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39 Diálogo Canoas n. 13 jul-dez 2008 Arno Carlos Lehnen Resumo O artigo visa analisar a conjunção entre meio ambien- te e as novas urgências mundiais, as interdependências confli- tuosas entre estas, seus fatores e significado geopolítico no cenário internacional. Novas urgências mundiais são mudan- ças recentes que resultam em crises planetárias que afetam necessidades essenciais: alimentares (encarecimento dos alimen- tos e perspectiva de sua penúria), econômicas (encarecimento da energia e recursos minerais) e mudanças na natureza que nos serão profundamente prejudiciais (diminuição da biodi- versidade e aquecimento global, por fatores antrópicos). Palavras-chave Aquecimento global, alimentos, biocombustíveis, degradação ambiental, energia. Abstract The essay examines the confluence between the environment and new global urgencies, the conflictive interdependencies between these, as well as their causes and their geopolitical significance within the international context. New global pressures are recent transformations that result in planet-wide crises, which, in turn, affect basic needs: food supplies (their rise in prices and the ensuing potential for food deprivation), economic (rise in energy prices and in the prices of mineral resources), and changes in the natural environment that will have a profound negative impact on the worlds population (reduction in biodiversity and an increase in global warming due to human caused factors). p. 39 - 62

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MEIO AMBIENTE E AS NOVASURGÊNCIAS MUNDIAISArno Carlos Lehnen

ResumoO artigo visa analisar a conjunção entre meio ambien-te e as novas urgências mundiais, as interdependências confli-tuosas entre estas, seus fatores e significado geopolítico nocenário internacional. Novas urgências mundiais são mudan-ças recentes que resultam em crises planetárias que afetamnecessidades essenciais: alimentares (encarecimento dos alimen-tos e perspectiva de sua penúria), econômicas (encarecimentoda energia e recursos minerais) e mudanças na natureza quenos serão profundamente prejudiciais (diminuição da biodi-versidade e aquecimento global, por fatores antrópicos).

Palavras-chaveAquecimento global, alimentos, biocombustíveis,

degradação ambiental, energia.Abstract

The essay examines the confluence between theenvironment and new global urgencies, the conflictiveinterdependencies between these, as well as their causes andtheir geopolitical significance within the international context.New global pressures are recent transformations that resultin planet-wide crises, which, in turn, affect basic needs: foodsupplies (their rise in prices and the ensuing potential forfood deprivation), economic (rise in energy prices and in theprices of mineral resources), and changes in the naturalenvironment that will have a profound negative impact onthe world�s population (reduction in biodiversity and anincrease in global warming due to human caused factors).p. 39 - 62

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KeywordsGlobal warming, food supplies, bio fuels, environ-

mental degradation, energy.

1 INTRODUÇÃOConforme Lovelock (apud GRAY, 2005, p. 22-23),

[...] os humanos na Terra comportam-se, de alguma maneira, como um organis-mo patogênico ou como as células de um tumor ou neoplasma. Crescemos emnúmero e em transtornos para Gaia, a ponto de nossa presença ser perceptivel-mente inquietante [...] a espécie humana é agora tão numerosa que constitui umaséria ameaça planetária. Gaia está sofrendo de Primatemaia Disseminad,uma praga de gente.

Também para Gray (2005), os humanos, graças ao seu sucesso evolucioná-rio, são excepcionalmente rapaces, coincidindo, por isto, o avanço humano com adevastação ecológica, uma constante em todas as suas etapas de desenvolvimento.

A destruição do mundo natural não é o resultado do capitalismo global, da industri-alização, da �civilização ocidental� ou de quaisquer falhas em instituições huma-nas. É a consequência do sucesso evolucionário de um primata excepcionalmenterapace. Ao longo de toda a história e pré-história, o avanço humano coincidiu com adevastação ecológica. (GRAY, 2005, p. 23)

A constante da devastação ecológica apresenta-se, porém, diferenciada,histórica, local e globalmente, conforme o crescimento do número de huma-nos, as tecnologias das quais dependem e dos valores e interesses em que sereferenciam.

Uma profunda mudança no processo de devastação ecológica iniciou-sea partir de 5.000 a.C, com a passagem da caça e coleta para a agricultura. Elapossibilitou a evolução que resultou na Revolução Industrial.

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[...] emergiram (os humanos) para um modo de vida radicalmente diferente, baseadoem importante alteração de ecossistemas naturais, objetivando a produção de grãos ede pasto para os animais. Esse sistema [...] marcou a transição mais importante dahistória humana. Como esse sistema oferecia quantidade muito maiores de alimen-tos tornou possível a evolução de sociedades estabelecidas, complexas, hierarquizadase um ritmo de crescimento muito mais acelerado da população humana.(PONTING, 1995, p. 76-77)

As mudanças e dependências tecnológicas resultantes da revolução in-dustrial, a rápida multiplicação da população que permitiu, a ocupação de espa-ços físicos e a produção e consumo que possibilitou, hoje, ocasionam uma devas-tação ecológica tão significativa que, pela primeira vez na história, a ação antrópi-ca é causadora de mudanças profundas no ambiente natural. São mudanças nãosomente locais ou regionais, mas também globais. Mudanças altamente desfavo-ráveis tanto à humanidade como às demais formas de vidas. Portanto, o sucessoda humanidade em multiplicar-se, progredir materialmente, assegurar e aumen-tar seu conforto � este, porém, para muitos, ainda apenas mínimo ou inexistente� e facilitar sua comunicação e deslocamento se dá causando um grande impactoambiental, manifesto na elevada e cada vez mais global poluição do ar, da água edo solo, destruição e degradação de ecossistemas, extinção definitiva, em grandeescala, de vidas e mudança climática. A este insucesso ecológico, já pesadamentepresente e em rápida progressão, acresce-se a expectativa de limitações severasna disponibilidade, a um custo que limita ainda mais seu acesso, de recursosenergéticos vitais para a economia e conforto, de água suficiente e de qualidade,de alimentos e de diversos recursos minerais e biológicos.

Esses sucessos, insucessos e limitações acontecem, como observa Suguio(2008), num contexto de meio natural particularmente favorável às condições devida humana. Essas condições favoráveis podem, inclusive, ser vistas, conformeobserva Reichholf (2007), como um dos fatores dos sucessos alcançados pela hu-manidade nos últimos séculos. Esses sucessos, porém, se replicaram na naturezapela devastação ecológica e diminuição da disponibilidade de recursos naturais.

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Historicamente a devastação ecológica pouco preocupou a humanidade.Hoje, porém, a degradação ambiental e a perspectiva de limitação na disponibili-dade de recursos naturais e serviços essenciais da natureza tomaram dimensõestais que a preocupação por elas se tornou e é percebida como o problema pri-mordial da humanidade, ainda mais que é acompanhado e ocasiona mudançaclimática global que lhe é altamente desfavorável. As conclusões da AvaliaçãoEcossistêmica do Milênio (2005) e dos relatórios (1990,1995 e 2007) do PainelIntergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) evidenciam claramenteesta preocupação. Mostram também que a perspectiva de o crescimento popula-cional e econômico se tornar autodestruidor via degradação da natureza é cadavez mais manifestada. Disto, são testemunhas o aquecimento global, a drásticaredução da biodiversidade, a crise de energia e de alimentos, que se tornam asnovas urgências no cenário mundial. Estas novas urgências somam-se a urgênciashistóricas até hoje não efetivamente atendidas, como as gritantes diferenças nascondições que possibilitam boa qualidade de vida ou os conflitos sangrentosentre populações que, aliás, estas novas urgências tendem a agravar.

O iluminismo, a revolução industrial, o marxismo e o capitalismo pare-ciam indicar que a história da humanidade pudesse ser mais independente do quefoi da história da natureza. As novas urgências � crise de energia e alimentos,dimensões alcançadas pela degradação ambiental, particularmente da biodiversi-dade, e o aquecimento global � mostram, porém, que esta nossa dependência dahistória da natureza se tornou mais profunda e gerou, inclusive, um novo grandemedo globalizado da humanidade, o do aquecimento global.

A humanidade não só continua dependendo profundamente das condi-ções de vida que lhe possibilita a natureza, mas hoje ela afeta esta natureza nãosomente localmente, como foi historicamente, mas também globalmente, paragrande prejuízo seu. Esse prejuízo que lhe advém desta nova dimensão que estáassumindo a degradação da natureza, manifesta principalmente no aquecimento

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global, representa uma nova dependência desta, de profundo impacto no seuesforço histórico de melhoria das condições de vida e desenvolvimento civiliza-tório. Assim, degradando a natureza para progredir, progride sim, mas constrói,ao mesmo tempo, novos obstáculos e limitações para si, na natureza, para a me-lhoria das condições de vida e civilizatórias.

2 AS NOVAS URGÊNCIAS MUNDIAIS AMBIENTALMENTE MAISRELEVANTES

O artigo visa a analisar a conjunção entre meio ambiente e as novas ur-gências mundiais, as interdependências entre estas, em geral, de conflito, seusfatores e significado geopolítico no cenário internacional.

Entende-se, aqui, por novas urgências mundiais, as mudanças em cursoque afetam necessidades essenciais e, por isto, tendem a resultar em crises planetá-rias, e isto não somente conjunturalmente, mas com tendência de permanecerem emesmo se agravarem. Destas, as ambientalmente mais relevantes são o encareci-mento do petróleo e a previsão de seu relativo esgotamento, o encarecimento dosalimentos e a perspectiva de sua penúria, a devastação ecológica, manifesta princi-palmente na rápida diminuição da biodiversidade, e o aquecimento global.

O encarecimento do petróleo e a previsão de seu relativo esgotamen-to abalam uma das bases da economia atual, que é a energia relativamentebarata e historicamente percebida como abundante. O encarecimento dosalimentos e a perspectiva de sua penúria afetam, evidentemente, uma neces-sidade humana básica, aliás, para muitos � no mínimo, próximos de um bi-lhão �, precariamente ou não atendida, já antes de seu atual encarecimento.Por sua vez, a rápida diminuição da biodiversidade e o aquecimento globalafetarão de forma profundamente negativa o meio ambiente natural e a hu-manidade em sua globalidade.

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3 A NATUREZA E O DESAFIO DAS NOVAS URGÊNCIAS MUNDI-AIS SÃO DEFINIDOS PRINCIPALMENTE POR SUAS INTERDE-

PENDÊNCIAS, NO GERAL CONFLITUOSASAs novas urgências mundiais mencionadas têm uma profunda interdepen-

dência. Interdependência que, no geral do conflito, isto é, na busca por solução parafazer frente ao desafio representado por uma urgência, torna-se um problema a mais.

Assim, o aumento da produção de petróleo pode frear o aumento de seupreço, mas é negativo frente ao aquecimento global. Por sua vez, a produção debiocombustíveis como substitutivos do petróleo, de um lado, é positiva frente aoaquecimento global, mas devido às queimadas feitas na colheita da cana, ou devi-do à retirada da cobertura florestal para a expansão de sua produção torna-seproblemática frente à urgência representada pela drástica redução da biodiversi-dade. E ambos, a queimada e a retirada da cobertura florestal, contribuem para oefeito estufa, diminuindo o significado dos biocombustíveis na redução da pro-dução de CO2. E em relação à crise dos alimentos, a produção de biocombustí-veis é um fator a mais de pressão no aumento de seus preços.

Além desta interdependência conflituosa, as novas urgências são particu-larmente complexas em suas causalidades e efeitos, envolvendo de forma inte-grada fatores ambientais e socioeconômicos.

3.1 A problemática do petróleoA problemática do petróleo está ligada tanto ao aquecimento global como ao

modelo de desenvolvimento econômico e tecnológico hoje globalizado, uma vez queeste é dependente da disponibilidade de petróleo barato e abundante. Para a manu-tenção e continuidade do desenvolvimento com base neste modelo é, portanto, devital importância a manutenção da disponibilidade do petróleo nestas condições, en-quanto não for encontrado combustível substitutivo viável econômica e geopolitica-

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mente. Frente a esta importância do petróleo, a descoberta de novas jazidas e suaexploração é um objetivo prioritário, muito aplaudido quando alcançado. Entretanto,frente ao aquecimento global, o aumento do preço do petróleo e sua menor disponi-bilidade pelo esgotamento das jazidas e a rarefação de novas descobertas são, semdúvida, altamente benéficos: com isto, conforme observa Kazim (2008), facilmenteserão conseguidas as metas de diminuição de produção de CO2 acertadas no proto-colo de Kyoto e que este, hoje tratado, não está conseguindo alcançar.

O encarecimento do petróleo e seu impacto no aumento do aquecimen-to climático geram a necessidade econômica e ambiental de encontrarem-se al-ternativas a este; alternativas que tenham em conta não somente a demanda atu-al, mas também o considerável e rápido aumento desta nas próximas décadas.Com isto entram em discussão, com as inúmeras dúvidas que levantam, os bio-combustíveis e a energia nuclear.

A energia nuclear tem, nesta necessidade, uma oportunidade de se relan-çar como indispensável para fazer frente ao aquecimento global, livrando-se darelativa marginalização à que parecia condenada. É vista por muitos como a me-lhor alternativa energética, a curto prazo, para a produção de energia elétrica quepossibilite uma substancial descarbonização desta. Devemos lembrar que, desdea revolução industrial e ainda hoje, a principal fonte desta energia é o carvão, que,mesmo com todos os avanços tecnológicos voltados a diminuir seu impactoambiental, continua sendo um fator importante do efeito estufa e da poluição.

Até mesmo um ambientalista como Lovelock (2006) defende a necessi-dade da energia nuclear pela impossibilidade, a curto prazo, de se ampliar signifi-cativamente fontes alternativas de energia, argumentando que a insegurança querepresenta a energia nuclear é pequena frente ao que representa o aquecimentoglobal. Esta menor resistência à energia nuclear e o rápido aumento na demandade energia tornam politicamente viáveis, frente à comunidade internacional e àsociedade dos respectivos países, amplos projetos de multiplicação de centrais

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nucleares que começam a ser desenvolvidos particularmente na China, Índia eBrasil. Evidentemente, com isto, para fazer frente a um problema, cria-se outro,o da segurança, não somente de nossa geração, mas no decorrer de milhares deanos, já que o lixo nuclear de alta periculosidade permanece radioativo por milha-res e até mais que um milhão de anos. Com isto amplia-se uma polêmica já histó-rica, mas agora com um novo ingrediente, o aquecimento global.

Nesta polêmica de necessidade e urgência de substituição da energia elétricade origem fóssil � basicamente do carvão �, devido ao aquecimento global, os quesão contra a energia nuclear como solução argumentam que é possível consegui-larecorrendo à energia solar, eólica e geotérmica. Nesta condição, os investimentos queseriam destinados ao nuclear devem ser direcionados a estas formas de energia e amedidas de economia de energia e eficiência energética, bem como à pesquisa tecno-lógica que vise ao desenvolvimento ou aperfeiçoamento de fontes alternativas.

Evidentemente, nenhuma destas formas de energia, a nuclear ou as alter-nativas, resolverão o problema energético maior de hoje, que é a produção decombustível que não seja predominantemente de origem fóssil ou de vegetais.

3.2 Significado ambiental da urgência alimentar e suas relaçõescom a crise energética

À expansão observada dos biocombustíveis, incentivada por governos epelos preços, junta-se a necessidade de aumentar substancialmente a produçãode alimentos. São dois desenvolvimentos, ao que tudo indica, conflituosos, umdificultando ao outro. E ambos são ambientalmente profundamente impactan-tes, principalmente no que diz respeito aos cuidados necessários com a biodiver-sidade e a disponibilidade e qualidade dos recursos hídricos.

As próximas décadas exigirão um aumento significativo na produção dealimentos. Este aumento será necessário tanto para fazer frente a, pelo menos,

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um bilhão de pessoas que hoje têm pouco ou quase nada para se alimentar, comoao aumento demográfico que ainda teremos � de uns dois bilhões e meio até2050 (UNFP, 2006) � e, ainda, à melhoria de renda de muitas pessoas, particular-mente na Índia e na China. Uma parte significativa deste aumento, principalmen-te para suprir necessidades de mudanças nos hábitos alimentares decorrentes demelhoria de renda, deverá ser suprida recorrendo a produtos que dependem depreços definidos pelo mercado internacional (commodities), como o trigo, milho,soja, carne, leite ou açúcar. Este mercado é particularmente sensível à especula-ção, aumentando com isto a insegurança alimentar e favorecendo, em épocas demenor oferta frente à demanda, um aumento repentino dos preços.

Sob o ponto de vista ambiental, este aumento na demanda de alimentosexigirá uma importante expansão da área cultivada, a intensificação da �revolu-ção verde� e aumento no consumo de combustíveis, seja para a produção oupara o seu transporte.

A valorização financeira do produto agrícola leva ao uso mais intensivode agrotóxicos por estes garantirem, nos moldes da �revolução verde�, menosperdas na produção, o que evidentemente se reflete na saúde do produtor e doconsumidor e no meio natural, seja biótico ou relativo à qualidade da água e dosolo. Também grave para o meio natural é o uso intensivo de adubo químico, jácomum, mas, na medida que seu preço não se torne exorbitante pela dependên-cia que tem do petróleo, poderá ser intensificado devido à valorização do produ-to agrícola. A esta problemática, acresce-se a convicção de muitos de que parafazer frente à penúria dos alimentos e seu encarecimento são necessárias exten-sas monoculturas �particularmente, prejudiciais ao meio biótico �, não sendoviável a solução via cultivo diversificado e, menos ainda, fora dos moldes da�revolução verde.� Outros, como Sachs apud Castro (2008), consideram que so-luções contrárias são necessárias e possíveis. Segundo o autor, os conhecimentose a tecnologia atual e a pressão que sofre a problemática ambiental e energéticapermitem o nascimento da �biocivilização de alta produtividade�, mas que, para

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isto, no domínio agrícola, são necessárias políticas públicas capazes de construirsistemas integrados de produção de alimentos e energia com base na agriculturafamiliar. (SACHS, 2008). Essa produção integrada, diversificada e com base prin-cipalmente na agricultura familiar certamente consideraria o meio ambiente na-tural e as condições sociais. Mas, enquanto essa agricultura não conseguir umagrande abrangência, não será suficiente para fazer frente à elevação dos preçosdos alimentos e à diminuição dos estoques.

A necessidade de aumentar o rendimento dos cultivos devido à alta dospreços e da demanda dos produtos agrícolas, particularmente dos cereais, e oimpacto ambiental, representado pela expansão da área de cultivo, são argumen-tos a mais à que recorrem os produtores de sementes transgênicas para expandi-rem seu mercado, com consequências para o meio biótico e para a saúde aindanão suficientemente avaliadas.

O aumento do preço do petróleo, além de impulsionar a demanda por bio-combustíveis, refletindo-se em maior expansão das áreas cultivadas e consequentedegradação ou desaparecimento de ecossistemas até hoje pouco impactados pelaatividade econômica, repercute também no aumento do preço dos alimentos, devidoao encarecimento de insumos como o adubo químico e os agrotóxicos e ao empregode máquinas agrícolas e transporte. Este é, assim, mais um fator na crise de energia,junto à necessidade de expansão da produção de biocombustíveis, de pressão deaumento ou manutenção do preço elevado dos alimentos no futuro.

As previsões futuras quanto à produção dos alimentos e suas relações comas demais urgências aqui analisadas, evidentemente, são acompanhadas de incerte-zas, como em qualquer previsão. No caso dos alimentos, porém, essas incertezassão particularmente grandes, considerando-se que dependem de fatores difíceis deserem previstos (FAO-OCDE, 2008): a evolução de sua demanda mundial, a ocor-rência de fenômenos como secas e enchentes, a evolução do preço do petróleo, aexpansão do cultivo de biocombustíveis e a evolução do aquecimento global.

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3.3 O aquecimento global frente às demais urgênciasO aquecimento global, hoje evidenciado pela ciência como um fenôme-

no que tende a modificar consideravelmente as condições do meio natural jáneste século e visto quase unanimemente pela comunidade científica como ten-do como causa maior fatores antrópicos, certamente é a mais grave das urgênciasenfrentadas pela humanidade na sua atual contingência histórica para garantirum futuro de qualidade de vida e inclusive de paz e estabilidade internacional.Um dos seus principais fatores antrópicos, o petróleo, usado como fonte de ener-gia, é, por sua vez, também uma das urgências internacionais mais graves, assimvisto por sua contribuição ao aquecimento global, pelo seu encarecimento e pelaperspectiva de diminuição das reservas, num limite problemático para a viabiliza-ção dos seus preços, sem que antes alternativas tecnológicas, econômicas e ambi-entais para sua substituição possam ser encontradas.

A principal alternativa discutida e hoje implementada frente à problemá-tica ambiental e econômica representada pelo petróleo, os biocombustíveis, apre-senta também uma série de problemas frente ao aquecimento global, uma vezque pode levar, e já está levando a um aumento das queimadas, uma das princi-pais fontes de CO2, em regiões como as florestas de regiões equatoriais ou ocerrado, que diminui a cobertura vegetal. A diminuição da cobertura vegetal,ainda mais em se tratando de cobertura florestal ou arbustiva em região equato-rial ou tropical, tem como um dos efeitos o aumento considerável do aquecimen-to do solo, o que se reflete no aquecimento global (LOVELOCK, 2006). Sendoa cana de açúcar a principal fonte de etanol, a queima que ainda hoje em muitasregiões precede seu corte � em São Paulo, ainda dois terços �, evidentemente,também contribui para este aquecimento.

Por sua vez, a inevitável multiplicação na demanda de alimentos nas pró-ximas décadas será um fator importante não somente para o aumento das quei-madas e diminuição da cobertura vegetal, afetando gravemente a biodiversidade,

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mas também para maior emissão de metano, principalmente devido à necessida-de de maior produção de cultivos irrigados e aumento do rebanho bovino eovino, refletindo-se significativamente no aumento do aquecimento global. Se-gundo informe da FAO (2006), a criação é responsável por aproximadamente18% dos fatores antrópicos do efeito estufa. Conforme também este informe, aprevisão da FAO é de que até 2050 a produção de carne irá duplicar. O significa-do desta previsão é particularmente preocupante, se for tomado em considera-ção que, além dos efeitos para o aquecimento global, a criação é uma das princi-pais responsáveis, junto com a agricultura nos moldes da �revolução verde�, peladegradação dos solos e dos recursos hídricos.

O aquecimento do clima, pelas causalidades envolvidas e pelas suas con-sequências no meio natural e socioeconômico, representa não somente a princi-pal urgência mundial desafiadora do nosso futuro, mas é também aquela quedesperta mais incertezas quanto aos fatores de sua origem e ao seu significadopara as demais urgências, além de ser, também, a que mais limitações impõe àssoluções possíveis frente às outras urgências.

As previsões são de que o aquecimento global possibilitará a exploraçãode grandes jazidas de petróleo e gás no Ártico. Evidentemente isto é positivo sobo ponto de vista do imediatismo econômico. Entretanto, é uma má notícia, con-siderando o que representará para o agravamento deste aquecimento.

Devido ao aquecimento global, as mudanças previstas no nível de precipi-tações e sua distribuição, o menor acúmulo de gelo nas cordilheiras e consequentediminuição da água provinda das geleiras, o aumento das temperaturas inviabilizan-do ou dificultando culturas, a maior intensidade de catástrofes naturais, como secase enchentes, e a elevação do nível do mar afetarão a produção agrícola tanto dealimentos como de biocombustíveis, refletindo-se na sua disponibilidade e preços.Novas terras que serão possíveis cultivar, em regiões hoje demasiadamente friaspara o cultivo, não compensarão suficientemente estas perdas.

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Frente ao aquecimento global, faz-se urgente uma política não somentede prevenção do mesmo, como é objetivado pelo Protocolo de Kyoto, mas,e cada vez mais urgentemente, uma política de prevenção quanto aos seus efei-tos. Uma das dificuldades de uma política de adaptação preventiva às mudançasque causará é a incerteza sobre a intensidade e a abrangência espacial e históricadestas. A discussão sobre a elevação do nível do oceano nas próximas décadas é,sem dúvida, o que mais ilustra esta incerteza. E é particularmente esta elevação,que necessita de uma adaptação ou prevenção de longo prazo, em vista dos des-locamentos de pessoas, de cultivos, de empresas e de cidades, que vai requererinvestimentos em obras de engenharia, caso se queira evitá-los.

4 SIGNIFICADO GEOPOLÍTICO DAS NOVASURGÊNCIAS MUNDIAIS

As novas urgências mundiais � aquecimento global, crise do petróleo e dosalimentos, devastação ecológica e, principalmente, sua conjunção e interdependência� tendem a ser progressivamente centrais no desenvolvimento e nas relações e inter-dependências econômicas e geopolíticas internacionais e na problemática ambiental.

Devido à sua interdependência conflituosa e por envolverem integrada-mente em suas causalidades e efeitos fatores ambientais e socioeconômicos,o desafio que as novas urgências mundiais aqui referidas representam para aciência, a política, a geopolítica internacional, a economia e a tecnologia e aoscomportamentos individuais é particularmente complexo.

Essas características fazem com que estas novas urgências sejam gerado-ras de polêmicas, incertezas e grande pluralidade, ou mesmo de oposições nassoluções propostas para fazer frente às mesmas. Isto também facilita sua mani-pulação política, geopolítica, econômica ou tecnológica. Essa manipulação ocor-re tanto no cenário nacional como no internacional, onde é um elemento impor-

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tante no jogo de poder por parte de responsáveis políticos, empresas, centros depesquisa ou instituições internacionais.

Considerando não o que é colocado em discursos e acordos internacionais, esim a prática, a impressão que se tem é que a manipulação dessas urgências a favordos interesses políticos, geopolíticos, econômicos e tecnológicos do momento é oque efetivamente conta, e não principalmente a superação das suas causalidades.

Essa manipulação ficou particularmente evidenciada no posicionamentodo governo Bush frente ao Protocolo de Kyoto, procurando justificar a negativade sua adesão com argumentos de dúvida quanto à realidade do aquecimentoglobal, quando, na realidade, esta negativa baseia-se nos interesses econômicos.Tendo em vista a importância da contribuição dos EUA para a emissão de gasesde efeito estufa � 25% do total, mesmo sendo apenas 4% da população mundial� essa negativa e manipulação foram particularmente graves na evolução da pro-blemática discutida por esse protocolo.

Mais próximo de nós, essa manipulação evidencia-se também no interes-se de nosso Governo em promover os biocombustíveis como instrumento depresença geopolítica internacional e fator de desenvolvimento nacional. Para jus-tificar seu grande empenho na promoção dos biocombustíveis, ele argumenta,quase exclusivamente, a partir da positividade que representam para o meio am-biente em vista do aquecimento global, procurando ignorar, ou fazer ignorar,também seu impacto ambiental negativo e os problemas sociais a eles relaciona-dos. Se o interesse ambiental, colocado como principal justificativa, fosse efetiva-mente primordial, a política energética apregoada seria mais abrangente e maissistêmica, com, por exemplo, maior insistência no desenvolvimento do transpor-te ferroviário, inclusive de passageiros, e melhoria e descarbonização do trans-porte público urbano. Essa política representaria maiores ganhos, em vista doaquecimento global, do que milhões de litros de etanol, e impactaria bem menosnossa biodiversidade e potencial de produção de alimentos.

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A manipulação da necessidade dos transgênicos, colocados como neces-sários para superar a crise dos alimentos, é outro exemplo de uso de uma urgên-cia mundial a favor de interesse empresarial e de determinada opção tecnológicano desenvolvimento agrícola.

Em diversos países desenvolvidos, observa-se uma corrida para a inova-ção tecnológica apoiada na necessidade de fazer frente ao aquecimento global,particularmente através da diminuição da dependência do petróleo. Mesmo ad-mitindo que tenham também como objetivo diminuir o consumo de petróleopara, assim, contribuir com a desaceleração do processo de aquecimento global,muito faz crer que os elevados investimentos e subsídios destinados a esta inova-ção têm por principal objetivo fazer-se presente pioneira e concorrencialmenteno mercado mundial de �tecnologias limpas.� O desafio e os medos provocadospelas urgências mundiais são, para estes países, uma nova oportunidade de semanterem à dianteira tecnológica e expandirem seus mercados de alta tecnologiae/ou de tecnologias inovadoras. Abrem com isto novos mercados ou dificultamo acesso ao seu, recorrendo à inovação pioneira a partir dos desafios das novasurgências, ou apoiando-se no novo padrão ambiental que a comunidade hege-mônica política e empresarial implementa. São países que optaram pelo pionei-rismo no empenho pela procura de soluções necessárias ao desafio das novasurgências mundiais, particularmente as do aquecimento global, da crise de ener-gia e da devastação ecológica, para, também, se projetarem com imagem positivano cenário internacional, aumentarem sua presença neste e no mercado interna-cional de tecnologias limpas, cada vez mais abrangentes, uma vez que aumenta aexigência ambiental no comércio internacional. Evidentemente que o objetivode solução dessas urgências está presente nessas opções. Mas, certamente, estápresente mais ainda a manipulação econômica e geopolítica a partir das mesmas.Neste sentido é reveladora a declaração de Borloo, Ministro do Medad, o Super-ministério francês do Meio Ambiente, Transporte e Energia, referindo-se à de-claração do presidente francês Nicolas Sarkozy sobre seu Ministério:

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É verdade que no início o presidente acreditava apenas pela metade no ministério(do meio ambiente, transporte e energia). Mas ele se deu conta que os temas pelosquais é responsável estão no coração da diplomacia mundial e que a originalidadefrancesa nestas áreas tinha caráter precursor. (LE MONDE, 4.9.2008)

As novas urgências também terão um profundo impacto nas empresas,como mostra Hart (2006), quer pela incorporação progressiva do �desenvolvi-mento sustentável� em suas estratégias ou pela mudança tecnológica que as no-vas urgências exigirão. Afetarão também suas políticas de localização, principal-mente as que têm uma produção em que o deslocamento de mercadorias é signi-ficativo. Muitas destas, inclusive, frente ao encarecimento da energia, podem so-frer um refluxo aos seus países de origem, o que afetaria primordialmente paísesde nova industrialização ou inibiria a progressão da industrialização em paísesafastados da origem ou destino destas mercadorias.

Até hoje, mesmo com os dois objetivos e interesses conjugados, o doprestígio e concorrência e o ambiental, quer por parte de países, como de empre-sas, não foi possível superar, conforme apregoado e urgente, as causalidades dasurgências mundiais referidas. Uma razão maior disto certamente reside no fatode que o objetivo imediato principal, e é este que efetivamente conta mais, é ouso político, geopolítico e econômico destas urgências, e não a superação de suascausas, o que permitiria uma solução efetiva ao desafio que representam.

A valorização, devido às novas urgências, dos recursos naturais, tantominerais como de solo e clima favorável à agropecuária, significará maior presen-ça no cenário internacional de países particularmente favorecidos por estes, comoo Brasil ou a Argentina. Representará também nova etapa no desenvolvimentodestes países, ainda mais que até hoje são muito dependentes destes recursos,dependência esta, aliás, que poderá ser aprofundada graças a este potencial frenteàs novas urgências. Para os gigantes populacionais, China e Índia, poderão, po-rém, ser fator de desaceleração de suas economias e, assim, de crises sociais, uma

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vez que, considerando o tamanho de suas populações, sua disponibilidade destesrecursos é particularmente limitada. Essa limitação também terá reflexos negati-vos no seu espaço de manobra no cenário internacional, principalmente frente apaíses ricos destes recursos. Essa limitação, hoje, já se observa com a China nasua política de assegurar recursos minerais em países da África, sendo exemplodisto o Sudão, no conflito de Darfur, frente ao qual a China não se manifestacriticamente devido aos seus interesses de petróleo no país, posicionando-se,assim, contrária à quase unanimidade internacional de crítica à forma como ogoverno central do Sudão conduz o conflito.

Para o Brasil as novas urgências, todas elas, têm um significado econômi-co e geopolítico particularmente importante, pois o país ocupa posição provavel-mente a mais importante no cenário internacional em relação a estas urgências.Isto se reflete quanto ao petróleo, pelo potencial do país de produção de bicom-bustíveis e a importância da descoberta de jazidas petrolíferas ainda inexplora-das. Também se destaca quanto aos alimentos, por possuir um dos principaispotenciais de expansão da produção destes e já ser um dos maiores produtores eexportadores agrícolas. Na urgência representada pela devastação ecológica porfatores que perduram há décadas, ou que são hoje acelerados e ampliados pelasnovas urgências, sua responsabilidade é particularmente grande, uma vez queabriga uma das principais biodiversidades do Planeta que, porém, devasta rapida-mente, não somente na Amazônia, mas também no Cerrado, nos Campos Suli-nos, no Pantanal e, hoje mais limitadamente, na Mata Atlântica. Essa devastação,sua aceleração frente às novas urgências e a dimensão aparentemente maior desua biodiversidade, ainda mais que essa biodiversidade é um patrimônio cada vezmais valorizado não só pelo seu significado ambiental, mas também pelo econô-mico, são, hoje, elementos importantes, certamente, os principais, da percepçãoque a comunidade internacional tem do país. Uma percepção, portanto, altamen-te positiva, mas, ao mesmo tempo, de muita preocupação e temores quanto ao

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futuro de nosso meio ambiente natural e nossa capacidade de assegurar conveni-entemente o futuro.

As novas urgências, nas próximas décadas, provavelmente superarão o�choque das civilizações� ou a defesa das identidades histórico-culturais comofator de conflitos regionais, ou terão influência significativa nestes conflitos, como,hoje, já se observa no de Darfur, no noroeste do Sudão. Agravarão também apressão dos pobres sobre os ricos via intensificação das migrações internacionaise, para os mais pobres, se não houver uma intervenção do poder público, repre-sentarão um considerável aumento de suas condições de pobreza, em curto pra-zo, principalmente pelo encarecimento dos alimentos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A conjunção do que podemos identificar como o fracasso ecológico da

humanidade � evidenciado no aquecimento global, na diminuição da biodiversi-dade, no envenenamento e na poluição do solo e das águas � com a progressivalimitação de recursos naturais que lhe são essenciais, seja para sua sobrevivência,ou para seu conforto, mesmo se para a maioria apenas mínimo, tornou-se o pro-blema central desta humanidade, que, mais do que qualquer outro fator, determi-nará seu futuro, pelo menos, a médio prazo. Como toda determinação, ela é aber-ta, permitindo respostas diferenciadas, muitas já em vias de implementação. To-das elas, sejam tecnológicas, culturais, políticas, econômicas, educacionais ou decomportamentos, têm um significado particularmente importante por se consti-tuírem como resposta, ou tentativa de resposta, ao maior desafio da humanidadena atual contingência histórica, determinando, assim, o grau de viabilidade nãosomente de seu futuro, mas também, em certa medida, da vida em geral.

É a evolução da natureza e de suas vidas que fez possível a emergênciahistórica dos humanos. Hoje, estamos num momento da história da Terra parti-

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cularmente favorável à vida. Isto, porém, está sendo em parte neutralizado, oumesmo, em muitos casos, invertido pelo atual estágio do avanço humano noPlaneta. Essa inversão, isto é, a emergência, por fatores pelos quais é responsável,de condições �naturais� que lhe são desfavoráveis é a nova grande preocupaçãoe o novo grande medo da humanidade quanto ao seu futuro. Mas saberá elaevoluir para um limite de sua rapacidade que permita a continuidade das condi-ções naturais do ambiente que lhe são favoráveis, tanto climáticas, como de bio-diversidade e disponibilidade de recursos naturais? Considerando o discurso quese faz ouvir, sim. Considerando, porém, os interesses imediatos, e são estes quecontam acima de tudo, sejam econômicos, políticos ou estratégicos, tudo indicaque não. Conforme Gray (2005, p. 34):

A massa da humanidade é governada não por suas intermitentes sensações morais,menos ainda pelo auto-interesse, mas pelas necessidades do momento. Parece fadadaa destruir o equilíbrio da vida na Terra � e, assim, ser o agente de sua própriadestruição. O que poderia ser mais sem esperança do que pôr a Terra aos cuidadosdesta espécie notadamente destrutiva?

Contrariamente ao que parece afirmar Gray, a humanidade certamentesaberá sobreviver �à catastrófica progressiva da destruição do equilíbrio naTerra� que está ocasionando, sendo, porém, difícil prever os custos desta paraela e as demais formas de vida. Sucessos foram e são conseguidos sob o pontode vista ambiental, impedindo uma devastação ainda maior do ambiente natu-ral. Porém, o poder da humanidade de devastação ecológica, e assim de afetar ofrágil equilíbrio da vida na Terra, e desta forma seu próprio equilíbrio, cresceue cresce mais rapidamente do que sua capacidade de colocar os limites necessá-rios a este.

Tanto a devastação ecológica em curso como o esforço em colocar limi-tes à rapacidade da natureza que a causa, certamente, mudarão profundamente ahumanidade tanto na sua tecnologia, produção e ocupação do espaço físico, como

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no seu consumo, seus valores, seu comportamento e o papel do poder público naimprescindível regulação frente a esta rapacidade.

Esta necessária mudança frente à devastação ecológica será acompanha-da por uma diminuição progressiva da população mundial, diminuição talveztambém influenciada pelas mudanças ocasionadas por esta devastação. Esta di-minuição populacional já ocorre hoje, regionalmente, por fatores sociais e cultu-rais. Esses mesmos fatores serão os principais responsáveis pela estabilização dapopulação mundial em torno de 2050, quando terá atingido a cifra aproximadade nove bilhões (UNFP, 2006) � o número máximo que certamente atingirá emsua trajetória. Sua progressiva diminuição, projetada para antes de 2100, se refle-tirá de forma positiva ecologicamente, ainda mais se a humanidade souber fazeras mudanças à que se vê obrigada para limitar o alcance negativo de sua devasta-ção ecológica atual. É talvez esta diminuição populacional, mais do que a capaci-dade dos humanos de limitarem a devastação à que por natureza são levados,a principal esperança da necessária limitação na expansão desta devastação.

Em vista das dimensões que a predação ecológica assumiu, a incapacida-de de implementação dos devidos limites à rapacidade ambiental dos humanostem efeitos altamente negativos tanto para eles, como para a natureza. A percep-ção da gravidade destes efeitos e de sua intensificação faz com que, pela primeiravez na história, a humanidade esteja à frente do desafio da necessidade de colocaresta limitação da devastação ecológica como sua preocupação maior, vista comocondição indispensável para garantir e melhorar sua qualidade de vida e assegu-rar o equilíbrio da vida na Terra.

Tanto na ciência como na opinião pública, faz-se cada vez mais presentea convicção de que quanto maior for nossa capacidade de conservar ou recuperaro patrimônio do ambiente natural, melhores possibilidades existirão no futuropara a qualidade de vida humana e o desenvolvimento civilizatório. Com isto

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cresce a percepção de que o mais urgente para a humanidade é aprender a colo-car os devidos limites às mudanças profundas que está causando no ambientenatural global da Terra, mudanças que lhe são, como às demais vidas, cada vezmais desfavoráveis. Multiplicam-se os indicativos de que é uma aprendizagempossível tanto para a comunidade internacional como para as nações, as empre-sas e os indivíduos. Porém, predominam ainda em todos estes os indicativoscontrários, os da continuidade da feroz predação ecológica, parecendo evidenci-ar que não saberemos prevenir suficientemente e em tempo uma considerávelampliação da degradação e limitação de recursos ambientais que já vivenciamos.Talvez confiemos demasiadamente em soluções técnicas para esta prevenção,esquecendo, conforme Gray (2005, p. 31), que �o progresso técnico deixa apenasum problema a resolver: a fraqueza moral da natureza humana. Infelizmente,esse problema é insolúvel.� É o que coloca, com outras palavras, Goulet (1997,p. 82), destacando que aparentemente é insolúvel até mesmo a necessária regula-ção ambiental por parte do Estado:

[...] como podem os estrategistas que promovem o desenvolvimento sustentávelnegociar com as centenas de milhões que têm um interesse constituído no presentedinamismo econômico destrutivo que prevalece no mundo? Que incentivos, quepoder de contraposição e que persuasivos interesses econômicos alternativos podemdissuadir : as corporações, de seguir colocando o lucro de curto prazo da extraçãode recursos naturais acima da proteção ambiental de longo prazo?; bilhões deconsumidores (reais e potenciais), a restringir seu uso de certos produtos no inte-resse de se evitarem catástrofes futuras remotas (e �incertas�); os políticos, a ado-tar, para a defesa a longo prazo da biosfera, medidas que os conduzam ao esque-cimento ou diminuição política?

Frente a esta realidade de hegemonia dos interesses que não se coadu-nam com a necessária conservação do ambiente natural, algo, porém, pode serfeito e está sendo efetivamente implementado, quer conceitualmente, como tam-bém na gestão, tecnologia, educação e comportamentos individuais, para pelomenos limitar um pouco os estragos ambientais e, assim, manter viva a esperança

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de um futuro melhor tanto para os humanos, como as demais formas de vidas.Mesmo se o que está sendo feito pela conservação ambiental seja muito poucofrente ao desafio ambiental que se coloca, é, porém, muito, se for considerado odescaso quase completo que existia pelo meio ambiente natural até poucas déca-das atrás. Este pouco representa, inclusive, uma das grandes mudanças pela quala humanidade está passando e, certamente, levará a muitas outras, mesmo selocalmente em alguns casos esteja ocorrendo um considerável recuo nos cuida-dos por este ambiente.

De todas as revoluções conceituais do séc. XX, poucas forjaram uma mudança tãouniversal e fundamental nos valores humanos quanto a revolução ambientalista...Pela primeira vez a humanidade foi despertada para a verdade básica de que anatureza é finita e que o uso equivocado da biosfera ameaça, em última análise, aprópria existência humana. (MC CORMICK,1992, p.16)

Contrariamente ao que geralmente não é percebido na perspectiva decurto prazo, os fatos já provaram que quem souber estar à dianteira nas mudan-ças pelo meio ambiente terá maiores possibilidades de também estar em outrossetores, como na tecnologia, na gestão empresarial e territorial, nos transportes,na economia e na qualidade de vida. Mas, infelizmente, na maioria das vezes,interesses econômicos e/ou políticos de curto prazo têm dificuldade em se coa-dunar com os interesses do cuidado pelo meio ambiente, que exige uma visão epreocupação também de médio e longo prazo.

O número que a humanidade alcançou e a projeção de seu aumento, asdimensões de sua produção e consumo e perspectivas de sua multiplicação,a dependência energética de combustíveis fósseis e a diminuição da disponibili-dade de petróleo, o aumento do preço deste e a dependência progressiva debiocombustíveis, a dependência de uma política, economia e sociedade guiada,acima de tudo, pelo interesse de curto prazo, mesmo que este se revele prejudicialno médio prazo, e a dificuldade de procurar ou aceitar soluções que tenham em

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conta que nossa história vai de par com a história da natureza parecem represen-tar os fatores principais do atual desafio da humanidade para assegurar sua qua-lidade de vida, ameaçada por não saber assegurar suficientemente as condiçõesda natureza que lhe são favoráveis e fundamentais. Diante deste impasse, amaioria é:

[...] como o fumante que curte seu cigarrinho e planeja de parar de fumar quando odano se tornar perceptível. Acima de tudo, esperamos uma vida boa no futuroimediato e preferimos pôr de lado os pensamentos desagradáveis da catástrofe futura.(LOVELOCK, 2006, p.147)

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