem qualquer sombra de ciúme e ódio.

A maior parte de nós, receio bem, é terrivelmente ciumenta, invejosa e possessiva. Quando se ama alguém, a namorada, a mulher ou o marido, está-se decidido a "prendê-los" para o resto da vida; pelo menos tenta-se. E chama-se a isso "amor" - ele é "meu" ou ela é "minha". E quando o "meu" desvia o olhar ou olha para outra pessoa, ou quando se torna algo independente, então surge a raiva, o ciúme e a ansiedade, e começa o tormento daquilo a que chama amor.

Que é então amar, sem sombra de tudo isso? Sem dúvida que ireis considerá-lo impossível, não-humano, de fato sobre-humano - portanto, para vós, é impossível. Se virdes a impossibilidade disso, descobrireis então o que é possível na relação. Espero estar a ser claro. Este é o primeiro ponto.

Depois a nossa vida, tal como é agora, é luta, dor, prazer, medo, ansiedade, incerteza, desespero, guerra, antagonismo - sabeis o que é realmente a nossa existência de todos os dias, a competição, a destruição, a desordem. Isto é o que de fato acontece, não é o que "deveria ser" ou o que seria "conveniente": só estamos a tratar de aquilo que é.

Assim, vendo tudo isso, dizemos para nós próprios: "É demasiado terrível, tenho de fugir disto. Quero uma visão mais ampla, mais profunda, mais extensa. Quero tornar-me mais sensível." E portanto tomamos drogas.

Esta questão das drogas é muito antiga. Há muitos milhares de anos que se tomam drogas na Índia. Em certa altura chamavam-lhe "soma", agora é o haxixe, o "pan", o LSD, etc.

As pessoas que tomam haxixe e "pan" tornam-se menos sensíveis; perdem-se no seu perfume e nas diversas visões que isso produz e acentua. Estas drogas são geralmente tomadas pelos operários, pelos trabalhadores manuais - aqui não tendes os "intocáveis", como lhes chamam na Índia. Tomam drogas porque as suas vidas são horrivelmente monótonas; têm falta de alimento e por isso não têm muita energia. As únicas coisas que têm são o sexo e as drogas.

O homem verdadeiramente religioso, o homem que quer realmente descobrir o que é a verdade, o que é a vida - não a partir dos livros, não a partir daqueles que no campo religioso mantêm as pessoas entretidas, não a partir de filósofos que apenas estimulam intelectualmente - um homem assim não tem nada a ver com drogas, porque sabe perfeitamente que elas deformam a mente, tornando-a incapaz de descobrir o que é a verdade.

Aqui no mundo ocidental muitas pessoas recorrem à droga. Há aqueles que são sérios e que as tomaram experimentalmente durante algum tempo; alguns deles têm vindo ver-me. Disseram: "Tivemos experiências que pareciam - segundo o que temos lido nos livros - ter uma semelhança com a Realidade Última, ser uma sombra do Real." E porque são pessoas sérias, como também o é o orador, examinaram este problema aprofundadamente; tiveram finalmente de admitir que essa experiência tem muita simulação, que não tem nada a ver com a Realidade Última, com toda a beleza dessa imensidão.

Se a mente não estiver lúcida, cheia de saúde e de energia, não pode estar naquele estado de meditação religiosa que é absolutamente essencial para descobrir essa Realidade que está para além de todo o pensamento, para além de todo o desejo. Qualquer forma de dependência psicológica, qualquer espécie de fuga, através da bebida, através de drogas, numa tentativa para tornar a mente mais sensível, apenas a entorpece e a deforma. Quando abandonamos tudo isso - o que temos de fazer se somos realmente sérios - ficamos em face do que é viver interiormente só. Não se está então dependente de nada, nem de ninguém, de nenhuma droga, de nenhum livro, de nenhuma crença. Só então a mente não tem medo, só então se pode perguntar qual é a finalidade da vida. E se chegarmos a esse ponto, faremos a pergunta? A finalidade da vida é viver - não no caos completo e na confusão a que chamamos vida - mas viver de um modo inteiramente diferente, viver uma vida plena, completa, e viver dessa maneira hoje. É esse o verdadeiro significado da vida - que não é viver como um herói, mas viver interiormente de modo completo, sem medo, sem luta, sem toda esta miséria.

Isto só é possível quando soubermos o que é impossível; temos portanto de ver se podemos mudar imediatamente, por exemplo em relação à cólera, ao ódio, ao ciúme, para que não mais sejamos ciumentos, o que quer dizer invejosos - sendo a inveja uma comparação entre nós e o outro.

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E é possível mudar tão completamente que a inveja (por exemplo) não possa atingir-nos mais? Só é possível quando tivermos consciência da inveja sem a divisão entre o observador e o observado, de tal modo que somos a inveja, somos isso: não nós e a inveja, como alguma coisa separada de nós. E portanto, quando vemos tudo isso completamente, não há possibilidade de fazer alguma coisa em relação a isso; e quando existe o estado completo de inveja, no qual não há divisão, nem conflito, então a inveja não existe mais: é algo totalmente diferente.

Podemos então perguntar: Que é o amor? O amor será prazer? Será desejo? O amor será produto do pensamento, como são o prazer e o medo? Poderá o amor ser cultivado, poderá vir com o tempo? E se não sei o que é o amor, serei capaz de o encontrar?

O amor não é, obviamente, sentimentalismo ou emocionalidade, por isso podemos pô-los imediatamente de lado, porque o sentimentalismo e a emocionalidade são românticos, e o amor não é romantismo.

O prazer e o medo fazem parte do movimento do pensamento e para a maior parte de nós o prazer é a coisa mais importante da vida - o prazer sexual e a lembrança dele, o pensamento de ter tido esse prazer, o pensar nele, tornar a pensar, e desejar tê-lo amanhã - a moralidade social está baseada no prazer.

Assim, se o prazer não é amor, então o que é amor? Reparai nisto, por favor, porque vós é que tendes de dar resposta a estas questões, não podeis esperar apenas que o orador ou qualquer outra pessoa o faça. Trata-se de um problema humano fundamental que tem de ser resolvido por cada um de nós, não por algum guru ou filósofo que diga "isto é amor", "aquilo não é amor".

Amor não é ciúme, não é inveja, ou será? Estais muito silenciosos! Poderemos amar e ao mesmo tempo sermos ávidos, ambiciosos, competitivos? Pode-se amar quando se matam não só animais, mas também outros seres humanos?

Pela negação daquilo que o amor não é - não é ciúme, inveja, ódio, não é a atividade egocêntrica do "eu" e do "tu", a competição tão cheia de fealdade, e desumanidade e a violência da vida quotidiana - saberemos o que é amor. Quando pusermos de lado todas estas coisas, não intelectualmente mas de maneira real, com o nosso coração, a nossa mente, as nossas... ia dizer entranhas - porque obviamente tudo isto não é amor - então encontraremos o amor. Quando soubermos o que é o amor, quando tivermos amor, então estaremos livres para fazer o que está certo; e o que quer que façamos estará certo.

Mas para chegar a este estado, para ter esse sentido da beleza e da compaixão que o amor traz, tem também de haver a morte do ontem. A morte do ontem significa morrer interiormente para todas as coisas - para toda a ambição e para tudo o que se tenha acumulado psicologicamente. Afinal, quando vier a morte, isso é o que de qualquer modo vai acontecer - deixaremos a nossa família, a nossa casa, os nossos valores, todas as coisas que possuímos. Deixaremos todos os livros, donde obtemos tantos conhecimentos, assim como os livros que queríamos escrever e não escrevemos, e os quadros que queríamos pintar. Quando se morre para tudo isso, então a mente está completamente nova, fresca e inocente. Suponho que vão dizer que é impossível.

Quando se diz que é impossível, começa-se então a inventar teorias: deve haver uma vida depois da morte. Segundo os Cristãos há a ressurreição, enquanto que toda a Ásia acredita na reencarnação. Os Hindus afirmam que é impossível morrer para todas as coisas enquanto se tem vida, saúde e beleza; assim, temendo a morte, dão esperança inventando essa coisa "maravilhosa" chamada reencarnação, o que significa que a próxima vida é melhor. Contudo, o melhor tem uma condição: para ser melhor na minha próxima vida, tenho de ser bom nesta, portanto, devo saber comportar-me. Devo viver de maneira reta; não devo fazer mal a ninguém, não deve haver ansiedade, nem violência. Mas infelizmente esses crentes na reencarnação não vivem dessa maneira; pelo contrário, são agressivos, tão cheios de violência como qualquer outro, por isso a sua crença tem tão pouco valor como os dias de ontem já mortos.

O que é importante é o que se é agora, e não se se acredita ou não acredita, se as experiências que se têm são psicodélicas ou apenas vulgares. O que importa é viver com retidão, com virtude - sei que não se gosta desta palavra. Abusou-se terrivelmente destas duas palavras "virtude" e "retidão", todos os sacerdotes as usam, qualquer moralista ou idealista as emprega. Mas virtude é completamente diferente de qualquer coisa que seja praticada como sendo virtude, e aí reside a sua

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beleza, se se tenta "praticá-la", deixa de ser virtude. Ela não é do tempo, por isso não pode ser "praticada", e uma conduta reta não depende do ambiente; a conduta que depende do ambiente poderá estar correta à sua maneira, mas não é virtude. Virtude é amor; é não ter medo, é viver no mais alto nível da existência, o que significa morrer interiormente para todas as coisas - morrer para o passado - para que a mente se torne clara e inocente.

Só uma mente assim pode encontrar aquela imensidão extraordinária que não é invenção da própria pessoa, nem de algum filósofo ou guru.

Interlocutor - Podia explicar, por favor, a diferença entre pensamento e insight?Krishnamurti - Por insight entende compreensão? Ver uma coisa com muita clareza, sem

confusão, sem escolha? Quero compreender em que sentido está a usar a palavra insight. É isto?I - É, sim.K - O que é pensar? Queira reparar nisto, por favor. Quando lhe faço esta pergunta "o que é

pensar?", que acontece na sua mente?I - Pensamento.K - Vamos devagar. Passo a passo, sem nos precipitarmos. Que acontece? Faço-lhe uma

pergunta. Pergunto-lhe onde mora ou como se chama. A sua resposta é imediata, não é verdade? Porquê?

I - Porque se trata de uma coisa no passado.K - Não complique a coisa, por favor, olhe-a apenas. Vamos já complicá-la, mas primeiro

olhe só para ela. Pergunto-lhe como se chama, onde vive, o seu endereço, etc. A resposta é imediata, porque está familiarizado com ela, não tem de pensar. Provavelmente a princípio pensou nisso, mas foi ensinado desde criança a saber o seu nome. Não há nenhum processo de pensamento envolvido nisso. Ora, a seguir pergunto-lhe uma coisa um pouco mais difícil e há um espaço de tempo entre a pergunta e a sua resposta. Que acontece nesse intervalo? Devagar, não me responda, mas descubra-o para si. Bem, vou fazer-lhe uma pergunta: Qual é a distância daqui até à Lua, ou até Marte, ou até Nova Iorque? Nesse intervalo que é que acontece?

I - Estou a procurar.K - Está a procurar, não é assim? A procurar onde?I - Na minha memória.K - Está a procurar na memória, isto é, alguém lho disse ou já leu algo sobre isso, portanto

está a procurar no seu "armário". E então consegue a resposta. Para a primeira pergunta houve uma resposta imediata, mas não está seguro quanto à segunda questão e assim leva mais tempo. Nesse intervalo está a pensar, a indagar, a investigar e eventualmente encontra a resposta certa, Ora, se lhe fizerem uma pergunta muito complexa, como "o que é Deus?"...

I1 - Deus é amor.I2 - Deus é tudo.I3 - A resposta não se encontra na minha memória.K - Ora escutem: "Deus é amor", "Deus é tudo"...I - Deus é o grande agente de mudanças.K - Etc. Agora observem, vejam bem o que aconteceu. Não disseram: "Não sabemos a

resposta certa." Reparem nisto, por favor. É muito importante. Quando não se sabe, acredita-se! Vejam o que acontece - o pensamento atraiçoa-nos.

Primeiro uma pergunta familiar, depois uma mais difícil e finalmente uma pergunta à qual mente responde. Estou condicionado para acreditar em Deus, e portanto tenho uma resposta. E se fosse Comunista diria: "De que estão a falar? Não sejam patetas, Deus não existe. Isso é uma crença burguesa, inventada pelos padres!"...

Estamos então a falar do pensamento. Antes de mais, para descobrir se há ou não há Deus - e temos de o saber, de outro modo não seremos seres humanos completos - para descobrir isso, toda a crença, isto é, todo o condicionamento produzido pelo pensamento humano que nasça do medo, terá de deixar de existir.

Compreendemos então o que é o pensamento: é a resposta da memória, que é o nosso conhecimento acumulado, a nossa experiência e o nosso fundo de condicionamento; quando nos fazem uma pergunta, são provocadas certas vibrações e respondemos a partir dessa memória. O

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pensamento é isso. Por favor, observai-o em vós próprios. O pensamento é sempre velho, obviamente, porque responde a partir do passado, e portanto o pensamento nunca pode ser livre.

Não estão a "simpatizar" muito com isso, pois não?... "Liberdade de pensamento"... Mas não riam, tentando livrar-se disso, olhem-no por favor com muito cuidado! Prestamos culto ao pensamento, não é verdade? O pensamento é a coisa mais importante na vida, os intelectuais têm por ele uma verdadeira adoração, mas quando se olha muito de perto para todo o processo de pensamento, por muito racional que ele seja, por muito lógico, ele é apesar disso a resposta da memória, que é sempre velha - e assim o pensamento, ele próprio, é velho e nunca pode ser fonte de liberdade. Mas, por favor, não aceitem o que o orador diz sobre o que quer que seja.

Como estamos a ver então, o pensamento confunde-nos. A vossa pergunta era "qual a diferença entre pensamento e insight?", que, como vimos, é o mesmo que compreender, ver as coisas com muita clareza, sem qualquer confusão. Quando se vê uma coisa com muita clareza - estamos a referir-nos ao aspecto psicológico - então não há escolha; só há escolha quando há confusão. Dizemos que há "liberdade de escolha", o que de fato significa que há liberdade para estar confuso, porque se não estivermos confusos, se virmos uma coisa instantaneamente e com muita clareza, então para que é preciso escolher?

E quando não há escolha, há clareza.A clareza, o insight ou a compreensão só são possíveis quando o pensamento está suspenso,

quando a mente está tranqüila. Só então se pode ver muito claramente - então podeis dizer que compreendeis realmente aquilo de que estamos a falar, então há percepção direta, porque a mente não está confusa.

Confusão implica escolha e a escolha é produto do pensamento. Farei isto ou farei aquilo? O "eu" e o "não-eu", o "tu" e o "não-tu", "nós" e "eles", etc., tudo isso é resultado do pensamento. E disto nasce conflito, confusão, e é a partir dessa confusão que escolhemos; escolhemos os nossos líderes políticos, os nossos gurus, e tantas outras coisas; mas quando há clareza, então há percepção direta. E, para ser clara, a mente tem de estar completamente silenciosa, completamente tranqüila. Há então uma verdadeira compreensão e, por isso mesmo, essa compreensão é ação, e não o contrário.

I - Como é que as pessoas se tornam neuróticas?K - Como é que sabemos que elas são neurótica? É uma pergunta muito séria, por isso

reparemos bem. Como é que sei que elas são neuróticas? Serei também neurótico por reconhecer que elas o são?

I - Sim.K - Não diga que sim tão rapidamente! Vamos olhar bem para isto, vamos escutá-lo. Que

quer dizer neurótico? Ser um pouco estranho, confuso, sem lucidez, ligeiramente desequilibrado? E infelizmente quase todos somos ligeiramente desequilibrados. Não? Não tem bem a certeza... Não somos desequilibrados quando somos Cristãos, Hindus, Budistas, Comunistas, etc.? Não somos neuróticos quando nos fechamos nos nossos problemas, erguendo um muro à nossa volta porque pensamos que somos muito melhores do que outro qualquer? Não somos desequilibrados quando a nossa vida está cheia de resistência - o "eu" e "tu", o "nós" e "eles" e todas as outras divisões? Não somos neuróticos no emprego quando queremos passar à frente do outro?

Como é então que a pessoa se torna neurótica? Será a sociedade que a faz neurótica? Essa é a explicação mais simples - o meu pai, a minha mãe, o meu vizinho, o governo, o exército, toda a gente me faz neurótico. São todos responsáveis pelo meu desequilíbrio. E quando vou ao psiquiatra em busca de ajuda, pobre homem, ele também é neurótico, como eu... Não riam, por favor. É isto exatamente o que está a acontecer no mundo.

Ora por que é que me torno neurótico? No mundo, tal como existe agora - a sociedade, a família, os pais, os filhos - não há amor. Pensam que haveria guerras se tivessem amor? Julgam que haveria governos que consideram perfeitamente certo que as pessoas sejam mortas? Uma sociedade assim nunca existiria se as mães e os pais amassem realmente os filhos, se quisessem o seu bem, se olhassem por eles e os ensinassem a ser bondosos, a viver e a amar.

Essas são as pressões e as exigências exteriores que dão origem a esta sociedade neurótica; há também impulsos e pressões dentro de nós mesmos, a violência inata que herdamos do passado -

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tudo isso ajuda a criar esta neurose, este desequilíbrio. O fato é portanto este - somos quase todos ligeiramente desequilibrados, ou mais do que isso, e não adianta culpar seja quem for. O fato é que psiquicamente não se é equilibrado - mentalmente, sexualmente, de todas as maneiras, estamos desequilibrados. Mas o importante é a pessoa tomar consciência disso, saber que não é equilibrada, não "como" tornar-se equilibrada. Uma mente neurótica não pode fazer-se equilibrada, mas se não tiver chegado ao extremo da neurose, se ainda conservar algum equilíbrio, é capaz de se observar a si própria. A pessoa pode então estar atenta ao que faz, ao que diz, ao que pensa, à maneira como anda, como está sentada, como come, observando constantemente, mas sem corrigir.

Se se observar dessa maneira sem qualquer escolha, então, dessa observação profunda surgirá um ser humano são e equilibrado; então não mais se será neurótico. Uma mente equilibrada é sábia, e não moldada por juízos e opiniões.

I - Onde é que acaba o pensamento e começa o silêncio?K - Já alguma vez notou um espaço entre dois pensamentos? Ou está constantemente a

pensar sem intervalo nenhum? Compreende a pergunta?I - Não.K - Haverá um intervalo entre dois pensamentos? A pergunta é clara?I -- É, sim.K - Ou é a primeira vez que lhe é feita esta pergunta? Quer então saber o que é o silêncio?

Silêncio será o cessar do ruído? Será como a "paz" que existe entre duas guerras? Será o intervalo entre dois pensamentos? Ou não tem nada a ver com isto?

Se o silêncio for o cessar do pensamento, o cessar do ruído, então será muito fácil suprimir o ruído, isto é, dado que o ruído é a tagarelice - pára-se de tagarelar. Mas será isso silêncio? Ou o silêncio é um estado da mente que já não está confusa, que já não tem medo?

Portanto, onde começa o silêncio? Será que começa quando o pensamento acaba? Já tentou alguma vez acabar o pensamento?

I - Quando a mente muda radicalmente de velocidade, é uma mente tranqüila.K - Sim, senhor, mas alguma vez tentou parar o pensamento?I - Como é que se faz?K - Não sei, mas já tentou? Antes de mais, quem é a entidade que tenta pará-lo?I - O pensador.K - É outro pensamento, não é verdade? É o pensamento que tenta parar-se a si próprio, por

isso há uma batalha entre o pensador e o pensamento. Observe este conflito com muito cuidado, por favor. O pensamento diz: "Devo parar de pensar, porque experimentarei então um estado maravilhoso. Ou pode ser outro motivo qualquer. E assim tenta-se reprimir o pensamento.

Ora a entidade que tenta reprimir o pensamento faz ainda parte do pensamento, não é verdade? Um pensamento está a tentar reprimir outro pensamento, e assim á conflito, é uma batalha. Quando vejo totalmente este ponto, quando o compreendo completamente, quando tenho dele um insight, no sentido em que aquele senhor usou o termo - então a mente fica em silêncio. É o que acontece naturalmente, e de maneira fácil, quando a mente está quieta para observar, para olhar, para ver.

I - Quando a atividade egocêntrica cessa, o que é que motiva a ação?K - Vejamos primeiro o que acontece quando a atividade egocêntrica cessa - então já não

faremos a pergunta, então veremos a beleza da ação em si mesma e não precisaremos de um motivo, porque o motivo faz parte da atividade egocêntrica. Quando essa atividade egocêntrica não existe, a ação não tem motivo algum e é, portanto, verdadeira, reta e livre.

CONFERÊNCIA NA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, SANTA CRUZ, 1972

* * *

PERCEPÇÃO

Que ansiedade pomos na resolução dos nossos problemas! Com que insistência buscamos uma resposta, uma saída, um remédio! Nunca consideramos o problema em si, mas, cheios de

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agitação e ansiedade, lutamos por encontrar uma solução, a qual é invariavelmente uma projeção de nós mesmos. Embora o problema tenha sido criado por nós, queremos encontrar uma solução fora dele. Procurar uma solução fora do problema é evitar o problema - sendo isto o que quase todos nós queremos. A solução torna-se assim aquilo que é mais significativo, e o problema não. A solução não está separada do problema; está no problema, e não fora dele; a solução está no problema, não fora deste. Se pensamos que a solução está desligada do problema principal, criamos problemas secundários: o problema de como conseguir a solução, de como levá-la a efeito, etc. Visto que a busca de solução é uma maneira de fugir ao problema, deixamo-nos tomar pelos ideais, convicções, experiências, que são autoprojeções; adoramos estes ídolos criados por nós, e assim nos tornamos mais e mais confusos e cansados. Arranjar uma solução é relativamente fácil; compreender um problema é muito difícil, exigindo-se um outro modo de abordagem, uma abordagem que não implique nenhum desejo de solução.

Estarmos livres do desejo de uma resposta é essencial para a compreensão do problema. Esta liberdade facilita toda a atenção, porque através desta a mente não está sujeita a ser distraída por questões secundárias. Enquanto houver conflito, ou oposição, com o problema, não haverá compreensão do mesmo; pois este conflito é distração. Só há compreensão quando há comunhão, e esta é impossível se há resistência ou luta, medo ou aceitação. Temos de estabelecer a relação correta com o problema: é aqui que começa a compreensão; mas como é possível uma relação correta com o problema, se só nos interessa livrar-nos dele, encontrando uma solução para ele? A relação correta significa comunhão, e não pode existir comunhão se há resistência, positiva ou negativa. O modo de abordagem do problema torna-se assim mais importante do que o próprio problema; a maneira como consideramos o problema afeta este nos seus contornos. Os meios e o fins não são diferentes da abordagem. A maneira como enfrentamos decide o destino do problema. Portanto, o modo como consideramos um problema é da maior importância, porque as nossas atitudes e preconceitos, os nossos medos e esperanças acabam sempre por colori-lo. Uma percepção sem escolha, trará o correto relacionamento com o problema. O problema é criado por nós próprios, portanto tem de haver autoconhecimento. Eu e o problema formamos um todo, e não dois processos separados. Eu sou o problema.

As atividades do "eu" são terrivelmente monótonas. O "eu" é tédio. Ele é intrinsecamente enervante, inútil, fútil. Os seus desejos opostos e em conflito, as suas esperanças e frustrações, as suas realidades e ilusões são escravizantes e vazias. Essas atividades levam-no à sua própria exaustão. O "eu" está sempre a subir e a cair, sempre a querer alcançar alguma coisa e a sentir-se frustrado, sempre a ganhar e a perder; e está sempre a querer libertar-se deste cansativo carrossel de futilidade. Procura fugir através de atividades exteriores, de soluções que dêem prazer, de bebida, de sexo, de livros, de conhecimentos, de divertimentos, etc. O seu poder de criar ilusões é vasto e complexo. Essas ilusões são por ele fabricadas e projetadas a partir de si próprio; elas são o ideal, a idolatria de "mestres" e "salvadores", o futuro como meio de autopromoção, etc. Na tentativa de fugir da sua própria monotonia, o "eu" procura sensações e excitações interiores e exteriores, as quais são substitutos para a ausência de eu. Nestes substitutos, ele espera perder-se. Muitas vezes, sai-se bem, mas o sucesso só serve para lhe aumentar o tédio. Vai buscando substituto após substituto, com cada um deles a criar problemas, conflitos e sofrimento.

Persegue-se, interiormente e exteriormente, o esquecimento de si mesmo; uns voltam-se para a religião, outros, para o trabalho e atividades. Mas é impossível esquecer o "eu". O barulho que se faz interiormente ou exteriormente poderá abafar o "eu", mas este não tarda a surgir, sob forma diferente, com outra máscara; pois tudo o que se reprime acaba por encontrar um meio de se libertar. O esquecimento de si mesmo através da bebida ou do sexo, pela devoção ou pelo saber, leva à dependência; e tudo o que cria dependência, cria problemas. Se para nos libertarmos, se para nos esquecermos, se para sermos felizes dependemos de bebidas, de "Mestres", os "Mestres" ou as bebidas tornam-se o nosso problema. A dependência gera a inveja, o medo, o desejo de possuir; e então o medo e o modo de o dominar transformam-se para nós num terrível problema. Ao buscarmos a felicidade criamos problemas, e deles ficamos prisioneiros. Encontramos uma certa felicidade no autoesquecimento do sexo, e por isso servimo-nos do sexo como meio de alcançarmos o que pretendemos. A felicidade conseguida por intermédio de uma qualquer coisa, tem de gerar

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inevitavelmente conflito, pois deste modo os meios tornam-se muito mais significativos e importantes do que a própria felicidade. Se a minha felicidade depende daquela cadeira, a cadeira torna-se importantíssima para mim e tenho de a defender dos outros. Nessa luta, a felicidade que antes eu achava na beleza da cadeira é esquecida completamente, perde-se, e só me resta a cadeira. A cadeira, em si, é de pouco valor; mas eu atribui-lhe um valor extraordinário por ser um meio para a minha felicidade. Assim, o meio torna-se substituto da felicidade.

Quando o meio pelo qual obtenho a minha felicidade é uma pessoa, então o conflito e a confusão, o antagonismo e a dor são muito maiores. Se as relações estão simplesmente baseadas no uso, haverá um outro tipo de relação não superficial entre as partes? Se me sirvo de alguém para conseguir a minha felicidade, estarei de fato em relação? Estar em relação significa estar em comunhão com outro em diferentes níveis; e existirá essa comunhão quando o outro me serve de instrumento para a minha felicidade? Nessa utilização do outro, não estarei eu à procura de isolamento, no qual penso ser feliz? A este isolamento chamo "relacionamento"; mas o que realmente se passa é que não há nenhuma comunhão neste processo. Só pode existir comunhão quando não existe medo; e acontece a corrosão do medo e do sofrimento onde há utilização do outro e dependência psicológica. Como nada pode viver em isolamento, todas as tentativas feitas pela mente para se isolar, só a levam à frustração e ao sofrimento. Para escapar a este sentimento de vazio, procuramos encher-nos de ideais, de pessoas, de coisas; e voltamos ao princípio de onde partimos: à busca de substitutos.

Os problemas existirão sempre onde as atividades do "eu" forem dominantes. Para percebermos quais são e quais não são as atividades do "eu", é preciso constante vigilância. Essa vigilância não é atenção disciplinada, mas sim uma percepção extensiva que não escolhe. A atenção disciplinada dá força ao "eu"; torna-se um substituto e uma dependência. A compreensão, pelo contrário, não é auto-indutória, nem é resultado de práticas: é a compreensão de todo o conteúdo do problema, tanto a nível superficial como a nível profundo. A parte superficial tem de ser compreendida, para que o que está em profundidade se revele; o que está oculto não pode ser trazido à luz, se a mente superficial não estiver tranqüila. Todo este processo não é verbal, nem é uma questão de mera experiência. A verbalização indica embotamento da mente; e a experiência, sendo acumulativa, só pode originar repetição. A percepção não é uma questão de determinação, pois, o movimento propositado é resistência, o qual leva à exclusividade. Percepção é a observação silenciosa e sem-escolha do que é; através desta percepção o problema desdobra-se a si mesmo, e assim passa a ser completamente compreendido.

Um problema jamais pode ser resolvido no seu próprio nível; sendo algo complexo, tem de ser compreendido no seu processo total. Tentar resolver um problema num só nível, físico ou psicológico, leva a mais conflito e confusão. Para que um problema se resolva, tem de haver essa percepção, essa vigilância não interventora que desvenda o processo total.

O amor não é sensação. A sensação faz nascer o pensamento através de palavras e símbolos. As sensações e o pensamento tomam o lugar do amor, tornam-se substitutos do amor. As sensações são produtos da mente, do mesmo modo que os apetites sexuais. A mente gera o desejo, a paixão, através da lembrança, e recebe daí sensações gratificantes. A mente é composta de interesses e desejos diferentes em conflito, com as suas sensações exclusivas; e há choques quando um ou outro começa a ser dominante, criando-se assim um problema. As sensações podem ser agradáveis ou desagradáveis, e a mente segura-se ao que é agradável, o que a torna escrava delas. Esta escravidão torna-se um problema porque a mente é um depósito de sensações contraditórias. O evitar daquilo que é doloroso é, do mesmo modo, uma escravidão, com as suas próprias ilusões e problemas. A mente é a criadora dos problemas e, portanto, não pode resolvê-los. O amor não pertence à mente; mas quando a mente intervém, há sensação, a que chama "amor". É este amor gerado pela mente que pode ser pensado, que pode ser vestido e identificado. A mente pode recordar-se ou antecipar sensações agradáveis, e este processo é apetite, esteja ele em que nível estiver. Dentro do campo da mente não pode existir amor. A mente é a área do medo e do calculismo, da inveja e da dominação, da comparação e da negação, e assim o amor não pode acontecer. Os ciúmes, como o sentimento de orgulho, são produto da mente; eles não têm nada a ver com amor. O amor e o processo mental não se podem ligar, não podem ser um todo uno. Quando as sensações predominam, não fica espaço para

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o amor, porque as coisas da mente enchem o coração. E assim, o amor torna-se algo desconhecido que temos de perseguir e adorar; passa a ser um ideal, para ser usado, e os ideais são sempre projeções do "eu". Então a mente toma conta de tudo, e o amor passa a ser uma palavra, uma sensação. O amor torna-se comparativo: "Eu amo "mais" e tu amas "menos"." Mas o amor nem é pessoal nem impessoal; o amor é um estado de ser, no qual a sensação, como pensamento, está completamente ausente.

Krishnamurti - From COMMENTARIES ON LIVING

* * *

Podemos ir longe, se começarmos de muito perto. Em geral começamos pelo mais distante, "o supremo princípio", "o maior ideal", e ficamos perdidos em algum sonho vago do pensamento imaginativo.

Mas quando partimos de muito perto, do mais perto, que é nós, então o mundo inteiro está aberto - pois nós somos o mundo.

Temos de começar pelo que é real, pelo que está a acontecer agora, e o agora é sem tempo.

VIOLÊNCIA E SOFRIMENTO

Toda a forma de conflito é violência - não só o conflito psicológico, interior, mas também o conflito exterior, nas nossas relações com os outros seres humanos, com a sociedade. O sofrimento parece-me constituir um dos mais complexos e difíceis problemas; e essa complexidade, justamente, requer que o encaremos de uma maneira bem simples. Todo o problema complexo, principalmente um problema humano - e temos tantos! - deve, por certo, ser considerado com muita clareza e simplicidade, sem nenhum "fundo" ideológico. De outro modo, traduzimos o que vemos em conformidade com o nosso condicionamento e com as nossas tendências e intenções.

Para compreendermos estes dois problemas - a violência e o sofrimento - tão profundamente arraigados no nosso ser, não devemos examiná-los de maneira puramente verbal ou intelectual. O intelecto não resolve problema nenhum. Poderá explanar problemas - e qualquer pessoa inteligente é capaz disso - mas a explicação, por mais erudita, por mais subtil que seja, não é a realidade. De nada serve explicar a um homem cheio de fome os excelentes alimentos que existem; isso para ele não vale nada. Mas, se apreciarmos estas questões não intelectualmente, mas real e totalmente, se nelas nos empenharmos a fundo e desenredarmos estes dois terríveis problemas que destroem a mente, talvez então possamos superá-los.

Nós, seres humanos, aceitamos a violência e o sofrimento como uma maneira de viver e, já que os aceitamos, tentamos fazer com eles o melhor que podemos. Prestamos culto ao sofrimento, idealizamo-lo e com ele vamos vivendo - como se faz no mundo cristão. No mundo oriental traduzem-no de outras maneiras, mas também sem lhe encontrar a solução. Como tenho dito, herdamos essa violência do animal: a nossa agressividade, o nosso espírito de domínio, o desejo de poder, ânsia de preenchimento. A nossa estrutura cerebral, herdada do animal, é também produto do animal, é também produto da evolução e não só tem a função de auto-proteger-se, como é também agressiva, violenta, dominadora, pensando em termos de posição, de prestígio; todos sabemos isso.

O sofrimento, a auto-compaixão, que faz parte desse sofrimento, a solidão, a total inexpressividade da existência, o tédio, a rotina, despojam a vida de todo o sentido e, por isso, inventamos-lhe uma finalidade; os intelectuais criam uma finalidade ideológica, de acordo com a qual procuramos viver. E, não sendo capazes de resolver esses problemas, voltamo-nos para o passado; para a nossa juventude ou para a cultura tradicional, conforme a raça, o país, etc. Quanto mais urgente se torna o problema, tanto mais nós fugimos para alguma explicação ideológica vinda do passado ou relativa ao futuro; e ficamos aprisionados nessa armadilha. Tanto no Oriente como no Ocidente, se observa a fuga para toda a espécie de entretenimento - o futebol, o cinema, a igreja, etc. A necessidade de distração, de entretenimento assume todas as formas possíveis: visitar museus,

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conversar interminavelmente sobre música, sobre os últimos livros publicados, ou escrever acerca de alguma coisa passada e morta, sem valor nenhum.

Ao que parece, há pouca gente verdadeiramente séria. Por palavra "sério" entendo a capacidade de examinar um problema até ao fim, e resolvê-lo. Resolvê-lo, não de acordo com as inclinações pessoais ou o temperamento de cada um, ou segundo a pressão do ambiente, mas deixando tudo isso de parte e investigando até ao fim a verdade relativa a uma dada questão. Essa seriedade parece bastante rara. Para que possam ser resolvidos estes dois problemas básicos - a violência e o sofrimento - temos de ter essa seriedade e ainda uma certa capacidade de percebimento, de atenção, porquanto ninguém pode resolvê-los por nós. Evidentemente, que nem as velhas religiões, nem organizações bem planeadas e aperfeiçoadas por uma determinada autoridade ou sacerdote - nada nem ninguém desta categoria pode ajudar-nos; são coisas obviamente sem significação. Pode observar-se em todo o mundo que a chamada nova geração está atirando aos ventos todas essas coisas sem sentido - igrejas, deuses, crenças, dogmas, rituais. Para o homem sensato essas autoridades perderam toda a importância. É claro que não tem sentido dependermos de qualquer espécie de autoridade quando o mundo se acha em tal estado de confusão e de sofrimento; principalmente da autoridade organizada num plano religioso, com as respectivas sanções.

Não se pode confiar em ninguém, nem em Salvadores, nem em Mestres - em nenhuma pessoa, incluindo este que vos fala. E, depois de termos posto de lado totalmente todos os livros, filosofias, santos, anarquistas, vemo-nos frente a frente conosco mesmos, tais como somos. Não há filosofia, literatura dogmas, rituais, capazes de pôr fim à violência e ao sofrimento. Precisamos reconhecer isso, antes de passarmos adiante. Quanto mais sério o indivíduo é, e quanto mais urgente é o problema, essa própria urgência recusa a autoridade que tão facilmente aceitamos.

Outro problema é: como examinar, como observar a violência e o sofrimento, tal como em nós existem? Como dissemos, os seres humanos, individualmente, são produto da sociedade, da cultura em que vivem, e essa sociedade e cultura foram construídas por cada um de nós. A sociedade é produto dos seres humanos, e nós fazemos parte desse produto; eis a nossa situação. Estamos aprisionados na armadilha das nossas inclinações, tendências e prazeres pessoais, e tudo isso constitui a estrutura social. Tendemos a considerar o indivíduo e a sociedade como duas coisas diferentes e, portanto, pergunta-se: Que valor tem o homem que se transforma, em relação à estrutura total da sociedade? Tal pergunta parece-me absurda.

Não estamos considerando um dado indivíduo ou uma dada sociedade - francesa, inglesa, ou outra - mas o problema humano geral. Não estamos considerando o indivíduo em relação com a sociedade, nem a relação da sociedade, do "coletivo", com o indivíduo; estamos a tratar da totalidade do problema e não de uma questão particular.

Só podemos compreender uma coisa quando a vemos integralmente, quando lhe vemos toda a estrutura e a respectiva significação. Não podemos perceber a estrutura total da vida, o seu movimento completo, se apenas nos preocuparmos com uma parte dela. Só quando vemos o mapa inteiro, podemos saber onde estamos e escolher o caminho certo. Deste modo, não estamos interessados na salvação ou libertação individual, mas interessa-nos sim o movimento global da vida, a compreensão da corrente total da existência; então talvez possamos encarar de maneira completamente diferente os problemas individuais. É extremamente difícil ver e compreender a totalidade; isso precisa de atenção. Nada se pode compreender intelectualmente; poderemos ouvir palavras, dar explicações, descobrir causas, mas isso não é compreensão. Na observação de nós mesmos, a compreensão só pode verificar-se quando a mente, que inclui o cérebro, está inteiramente atenta. E uma pessoa não está atenta quando interpreta e traduz conforma o seu próprio fundo.

Devem ter notado que quando a mente está totalmente quieta - sem exigir nada, sem fazer "barulho", sem fragmentar o problema - quando diante do problema está perfeitamente tranqüila, há, então, compreensão. Essa compreensão atua, é a força ou energia que nos liberta do problema.

Estamos, pois, empregando a palavra "compreensão" nesse sentido e não no sentido de compreensão intelectual ou emocional. Ela é propriamente uma negação do "positivo", pois "positivo" é o "compreender" um problema com um motivo: o propósito de "fazer alguma coisa" em relação a ele. Em geral quando temos um problema, tendemos a preocupar-nos com ele, a fragmentá-lo, a analisá-lo, a achar uma fórmula para o resolver. E o pensamento, como se pode

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observar, é sempre reação do "velho"; portanto, nunca é novo e o problema, entretanto, é sempre novo. Traduzimos o novo, o problema, em termos de pensamento, mas o pensamento é velho e, portanto, "positivo", no sentido de "fazer alguma coisa" em relação ao problema.

O pensamento é a reação do passado; é memória, experiência, conhecimento acumulado; é velho e os desafios são sempre novos - se são desafios. Desse fundo de conhecimento, experiência, memória, procede a reação, na forma de pensamento; o pensamento é sempre do passado e traduz o desafio ou o problema nesses termos. E o pensamento, como se pode observar, produz, em relação ao problema, uma reação "positiva", ditada pelo passado.

Vemos, pois, que o pensamento não representa a solução; mas isso não significa que nos devemos tornar "nebulosos", vagos, distraídos ou mais neuróticos do que já somos. Pelo contrário, quanto mais atenção prestamos - atenção completa - a uma coisa, qualquer que ela seja, vemos que nessa atenção não há pensamento algum, não há pensar; não há nenhum "centro" a funcionar como pensamento. A compreensão acontece sem a reação do "fundo" de pensamento. Compreensão é ação imediata.

Está mais ou menos claro isso, ou parece abstrato demais? Vejamos: se quero compreender uma criança, tenho de observá-la, de dar-lhe atenção. Observá-la quando brinca, quando chora, quando se comporta "mal", quando faz qualquer coisa; observá-la, simplesmente, sem a corrigir. Preciso de a compreender; portanto, não tenho preconceitos, não tenho padrões de pensamento relativos ao que é "bom" e ao que é "mau". Observo-a, somente; e, nessa atenção vigilante, começo a compreender a natureza da sua atividade. É relativamente fácil observar, dessa maneira, a natureza, uma flor, por exemplo; a natureza não exige muito de nós. Observar uma coisa objetiva é bastante fácil. Mas observar o que se passa interiormente em nós, observar a nossa violência, o nosso sofrimento, com clara atenção, já não é tão fácil. Tal observação, tal atenção, exclui totalmente qualquer espécie de inclinação ou tendência pessoal ou de compulsão por parte da sociedade; é como observar o movimento de um rio. Quem se senta na margem de um rio pode observar-lhe o fluir e tudo ver. Mas a pessoa sentada na margem e o movimento do rio são dois entes diferentes; ela constitui o "observador" e o movimento do rio é a coisa "observada". Já quando está dentro de água - e não sentada na margem - participa desse movimento e não há nenhum "observador". Do mesmo modo, observemos a violência e o sofrimento, não como observadores a "observar" uma coisa, mas sem espaço entre o observador e o observado. Isto faz parte da investigação total, da meditação sobre a vida.

Como já dissemos, nós os seres humanos somos violentos, e essa violência, herdada do animal, nunca a investigamos realmente porque temos o conceito da "não violência"; interessa-nos o conceito e a ideologia da "não violência" - o que "deveria ser", e não o fato, o que realmente é.

Permitam-me sugerir-lhes que não se limitem a ouvir palavras; palavras são palavras e pouco significam. Semanticamente, podemos penetrar-lhes o significado, mas a palavra não é a coisa, a explicação não é o fato - o que é. Qualquer um está sujeito a cair na armadilha verbal, e ficar escutando, infinitamente, só palavras. Palavras são cinzas, não têm sentido profundo. Mas se ouvirem para além das palavras, se se observarem como realmente são - não agora, porque estão a ouvir uma palestra, mas "lá fora"; se se observarem, não egocentricamente, não introspectiva ou analiticamente, mas apenas observando o que efetivamente acontece, descobrirão então, pessoalmente, não só a violência superficial (a cólera, o desejo de posição, etc.) mas também a violência profundamente enraizada. Com essa descoberta, o "conceito" da não violência perde toda a validade; válido é o fato - a violência.

Observe-se o fato da violência no Oriente: na Índia sempre se falou, se pregou, se "praticou" a não violência; mas, no momento em que se apresenta qualquer desafio, a não violência desaparece e todos se tornam violentos. Aqui, igualmente, se fala sem cessar de paz; em todas as igrejas se fala de amor, de bondade, de amar o próximo; entretanto, tivemos as guerras mais terríveis - quinze mil guerras, ao todo, nos últimos cinco mil anos! E temos de observar como está profundamente arraigada em nós essa violência - na nossa exigência de preenchimento, na competição e na constante comparação com outrem, no imitar, no obedecer, no seguir alguém, no ajustar-nos a um padrão; tudo isto são formas de violência. A nossa libertação em relação a essa violência exige muita atenção e empenhamento; se não ficamos livres dela, não vejo como possa haver paz no mundo.

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Poderá haver uma suposta paz entre duas guerras, entre dois conflitos; no entanto, essa paz não é a paz real, íntima, profunda, não contaminada por qualquer ideologia ou qualquer pensamento, não organizada por qualquer filosofia limitada e sem significação. Se não temos essa paz, como podemos ter amor, empenhamento, afeição? Ou, se não há essa paz, como se pode criar alguma coisa? Podemos pintar quadros, compor poemas, escrever livros sobre o passado, etc., mas tudo levará ao conflito, à escuridão. Para conquistarmos a liberdade, e ficarmos livres da violência - totalmente e não apenas parcialmente, fragmentariamemte - temos de aprofundar este problema.

Temos de compreender a natureza do prazer; a violência e o prazer estão intimamente relacionados. Pois, de novo, se nos observarmos, vemos que toda a nossa psicologia se baseia no prazer - tanto nos prazeres sensoriais, sexo, etc., como no prazer de realizar alguma coisa, no prazer de alcançar sucesso, de preencher-se, de conquistar posição, prestígio, poder. Mais uma vez, tudo isso se encontra no animal (numa quinta onde se criam aves pode observar-se esse mesmo fenômeno). Há prazer tanto no divertir-se como no insultar. Buscar o prazer, a posição, o prestígio, a fama, é uma forma de violência, pois tem de ser-se agressivo. Neste mundo, se uma pessoa não é agressiva, é espezinhada pelos outros, empurrada para o lado. Assim, importa perguntar: "Posso viver sem agressividade e ao mesmo tempo viver no meio social?" É provável que não. Mas, porque viver na sociedade, isto é, na estrutura psicológica da sociedade? Tem de se viver na estrutura externa da sociedade - ter uma atividade, vestir-se, ter casa, etc., mas porque viver na estrutura psicológica da sociedade? Porque aceitar a norma da sociedade que requer que o indivíduo se torne escritor de sucesso, homem famoso, etc.? Tudo isso faz parte do "princípio do prazer", que se traduz em violência. Na igreja diz-se: amemos o próximo - e nos negócios "cortamos-lhe o pescoço".

A norma social não tem sentido. Toda a estrutura militar, toda a estrutura baseada no princípio hierárquico, na autoridade, significa, mais uma vez, domínio e prazer que, por seu turno, faz parte da violência - da violência básica. A compreensão de tudo isto exige muita observação; não é questão de capacidade: começa-se a compreender pelo observar. E ver é agir.

É o prazer que buscamos, a todas as horas. Queremos prazer cada vez maior, e o prazer supremo, naturalmente, é o de "alcançar Deus". Na busca do prazer encontra-se o medo; transportamos durante a vida essa lúgubre carga do medo. Medo, aflição, pensamento, violência, agressão - todos se interrelacionam. Por conseguinte, compreendendo-se claramente uma dessas coisas, compreendem-se as demais.

Podemos arranjar tempo para analisar toda a estrutura emocional e intelectual do nosso ser; analisá-la passo a passo, como fazem os analistas, na esperança de estabelecer uma relação normal entre o indivíduo e a sociedade; ou podemos ver que somos violentos e compreender diretamente a causa dessa violência. Assim sabemos qual é essa causa. Mas ver todas e cada uma das formas de violência exige tempo; destrinçar a violência, completamente, em todas as suas formas, é um trabalho de meses, de anos. Esse processo parece-me absurdo. É como um homem ser violento e tentar ser não violento e, enquanto o está tentando, continuar a semear os germes da violência. A questão, pois, é se somos capazes de ver instantaneamente a coisa no seu todo, e resolvê-la imediatamente. É disso que se trata realmente, e não de proceder pouco a pouco, dia após dia, mês após mês. Essa é uma tarefa terrível, desanimadora, interminável, exigindo uma mente meticulosa, analítica, capaz de dissecar, de ver cada aspecto e não perder uma só particularidade - pois, perdendo-se alguma particularidade, o quadro sai todo errado. Isso não só exige tempo, mas encerra também um conceito que formamos sobre o que é "ser livre da violência". Esse conceito, esse pensar de que nos servimos para tentarmos libertar-nos da violência, cria, de fato, violência; a violência é criada pelo pensamento. A questão, pois, é esta: É possível perceber a coisa na sua totalidade, imediatamente? - não intelectualmente, porque, se ela é formulada como um problema intelectual, não se encontra nenhuma solução e a pessoa acaba suicidando-se, como o fazem muitos intelectuais - suicidando-se de fato ou inventando uma teoria, uma crença, um dogma, um conceito e ficando escravos dele (o que é também uma forma de suicídio), ou voltando às velhas religiões, tornando-se católico, protestante, hinduísta, adepto do Zen, etc.

A questão, pois, é se há possibilidade de ver a coisa na sua totalidade, imediatamente e, com esse ato de ver, pôr-lhe fim.

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Vemos a totalidade quando o problema é suficientemente urgente, não só para a própria pessoa, como também para o mundo.

Há guerra exteriormente, e interiormente, há guerra em cada um de nós; é possível acabarmos com ela imediatamente, "voltarmos-lhe as costas", psicologicamente? Ninguém pode responder a esta pergunta senão vós mesmos - isto é, quando a ela respondem sem dependerem de qualquer autoridade, de quaisquer conceitos intelectuais ou emocionais, quaisquer fórmulas ou ideologias. Mas, como dissemos, isso exige muita seriedade e uma grande observação - observação, quando estamos sentados num autocarro, vendo tudo à nossa volta; observação daquilo que está à nossa frente, a mover-se, a transformar-se; observação, sem motivo algum, de todas as coisas tal como são. O que é tem muito mais importância do que o que "deveria ser". Como resultado desse empenhamento, dessa atenção, talvez venhamos a saber o que é amar.

Observar é meditação, e isso não significa que para observarmos tenhamos de meditar. Observar é extremamente difícil. Observar significa, de fato, apercebermo-nos da interferência do pensamento; ver como a imagem que temos do que quer que seja, interfere com o ato de olhar. Porque temos uma imagem de quem quer que seja? Aqui estamos, vós e eu, a olhar-nos - eu, o "orador", e vós, os "ouvintes". Têm, infelizmente, uma imagem relativa ao "orador", mas eu que não os conheço, nenhuma imagem tenho de vós e, portanto, posso olhá-los. Mas não posso fazê-lo se digo para mim: vou servir-me destes "ouvintes" para alcançar poder, posição, para os explorar, tornando-me um homem famoso - sabemos, de resto, de todas as futilidades que os seres humanos cultivam. Assim, observar significa: observar sem a interferência do nosso fundo. Compreendem? Todo o nosso ser, que está a "olhar", é o nosso fundo - cristão, francês, intelectual... Pela observação descobre-se esse fundo; é observá-lo com objetividade, sem escolha, sem qualquer tendência, é uma grande disciplina - não a absurda disciplina do ajustamento, da imitação.

Essa observação torna a mente extraordinariamente ativa, e muito sensível. Isso, no seu todo, é meditação. Não se entenda, pois, que "para observar é preciso meditar", mas antes, que é quando observamos que todas estas coisas acontecem. Eis o que significa meditação, e não uma determinada espécie de "controle do pensamento", assunto de que trataremos mais tarde.

Krishnamurti - From TALKS IN EUROPE, 1967

"Arrastar problemas psicológicos de dia para dia é uma tremenda perda de tempo e de energia, sendo sinal de desatenção. Uma mente profundamente atenta e empenhada encara o problema logo que ele surge, observa a sua natureza e resolve-o imediatamente. Arrastar um problema psicológico não ajuda a resolvê-lo. É um desperdício de energia e um desgaste da mente. Quando se encaram os problemas à medida que eles surgem, descobre-se então que eles deixam completamente de existir."

Krishnamurti

OBSERVARSaanen, Agosto 7, 1969

É importante, penso eu, compreender a natureza e a beleza da observação, a beleza do ver. Enquanto a mente estiver, de algum modo, deformada -- por pressões e sentimentos neuróticos, pelo medo, pelo sofrimento, pela doença, pela ambição, pelo esnobismo e busca de poder --ela não tem possibilidade de escutar, de observar, de ver. A arte de ver, de escutar, de observar, não é algo a ser cultivado, não é uma questão de evolução e de crescimento gradual. Quando temos a percepção do perigo, há ação imediata, há uma resposta instintiva, instantânea, do corpo e da memória. Desde a infância que somos condicionados de maneira a enfrentar o perigo, para que a mente responda instantaneamente, caso contrário, há destruição física.

Perguntamos se é possível agir no próprio ato de ver, no qual não há qualquer condicionamento. Poderá a mente responder livremente, instantaneamente, a qualquer forma de distorção e, portanto, atuar? Isto é, percepção, ação e expressão são um todo; não estão divididas, fragmentadas. O próprio ver é agir, que é a expressão desse ver. Quando há a percepção do medo,

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observemo-lo tão intimamente, que esse mesmo observar é libertar-se dele; e isso é ação. Poderíamos investigar isto, esta manhã? Sinto que isto é muito importante. Talvez fossemos capazes de penetrar no desconhecido. Mas a mente que está, de algum modo, profundamente condicionada pelos seus próprios medos, ambições, avidez, desespero, e tudo o mais, não tem possibilidade de penetrar em algo que exige um ser saudável, mentalmente equilibrado e harmonioso.

Assim, a nossa questão é saber se a mente -- isto é, o ser total -- pode ter consciência de determinada forma de perversão, de luta, de violência e, ao ver isso, pôr-lhe fim, não gradualmente mas instantaneamente. Isto significa não permitir que o tempo se intrometa entre percepção e ação. Quando vemos o perigo, não há intervalo de tempo, acontece logo ação instantânea. Estamos habituados à idéia de que pouco a pouco atingiremos sabedoria, iluminação, pela observação, pela prática, dia-após-dia. É a essa idéia que estamos habituados, é esse o padrão da nossa cultura e do nosso condicionamento. Ora, estamos a dizer que este processo gradual da mente se libertar do medo ou da violência apenas aumenta o medo e produz mais violência.

Será possível fazer cessar a violência -- não apenas exteriormente mas profundamente, nas próprias raízes do nosso ser -- fazer cessar a tendência para a agressão, a ânsia de poder? No próprio ato de ver tudo isso de um modo completo, seremos nós capazes de os extinguir, sem permitir que o tempo venha interferir? Vamos discutir isto esta manhã? Normalmente, deixamos que o tempo ocupe o intervalo entre o ver e o agir, o espaço entre o que é e o que "deveria ser".

Existe o desejo de pôr de lado o que é, para alcançar algo ou para nos tornarmos qualquer coisa. Cada um de nós tem de compreender muito claramente este intervalo de tempo; pensamos em termos de tempo porque desde pequenos que somos levados a pensar assim: eventualmente, gradualmente, chegaremos a ser algo. Exteriormente, tecnologicamente, podemos ver que o tempo é necessário. Não posso tornar-me um carpinteiro, um físico, ou um matemático de grande qualidade, sem levar muitos anos a preparar-me para isso. Temos de ter lucidez, intuição -- não gosto de usar esta palavra "intuição" -- para compreender uma questão matemática quando se é muito novo. E percebemos que, para cultivar a memória que é exigida na aprendizagem de uma nova técnica ou de uma nova Língua, o tempo é absolutamente necessário. Não posso saber falar Alemão já amanhã, preciso de muitos meses. Não sei nada de eletrônica, e para aprender isso necessito talvez de alguns anos. Portanto, não vamos confundir o tempo como elemento necessário para aprender uma técnica, com o perigo de deixar o tempo interferir com a percepção e a ação.

Interlocutor: Poderíamos falar das crianças, do seu desenvolvimento?Krishnamurti: A criança tem de desenvolver-se. Tem de aprender muitas coisas. Quando se

diz: "Tens de ser um homem" -- isto é bastante destruidor.I.: Uma mudança psicológica parcial acontece dentro de nós.K.: Certamente! Sou, ou fui, colérico, e digo: "Não devo ser colérico", e gradualmente vou

trabalhando para isso, tendo em vista alcançar um estado parcial onde sou um pouco menos colérico, menos irritável e mais controlado.

I.: Não era isso o que eu queria dizer.K.: Então o que quer dizer?I.: Quero dizer qualquer coisa que tivemos e que ultrapassamos. Pode haver de novo

confusão, mas já não é a mesma coisa.K.: Sim, mas não será ainda a mesma confusão, só que ligeiramente modificada? Há uma

continuidade modificada. Podemos deixar de estar dependentes de alguém, passar pela dor da dependência e da solidão, e dizer:" Não mais serei dependente". E talvez sejamos capazes de ultrapassar isso. Assim, dizemos que aconteceu uma certa alteração. A próxima dependência não será exatamente a mesma que era antes. E de novo repararei nisso e conseguirei pô-la de lado, e assim por diante.

Mas perguntamos agora se é possível ver toda a natureza da dependência e instantaneamente ficar livre dela -- não gradualmente -- do mesmo modo que se atuaria imediatamente se estivéssemos em presença de um perigo. Este assunto é verdadeiramente importante, e devíamos tentar investigá-lo, não apenas verbalmente mas em profundidade, interiormente.

Reparemos nas implicações disto. Na Ásia acredita-se na reencarnação: isto é, renasceremos na próxima existência de acordo com o que vivemos nesta. Se vivemos desumanamente,

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agressivamente, destrutivamente, vamos pagar por isso na próxima vida. Não nos tornamos necessariamente um animal, mas voltamos a ser humanos vivendo uma vida com mais sofrimento e mais destrutiva, porque anteriormente não vivemos uma vida cheia de beleza. Aqueles que acreditam nesta idéia da reencarnação, crêem apenas na palavra, e não no seu sentido profundo. Deste modo, o que fizermos agora tem infinita importância para amanhã -- porque amanhã, que é a próxima vida, vamos pagar o que fizermos hoje. Portanto, a idéia de se atingir "gradualmente" diferentes formas é essencialmente a mesma no Oriente e no Ocidente. Há sempre esse elemento tempo, o que é e o que "deveria ser". Atingir o que "deveria ser" requer tempo, tempo como esforço, concentração, atenção. Como não somos capazes de atenção ou de concentração, há sempre um esforço constante para prática da atenção, a qual requer tempo.

Tem de haver um modo totalmente diferente de abordar este problema. Temos de compreender o que é percepção, que é ao mesmo tempo ver e agir; estes não estão separados, não estão divididos. Temos igualmente de investigar a questão da ação, do fazer. O que é ação, o que é fazer?

I.: Como pode um cego agir, se não tem percepção?K.: Já alguma vez tentou vendar os seus olhos por uma semana? Eu já o fiz, por curiosidade.

Sabe, desenvolvem-se outras formas de sensibilidade, outros sentidos tornam-se muito mais despertos: quando nos dirigimos para a parede, para a cadeira, ou para a mesa, sentimos antes a presença delas. Mas aquilo que estamos a falar é de estarmos cegos para nós próprios, interiormente. Reparamos muito nas coisas exteriores, mas interiormente estamos cegos.

O que é ação? Será ela sempre baseada numa idéia, num princípio, numa crença, numa conclusão, numa esperança, num desespero? Se temos uma idéia, um ideal, estamos a ajustar-nos a esse ideal; há um intervalo entre o ideal e a ação. Esse intervalo é tempo. "Serei esse ideal, porque identificando-me com ele, com o tempo, esse ideal atuará, e não haverá separação entre a ação e o ideal". O que é que acontece quando há este ideal e a acção que tenta aproximar-se dele? Nesse intervalo de tempo o que é que acontece?

I.: Uma comparação incessante.K.: Sim, comparação, e tudo o resto. Se observarmos isso, que ação acontece?I.: Ignoramos o presente.K.: E que mais?I.: Contradição.K.: É, de fato, contradição --o que leva à hipocrisia. Sou colérico, e o ideal manda: "Não

sejas colérico". Estou a reprimir, a controlar, a conformar-me, a tentar aproximar-me do ideal e, portanto, estarei sempre em conflito e a iludir-me. O idealista é uma pessoa que se ilude a si próprio. Também, nesta divisão, há conflito. Há ainda outros fatores que surgem.

I.: Por que não nos é permitido recordar as nossas vidas anteriores? A nossa evolução seria muito mais fácil.

K.: Seria?I.: Poderíamos evitar erros.K.: O que é que quer dizer por vida anterior? Aquilo que viveu ontem, vinte e quatro horas

atrás?I.: A última encarnação.K.: Aquilo que se passou há cem anos? Como é que lembrar-se disso tornaria a sua vida mais

fácil?I.: Poderia compreender melhor.K.: Por favor, vamos passo a passo -- você teria a memória do que fez ou não fez, daquilo

que sofreu há cem anos atrás, o que é exatamente a mesma coisa que ontem. Ontem fez várias coisas de que gostou ou de que se arrependeu, que lhe causaram aflição, desespero, sofrimento. Há a memória de tudo isso. E tem-se a memória de há mil anos, que é essencialmente a mesma coisa que ontem. Por que chamamos a isso "reencarnação", e não reencarnação de ontem, que renasceu hoje? Não gostamos disso porque julgamos que somos seres extraordinários, ou que temos tempo para crescer, para vir a ser, para reencarnar. O que reencarna é aquilo para o qual nunca olhamos -- a nossa memória. Não há nada de sagrado nisso. A nossa memória de ontem nasce hoje naquilo que

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fazemos; o ontem controla o que fazemos hoje. E um milhar de anos de memórias está em ação através de ontem e de hoje. Portanto, há uma reencarnação constante do passado. Não vamos pensar que esta é uma saída hábil para isto, uma explicação. Quando compreendemos a importância da memória e da sua total futilidade no campo psicológico, então nunca mais nos interessará falar de reencarnação.

Perguntamos: O que é ação? Será que ela é sempre livre, espontânea, imediata? Ou estará sempre presa ao tempo, que é pensamento, que é memória?

I.: Observei uma gata a perseguir um rato. Ela não pensa: "É um rato"; imediatamente, instintivamente, ela apanha-o. Parece-me que também nós temos de atuar espontaneamente.

K.: Não se trata de "temos de" ou "devemos". Penso que não dizemos "devemos" ou "temos de" quando compreendemos o elemento tempo na sua essência. Estamos a perguntar a nós mesmos, não verbal ou intelectualmente, mas profundamente, interiormente, o que é ação? Será que a ação está sempre ligada ao tempo? A ação nascida da memória, do medo, do desespero, está sempre ligada ao tempo. Haverá uma ação que seja completamente livre e, portanto, sem tempo?

I.: Está a dizer que alguém que vê uma serpente (ou um tigre), age imediatamente. Mas o número de serpentes cresce com a ação. A vida não é assim tão simples, não há apenas uma serpente mas duas, e isso torna-se como que um problema matemático. E então surge o tempo.

K.: Diz que vivemos num mundo de tigres e que não nos confrontamos com apenas um mas sim com dúzias deles em forma humana, sendo eles brutais, violentos, avarentos, ávidos, cada um perseguindo a sua satisfação particular. E para viver e agir nesse mundo precisamos de tempo para "matar" tigre após tigre. O tigre sou eu -- está em mim -- há dúzias de tigres dentro de mim. E o senhor disse que, para nos livrarmos desses tigres, um a um, precisamos de tempo. É precisamente isso que, completamente, estamos a pôr em questão. Aceita-se que é preciso tempo para gradualmente se matarem, uma após outra, essas serpentes que estão em "mim". O "eu" é o "tu" -- o "tu", com os seus tigres, com as suas serpentes -- tudo isso também é o "eu". E perguntamos: "Para quê matar, um após outro, esses animais que estão em mim, milhares de serpentes, se, quando acabar de os matar, já estarei morto?"

Haverá então um modo -- por favor, escutem bem, não respondam já, descubram em silêncio -- de nos vermos livres de todas as serpentes, não gradualmente mas imediatamente? Serei capaz de ver o perigo de todos os "animais", de todas as contradições que existem em mim, e libertar-me deles instantaneamente? Se não puder fazê-lo, então não há esperança para mim. Posso fingir de muitas maneiras, mas se não for capaz de apagar imediatamente tudo isso que está em mim, serei para sempre um escravo, quer venha a renascer numa próxima vida ou em dez mil vidas. Assim, tenho de encontrar um modo de agir, de olhar que, no instante da percepção, ponha fim ao "dragão" particular, ou ao "macaco" que há em "mim".

I.: Então façamo-lo!K.: Esta questão é realmente muito importante; não se pode dizer apenas "façamo-lo" ou

"não o façamos". Tudo isto requer uma investigação extrema; não me digam que já conseguiram ou que se deve fazer isto ou aquilo, isso não me interessa -- quero descobrir.

I.: Se eu ao menos pudesse ver isso.K.: Não, por favor, não diga "se".I.: Se eu compreendesse uma coisa, deveria pô-lo em palavras, ou deixá-lo ficar em mim?K.: Por que traduz o que está a ser dito numa linguagem muito simples, para as suas próprias

palavras -- em vez de ver o que está a ser dito? Há muitos "animais" dentro de nós, muitos perigos. Poderei libertar-me de todos eles com uma só percepção -- vendo-os imediatamente? A senhora poderá ter feito isso, não ponho em dúvida se o fez ou não; isso seria falta de respeito da minha parte. Mas estou a perguntar: será que isto é possível?

I.: A ação tem duas partes. A parte interior, a que decide, tem lugar imediatamente. A outra, a ação para o exterior, precisa de tempo. Decisão significa ação interior. A ponte que liga estes dois aspectos da ação precisa de tempo. Há aqui um problema de linguagem, de transmissão.

K.: Compreendo, senhor. Há ação exterior, que precisa de tempo; e ação interior, que é percepção e ação. Como é que esta ação interior, com a sua percepção, decisão e ação imediata, pode ligar-se à outra ação que precisa de tempo? Está clara a questão?

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Se me permite salientar, penso que não é precisa nenhuma ponte, nenhuma ligação. Vou mostrar-lhe o que quero dizer. Compreendo muito claramente que para ir daqui para ali leva tempo, aprender uma Língua exige tempo, fazer algo fisicamente também precisa de tempo. Interiormente, será mesmo necessário o tempo? Se eu puder entender a natureza do tempo, então vou lidar corretamente com o elemento tempo no mundo exterior. Portanto, não começo pelo exterior, porque reconheço que o exterior precisa de tempo. Mas, pergunto a mim próprio se na percepção interior, na decisão e na ação, tem de haver tempo. Assim, pergunto: "Será mesmo necessária a decisão?" -- decisão que é afinal um instante do tempo, um segundo, um ponto. "Eu decido" quer dizer que há um elemento de tempo; a decisão baseia-se na vontade e no desejo, e tudo isso é tempo. Assim, pergunto: "Por que é que a decisão terá de entrar em tudo isto?" Ou fará a decisão parte do meu condicionamento que diz: "Precisas de tempo"?

Haverá percepção e ação sem decisão? Isto é, tenho consciência do medo, um medo gerado pelo pensamento, pelas memórias, pelas experiências, um medo de ontem encarnado hoje. Compreendo toda a natureza, estrutura e essência do medo. E ver isso sem decisão é ação, que é libertarmo-nos dele. Será isto possível? Não digamos que sim, que eu já consegui, ou que outra pessoa o conseguiu também -- isso não interessa. Poderá este medo cessar instantaneamente, logo que surge? Há os medos superficiais, os medos do mundo. O mundo está cheio de "tigres", e esses tigres, que fazem parte de mim, vão destruir-me; por conseguinte, há uma guerra entre mim -- um tigre -- e o resto dos tigres.

Há também o medo interior -- estar inseguro, psicologicamente, ter dúvidas -- gerado pelo pensamento. Este gera prazer, medo -- vejo tudo isso. Vejo o perigo do medo, do mesmo modo que vejo o perigo de uma serpente, de um precipício, ou de uma corrente de águas profundas -- vejo completamente o perigo. E o próprio ato de ver é o findar do medo, sem intervalo de um breve segundo que seja para tomar uma decisão.

I.: Algumas vezes pode-se reconhecer um medo e mesmo assim ele continuar.K.: Temos de penetrar nisto com muito cuidado. Antes de mais, não quero ver-me livre do

medo. Quero que ele se exprima, quero compreendê-lo, deixá-lo fluir, deixá-lo vir, deixá-lo "explodir" em mim, etc.. Não sei nada acerca do medo. Só sei é que tenho medo. Agora quero descobrir até que nível, até que profundidade tenho medo, conscientemente, ou nas próprias raízes, nos profundos níveis do meu ser -- nas cavernas, nas regiões inexploradas da minha mente. Quero descobrir. Quero que tudo apareça e fique exposto. E como é que vou fazê-lo? Preciso de fazê-lo -- não gradualmente. O medo tem de sair de dentro de mim, completamente.

I.: Se há milhares de tigres e eu me sento no chão, não os consigo ver. Mas se eu me deslocar para um planalto posso lidar com eles.

K.: Não diga "se". "Se eu pudesse voar veria toda a beleza da terra". Não posso voar, estou aqui. Tenho receio que estas questões teóricas não tenham qualquer valor e, aparentemente, não compreendemos isso. Tenho fome, e estão a alimentar-me com teorias. Aqui está um problema; reparai nele, por favor, porque todos temos medo, todas as pessoas têm medo, de uma ou de outra espécie. Há medos profundos, ocultos, e eu estou muito consciente dos medos superficiais, dos medos do mundo -- desses que nascem de se vir a perder o emprego, a mulher, o filho, etc. Eu sei isso muito bem. Talvez haja medos em camadas mais profundas do ser humano. Como é que eu, como é que a mente vais revelar tudo isso instantaneamente? Que dizeis?

I.: Está a dizer que temos de afugentar o animal para bem longe, de uma vez por todas, ou teremos de lhe dar caça a todo o momento?

K.: Está a sugerir que é possível afastar o animal para longe, para sempre, em vez de o afastar um dia e deixá-lo regressar no dia seguinte. Isso é o que temos estado a dizer. Não quero andar atrás do animal todos os dias. Isso é o que as escolas, todos os psicólogos, os "santos", todas as "religiões" dizem: "Afastem-no pouco a pouco". Isto não tem sentido para mim. Quero descobrir como afastar o animal para que ele nunca mais volte. E se voltar, sei o que hei de fazer, não vou deixá-lo entrar em casa.

I.: Agora temos de dar ao animal o seu verdadeiro nome: é pensamento. E quando ele regressar, sabemos o que fazer com ele.

K.: Não sei o que fazer -- veremos. Sois todos tão ansiosos!

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I.: Esta é a nossa vida -- temos de ter pressa, temos de ser ansiosos.K.: Queríamos dizer "ansiosos por responder". Claro que temos de ser curiosos. Mas este é

um assunto difícil; não podemos lançar uma série de palavras e jogar com elas. Tudo isto requer cuidado.

I.: Por que é que nós não temos essa percepção agora mesmo?K.: É isso que estou a propor.I.: O que é que acontece se eu olhar para si? Primeiro, fico com uma imagem sua. Olhe para

mim, por favor. A primeira coisa que acontece é a representação visual da minha pessoa, certo? E depois o que acontece? Acontece pensamento sobre essa representação.

K.: Isso é o que a senhora estava dizendo, exatamente a mesma coisa. O pensamento é o animal. Fiquemos com esse animal. Não vamos dizer que o animal é pensamento, ou o eu, que é o medo, a avidez, a inveja, voltando depois a outra descrição dele. Esse animal, dizemos nós, é tudo isso. E percebemos que não pode ser expulso gradualmente, porque ele voltará sempre sob diferentes formas. Reparando um pouco, posso dizer: "Como é estúpido tudo isso, esta constante perseguição do animal -- o seu voltar e, de novo, a sua perseguição. Quero saber se é possível afugentá-lo completamente, para que não volte mais".

I.: Vejo funções diferentes em mim mesmo, com diferentes velocidades. Se uma função persegue uma outra, nada acontece. Por exemplo, a emoção e perseguir a idéia. Temos de olhar com toda as funções.

K.: É a mesma coisa, que agora está a exprimir em palavras diferentes.I.: Começou a dar uma explicação que foi interrompida. Começou a dizer que não queria ver-

se livre do medo.K.: Antes de mais, disse que não queria ver-me livre do animal. Não o quero expulsar. Antes

de tomar o chicote ou a luva de veludo, quero saber quem é que vai expulsar. Talvez seja um tigre ainda maior. E, assim, digo para mim mesmo: "Não quero expulsar nada". Veja a importância disto!

I.: Expulsá-lo poderia ser a eventual sentença de morte da pessoa.K.: Não, não sei. Vamos devagar. Deixe-me explicar. Disse, antes de afastar o animal, quero

descobrir quem é a entidade que vai afastá-lo. E digo ainda que talvez seja um tigre maior. Se eu puder ver-me livre de todos os tigres, não serve de nada arranjar um tigre maior para expulsar um mais pequeno. Assim, digo: "Não quero expulsar nada". Reparemos no que está a acontecer à minha mente. Não quero expulsar nada, quero sim olhar. Quero observar, quero ter a certeza se um tigre grande está a empurrar um mais pequeno. Este jogo pode durar para sempre, é o que está a acontecer por todo o mundo -- a tirania de um determinado país impondo-se a outro país mais pequeno.

Então, agora, estou bem ciente -- por favor acompanhai-me -- de que não devo expulsar nada. Tenho de desenraizar esta idéia de expulsar, de vencer, de dominar isso. Porque a decisão que diz "tenho de me livrar desse pequeno tigre" pode transformar o tigre em outro maior. Portanto, tem de haver a completa cessação de toda a decisão, de todo o impulso para me livrar de alguma coisa, de expulsar o que quer que seja. E, então, posso olhar. Posso dizer para mim mesmo (no plano verbal): "Não quero expulsar nada". Por conseguinte, estou liberto do fardo do tempo, que é expulsar um tigre com outro tigre. Neste expulsar há um intervalo de tempo e, assim, digo: "Não vou fazer nada, não vou expulsar, não vou agir, não vou decidir, preciso, primeiro, de olhar".

Estou a olhar -- não é o ego que olha, é o cérebro, é a mente que olha. Posso assinalar os vários tigres, a mãe com as suas crias e o chefe do grupo familiar; posso observar tudo, mas há coisas mais profundas em mim e também quero que todas fiquem expostas. Será que o vou fazer através da ação? Zangar-me mais e mais, e depois acalmar, e uma semana depois zangar-me de novo, e mais uma vez acalmar? Ou haverá uma maneira de olhar todos os tigres, desde o mais pequeno, desde o recém-nascido ao maior -- todos eles? Poderei olhá-los tão completamente que possa compreender todo o problema? Se não for capaz disso, então a minha vida continuará na velha rotina, de uma maneira complicada, pouco inteligente, mesquinha. E é tudo. Se souberam escutar, o sermão desta manhã acabou.

Lembram-se da história de um mestre que falava aos seus discípulos todas as manhãs? Um dia, antes de começar a falar, um pequeno pássaro entrou no recinto, pousou no parapeito da janela e

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começou a cantar. E o mestre deixou-o cantar. Após ter cantado algum tempo, o pássaro foi-se embora. E o mestre disse para os discípulos: "O sermão desta manhã acabou".

Krishnamurti - Saanen, Agosto 7, 1969

LIBERDADE PELO AUTOCONHECIMENTO

Para quase todos nós, a liberdade é uma idéia e não uma realidade. Quando falamos em liberdade, desejamos ser livres exteriormente: fazer o que gostamos, viajar, expressar-nos de diferentes maneiras, pensar o que nos agrada. Esta liberdade exterior torna-se extraordinariamente importante, em especial nos países onde existe a tirania de uma ditadura. E naqueles países onde a liberdade exterior é possível, procura-se cada vez mais prazer, cada vez mais bens materiais.

Se queremos investigar profundamente o que significa liberdade, o que significa ser inteira e interiormente livre -- liberdade interior que se expressa exteriormente na sociedade, no relacionamento -- precisamos, parece-me, de averiguar se a mente humana, tão condicionada como está, poderá ser verdadeiramente livre. Ou terá ela de viver e de funcionar sempre dentro das fronteiras do seu próprio condicionamento, sem haver assim nenhuma possibilidade de ser de fato livre? Verifica-se que, quando a mente pensa que não há liberdade sobre a Terra -- nem interior nem exteriormente -- trata de inventar uma liberdade futura, num outro mundo -- uma liberdade no "céu", etc. .

Deixemos de lado todos os conceitos teóricos, ideológicos, de liberdade, para podermos investigar se as nossas mentes, as vossas e a minha, poderão ser realmente livres -- livres da dependência, do medo, da ansiedade, e dos inúmeros problemas que existem, tanto a nível consciente como nas camadas mais profundas do inconsciente. Será que pode haver completa liberdade interior, psicológica, para que a mente humana tenha possibilidade de descobrir algo intemporal, algo não construído pelo pensamento, e que além disso não seja uma fuga às realidades da vida quotidiana?

Se interiormente, psicologicamente, a mente humana não estiver totalmente livre, não tem possibilidade de ver o que é verdadeiro, de ver se existe uma realidade não inventada pelo medo, não moldada pela sociedade ou pela cultura em que vivemos, e que não seja uma fuga à monotonia, ao tédio, à solidão, ao desespero e à ansiedade de cada dia.

Para descobrirmos se essa liberdade realmente existe, temos de aperceber-nos do nosso próprio condicionamento, de ter consciência dos problemas, e também da constante superficialidade, da vacuidade e estreiteza da nossa vida diária. E temos, sobretudo, de ter consciência do medo. Precisamos de estar atentos a nós mesmos, mas não "instrospectivamente" nem "analiticamente": temos de ter consciência de nós mesmos como de fato somos, e de ver se é possível estarmos inteiramente libertos dos fatores que parecem bloquear a nossa mente.

Para uma exploração como a que vamos fazer, tem de haver liberdade, não no fim, mas exatamente no princípio. Se não estamos interiormente livres, não podemos explorar, investigar, examinar. Para se observar profundamente tem de haver, não só liberdade, mas também a disciplina que é necessária à observação -- liberdade e disciplina andam juntas. Não estamos a usar a palavra "disciplina" no sentido tradicional de ajustar, imitar, reprimir, seguir um padrão estabelecido; estamos a empregá-la de acordo com o significado da sua raiz, que é aprender.

O aprender e a liberdade andam juntos, trazendo a liberdade a sua disciplina própria, que não é uma "disciplina" imposta pela mente, para alcançar um certo resultado. Estas duas coisas são essenciais: liberdade e o ato de aprender. Não podemos aprender a respeito de nós mesmos se não estamos interiormente livres para nos podermos observar realmente, e não de acordo com algum padrão, fórmula ou conceito. Essa observação de nós mesmos, tal como somos, essa percepção, esse ver cria a sua disciplina e o seu aprender próprios; não existe aí conformismo, imitação, repressão ou controle de qualquer espécie -- e nisso há grande beleza.

As nossas mentes estão condicionadas -- é um fato evidente -- condicionadas por uma determinada cultura ou sociedade, influenciadas por impressões várias, pelas pressões e pelas tensões da vida de relação, por fatores econômicos, climáticos e educativos, pelo conformismo

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religioso, etc. ... As nossas mentes estão treinadas, condicionadas, para aceitar o medo, e para, se possível, fugir dele, o que lhes rouba a capacidade de compreender a natureza e a estrutura do medo, e de o eliminar completamente.

Assim, a nossa primeira pergunta é: será que a mente, tão pesadamente carregada, pode libertar-se por completo, não só do seu condicionamento mas também dos seus medos? Porque é o medo que nos faz aceitar o condicionamento.

Não fiqueis apenas a ouvir palavras e idéias (que na verdade não têm nenhum valor), mas, através do ato de escutar -- não só as palavras, mas também para além delas -- cada um de vós pode ir observando os estados da sua própria mente, não aceitando o medo, não fugindo dele, nem dizendo: "Tenho de desenvolver a coragem, a resistência", mas estando de fato plenamente consciente do medo em que está enredado. Podeis assim averiguar se a mente tem de fato possibilidade de libertar-se.

Se não se está livre do medo, não se pode ver com lucidez e profundidade. E, obviamente, quando há medo não existe amor.

Pode, então a mente ficar livre do medo? Esta parece-me ser, para qualquer pessoa realmente séria, uma das questões mais importantes e essenciais que têm de ser postas e resolvidas.

Há medos "físicos" e medos psicológicos: há (por exemplo) o medo "físico" da dor e há o medo psicológico causado pela lembrança de se ter tido uma dor no passado, e a idéia de que ela possa repetir-se no futuro; há também o medo da velhice, da morte, o medo da insegurança, o medo da incerteza do amanhã, o medo de não conseguirmos um grande sucesso, de não atingirmos as nossas metas -- de não sermos "uma pessoa importante" neste mundo tão feio; o medo da destruição, o medo da solidão (não se sendo capaz de amar, ou de não se ser amado), etc. -- todos os medos conscientes e inconscientes. Será que a mente pode libertar-se totalmente deles? Se a mente diz que não pode, então é ela própria a criar essa impossibilidade, deformando-se a si mesma, tornando-se incapaz de percepção, de compreensão, incapaz de estar completamente tranqüila, silenciosa. E com uma mente assim, ficamos como se estivéssemos no escuro, a procurar a luz, sem nunca a encontrar e, por isso, inventando uma "luz" de palavras, conceitos, teorias.

Como há de a mente, com todo o seu condicionamento, tão oprimida pelo medo, libertar-se dessa condição? Ou teremos de aceitar o medo como uma coisa inevitável da vida? -- e é o que faz a maioria de nós, conformando-se com ele. Que fazer? Como há de um ser humano, como vós e eu, libertar-se deste medo? -- não de um certo medo, mas do medo total, de toda a natureza e estrutura do medo.

Que é o medo? (Deixai-me sugerir-vos que não aceiteis o que o "orador" está a dizer; ele não tem qualquer autoridade, não é vosso instrutor nem vosso guru; porque, se o fosse, então seríeis seu seguidor, e ser seguidor é destruir-se a si próprio e também aquele que se está a seguir. Estamos a tentar descobrir a verdade a respeito do medo, para que a mente se liberte definitivamente dele, ficando portanto interiormente livre de toda a dependência psicológica em relação a outrem.

A beleza da liberdade reside em não se deixarem quaisquer marcas. A águia no seu vôo não deixa rasto algum; mas o trabalho do cientista deixa as suas marcas. Ao examinarmos este problema da liberdade precisamos não só de uma observação como a da ciência, mas também do vôo da águia, que não deixa rasto; ambos são necessários. Tem de haver tanto a explicação verbal como a percepção não verbal -- porque a descrição nunca é a realidade que é descrita; a explicação nunca é, obviamente, a coisa que é explicada; a palavra nunca é a coisa.

Se tudo isto está bem claro, podemos então prosseguir; e cada um de vós poderá descobrir, por si mesmo -- e não através do "orador", das suas palavras, idéias ou pensamentos -- se a mente pode libertar-se completamente do medo. Esta primeira parte não é uma introdução; se cada um não a escutar e compreender claramente, não será capaz de acompanhar o que se segue.

Para investigar, temos de estar livres para ver, livres de preconceitos, de conclusões, de conceitos, de idéias, e assim podermos realmente observar em nós mesmos, o que é o medo. E, quando observamos de muito perto, intimamente, existe algum medo? Mas só podemos observar de muito perto, intimamente, o que é o medo, quando o "observador" é o observado. Examinaremos este ponto mais adiante, nestas reuniões .

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Que é então o medo? Como é que ele surge? Podemos compreender os medos "físicos", que são óbvios em relação a perigos físicos, perante os quais a reação é instantânea. Estes são facilmente compreensíveis e não precisamos de os examinar muito. Mas estamos a falar dos medos psicológicos. Como surgem eles? Qual a sua origem? -- esta é a questão.

Existe o medo de alguma coisa que aconteceu ontem; o medo de algo que pode vir a acontecer mais tarde, hoje ou amanhã. Há o medo do que já conhecemos e também o medo do desconhecido, do "amanhã". Cada um pode ver por si mesmo, com muita clareza, que o medo surge devido à estrutura do pensamento -- pode-se ficar com medo por se pensar no que aconteceu ontem, ou por se pensar no futuro. O pensamento gera medo, não é assim? Cada um de nós precisa de ver isto muito claramente; não aceiteis o que o "orador" está a dizer. Cada um precisa de ver com absoluta clareza se o pensamento é a origem do medo. Por exemplo, pensar numa dor, numa dor psicológica que se teve há algum tempo, e não desejar a sua repetição, não a querer reviver -- pensar em tudo isso gera medo. Podemos agora prosseguir? Se não virmos tudo isto muito claramente não teremos possibilidade de ir mais longe. Quando pensamos num incidente, numa experiência, num estado, em que ocorreu uma perturbação, um perigo, uma aflição ou uma dor -- esse pensamento faz nascer o medo. E, tendo estabelecido uma certa segurança psicológica, o pensamento não quer que essa segurança seja perturbada; qualquer perturbação representa um perigo, e portanto há medo.

O pensamento dá origem ao medo, e também dá origem ao prazer : tivemos uma experiência feliz; o pensamento ocupa-se com ela, desejando perpetuá-la; quando isso não é possível, há uma resistência, irritação, desespero e medo. Assim, o pensamento é responsável tanto pelo medo como pelo prazer -- não é verdade? Não se trata de uma conclusão verbal, nem de uma fórmula para evitar o medo. De fato, onde há prazer, há dor, e também medo, perpetuados pelo pensamento. O prazer anda acompanhado pela dor -- os dois são inseparáveis, e é o pensamento que dá origem a ambos. Se não houvesse nenhum "amanhã", nenhum momento seguinte, para pensarmos nele em termos de medo ou de prazer, nenhum deles existiria.

Podemos prosseguir a partir daqui? Será que se trata de uma realidade, e não de uma idéia? Será uma coisa que cada um de vós mesmos descobriu e que é portanto real, de modo que cada um pode dizer: "Descobri que é o pensamento que gera tanto o prazer como o medo"? Teve-se satisfação ou prazer sexual; depois pensa-se nisso com as imagens formadas pelo pensamento, e esse próprio pensar fortalece aquele prazer que reside agora nas imagens do pensamento. E quando isso é contrariado, há dor ansiedade, medo, ciúme, aborrecimento, irritação, brutalidade. Não estamos, porém, a dizer que não se deve ter prazer.

A verdadeira e profunda felicidade não é prazer. O êxtase não é criado pelo pensamento; é algo inteiramente deferente. Só podemos encontrar a felicidade profunda, o êxtase, quando compreendemos a natureza do pensamento -- que gera o prazer e o medo.

Surge assim a questão: Poder-se-á deter o pensamento? Se o pensamento gera o prazer e o medo -- porque, como é evidente, onde há prazer há sempre dor -- perguntamos a nós mesmos: Será possível suspender o pensamento? -- o que não significa que então terminará a sensibilidade à beleza, a capacidade para a apreciar. Por exemplo, vemos a beleza de uma nuvem ou de uma árvore, e sentimo-la plenamente, completamente. Mas se, no dia seguinte o pensamento procura ter essa mesma experiência, esse mesmo encantamento que tivemos ontem ao ver a nuvem, a árvore, a flor, o belo rosto de alguém, então isso é abrir a porta ao prazer , mas também ao desapontamento, ao medo, à dor.

Sendo assim, como poderá o pensamento parar? Ou será esta uma pergunta errônea? É uma pergunta errônea se (em vez de se querer compreender o fato) se deseja experimentar um "êxtase", uma "felicidade" diferente do prazer. Com o terminar do pensamento, espera-se alcançar algo "imenso", não produzido pelo prazer e o medo... Que lugar tem o pensamento na vida? -- É esta a pergunta a fazer, e não "como pôr fim ao pensamento" .

Qual a relação do pensamento com a ação e a inação? Qual a relação do pensamento com a ação, quando esta é necessária? Por que vem o pensamento à existência, quando (por exemplo) estamos a sentir plenamente a beleza? -- se ele não viesse interferir, não surgiria o desejo de transportar isso para "amanhã"... Quando há uma vivência plena da beleza de uma montanha, de um rosto, de um lençol de água -- por que vem o pensamento desvirtuar essa vivência, e nos faz dizer:

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"Tenho de repetir este prazer amanhã"? Preciso de averiguar isto. Preciso de descobrir a relação entre o pensamento e a ação, e de descobrir também se o pensamento precisa de interferir, quando não há nenhuma necessidade de pensamento. Vejo uma árvore lindíssima, toda despida de folhagem, recortando-se no céu; é muito belo! -- e isso é quanto basta. Por que há de o pensamento intrometer-se , e dizer: "Amanhã, tenho de repetir este prazer"?

Mas também vejo que, na ação, o pensamento tem de funcionar. A capacidade de ação é também capacidade de pensamento. Assim, qual a verdadeira relação entre o pensamento e a ação? O que geralmente acontece é que a nossa ação é baseada em conceitos, em idéias. Tem-se uma idéia, um conceito (ou um ideal) do que se "deve" fazer, e o que se faz "deve" aproximar-se desse conceito, dessa idéia, desse ideal. Há assim uma divisão entre a ação e o conceito, ou o ideal -- o que "deveria ser"; desta divisão psicológica nasce o conflito. Toda a divisão psicológica gera inevitavelmente conflito.

Assim, pergunto a mim mesmo: "Qual a relação entre o pensamento e a ação?" Se há divisão entre a ação e a idéia, então a ação é incompleta. Haverá uma ação diferente? Isto é, haverá uma ação em que o pensamento , a mente, vê uma coisa instantaneamente e atua de imediato, sem haver separadamente uma idéia, uma ideologia para ser seguida? Haverá uma ação em que o próprio ver é agir, em que o próprio pensar é a ação? Vejo que o pensamento gera medo e prazer; vejo que onde há prazer, há dor e portanto resistência à dor. Vejo isso com toda a clareza; e vê-lo é ação imediata. Neste ver está incluído o pensamento, a lógica, o raciocínio lúcido; mas o ver é instantâneo, a ação é instantânea, e há portanto liberdade.

Estamos em comunicação? Estais realmente a ver? Devagar não digais com tanta facilidade "sim, estamos". Esta questão é bastante difícil. Se estais realmente a ver, esse ver é ação imediata, e então ao sair daqui, deveis estar livres do medo. Mas podeis dizer: "Sim, estamos", apenas como uma afirmação de que entendestes verbalmente, intelectualmente -- e isso não é nada. Vós e eu estamos aqui, esta manhã , a investigar a questão do medo, e podereis sair daqui completamente livres dele. Isso significa ser um ser humano livre, um ser humano diferente, totalmente transformado -- não amanhã mas agora. Vemos claramente que o pensamento gera medo e prazer, e que os valores que geralmente se aceitam -- valores morais, éticos, sociais, religiosos, espirituais -- se baseiam no medo e no prazer. Se percebeis esta verdade (e para perceber temos de estar extraordinariamente despertos, observando lógica, sã e equilibradamente todos os movimentos do pensamento) então esse próprio percebimento é ação total e portanto podereis sair daqui completamente livres do medo. De contrário, direis: "Como é que poderei livrar-me do medo, amanhã?"

O pensamento tem de funcionar na ação. Precisamos de pensar para voltarmos para casa, para tomarmos um autocarro ou um combóio, para irmos para o trabalho, etc. O pensamento funciona então eficientemente, de modo objetivo, impessoal, não emocionalmente. E, quando assim é, ele tem uma função vital. Mas quando o pensamento, por meio da memória, transporta para o futuro, a experiência que se teve, essa ação é então incompleta, havendo portanto (como já vimos) resistência, etc..

Podemos agora passar à questão seguinte. Vamos apresentá-la assim: Qual é a origem do pensamento, e quem é o pensador? Podemos ver que o pensamento é a reação, a resposta, do conhecimento e da experiência acumulados como memória, que constituem a base de onde vem a resposta do pensamento a qualquer desafio; se nos perguntam onde moramos (por exemplo) há uma resposta imediata.

A memória, a experiência, o conhecimento acumulado constituem o fundo, a base, de onde surge o pensamento. Portanto, o pensamento nunca é novo; o pensamento é sempre velho; o pensamento nunca pode ser livre, porque está preso ao passado, e é portanto incapaz de ver qualquer coisa verdadeiramente nova. Quando nos apercebemos disto muito claramente, a mente torna-se serena, silenciosa... A vida é um movimento, um constante movimento em relação, e quando o pensamento procura impedir esse movimento, prendendo-se ao passado, como memória, fica com medo da vida.

Se vemos tudo isto, se vemos que a liberdade é necessária para se poder examinar com muita lucidez (e para isso é necessária a disciplina que é aprender, e não a "disciplina" que é repressão e

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imitação); se vemos que a mente está condicionada pela sociedade, pelo passado, e que o pensamento, nascido do cérebro, é velho e portanto tanto incapaz de compreender algo totalmente novo, a mente fica complemente quieta, silenciosa, sem ser controlada ou moldada para se aquietar.

Não há nenhum sistema ou método -- não importa se esse sistema vem do Japão, como o Zen, ou se vem da Índia -- capaz de tornar a mente quieta. A coisa mais estúpida que a mente pode fazer é "disciplinar-se" para se tornar quieta. Ora, se percebemos tudo isso, se o vemos realmente e não como algo teórico, então dessa percepção vem uma ação: esse próprio percebimento é a ação que nos liberta do medo. Assim, no momento em que surge qualquer medo, há dele uma percepção imediata, e ele termina.

Que é o amor? Para a maioria de nós é prazer e, por conseqüência, medo; é a isso que chamamos amor. Quando há compreensão do medo e do prazer, que é então o amor? E "quem" poderá responder a esta pergunta? -- o "orador", o sacerdote, o livro?...

E poderá alguém exterior a nós dizer-nos se temos estado a pesquisar-nos bem, e se podemos continuar? Ou seremos nós mesmos a descobri-lo? Depois de termos observado, examinado não analiticamente, toda a estrutura e natureza do prazer, do medo, da dor, descobrimos que o "observador", o "pensador" faz parte do pensamento. Se não há pensamento não há "pensador", os dois são inseparáveis; o pensador é o pensamento.

Há beleza e subtileza em perceber isto. E qual é agora a situação da mente que começou a investigar esta questão do medo? -- compreendeis? Qual é agora o estado da mente depois de ter penetrado em tudo isto, depois de ter feito esta "viagem"? Será o mesmo de antes? Ela compreendeu intimamente a natureza daquilo a que se chama pensamento, medo e prazer. Percebeu tudo isso. Qual é o seu verdadeiro estado agora? É claro que só cada um de vós mesmos pode responder a esta pergunta. Se cada um penetrou de fato profundamente em tudo isso, verá que o anterior estado da mente ficou completamente transformado.

Interlocutor: (Inaudível na gravação) Krishnamurti: Sim, fazer perguntas é muito fácil. Provavelmente, enquanto o "orador" ia

fazendo a pesquisa, alguns de nós estavam a pensar na pergunta que iriam fazer. Interessa-nos mais a nossa pergunta do que escutar o que se está a dizer. É claro que cada um tem de pôr questões a respeito de si mesmo, não só aqui como em toda a parte. Fazer a pergunta certa é bem mais importante do que receber a resposta. A solução de um problema está na compreensão do problema; a solução não está fora do problema, mas nele mesmo.

Não podemos ver claramente o problema se estamos preocupados com a resposta, com a solução. Geralmente estamos tão ansiosos por conhecer a solução, que nem olhamos o problema. Mas temos de olhá-lo com energia, com intensidade, com paixão -- e não com a indolência e a preguiça que quase todos temos; preferiríamos que outra pessoa o resolvesse para nós... Ninguém resolverá qualquer dos nossos problemas psicológicos, políticos ou religiosos. Precisamos de ter muita vitalidade, paixão, intensidade, para olhar, observar o problema. E então, ao observá-lo, com toda a clareza encontramos nele a solução.

Isto não quer dizer que não devamos fazer perguntas; pelo contrário, precisamos de pôr questões. Temos de duvidar de tudo o que foi dito por outros, incluindo o "orador".

I.: Haverá perigo de introspecção no olharmos os nossos problemas pessoais? K.: Por que não há de haver perigo? Há perigo em atravessar uma rua ... Mas, quer dizer que

não devemos olhar porque é "perigoso" fazê-lo? Lembro-me de uma ocasião --se posso contar um caso-- em que um homem muito rico veio procurar-nos, e disse: "Estou muito seriamente interessado naquilo que diz, e desejo resolver todos os meus problemas pessoais" (conheceis as coisas absurdas de que geralmente as pessoas falam). Respondi; "Está bem, vamos examinar isso". E conversamos. Ele voltou várias vezes mas, depois da segunda semana, disse-me: "Estou a ter sonhos terríveis, assustadores, nos quais parece que tudo o que me cerca desaparece, todas as coisas se vão"; e acrescentou: "Isto, provavelmente, é o resultado da minha investigação de mim mesmo, e estou a ver como ela é perigosa". Depois disso não voltou mais.

Todos desejamos estar a salvo; queremos viver em segurança no nosso pequeno e acanhado mundo, o mundo da "ordem" estabelecida que é desordem; o mundo das nossas relações particulares, que não queremos que sejam perturbadas -- relações entre marido e mulher (por

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exemplo), nas quais há tanta possessividade, o que traz sofrimento, desconfiança, medo, e também perigo -- ciúme, raiva, prepotência.

Há um modo de nos olharmos a nós mesmos sem medo e sem perigo: é olhar-nos sem condenação nem justificação, olhar simplesmente, sem interpretar, sem julgar, sem avaliar. Para olharmos assim, a mente tem de estar verdadeiramente empenhada em aprender pela observação do que realmente é. Que perigo há no fato psicológico, no que é? Os seres humanos são violentos; este é o fato, o que é; e o perigo que eles criam no mundo é resultado desta violência, é produto do medo. Que há de perigoso em observar este medo e em tentar eliminá-lo, erradicá-lo completamente, para podermos criar uma sociedade diferente e diferentes valores?

Há grande beleza no observar, no ver as coisas como são, psicologicamente, interiormente; isso não significa aceitá-las; nem significa rejeitar o que é, ou esforçar-se por modificá-lo -- a própria percepção do fato psicológico, do que é, produz a sua mutação. Mas precisamos de saber a arte de olhar, que não é introspectiva ou analítica; ela consiste simplesmente em observar sem qualquer escolha.

I.: Será que existe medo espontâneo? K.: Pode-se chamar a isso medo? Quando sabemos que o fogo queima, ou quando nos vemos

diante de um precipício, será medo evitá-los? Quando vemos um animal perigoso, uma serpente venenosa, e nos afastamos, isso é medo -- ou é inteligência? Essa inteligência pode ser resultado de um condicionamento -- porque fomos condicionados em relação aos perigos de um precipício (por exemplo); se não o fôssemos, poderíamos cair nele, e isso seria o fim... A nossa inteligência leva-nos a ter cuidado; esta inteligência é medo?

Mas será a inteligência que funciona quando nos dividimos em nacionalidades, em grupos religiosos? -- quando fazemos essa divisão entre "tu" e eu, entre nós e "eles", isso é inteligência? Que é que funciona nessa divisão que cria perigo, que separa as pessoas, que causa guerra -- o medo ou a inteligência? É certamente o medo e não a inteligência.

Por outras palavras, fragmentamo-nos, dividimo-nos a nós mesmos; uma parte de nós atua, quando necessário, inteligentemente, como ao evitarmos um precipício, ou um autocarro que passa; mas não somos suficientemente inteligentes para ver os perigos do nacionalismo, os perigos da divisão entre as pessoas. Sendo assim, uma parte de nós -- uma pequeníssima parte -- é inteligente, e o resto de nós não é. Onde há fragmentação tem de haver conflito e sofrimento. A própria essência do conflito é a divisão, a contradição em nós. Essa contradição não pode ser "integrada". Uma das nossas peculiaridades é pensarmos que devemos "integrar-nos". Não sei o que isso significa realmente. Quem poderá integrar as duas naturezas divididas, opostas? Porque, afinal o próprio "integrador" não fará parte dessa divisão? Porém, quando vemos tudo isso, quando nos apercebemos da divisão, da contradição, sem fazermos nenhuma escolha -- a divisão termina.

I.: Haverá alguma diferença entre o pensamento correto e a ação correta? K.: Quando estamos a usar a palavra "correto" acerca da relação entre o pensamento e a ação,

essa ação "correta" é incorreta, não é? Porque, ao usar essa palavra "correta", já temos uma idéia do que é "correto". E quando já temos uma idéia do que é "correto" esse "correto" é incorreto, porque está baseado nos nossos preconceitos, no nosso condicionamento, nos nossos medos, nas nossas idiossincrasias, na nossa cultura, na nossa sociedade, nas sanções religiosas, etc. Temos a norma, o padrão, e esse mesmo padrão é em si próprio incorreto, imoral. A moralidade social é imoral. Estais de acordo? Se estais, então já rejeitastes a moralidade social -- quer dizer, a avidez, a inveja, a ambição, o nacionalismo, o culto das classes, etc.. Mas será que a rejeitastes? Quando dizeis: "Sim, a moralidade social é imoral" -- é isso que sentis, ou trata-se apenas de palavras?... Ser verdadeiramente moral, virtuoso, bom, é uma das coisas mais belas da vida; e essa moralidade nada tem a ver com o comportamento da sociedade que nos cerca. O ser humano tem de ser interiormente livre para ser verdadeiramente bom, e não somos livres se seguimos a moralidade social, de ambição, competição, culto do sucesso -- todas essas coisas que as igrejas e a sociedade consideram morais.

I.: Teremos de esperar que isso aconteça ou há alguma disciplina a seguir? K.: É necessária alguma disciplina para percebermos que o próprio ato de ver é ação?

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I.: Poderá dizer alguma coisa sobre a mente quieta? Essa mente aquietada é resultado de disciplina, ou não?

K.: Vejamos: um soldado na parada está imóvel, muito direito, segurando a arma segundo a regra; é submetido a rigoroso treino, dia após dia; a sua liberdade é completamente destruída. Mantém-se muito quieto; mas essa "disciplina" é quietude? Ou, quando uma criança está absorvida num brinquedo, isso é quietude? Tira-se-lhe o brinquedo e ela volta a ser o que é. Assim, será que a "disciplina" (compreendamos, de uma vez por todas, esta coisa tão simples) poderá criar quietude? Pode produzir insensibilidade, embotamento, um estado de estagnação, mas poderá tornar a mente quieta, no sentido de intensamente ativa, mas cheia de quietude?

I.: Que deseja que façamos aqui neste mundo? K.: É muito simples, senhor: Eu não desejo nada. É a primeira coisa a dizer. A segunda é:

vivei, vivei neste mundo, tão maravilhosamente belo. É o nosso mundo, a terra que temos para nela vivermos. Mas não sabemos viver: somos seres humanos mesquinhos, separados uns dos outros, ansiosos, amedrontados. E portanto não vivemos, não estamos realmente em relação, somos seres humanos isolados, desesperados.

Não sabemos o que significa viver naquele sentido de tranqüila e profunda felicidade. Só podemos viver assim quando sabemos libertar-nos de todas as coisas absurdas da nossa vida. E essa libertação só é possível quando reparamos no nosso relacionamento, não só com os seres humanos, mas também com as idéias, com a natureza, com tudo. Nesse relacionamento podemos descobrir o que somos, o nosso medo, a nossa ansiedade, o nosso desespero, o nosso isolamento, a nossa total falta de amor. Estamos cheios de teorias, de palavras, de conhecimento do que outras pessoas disseram. Mas não sabemos nada a respeito de nós mesmos e, portanto, não sabemos viver.

I.: Como explicar os diferentes níveis de consciência, em relação ao cérebro humano? O cérebro parece ser uma coisa física. Além disso, a mente parece ter uma parte consciente e uma parte inconsciente. Como poderemos compreender com clareza, no meio de tantas e diferentes idéias?

K.: Qual a diferença entre a mente e o cérebro -- é esta a questão, não é verdade? O cérebro físico atual, que é resultado do passado, que é produto da evolução, de muitos milhares de ontens, com todas as suas memórias, conhecimentos e experiências -- esse cérebro não fará parte da mente total, a mente em que há um nível consciente e um nível inconsciente? Tanto o físico como o não físico, o psicológico, não serão um todo? Não somos nós que o dividimos em "consciente" e "inconsciente", cérebro e não-cérebro? Não poderemos ver tudo isso como uma totalidade, como algo não separado?

O "inconsciente", difere muito do consciente? Ou não faz, antes, parte da totalidade, sendo nós que o separamos? Daí surge a questão: Como pode a mente consciente aperceber-se do inconsciente? Poderá a mente "positiva", operante -- aquela que funciona o dia todo -- observar o inconsciente?

Não sei se temos tempo de examinar esta questão. Não estais cansados? Não podemos reduzir esta reunião a um entretenimento, como bem pode acontecer quando estamos sentados numa sala aprazível e confortável, ouvindo alguém falar. Estamos a tratar de questões muito sérias, e se se fez o trabalho necessário, tem de se estar cansado. O cérebro não pode receber mais do que até um certo ponto, e o aprofundar desta questão do consciente e do inconsciente requer uma mente penetrante e lúcida, capaz de observar. Duvido muito que, no fim de uma hora e meia, se esteja nessas condições. Portanto, não será melhor se estais de acordo, tratarmos deste assunto na próxima reunião?

Londres, Março 16, 1969

ENTREVISTA COM KRISHNAMURTI

Sobre a autoridadeEntrevistador - Krishnamurti, diz que todos os nossos problemas derivam de um único

problema: vivemos como nos dizem para viver, somos pessoas de segunda-mão, e durante séculos

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temos estado submetidos a toda a espécie de autoritarismo. Hoje os jovens estão a rebelar-se contra a autoridade. Pessoalmente, que tem contra a autoridade?

Krishnamurti - "Pessoalmente", penso que nada tenho contra a autoridade, mas por todo o mundo a autoridade tem mutilado a mente -- não só no aspecto religioso, como no aspecto psicológico, interior -- porque a autoridade de uma crença (por exemplo), imposta pela religião, destrói seguramente a descoberta da Realidade. Apoiamo-nos na autoridade porque temos medo de manter-nos "sós".

E. - Estou um pouco perplexo com isso porque, certamente, a sabedoria acumulada pela espécie humana não é para ser toda deitada fora, não?

K. - Pois não. Mas que é a sabedoria? Será a mera acumulação de conhecimentos, ou a sabedoria é algo que apenas nasce quando termina o sofrimento? A sabedoria, a sagacidade, não está nos livros, nem no conhecimento acumulado da experiência dos outros. Seguramente, a sabedoria vem-nos no autoconhecimento, na autodescoberta da estrutura total de nós mesmos. Na compreensão de nós mesmos reside o fim do sofrimento psicológico e também o começo da sabedoria. Como pode a mente ser sábia quando está prisioneira do sofrimento e do medo? Só quando o sofrimento psicológico -- que também é medo -- acaba, existe a possibilidade de se ser sábio.

Sobre o amor

E. - Porque é que todos desejamos tão desesperadamente ser amados? K. - Porque estamos desesperadamente vazios e isolados. E. - Mas diz que amar é mais importante do que ser amado. K. - Sim, com certeza -- o que quer dizer que se tem de compreender esse vazio, essa solidão

que existe em cada um. A mente preocupada consigo mesma, com as suas ambições, a sua avidez, os seus medos, culpa, sofrimento, não tem capacidade para amar. A mente que em si mesma está dividida, que vive em fragmentos, obviamente não pode amar. A divisão implica sofrimento, ela é a raiz do sofrimento -- essa divisão entre "eu" e "tu" e "eles", os "pretos", os "brancos", os "mestiços", etc. Portanto, onde quer que haja divisão, fragmentação, o amor não pode existir, porque o bem é um estado em que não há divisão. O próprio mundo é indivisível.

E. - Diz, de fato, que o amor só nasce quando há um abandono total do "eu". Mas como se consegue abandonar o "eu"?

K. - Esse abandono total só acontece com a compreensão de nós mesmos. O autoconhecimento é o começo da sabedoria, e, portanto, sabedoria e amor andam juntos. Isto significa que só há amor quando realmente nos compreendemos a nós mesmos e portanto sabemos, em nós mesmos, que não há nenhuma fragmentação -- nenhum sentimento de avidez, cólera, ambição, nenhuma atividade separativa.

E. - Mas, como sabe, temos ainda de viver nesta sociedade, por sinal uma sociedade bastante doente, e isso tem influência sobre nós; não estamos realmente livres para sermos nós próprios, em parte por causa da sociedade.

K. - Mas nós somos a sociedade. Construímos a sociedade -- a sociedade é nós, o mundo é nós. O mundo não é diferente de "mim". Sou resultado do mundo, da religião, do ambiente em que vivo.

E. - Diz que é o esforço que nos destrói, que a vida é uma série de batalhas e que só é feliz o homem que não está prisioneiro do esforço. Mas pode-se fazer no mundo algum trabalho sem uma dose de intenso esforço?

K. - Porque não? Que é o esforço? É uma contradição de energias, não é verdade? Uma energia opondo-se a outra energia.

E. - Não poderá ser uma atividade constante numa direção? K. - Se se tratar de uma atividade, de uma coisa que se faz, onde é que está a contradição?

Não há perda de energia, não há conflito. Se vou passear, vou passear. Mas se quero ir passear e tenho alguma outra coisa para fazer, então começa a contradição, o conflito, o esforço. É por isso que, para compreender o esforço, temos de descobrir as nossas contradições.

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Sobre a meditação

E. - Que entende por meditação? Esta palavra aparece muitas vezes nos seus livros. Procurei-a no Dicionário de Oxford antes de vir ter consigo e aí diz-se que meditação significa dedicar-se muito ao pensamento. Mas não é isso que meditação significa para si.

K. - Tem de se investigar para se saber o que é realmente meditação -- para mim é das coisas mais importantes.

E. - Será possível explicar melhor o que ela é, se me disser o que ela não é? K. - Ia justamente sugerir isso. Como sabe, há várias escolas de meditação. Oferecem vários

sistemas e métodos, e dizem que se os praticarmos dias após dia, alcançaremos uma certa forma de iluminação, uma certa experiência extraordinária... Antes de mais, toda a idéia de sistema, de método, implica uma repetição mecânica -- e isso não é meditação. Será então possível, não embotar a mente pela repetição, mas sim estar atento ao movimento do pensar -- sem o reprimir, sem tentar controlá-lo, mas apenas estar consciente de toda esta atividade do pensamento, da sua constante tagarelice?

E. - Verbalizamos constantemente os nossos pensamentos, não é verdade? K. - Exatamente. O pensamento só existe em palavras ou em imagens (de vários tipos). A

meditação exige a mais alta disciplina -- não a disciplina da repressão e do conformismo -- mas a que surge quando observamos o nosso pensamento. Essa mesma observação tem a sua própria disciplina, de uma subtileza extraordinária. Isso é absolutamente necessário.

E. - Terá de se dispor de tempo para fazer isso? K. - Podemos fazê-lo em qualquer altura. Quando se está sentado no carro, pode-se observar,

estar atento a tudo. Ao que está a acontecer à nossa volta e ao que está a acontecer em nós mesmos -- estar consciente de todo o processo, do movimento total. A meditação é na verdade uma forma de libertar ou de "esvaziar" a mente do que é conhecido. Sem isso não se pode saber o que é o desconhecido. Para ver, compreender algo novo, completamente novo, a mente tem de estar vazia de todo o passado. A Verdade, ou Deus, ou seja qual for o nome que lhe dermos, tem de ser algo novo, e não algo resultante do condicionamento. O Cristão está condicionado por dois mil anos de propaganda, tal como o Hindú e o Budista. Para eles, portanto, "Deus", ou a "Verdade", é um resultado da propaganda. Mas isso não é a Verdade. A Verdade é algo que é vivo, todos os dias. Por isso a mente tem de ser "esvaziada" para poder olhar a Verdade.

E. - É como apagar o quadro, por assim dizer? K. - Meditação é isso. E. - E então tem-se aquela total e descontraída percepção da realidade, de "aquilo que é". K. - De aquilo que é -- está correto. E aquilo que é não é uma coisa estática, mas

extraordinariamente viva. E portanto a mente que está de fato em meditação, a mente meditativa, é uma mente extremamente silenciosa, silêncio que não é produzido pela supressão do ruído. Não é oposto do ruído. Acontece quando a mente se compreende completamente a si mesma -- e portanto não há qualquer movimento, o que significa que as próprias células do cérebro se tornam quietas. E então, nesse silêncio, tudo acontece. É uma coisa extraordinária, se a observarmos. É esta a autêntica meditação e não toda essa aceitação imitativa da autoridade, a repetição de palavras e tudo o mais; o que é absurdo.

E. - Posso então recapitular, para ver se compreendi? A meditação, é, parece-me, o processo essencial do descondicionamento.

K. - Exatamente. E. - E se me libertar do peso morto da autoridade, se puser de lado tudo o que me tem sido

dito, nesse momento ficarei só, mas nessa solitude tenho oportunidade de poder compreender o que realmente sou.

K. - E de compreender também o que é a Verdade, ou Deus, ou a mesma Realidade com outro nome que se goste de lhe dar.

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Boletim 9, Krishnamurti Foundation, Inglaterra – Entrevista Televisionada pela BBC de Londres, em 7 de Dezembro de 1970

A Carreira - o que fazer? ( Bombaim, 24 de Fevereiro de 1957 - Sobre o Viver Correto - Edit. Cultrix )

Estudante: Antes de ter ouvido falar do senhor eu estudava com afinco e me preparava para fazer carreira. Mas tudo agora me parece muito fútil e eu me perdi. Estou confuso, o que devo fazer?

Krishnamurti : Senhor, eu o deixei confuso? Eu o fiz perceber que aquilo que está fazendo é fútil? Se eu fui a causa da sua confusão, então você não está confuso, pois quando eu me retirar você voltará à sua confusão anterior ou à sua clareza. Mas se o senhor fala sério, então o que na verdade ocorreu foi que, ao ouvir o que aqui foi dito ele despertou para suas próprias atividades; ele agora vê que o que está fazendo, ou seja, estudar para construir uma carreira para o futuro, é bastante vazio, sem muito significado. Então ele diz: “O que devo fazer?”. Ele está confuso, mas não porque eu o deixei confuso e, sim, porque, ao ouvir o que foi dito, ele se deu conta da situação do mundo e da própria condição e relacionamento com o mundo. Ele se deu conta da futilidade disso que se chama construir uma carreira.

Acredito que isso é o que precisa ser verificado primeiramente: ao ouvir, ao observar, ao examinar suas próprias atividades, vocês fizeram essa descoberta por vocês mesmos; então, ela é de vocês, não minha. Se fosse minha, eu a levaria comigo ao partir. Mas isso é algo que não pode ser carregado por outro porque foi verificado por você. Você observou ao agir, observou a sua própria vida, e agora você percebe que construir uma carreira para o futuro é bastante fútil.

Na verdade, o que você deve fazer? Você deve prosseguir em seus estudos, não é verdade? Isso é óbvio, porque você precisa ter algum tipo de profissão, um meio adequado de ganhar a vida. Compreende? Você precisa ganhar a vida de forma adequada. E o Direito certamente não é um meio adequado, porque a lei mantém a sociedade tal como está, uma sociedade baseada no consumismo, na cobiça, na inveja, na autoridade e na exploração, e que portanto está em agitação dentro de si mesma. Assim, o direito não é profissão para quem está pensando seriamente nas questões de seu ser; e ele não pode também tornar-se policial ou soldado, pois eles tem como profissão matar, e nisso não há diferença entre defender e atacar.

Então, se essas três não são profissões adequadas, o que você vai fazer? Você precisa pensar no assunto, não é verdade? Você precisa descobrir por você mesmo o que você realmente quer fazer, e não seguir a orientação do seu pai, ou da sua avó, de algum professor ou de quem quer que seja que lhe diga o que fazer. E o que significa descobrir o que você realmente quer fazer? Significa descobrir o que você gosta de fazer, não é verdade? Quando você gosta do que está fazendo, você não tem ambição, nem cobiça, você não está em busca de fama, porque apenas o amor pelo que está fazendo é totalmente suficiente em si mesmo. Nesse amor não existe frustração porque você não está mais em busca de satisfação.

Mas, vejam bem, isso requer uma grande dose de pensamento, de investigação, de meditação, e infelizmente a pressão do mundo é muito grande - o mundo aqui representado pelos seus pais, pelos seus avós, pela sociedade que o cerca. Todos eles querem que você seja um homem de sucesso; eles querem que você se encaixe no padrão estabelecido, então eles o educam de forma a se amoldar. Mas toda a estrutura da sociedade baseia-se no consumismo, na inveja, na auto-afirmação impiedosa, na atividade agressiva de cada um de nós; e se você olhar e perceber por você mesmo, realmente e não apenas em teoria, que uma sociedade assim deve inevitavelmente apodrecer a partir do seu interior, você então descobrirá a sua própria forma de agir fazendo aquilo que gosta de fazer. Isso pode causar um conflito com a sociedade atual - mas, por que não? Um homem que procura a verdade, vive em revolta contra a sociedade fundada essencialmente no consumismo, na respeitabilidade e na busca ambiciosa do poder. Ele não está em conflito com a sociedade; a sociedade é que está em conflito com ele. A sociedade não pode jamais aceitá-lo. A sociedade pode apenas fazer dele um santo e adorá-lo - e, assim, destruí-lo.

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Assim, o estudante que está ouvindo ficou confuso. Mas se ele não se livrar dessa confusão - fugindo para o cinema ou para um templo ou lendo um livro - e verificar qual foi a origem dessa confusão, se ele encarar essa confusão e, ao fazê-lo, não se amoldar ao padrão da sociedade, então ele será um verdadeiro homem com sentimento religioso. E esses homens são necessários, pois eles criarão um novo mundo.

Krishnamurti - Bombaim, 24 de Fevereiro de 1957 - Sobre o Viver Correto - Edit. Cultrix

A mente religiosa-científica

Hoje desejo falar-lhes sobre um assunto bem importante. Ouçam-no com muito cuidado e poderão mais tarde, se quiserem, discuti-lo com seus professores. Diz respeito ao mundo inteiro e em todos está despertando certa inquietude. É a questão do espírito religioso e da mente científica. São duas e diferentes maneiras de encarar os fatos. Estes são os únicos estados mentais de real valor - o verdadeiro espírito religioso e a verdadeira mente cientifica. Outra qualquer atividade é destrutiva, causando aflição, confusão e sofrimento.

A mente científica é objetiva. Sua missão é descobrir, perceber. Ver as coisas através de um microscópio, de um telescópio; tudo tem de ser visto exatamente como é; dessa percepção, a ciência tira conclusões, constrói teorias. Essa mente move-se de um fato para outro fato. O espírito científico nada tem que ver com condições individuais, nacionalismo, raça, preconceito. Os cientistas existem para explorar a matéria, investigar a estrutura da terra, das estrelas. e planetas; descobrir meios para curar os males do homem, prolongar-lhe a vida, explicar o tempo, tanto o passado como o futuro. Porém, a mente científica e suas descobertas são usadas. e exploradas pela mente nacionalista, quer seja da Índia, quer seja da Rússia, da América, etc. De seu turno, os estados e continentes soberanos utilizam e exploram as descobertas dos cientistas. Há, também, a verdadeira mente religiosa, que não pertence a nenhum culto, nenhum grupo, nenhuma religião, a nenhuma igreja instituída. A mentalidade religiosa não é a mentalidade hindu, a mentalidade cristã, a mentalidade budista, a muçulmana. A pessoa religiosa não pertence a nenhum grupo que se intitule religioso. Ela não freqüenta igrejas, templos, mesquitas, nem se apega a determinadas crenças e dogmas. A mente religiosa é completamente só. Ela já compreendeu a falsidade das igrejas, dogmas, crenças tradições. Não sendo nacionalista nem condicionada pelo ambiente, não tem horizonte nem limites, é explosiva, nova, fresca, sã. A mente sã, jovem, é extraordinariamente maleável, sutil, não tem ancora. Somente ela pode descobrir o que se chama "deus", o que é imensurável.

Só é verdadeiro o ser humano quando alia o espírito científico ao autêntico espírito religioso. Então, os homens criarão um mundo justo não o mundo dos comunistas ou dos capitalistas, dos brâmanes ou dos católicos romanos. De fato, o verdadeiro brâmane é aquele que não pertence a nenhum credo religioso, nem tampouco a nenhuma classe, não é detentor de autoridade, e não mantém posição social. O genuíno brâmane e o novo ente humano, que tem simultaneamente a mentalidade científica e a mentalidade religiosa, sendo, portanto, harmônico, sem qualquer contradição interior. Para mim, o objetivo da educação é criar esta nova mentalidade, que é explosiva e não se adapta a nenhum padrão estabelecido pela sociedade.

É criativa a mente religiosa. Não lhe basta acabar com o passado, tem também de explodir no presente. Ela, diferentemente da que só interpreta os livros sagrados e a Bíblia, é capaz de perquirir, bem como criar uma realidade explosiva. Aí não há interpretação nem dogma.

É sobremodo difícil alguém ser religioso e ter uma mente lúcida, objetiva, científica, intrépida, alheia á própria segurança, aos próprios temores. Não podemos ter uma mente religiosa sem a compreensão total de nós mesmos - nosso corpo, nosso espírito, nossas emoções; ignorando como trabalha, e também como o pensamento funciona. Para descobrir e superar tudo isso, torna-se indispensável encarar o problema com uma mente científica, que é objetiva, clara, sem preconceitos, que não condena, que observa, que vê. Com essa mentalidade, somos efetivamente um ser humano culto, um ser humano que conhece a compaixão. Tal ente humano sabe o que é estar vivo.

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Como conseguir tudo isto? Pois urge ajudar o estudante a ter um espírito científico, a pensar com clareza, precisão, argúcia, assim como auxiliá-lo a descobrir as profundezas de sua mente, a ir além das palavras, dos diferentes rótulos de hindu, muçulmano, cristão. Será possível ensinar o estudante a ultrapassar os rótulos, a descobrir por si, a experimentar aquela coisa imensurável, que nenhum livro contém, á qual nenhum guru tem acesso? Se um colégio como este propiciar essa educação, constituirá isso um feito grandioso. Vocês todos devem sentir como será importante criar-se tal escola. É sobre isto que os professores e eu vimos há dias debatendo. Temos conversado acerca de várias coisas - autoridade, disciplina, métodos de ensino, o que ensinar, o que é ouvir, o que significa educação, cultura, etc. Apenas prestar atenção à dança, ao canto, á aritmética, as aulas, não constitui o todo da vida. Também faz parte da vida a pessoa sentar-se tranqüilamente e olhar para seu interior, ter clara percepção, ver. Cumpre também saber pensar, o que pensar e porque estamos pensando. Faz parte igualmente da vida olhar os pássaros, observar os aldeões, sua miséria - qual a contribuição de cada um de nós para essa situação, criada pela sociedade. Tudo isso concerne á educação.

Krishnamurti - do livro Ensinar e Aprender - Edit. ICK

O MILAGRE DA TRANSFORMAÇÃOPágs. 11/25 do livro "As Ilusões da Mente" - Série Selo de Ouro 1145 - Tradução de Hugo

Veloso da 1ª Palestra em Bombaim, Índia de 07.02.1954– editado pela Ed. Ouro em 1969.

Esta tarde, desejo falar sobre o problema da transformação. Já pensastes a respeito? Se já o fizestes, deveis ter notado quão difícil é operar uma mudança em nós mesmos. Percebemos em certos momentos a necessidade de transformação, de um certo ajustamento a vida, uma revolução radical em nos mesmos, independente de qualquer padrão de pensamento, ou compulsão. Que observa as numerosas complicações da existência, sente o desejo imenso de efetuar uma revolução em si próprio. Já deveis – pelo menos os mais ponderados entre vós – ter refletido as esse respeito, isto é, sobre como efetuar essa transformação, como irá ela influir em nossas relações mútuas ou com a sociedade. Este problema, bem examinado, é sumariamente complexo e envolve muitas outras questões, que se agitam não apenas no nível superficial do nosso pensar, mas também profundamente, no nível inconsciente.

Preliminarmente, porem desejo, recomendar-vos que, ao iniciar eu os estudos do problema, me escutem com atenção e sem resistência; SE ASSIM FIZERDES, ENTÃO, TALVEZ POSSAIS ENCONTRAR-VOS NAQUELE ESTADO DE TOTAL REVOLUÇÃO INTERIOR. Afinal, é com este fim em vista que vos falo, e não para convencer-vos sobre uma determinada forma de modificação ou dizer-vos que deveis transformar-vos em conformidade com certo padrão; nisso não há nenhuma possibilidade transformação e, sim, meramente, ajustamento, adaptação a determinado padrão de ação – e isto não é revolução, não é transformação. Se escutardes, sem resistência de espécie alguma, estou certo de que vos vereis num estado de revolução, dentro de vos mesmos, não operada por qualquer compulsão de minha parte, mas de maneira completamente natural.

Permita-me, pois sugerir que escuteis sem resistência (significa isso ausência do ego). Em geral, nós não escutamos verdadeiramente, pois costumamos escutar com uma intenção, um motivo um propósito, o que denota esforço. Pelo esforço, não se pode compreender coisa alguma.

Vede bem a importância disso. Para se compreender uma coisa, é necessário escutá-la sem esforço, sem compulsão, sem resistência, inclinação, opinião ou juízo. Isso é muito difícil, se não sabemos escutar. O problema não é como efetuar a transformação, pois se sabemos escutar corretamente, sem resistência sob qualquer forma, a transformação se realizará independentemente de qualquer ato consciente. Não creio que se possa realizar uma modificação radical mediante ação consciente ou qualquer espécie de incitamento ou compulsão.

Passarei agora a explicar como a transformação se realiza, INDEPENDENTEMENTE da "motivação".

Mas para se compreender tal explicação, torna-se necessária uma atitude muito atenta, no escutar livre de qualquer barreira, restrição, resistência. No momento em que se ouve a palavra

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"revolta", "transformação" ou "revolução", essa palavra tem um significado preciso – o significado de dicionário, o significado adequado ao seu especial padrão de pensamento.

Esses padrões de pensamento estão constantemente a interferir naquilo que se está escutando. A dificuldade, por conseguinte, não vai ser a compreensão do problema, mas, sim, A MANEIRA DE ESTUDAR O PROBLEMA, A MANEIRA DE ESCUTAR O PROBLEMA. É muito importante compreender isso antes de se começar a apreciar qualquer problema.

Para produzir-se a compreensão, não há necessidade de resistência ao que se ouve, mas, sim de seguir-se a corrente de pensamento a que se está dando atenção. Ninguém pode segui-la, se ficar meramente resistindo, traduzindo, levantando contra ela barreiras de suas próprias idéias. Se formos capazes de escutar sem resistência, estaremos então pensando juntos, e juntos encontraremos a mente num estado de transformação, alcançado sem qualquer persuasão, raciocínio ou conclusão lógica.

Para a maioria dos que estamos cônscios dos acontecimentos mundiais e das coisas que estão sucedendo neste país (Índia 1959), é clara, parece-me à necessidade de revolução; uma mudança de atitude, de pensamento, uma revolução de valores, é essencial. É bem óbvia a necessidade de transformação, para haver paz, para haver o suficiente a alimentar toda a humanidade, para promover o entendimento entre os homens. A possibilidade de desenvolvimento completo do homem depende, necessariamente, de uma transformação vital, total. Mas, como efetuarmos essa transformação, e que implica essa transformação? Há transformação quando a mente, o pensamento, só procura acomodar-se ao padrão de determinada cultura – hindu, a cristã, a budista – ou ao padrão de pensamento e ação comunista? Pode esse ajustamento, em qualquer nível que seja, da nossa existência, operar a transformação? Se nos acomodarmos a um padrão que nos foi imposto ou que nos mesmo criamos, é obvio que já não há transformação; porque o padrão, o fim, é um resultado do nosso condicionamento. Se eu, como hinduísta, comunista ou cristão, me modifico de acordo com o plano segundo fui criado, de acordo com uma idéia, uma determinada maneira de pensar, isso, por certo, não é transformação, já que está, apenas, obedecendo a uma reação condicionada. E quando me modifico pelo padrão de um temor, de uma defesa, de uma tradição, isto, evidentemente, não significa transformação; não é revolução, não é a revolta radical procedente do "que é".

Assim sendo, quando investigo o problema da transformação, não devo investigar COMO a minha mente está funcionando?

Não devo conhecer o processo total do meu pensamento? Porque se existe algum temor esse temor me faz modificar-me, não há transformação; o temor projeta um padrão e eu me modifico de acordo com o padrão esse padrão; tem-se, por conseguinte, um mero ajustamento a determinado padrão "projetado" pelo temor. Se desejo promover a transformação, não devo examinar as múltiplas camadas do meu ser, consciente e bem assim o inconsciente? Não devo pesquisar as reações superficiais dos meus pensamentos e "motivos", e as correntes profundas de onde promana todos os pensamentos e ações? Se desejo transformar-me, posso ter, um padrão pelo qual me transformarei?

Embora eu esteja a repetir coisa já dita, prestai atenção ao que estou dizendo; senão perdereis o que está para vir.

Reconheço a necessidade da transformação, em mim mesmo e na sociedade. A sociedade, são as minhas relações com outros, e nessas relações, a que chamo "a sociedade", faz-se necessária uma transformação, uma demolição total, uma completa revolução do pensamento. Já que percebo a importância dessa transformação, pergunto: como pode ser feita? Depende a sua realização de especulações intelectuais, de conhecimentos da história e de sua interpretação, do conhecimento das várias questões sociais e métodos de reforma? Todo esse saber é capaz de produzir, a transformação total de mim mesmo, do meu pensar, de minha atitude, minhas atividades e pensamentos? Assim sendo, não é necessário – se tenho verdadeiro interesse – que eu investigue esta questão da transformação? Não devo investigar os móveis que me impelem a transformação, a minha ânsia de transformação? A ânsia de transformação pode produzir a transformação radical? Essa ânsia pode ser uma simples reação do meu condicionamento, meu fundo, a impressões várias, de ordem social, econômica ou cultural.

Pode-se promover a transformação sob compulsão de qualquer espécie? Ou existe uma transformação não dependente do tempo?

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Deixa-me expressá-lo da seguinte maneira:Conhecemos a transformação em relação com o tempo, e o tempo compreende a compulsão a

que nos sujeitam as várias formas de sociedade, cultura, relações, temores, o desejo de ganhar alguma coisa ou de evitar punição? Tudo isso está na esfera do tempo não é verdade? São funções, resultados, atividades de uma mente oriunda do tempo. Considerando bem, a mente é resultado do tempo – do tempo cronológico, de séculos de tradição, séculos de educação, compulsão, temor. A mente, por conseguinte, é coisa do tempo. Pode a mente, resultado do tempo, operar uma revolução total e sem relação com o tempo? Se nos modificarmos na esfera do tempo, isto é, se me modifico porque minha sociedade exige, por perceber a necessidade de fazê-lo sob alguma forma de compulsão, ou porque tenho medo – e tudo isso, sem dúvida, é resultado dos cálculos da mente – não pode haver revolução total. Isto é bem evidente não achais? Quando a mente pensa em termos referente ao tempo, para a transformação, há transformação? Ou só há uma continuidade, ajustamento a determinado padrão e, por conseqüência, nenhuma transformação?

O problema, pois, é este: Há transformação, há revolução NÃO DEPENDENTE do tempo? Não é esta a única revolução verdadeira – revolução que não é produto da mente, do pensamento? Afinal de contas, pensamento é reação da memória, sendo a memória experiência, conhecimento, acumulação de inumeráveis reações e experiências; tudo isso constitui a mente, o fundo com que a mente reage; e essa reação é pensamento. O pensamento, portanto é coisa do tempo. Enquanto eu estiver me transformando dentro do tempo – isto é, de acordo com um padrão qualquer: comunista, socialista, capitalista, católico, hinduísta, budista, etc – a transformação estará sempre dentro da esfera do tempo.

Quando a transformação obedece a um padrão por mais amplo que seja estará sempre compreendida no tempo e, portanto não há realmente transformação, revolução. Prestai atenção a isto, para o compreenderdes bem.

Não o rejeiteis dizendo: "Puro disparate, que não nos leva a parte alguma."Mas, escutai-o, ainda que não estejais habituados com esta idéia. Talvez a estejais ouvindo

pela primeira vez. Não a rejeiteis porque, se quiserdes investigá-la profundamente, VEREIS COMO É EXTRAORDINÁRIO O SEU CONTEÚDO.

A transformação se realiza quando não existe medo, quando não existe "experimentador e experiência"; é só então que se verifica a revolução que está fora do tempo. Tal revolução, porem, não é possível, quando estou tentando transformar o "eu", quando estou tentando transformar "o que é" noutra coisa diferente. Sou o resultado de compulsões e persuasões de toda ordem, sociais e espirituais, resultado de todo o condicionamento do impulso de aquisição; nisso está baseado o meu pensar. Desejando livrar-me desse condicionamento do impulso de aquisição, digo, de mim para mim: "Não devo ter o espírito de aquisição".Devo exercitar-me no "não querer". –Mas tal atividade está ainda na esfera do tempo, é ainda uma atividade da mente. Percebei bem isso; não digais; "Que devo fazer para alcançar o "estado sem impulso aquisitivo?". – Isso não é importante. Não é importante que, se seja "não-aquisitivo". O importante é compreender que a mente que quer fugir de um estado para outro está sempre funcionando dentro da esfera do tempo e, por esse motivo, não há revolução, não há transformação. Se fordes realmente capazes de compreender isso, estará então plantada a semente daquela revolução radical, a qual entrará em ação; não se precisa fazer coisa alguma.

Se há obstáculo à ação daquela semente, isso se deve a nossa resistência, ao nosso exclusivo interesse nos resultados imediatos. Assim que percebo a necessidade da transformação, logo quero saber "como" me transformarei, qual o método que devo seguir, só isso me interessa. O método implica continuidade da atividade da mente e só é capaz de produzir ação conforme com um padrão e, portanto, ação temporal, produtiva de sofrimento.

Pode haver ação não dependente do tempo, não dependente da mente, não condicionada apelo pensamento, que é puramente experiência do conhecimento? Tudo isso está relacionado com o tempo. Uma tal atividade, por conseguinte jamais produzirá revolução, uma revolução total em nosso desenvolvimento de entes humanos. O problema, pois é esse: Há possibilidade de revolução, de transformação fora do tempo? Há possibilidade transformação de sem interferência da mente? Percebo a importância da transformação. Todas as coisas se transformam, todas as relações se

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transformam, cada dia é um novo dia, se estou morto, completamente, para o "ontem", que já é "coisa velha"; morto para todas as coisas que aprendi, que adquiri, que experimentei e compreendi, há então revolução em cada momento que vem, e há transformação. Mas, o morrer para ontem não é atividade da mente. A mente não pode morrer por força de uma determinação, de evolução de um ato de vontade. Se a mente reconhece a verdade de que não pode produzir a transformação por alguma ação da vontade, ou por meio de uma determinada conclusão ou compulsão, - e o que se produz por essa maneira é apenas uma continuidade, um resultado "modificado" e não uma revolução radical; se a mente estiver silenciosa, por uns poucos segundos apenas, para apreender a verdade dessa asserção, vereis, então acontecer uma coisa extraordinária, independentemente de vós mesmos e da vossa mente. Ocorre então, interiormente, uma transformação, sem nenhuma interferência da mente, que é pensamento condicionado. É um extraordinário estado mental, esse em que não existe "experimentador" e não existe "experiência". Daí resulta a revolução total.

Essa revolução total é a ÚNICA COISA que pode trazer a paz ao mundo.Todos os ajustamentos de caráter nacional, todas as reformas econômicas, de um grupo que

domina outro grupo e liquida todos os demais grupos, tudo isso ha de falhar, porque só pode trazer maiores sofrimentos e mais guerras. O que trará paz ao mundo, a compreensão, o amor, não é a razão – pois esta se baseia em reação condicionada – mas só a mente que se compreende de maneira total e é capaz de achar-se naquele estado eternamente, "atemporalmente" novo. Isso não é uma impossibilidade uma coisa idealística, fantástica ou mística. Se buscardes realmente esta coisa, encontrá-la-eis, experimentá-la-íeis diretamente; isso porem exige muita, muita meditação, investigação persistente, compreensão.

O IMPORTANTE, POIS É COMPREENSÃO DA MENTE, E NÃO O MÉTODO DE OPERAR A TRANSFORMAÇÃO DE SI MESMO e, conseqüentemente, a transformação do mundo. O próprio processo de compreensão do problema produz uma transformação, independentemente de vós mesmos. Eis porque é importante ouvirdes estas palestras sem vos deixardes persuadir pelo que digo, mas percebendo a verdade contida no que estou dizendo. A verdade é que traz a revolução, e não a mente sagaz, a mente que calcula. Porque a verdade não pertence ao tempo, a verdade não pertence à Índia, a Europa, a Rússia, a América; não pertence a nenhum grupo, nenhuma religião, nenhum mentor, nenhum discípulo. Onde há um mentor, onde há um seguidor, onde há uma nacionalidade, lá não esta a Verdade.

A VERDADE SÓ PODE SURGIR QUANDO A MENTE COMPREENDEU, E SE ACHA TRANQÜILA; SÓ ENTÃO PODE MANIFESTAR-SE AQUELA REALIDADE.

Tenho aqui várias perguntas. Antes de dar-lhes resposta, creio importante averiguar se ides escutar com o propósito de obter uma resposta, ou se ides dar toda a atenção somente ao problema. Estes são dois estados diferentes. É fácil fazer perguntas, assim como um colegial dispara uma pergunta e se põe a espera de uma resposta pensando que essa resposta irá resolver todos os problemas e que o que se precisa fazer é apenas aceitar a resposta ou rebatê-la, como um estudante muito destro no debate. Só se fica nesse nível quando esta desejando uma resposta, quando se escuta para se obter uma resposta. Mas, quando o que nos interessa é só o problema e não a resposta, nossa atitude é então de todo diferente. A primeira dessas duas atitudes é própria do colegial, do individuo não amadurecido, e resulta de uma educação não inteligente; a outra requer madura investigação.

Assim, depende de vós a maneira de como escutais. Se o fazeis com a atitude de quem busca uma resposta e os sentis desapontados quando a não obtendes e dizeis – "Ele nunca responde as perguntas" – não pretendo dar resposta alguma, porquanto a vida não tem resposta. "sim", ou "não". A vida é uma coisa imensa, vastíssima; tudo corre para ela, como para um mar. É qual um rio caudaloso que segue seu curso até o mar, levando consigo o bom, o mau, o daninho, o belo, o feio. Essa totalidade constitui o Oceano, que não é apenas as atividades superficiais, as rugas da superfície. Investigar o um problema, sem resistência, sem opor barreiras, sem preconceitos, é muito difícil. Nos temos de investigar o problema e de compreender-lhe os aspectos mais profundos. Temos, pois, que só há problemas e não soluções ou respostas. A meu ver, se pudermos compreender verdadeiramente, sentir verdadeiramente que a ida é um problema, que ela não é algo que se tem de concluir, um refugio onde se encontra perene segurança, nossa atitude, nossas

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atividades e pensamentos serão então totalmente diversos. Estaremos, então aptos a receber todas as coisas e sermos ao mesmo tempo "como o nada".

Krishnamurti - "O MILAGRE DA TRANSFORMAÇÃO". Págs. 11/25 do livro "As Ilusões da Mente" - Série Selo de Ouro 1145 - Tradução de Hugo Veloso da 1ª Palestra em Bombaim, Índia de 07.02.1954– editado pela Ed. Ouro em 1969.

COMO IRÃO VOCÊS EDUCAR MEU FILHO OU FILHA?

Gostaria de saber até que ponto penetramos a questão sobre a qual estávamos conversando no outro dia. Dizíamos, não era, que a maneira do homem de abordar a educação, a vida, qualquer coisa, tem sido até agora, ao longo de caminhos tradicionais - o bem e o mal, isto deve ser feito e aquilo não deve ser feito, isto é correto, aquilo é errado. Estávamos tentando ver se havia uma maneira de abordar a educação, a vida, qualquer coisa, a partir de um ponto de vista diferente, de uma dimensão totalmente diferente. Não sei até que ponto vocês mesmos investigaram e discutiram o assunto. O que sentem, ou o que pensam? Como traduzir isso em ação, em ensino? Como nos encontramos com os estudantes, que são condicionados, que possuem toda sorte de preconceitos, necessidades, impulsos?

Apenas ouçam, por favor, não me censurem. Nossa responsabilidade não é para com as crianças, para com os estudantes; nossa responsabilidade é para com o Outro, sobre o qual conversamos outro dia; e essa responsabilidade traduzimos em ação na nossa própria vida e naquela da comunidade, da escola. Faz isso algum sentido?

Não traduza essa responsabilidade como sendo para com Deus. O cristão, o hindu, o mundo tradicional inteiro diz: "seja responsável para com Deus, para com o Supremo, para com o Altíssimo, para com o Nobilíssimo, para com o Imensurável". E eles traduzem essa responsabilidade nisso. Não podemos agir usado tais palavras ou símbolos. Agir, penso eu, exigiria que se tivesse lazer em Brockwood, e não estar ocupado desde o nascer até o pôr do sol. Todos à volta de Krishnamurti estão ocupados desde à manhã até à noite, fazendo alguma coisa ou outra; não têm lazer para se sentar, observar, olhar para si mesmo, meditar, estar quietos.

Professor: Você tem de se sentar e observar para fazer isso, Krishnaji? Krishnamurti: Não, não se sentar, mas ter lazer. P: Na ação, não está você fazendo isso? K: Ação é partir daí. Não que você esteja fazendo isso na ação. Vamos agora esclarecer. O

que há de errado com o lazer, ter lazer para observar as árvores, as flores, a si mesmo? Deve-se ter lazer, observar, estar quieto, não se deve? Não se pode trabalhar, estar ocupado sob estresse desde a manhã até à noite. Não se deve ter algum tempo para si mesmo? Para muitos, tempo para si mesmo é meramente indolência, preguiça; nesse retiro definham. Não estou falando de tal perda inútil de lazer.

O problema é este. Vejo que a tradição não tem mais significado, no sentido em que venho usando a palavra "tradição". Nesse campo podemos cavar e cavar e cavar e nos tornarmos um pouco melhores, mas isso não é absolutamente sagrado, nem criador; é algo terrível. Agora quero me afastar daí. Quero me mudar para uma dimensão na qual a energia, a chama da energia criadora, é sempre abundante; abundante sempre, esteja eu cansado, entediado, ela está sempre aí. E sou responsável por isso; minha mente está completamente comprometida com isso; e a responsabilidade e a chama dela é isso. Vejo à minha volta pessoas ocupadas com a tradição e digo que ao longo desse caminho você jamais criará uma mente diferente.

Agora, vemos isto como um grupo que irá estar permanentemente em Brockwood, que com Brockwood está comprometido como sendo sua casa, seu trabalho, sua vida, suas coisas todas? Porque esta é uma comunidade, com uma escola, um centro educacional, de tipo diferente. Portanto, estamos todos interessados nisso? O que não significa que eu me retiro, ou que interessado nisso saio sozinho para um passeio com fim de aí permanecer. Isso tudo é muito estúpido. Mas é minha responsabilidade para com isso, e não cavar mais fundo ou ampliar o movimento tradicional? Na trincheira do movimento tradicional, posso ser muito esperto; posso educar crianças a serem mais

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inteligentes, um pouco mais honestas, mais isto e mais aquilo, mas no interior da área tradicional, que para mim é uma abominação.

Isto está claro para todos? Quero estar bem seguro de que isto está claro, no sentido não-verbal, de que a energia tradicional é um desperdício de energia. A Outra (energia) não é um desperdício de energia. Ao contrário, vocês possuem mais e mais de uma dimensão diferente de energia. E aqui estamos comprometidos com isto, responsáveis por isso; e devemos ter lazer, tempo, espaço, quietude para descobrir como traduzir isso em ação ao ensinar.

Trago-lhes meu filho ou filha, e quero que ele ou ela torne-se adulto nos caminhos não tradicionais. Deixo-o sob seus cuidados e torno isto muito claro: caminhos não-tradicionais; não "faça isto, não faça aquilo", "isto deveria ser, isto não deveria ser"; tudo isso acabou. Digo-lhes isso. O que farão? Como educarão o menino para ter essa percepção, essa realidade em sua mente e em seu coração, para ter essa dimensão, a fim de que ela cresça, com uma chama? Agora como podemos criá-la?

Penso que para compreender isso deve-se ter este tipo de discussão, que significa lazer, que vocês não podem estar ocupados o dia inteiro desde a manhã até à noite. Precisam sentar-se, discutir, investigar, e dizer: "veja, o que isso significa?" O que significa isso de abandonar a tradição e discutir, indagar, ver o que podemos fazer para encontrar ou descobrir essa dimensão?

P: Minha tendência é responder a pergunta a partir dos campos tradicionais A e B. A sendo bom, amável, generoso, mais polido e B sendo violento, brutal. Penso em ações, razões e objetivos.

K: Sim, isso tudo é tradição. Agora - considerem isso como uma diversão, como se estivessem praticando um jogo - como chegarão a essa dimensão a essa dimensão ou, possuindo-a, o que farão, como educarão meu filho ou filha? Quando estão nessa dimensão, é como uma chama. Os campos tradicionais não são uma chama.

P: Estamos nós operando em A e B agora? K: É isso o que quero perguntar-lhes. Vocês os abandonaram? P: Mas se dois ou três nos unirmos ao mesmo tempo, como você colocou, responsáveis pelo

Outro, então o Outro estará presente. K: Presente, bem exato, responsáveis pelo Outro. E nós nos unimos nisso? Para fazê-lo

devemos ter tempo para sentar, por de lado todas as nossas preocupações, vir juntos, investigar isso tudo e dizer: "o que é que isso significa?" Penso que a energia criadora surge dessa dimensão, não da dimensão tradicional. A dimensão tradicional pode criar um quadro, mas o quadro é nada, ou o pintor é nada. Mas estamos lidando com seres humanos. Somos seres humanos e estamos lidando uns com os outros; e pode a chama dessa dimensão penetrar no estudante, na criança? Quero que meu filho possua essa chama quando deixar a escola. Vocês são responsáveis pelo meu filho. Como trarão esta chama para o interior dessa criança?

Olhem, há um rio para ser atravessado. Estou neste lado do rio. Fiz todas as coisas neste lado do rio. Durante séculos adorei os deuses do outro lado do rio, que são minhas projeções, e vejo a inutilidade disso. Assim digo que é a partir desse outro lado que devo operar. Perguntar como chegar ao outro lado é a abordagem tradicional. A mente deve achar-se na outra margem quando tiver abandonado toda atividade nesta margem.

P: O problema é que poderíamos desejar estar na outra margem. K: Isso tudo é um ardil, isso tudo é pueril, construir uma imagem dela, nela ser apanhado, ter

visões, exorcismos. Isso tudo é este lado. Eu quero achar - não eu - achar-me outro nessa outra margem. E quero que meu filho chegue a essa margem. Isso é educação, não toda esta baboseira. Agora como isso é possível? Que é que tenho de fazer? Vamos, senhores, ponham sua mente nisso, ponham suas entranhas nisso. Desculpem!

Que é que tenho de fazer? Tenho um bebê bonito, uma criança muito bonita, rosto bonito, gentil, calmo. Crianças são adoráveis; e crescem e se transformam em tamanhas monstruosidades. Quando atingem a puberdade, algo lhes acontece, perdem todo seu encanto. Quero impedir isso.

P: Se você fosse um estudante e eu visse que você estava operando num modo A ou B, poderia agir para impedi-lo de fazer isso em sendo um espelho, de modo que você veria claramente o que está fazendo.

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K: Veja o que acontece. Você está bloqueando. Irá isso resolver? Irá isso produzir em mim aquela dimensão? Você ainda continua pensando em termos tradicionais - faça isto, não faça aquilo, isto deve ser, aquilo não deve ser, o que é um bloqueio. Sabe ao menos o pobre sujeito olhar no espelho?

Senhor, quero achar um caminho totalmente diferente. Há um caminho que não seja através de um exemplo, de uma autoridade, de imitação, sem sua resistência bloqueando? Esses são todos caminhos tradicionais. Aplicar, mudar, modificar e ampliar, esse é o caminho tradicional. Tudo isso implica recompensa e punição. Abandono esse modo de olhar para isso porque vejo que isso não tem valor.

Agora que é que devo fazer? Quero que o menino possua uma dimensão que jamais será capturada pela tradição. Quero que ele não tenha quaisquer problemas desde a infância até que morra. A criança tem problemas quando vem a nós. Ele está condicionado. Quando uso a palavra "condicionado", ela inclui isso tudo. Se ele cresce nisso, nisso ele é apanhado para o resto da sua vida. Agora, ele vem a mim, e minha responsabilidade é para com o Outro, e digo que no Outro (outro estado) não há problema - sexo, bebida, nenhum problema, porque essa inteligência é uma vitalidade tremenda. É uma chama e essa chama consome todas as coisas.

Assim, ele vem com problemas. Que é que devo fazer para que quando deixar a escola sua mente jamais criará um problema sobre qualquer coisa? Essa é a maneira de viver - mas não como uma idéia. Se sou responsável para com essa dimensão, minha responsabilidade se traduz em cuidar para que o menino nunca tenha um problema. Agora o que é que devo fazer? Como posso ensinar-lhe isto? Como posso transmitir-lhe isto?

P: Sendo totalmente responsável para com este Outro (outro estado) sobre o qual estivemos conversando.

K: Eu sou. P: A questão é, eu sou? K: Não, olhe, senhor, isto é do nosso interesse. Nas palestras na tenda, quero comunicar

alguma coisa. Muito poucas pessoas apre(e)ndem isso, mas conversam e se vão. É minha responsabilidade não apenas para com isso, mas também para lhes transmitir. É uma responsabilidade ali como aqui. Vocês são adultos e aqui vêm para escutar, assim há uma resposta de vocês, mas a criança não tem uma resposta. Ela não tem esse tipo de mente, ela nem ao menos o escutará. Ela dirá sim senhor, não senhor, mas está presa à tradição. Certo? Agora, o que tenho de fazer? Essa é a questão. Não traduza isso. Olhe para o problema. tenho esta menina ou menino, condicionados, que quer ir ao bar, tomar cerveja, fumar, e tudo o mais. O que tenho de fazer? O que é que seu cérebro diz, senhor?

P: Estou olhando esta questão se sou diferente da criança. K: Creio que é. Você é responsável por isso. Você removeu esta margem; não está operando

nesta margem, apenas na outra. E a pobre criança não vê (entende) essa outra margem nem esta. Não está consciente de qualquer das duas, mas apenas de suas pequenas necessidades. Assim como irá lidar com isso? Ele quer tornar-se um engenheiro porque seu pai é um pequeno engenheiro - e isso prossegue continuamente. Que irá fazer?

P: Sem absolutamente me sentir como sendo um exemplo ou tentando buscar oportunidades para falar ou ter relacionamento, ainda quero ter muito tempo junto da criança ou crianças, o que significa que tenho de dar muitas oportunidades a isso.

K: Você está dizendo que por estar ali, por estar em contato com a criança, com o estudante, o mero companheirismo, a simples atenção, olhando um para o outro, o mero senso de proximidade (familiaridade, intimidade) - não física, você entende - está dizendo que isso é um requisito primário?

Investigue isso. Apenas investigue isso. Isso é necessário. Você não é tradicional - por favor, isso é absolutamente importante - você não funciona absolutamente nesta margem; você está ali na outra margem, numa dimensão diferente. Esta coisa está operando, ardendo em você e o estudante vem a você. Isso é uma das coisas necessárias. Obviamente. ë isso tradição? Você está ali; há proximidade, companheirismo. O que significa? O que acontece entre você e o estudante? Você está

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ali com essa chama, ardendo, não apenas despertando ocasionalmente. Ela está ali, sua mente está ali, seu cérebro está ali. Companheirismo. O que acontece ali?

P: A criança se sente mais segura. K: Ah! A criança - por favor, apenas escutem - a criança vem a você insegura, condicionada,

querendo tantas coisas, querendo seu amor, querendo seu companheirismo, querendo segurança; ela quer uma dúzia de coisas. Pergunto o que acontece entre o homem que vive e funciona nessa outra dimensão e a criança? O que acontece? Vamos!

Estou próximo a você, sentado junto de você e você está vivendo nessa dimensão. O que acontece entre nós? O que está acontecendo entre nós agora? Somos razoavelmente amigáveis, pessoas razoavelmente decentes. O que está ocorrendo agora entre nós? Você está funcionando pelas vias tradicionais agora? Está funcionando, pensando, operando em termos do que fazer? Estamos falando sobre companheiros. nesse companheirismo entre você e eu agora, você está pensando no que fazer?

P: Senhor, entre você e eu exatamente agora, se não estou entendendo inteiramente alguma coisa que está ocorrendo quando você está falando, tudo que passo fazer é apenas receber isso.

K: Senhor, já esteve num bosque onde há absoluto silêncio? Absoluto - há um pequeno zumbido de cigarras e um pouquinho de ruído, mas um tremendo senso de silêncio. Você esteve ali, não esteve? Agora você está nessa dimensão, e eu sou seu companheiro. O que foi que aconteceu em mim? Estou cônscio de um extraordinário senso de alguma coisa, que não tenho sido capaz de tocar. Estou cônscio de alguma coisa que não sei traduzir em palavras. Não sou capaz de descrevê-la. Estou cônscio de alguma coisa extraordinária.

Agora, nesse estado não tenho problemas. Não estou condicionado; não estou dizendo: "oh, meu Deus! minha mulher está fugindo com alguém", ou "desejo dormir com alguém". Nada disso acontece, estou apenas nisso (nesse estado). Agora porque isso (esse estado) acontece?

P: Bem, estou com alguém em quem as outras atividades não acontecem. K: Sim, que significa o quê? Você cresceu. Estamos ambos observando alguma coisa dessa

dimensão; estamos ambos cônscios de alguma coisa dessa dimensão. Assim significa que ali estamos fora; ambos temos um sentimento dela. Isso é razoavelmente simples porque temos trabalhado nisto durante os três ou cinco últimos dias, ou vários dias, ou vários meses. Mas você tem uma criança, um estudante, como irá criar esta coisa? Não é um relacionamento, não é um companheirismo, não é uma amizade, não é minha afeição por você ou meu amor por você, ou querer ajudar. Tudo isso foi removido. Agora como irá você trazer o estudante a isso (esse estado ou dimensão) Alguém entende do que estou falando?

Isto acontece entre duas pessoas. Você e eu temos vivido durante os poucos últimos meses em Brockwood. Discutimos estas coisas de diferentes maneiras. Você se tornou sensível a isto; pensou sobre isso; você pôs abaixo o seu próprio conhecimento, o próprio treinamento peculiar, seu próprio ponto de vista. Você se moveu; não teria escutado isto no começo. Teria dito: "que disparate você está dizendo". Agora você está começando a escutar agora sem vontade até para responder quando, antes, o teria feito. Enquanto falamos, você também vê logicamente, intelectualmente, que os campos tradicionais A e B não têm mais valor; assim você já se moveu. Não mais opera nos campos A e B. Você pode ocasionalmente, mas está fora dessa categoria. Assim você abriu a porta para alguma coisa.

Coloque isto desse modo. E você e eu nos encontramos. Há um companheirismo sem motivo, que não tem a sensação de : "oh, meu Deus! ele é meu grande amigo, meu único amigo, devo estar com ele". Nada disso existe. Assim você já observou, ou chegou a essa dimensão. Por enquanto. por enquanto, está suficientemente bom. Agora sou a criança, sou o estudante. Como irá você levar o estudante, levar-me até ela (essa dimensão). Você entendeu minha pergunta?

P: A criança tem de ser levada aonde nada sabe no sentido que pensa que sabe. De que outra forma o levará a alguma outra coisa? Ela pensa que sabe.

K: Ela pensa que sabe. Há essa criança; fique com ela assim como ela é, não como você quer que ela seja. ela é isso, o que é, o produto dos pais que brigaram, e assim por diante. Tudo isso está depositado na pobre criança. E você está nessa outra margem e quer que ele alcance essa outra margem.

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P: Faça o que está fazendo agora. K: Nossa questão é diferente, porque somos pessoas assim chamadas amadurecidas, Muito

temos conversado sobre tudo isto. Temos lido, discutido, falado disto ou daquilo, portanto estamos mais ou menos abertos, mas a criança, o estudante não. E escutem isto - ele vai para casa, volta a vocês. Provavelmente está aqui durante três anos, e em seguida se foi, foi descartado, assim vocês têm um período muito curto no qual trabalhar.

Olhem, temos problemas: a criança, o estudante chega condicionado; e há alguma qualidade de maneira que a mente nunca esteja condicionada? Estou tentando descobrir se há algum catalisador que despedaça todo o seu condicionamento, não em três anos, mas assim que entrar na sala. Isso não é tradição. Estou interessado nisso, não em como descondicionar, não me apressar. Isso é muito aborrecido. Isso demora muito. estou interessado em que no momento que ele se aproxime de Brockwood, do prédio, da sala, a coisa deve ser rompida. E é minha responsabilidade criar essa chama, de maneira que nessa chama seu condicionamento é consumido instantaneamente. Se nego a tradição, isto deve acontecer. Acompanham o que estou dizendo? Sua responsabilidade, vivendo nessa dimensão, é dinamitar meu condicionamento - não através do tempo, mas no instante que me aproximo de vocês; quando me junto a vocês alguma coisa acontece.

Aconteceu isto a vocês? Entrando nesta sala, sentados, falando deste mesmo modo, vocês e eu, rompeu-se o seu condicionamento? Aqui estamos, juntos, sentados. Somos companheiros; não estou em oposição a vocês, vocês não estão em oposição a mim. estamos juntos falando sobre estas coisas, e a própria atmosfera, a própria essência disto põe abaixo outras coisas que não sejam ela mesma.

P: Você sugere que aqui nós rompemos o nosso condicionamento, mas que para fazer isso deve haver uma chama.

K: Não, não, não. Olhe. Olhe! Antes de mais nada, dissemos que temos sempre estado funcionando no campo A e B, e isso não criará uma mente nova, uma mente ardente, uma mente que é realmente excelente no mais elevado grau. E assim digo, está bem, abandono isso; e não quero mais sentir-lhe o cehiro, tocá-lo, olhar para isso, está acabado; porque isso não fez nada no mundo - o mundo sendo seres humanos. E eu tenho operado, esta mente tem operado, nesta margem do rio. E estou dizendo, se ela opera na outra margem, a coisa está acabada. e temos sempre perguntado: "como é que eu posso cruzar o rio?", o que é tradição - ser transportado por um barqueiro, por um guru, por um salvador, por um Cristo, por alguma pessoa ou outra para nos levar lá. Isso é completamente tradicional, estúpido; abandono isso. No próprio abandono disso estou lá. Abandono total.

E então vou até você e digo: "meu amigo, você é parte deste caso da Comunidade de Brockwood, salte para esta outra margem, mas não me pergunte como, porque o "como" é de novo volta à tradição. Não me pergunte o que você tem que fazer, porque se fizer estará de volta novamente". É por isso que, antes de pedir-lhe para vir para a outra margem eu digo: "você desistiu completamente da tradição?"

Eu posso discutir isto, ter um diálogo, uma série de discussões e assim por diante, talvez durante dois ou três meses até que vocês vejam isso, porque quero que saiam disso. Minha paixão é essa.

E trago meu filho. Ele observou-nos a mim e a minha mulher brigando, batendo um no outro, toda a estupidez que se segue. E aqui ele vem, e está condicionado. E é sua responsabilidade, estando nessa outra margem, romper este condicionamento. Não através do tempo, rompa-o instantaneamente, para que ele diga "sim, eu sei agora, eu entendo, tenho um sentimento de que quero botar isso tudo fora". No momento em que vocês negam o todo desta margem tradicional não há mais nada.

Como um pai, não me importo com o que façam, mas tudo que quero é que vocês como um grupo de professores, comprometidos com isto, transformem meu filho. Naturalmente não quero que batam nele, mas tendo estabelecido tudo isto, é sua responsabilidade, sua ação criadora. É possível ingressar na sua comunidade, na sua presença, e por causa dela o condicionamento definhar - por causa de sua presença, de sua atmosfera, de seu tremendo senso de vida aqui?

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Estou falando sobre ter um grupo de pessoas que são completamente dedicadas, completamente responsáveis, completamente com aquela chama. Estranhos milagres acontecem. Porque haveriam vocês todos de estar aqui sentados com este sujeito que nasceu em um reles cidadezinha? Como isto aconteceu? Isto é um milagre. Certo? E se vocês sentem aquela chama, terão algo maravilhoso acontecendo.

Agora, enquanto estiver aqui em Brockwood, vou persistir nisto - desculpem - a fim de que tenhamos lazer para sentar e conversar, investigar isto; e vocês não devem vir com uma mente que diz: "meu deus! deixei a comida no fogo, preciso sair correndo", ou "tenho de responder aquela carta". Vocês devem vir todos ao mesmo tempo tendo lazer. Vocês devem vir com a mente sem tensão, não impelida de um lado para outro, mas quieta.

P: Não importa como estamos, em que margem nos encontramos, ainda temos de operar com uma certa quantidade de tradição.

K: Claro. P: Estamos atados a ela. K: Não, devo abandonar a tradição. P: Você deve ter um teto sobre sua cabeça. K: Eu devo abandonar a margem da tradição, então terei um teto ou não, mas a coisa é mudar

para aquela margem. essa é a coisa principal. Então educarei meu filho de maneira totalmente diferente; a própria ação de ensinar álgebra será o (a)... Você abandonou a margem da tradição? Não digo que sim nem que não. Minha insistência é: você abandonou? Se abandonou, você está nessa Outra coisa. Se essa Outra coisa operar, você usará qualquer ferramenta; não canhões, mas usará álgebra, seja o que for que você ensina, como um meio de transmitir a outra coisa.

P: Não vejo como você faz isso. K: Essa é a nossa coisa criadora. Eu sou consumido pelo Outro, ardendo com Ele, e tenho um

estudante que deve ser capaz de ler, que deve ser capaz de escrever. Tenho esta criança condicionada. Como posso, vivendo na outra margem, criar nela (na criança) essa chama, essa alguma coisa que o ajudará a escrever? Como pode isto acontecer?

Penso que estamos ficando com isto. Se vocês dizem que nenhuma criança de Brockwood precisa aprender qualquer coisa, apenas estar na nossa presença, estar conosco, não fazer coisa alguma, não ler, não fazer nada - produziria isso a chama na criança? Digamos, vocês são o grupo, e têm essa presença, esse outro estado. Estão fervendo com ele, e ele existe em Brockwood. E eu lhes envio meu filho, sabendo que desejo que tenha essa presença, essa coisa. Algum homem sensato, pai sensato, lhes envia o filho, enfrentando-o mundo como tal? Mas eles o enviam, e vocês têm de criar esta coisa nele, fazer esta coisa ferver nele. Se a fervura transborda dele mesmo, dos seus olhos, dos seus ouvidos, qualquer coisa em que ele puser as mãos florescerá. Entendem o que estou dizendo?

Coloquemos isto de outro modo: podem vocês criar um gênio, o que é a mesma coisa - gênio não na estúpida tradição, escrever um poema maravilhoso, mas embebedar-se até morrer, não chamo a isso de criatividade. Não estou falando daquelas pessoas que são chamadas "criativas", e consideradas gênios. Não as considero absolutamente geniais. Apenas possuem um certo dom e dominam esse talento até morrer, enquanto o resto é podre.

Desculpem! Agora, na sua presença podem vocês criar essa coisa, um gênio? Gênio sendo o ser que possui essa chama e o que quer que ele toque, seja matemática, pintura, será dessa coisa, o que significa que essa coisa é toda sua vida. E isto é simplesmente uma manifestação: pintar, escrever, é uma manifestação; ele não se importa se faz isso ou não. Se a margem tradicional for abandonada, interiormente, totalmente, então vocês estarão na outra margem; então essa chama estará ali. e se todos possuirmos essa chama, criaremos tal coisa com a qual a criança arderá.

Desculpem, continuo repetindo isto. Por que não deveria ela aprender matemática? Aprender matemática é tradição? Aprender é tradição? Vocês estão aprendendo agora, não estão? Isto é tradição? Mas se estiverem aprendendo e ainda vivendo no mundo tradicional, transformam esse aprender em tradição. Isso é tudo.

Conversa com Educadores - Chalet Tannegg, Gstaad, Suíça - Extratos de gravações de encontros informais de Krishnamurti e administradores de Brockwood durante suas palestras públicas em Saanen em 1974.

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A organização se torna mais importante que a busca da realidade

Pergunta: Você foi anunciado pela Sociedade Teosófica como sendo o Messias e o Instrutor do Mundo. Por que você saiu da Sociedade Teosófica e renunciou ao papel de Messias?

Krishnamurti: Vamos examinar a questão das Organizações. Existe uma história bem engraçada que conta que o diabo e um amigo estavam passeando quando viram, a sua frente, um homem abaixar-se e pegar algo brilhante do chão. Ele olhou para aquilo com deleite, colocou-o no bolso e continuou caminhando. O amigo perguntou: "O que aquele homem achou que o transformou tanto?" O diabo respondeu: "Eu sei, ele encontrou a verdade." "Por Deus!"- exclamou seu amigo: "Isto deve ser um mau negócio para você!". "De jeito nenhum"- o diabo respondeu com um sorriso malicioso: "Vou ajudá-lo a organizá-la, você vai ver só!"

Pode a verdade ser organizada? Você pode encontrar a verdade através de uma organização? Para encontrar a verdade, você não deve ir além e acima de todas as organizações? Afinal de contas, por que todas as organizações espirituais existem? Elas estão baseadas em diferentes crenças, não? Você acredita em uma coisa e o outro acredita nisso também e em volta dessa crença vocês formam uma organização, e qual é o resultado? Crenças e organizações estão sempre separando as pessoas, excluindo umas das outras; você é um hindu e eu sou um mulçumano, você é um cristão e eu sou um budista. Crenças, ao longo de toda História, atuaram como uma barreira entre os seres humanos, e qualquer organização, baseada em crença, deve inevitavelmente produzir guerra entre os seres humanos; e isso tem acontecido vezes sem conta. Nós falamos de fraternidade, mas se você tem uma crença diferente da minha, estou pronto para cortar sua cabeça; nós temos visto isso acontecer inúmeras vezes.

As organizações são necessárias? Você entende que não estou falando das organizações formadas para conveniência mútua dos seres humanos na sua existência cotidiana, como Correios, etc. Estou falando das organizações psicológicas e das chamadas organizações espirituais.

Elas são necessárias? Elas existem na suposição que irão ajudar o ser humano a encontrar a verdade, ou Deus, ou seja lá o que você queira. Elas são um meio de propaganda, para converter o outro, para aumentar o número de adeptos, etc; você quer falar para os outros o que você pensa, ou o que você aprendeu, o que parece ser verdadeiro para você. E a verdade pode ser propagada? O que é verdade para alguém, quando propagado, certamente deixa de ser verdade para o outro. Não? Certamente, a realidade, Deus ou seja lá o nome que você der a isso, não é para ser propagado. Cada um deve experimentar por si mesmo e essa experiência não pode ser organizada; no momento que é organizada, propagada, ela cessa de ser verdade, ela se torna uma mentira, portanto, um impedimento à realidade, porque, afinal de contas, o real, o imensurável, não pode ser formulado, não pode ser colocado em palavras, o desconhecido não pode ser medido pelo conhecido, pela palavra, e quando você o mede, ele cessa de ser verdade, deixa de ser real e, portanto, é uma mentira – e somente uma mentira é que pode ser propagada. E organizações, que supostamente estão baseadas na busca da verdade, fundadas para a busca do real, tornam-se instrumentos dos propagandistas, e assim elas deixam de ter qualquer significado; não apenas a organização que está em questão, mas todas as organizações espirituais, elas se tornam meios deexploração. Elas adquirem propriedades e a propriedade se torna tremendamente importante; passam a procurar mais membros e começa todo aquele negócio; as pessoas não vão encontrar a verdade porque a organização se torna mais importante que a busca da realidade. E nenhuma verdade pode ser encontrada através de qualquer organização porque a verdade vem quando existe liberdade, e liberdade não pode existir quando existe crença, pois crença é apenas o desejo de segurança, e a pessoa que está presa na sua necessidade de segurança nunca pode descobrir a verdade.

Agora, a respeito do papel de messias, é muito simples. Eu nunca neguei isso e não penso que tenha grande importância se eu neguei ou não. O que é importante para você é se o que eu digo é verdade. Assim, não se prenda ao rótulo, não dê importância ao nome. Se eu sou o instrutor do mundo ou messias, ou qualquer outro, é certamente sem importância. Se o nome se tornou

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importante, então você vai deixar escapar a verdade do que estou dizendo, porque você irá julgar pelo rótulo, e o rótulo é inconsistente. Alguém vai dizer que eu sou o messias, e outro vai dizer que não sou, e onde você fica? Fica na mesma confusão e na mesma miséria, no mesmo conflito. Assim,certamente a questão tem muito pouco significado. Sinto muito desperdiçar seu tempo com essa questão. Se eu sou ou não o messias é de muito pouca importância. Mas o que é importante, se você é realmente sério, é descobrir se o que digo é verdade, e você só pode descobrir se o que eu digo é verdade, examinando-o, e estando agora atento ao que estou dizendo e descobrindo se o que estou dizendo pode ter efeito na sua vida diária. O que estou dizendo não é tão difícil de entender. O intelectual irá achar muito difícil porque sua mente está distorcida, e o devoto também irá achar extremamente difícil, mas a pessoa que está realmente procurando irá entender por causa da sua simplicidade. E o que estou dizendo não pode ser posto em poucas palavras e não vou tentar dizê-lo em poucas palavras. As várias palestras que eu tenho dado e minhas respostas às perguntas irão revelar isso, se você está interessado no que estou dizendo.

Pergunta feita a Krishnamurti em Madras em 7/12/1947

* * *

Recuso-me a ser sua muleta

Torno a dizer que não tenho discípulos.Se compreenderem a Verdade e não seguirem indivíduos verão que cada um de vocês é um

discípulo da Verdade. A Verdade não dá esperança; ela dá compreensão. Não há compreensão no culto à personalidade.

Continuo a afirmar que todas as cerimônias são desnecessárias para o crescimento espiritual. Se quiseres procurar a Verdade, precisam sair, ir para bem longe das limitações da mente e do coração humanos e lá descobri-la - e esta Verdade está dentro de vocês.

Não é mais simples ter a própria vida como meta do que ter mediadores, gurus, que inevitavelmente diminuirão a Verdade e, portanto, a trairão?

Digo que a Libertação pode ser alcançada em qualquer estágio da evolução pelo homem que compreende, e que adorar estágios, como vocês fazem, não é essencial.

Não repitam minhas palavras como vindas de uma autoridade. Recuso-me a ser sua muleta. Não permitirei que me carreguem em uma gaiola para a sua adoração. Quando levamos o ar fresco da montanha e o prendemos numa pequena sala, o frescor do ar desaparece e resta apenas a estagnação.

Jamais disse que Deus não existe. Disse que Deus só existe manifestado em nós. Mas não usarei a palavra Deus. Prefiro chamar-lhe Vida.

...É claro que não existe nem o bem nem o mal. O bem é o que vocês não receiam; o mal é o que temem. Portanto, se destruírem o medo, estarão espiritualmente realizados. Quando estiverem apaixonados pela vida e colocarem este amor acima de qualquer coisa e julgarem por esse amor e não por seu temor, então esta estagnação que chamam de moralidade desaparecerá.

Amigos, não se preocupem com quem eu sou...nunca saberão... Vocês pensam que a Verdade tem alguma relação com aquilo que pensam que eu sou? Vocês não estão preocupados com a Verdade, mas com o vaso que contém a Verdade... Bebam a água se estiver limpa: eu lhes digo que tenho esta água limpa; tenho o bálsamo que purifica, que cura enormemente, e vocês me perguntam: quem é você? Eu sou todas as coisas porque sou a Vida."

Ele encerrou a Convenção com as palavras:"Milhares de pessoas têm vindo a estes acampamentos, o que não fariam no mundo se todos

compreendessem! Poderiam mudar amanhã a face da terra".Extrato de palestra proferida no acampamento de Omnem em 1928 - VIDA E MORTE DE

KRISHNAMURTI - Mary Lutyens - Ed. Teosófica – 1996

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* * *

A verdadeira irmandade

Pergunta: Você realmente falou a sério quando sugeriu semana passada que a pessoa deveria se retirar do mundo quando estivesse próxima dos quarenta e cinco anos?

Krishnamurti: Eu sugeri isso seriamente. Quase todos nós, até que a morte nos alcance, estamos tão enredados nas coisas do mundo, que raramente temos tempo para investigar profundamente, para descobrir o real. Para retirar-se do mundo é necessária uma mudança completa no sistema educacional e econômico, não é? Se você se retira, se aposenta, você vai estar despreparado, perdido, sozinho, sem saber o que fazer consigo mesmo. Você não saberia como pensar. Você provavelmente formaria novos agrupamentos, organizações com novas crenças, emblemas e rótulos, e de novo estaria ativo externamente, promovendo reformas que irão precisar de reformas subseqüentes. Mas isso não é o que eu quis dizer. Para se retirar do mundo você precisa estar preparado: pelo tipo correto de ocupação, através de criar o tipo certo de meio-ambiente, através de estabelecer o governo correto, a educação correta, e assim por diante. Se você vem sendo assim preparado, então se retirar das coisas do mundo em qualquer idade não é anormal, e sim a seqüência natural; você se retira para fluir na profunda e pura atenção, você se retira não para o isolamento, mas para descobrir o real, para ajudar a transformar esse governo e sociedade que estão sempre coagulados e conflitantes.

Tudo isso iria envolver uma forma de educação completamente diferente, uma mudança drástica na nossa ordem social e econômica. Esse grupo de pessoas estaria completamente dissociado da autoridade, da política, de todas essas causas que produzem guerra e antagonismo entre os homens. Uma pedra pode direcionar o curso de um rio; assim um pequeno número de pessoas pode direcionar o curso de uma cultura. Certamente qualquer coisa grande é feita desta maneira.

Você provavelmente dirá que a maioria de nós não pode se retirar, se aposentar, por mais que quiséssemos. Naturalmente a maior parte não pode, mas alguns de vocês podem. Viver sozinho ou em um pequeno grupo requer uma grande inteligência. Mas se você realmente viu que vale a pena, você faz com que isso aconteça, não como um maravilhoso ato de renúncia, mas como uma coisa natural e inteligente para um homem sério fazer. Como que é de uma importância extraordinária que houvesse pelo menos alguns de nós que não pertencessem a nenhuma raça ou grupo particular, nem a nenhuma religião ou sociedade!

Eles irão criar a verdadeira irmandade entre os homens, pois eles estariam buscando a verdade. Para estar livre de riquezas exteriores, deve haver uma percepção da pobreza interior - o que traz riquezasindizíveis. A corrente da cultura pode mudar o seu curso através de umas poucas pessoas despertas. Estas não são pessoas especiais, incomuns, mas você e eu.

Krishnamurti, Ojai, 11/07/44; palestra 5, questão 2 - Extraído do site Terra Sem Caminho

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