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    Maria Onice Payer*Universit du Vale do Sapuca

    Mots-cls: langue, mmoire, immigration, processus didentication

    Resumo: O artigo considera a lngua atual praticada por sujeitos brasileiros quepassaram pela histria da imigrao e da nacionalizao, onde se observam traos damemria histrico-discursiva deste processo materializados na lngua especicamente

    - diferentemente daqueles que se marcam na memria do dizer e na memria dosenunciados. Trabalha-se a lngua como lugar de memria. Os traos de memria nalngua funcionam em processos de identicao na relao sujeito/lngua: na ironia,na imitao, na ultra-correo, na denegao, no riso e no canto. Estes elementos tmvalor discursivo e desaam o trabalho com a lngua em espaos institucionais. A reexoconsidera possibilidades de um trabalho sobre a lngua que d estatuto consistente aum vasto material simblico, silenciado ao longo da histria da nacionalizao, e quesobrevive de modo constitutivo como memria na lngua.

    Palavras-chave:lngua, memria, imigrao, processos de identicao

    Abstract: This paper considers the current language as it is spoken by those Brazilianswho undertook the immigration and nationalization process, where vestiges of thehistoric-discursive memory of this process are observed as being materialized specicallyin the language - differently from those aspects of the memory which are marked by

    SynergiesBrsiln7

    -2009

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    O trabalho com a lngua como lugar de memria

    Rsum : Larticle considre la langue actuelle parle par les sujetsbrsiliens qui ont vcu lhistoire de limmigration et de la nationalisation.Dans ce processus on constate les traces de mmoire historique-discursivematrialises spciquement dans la langue diffremment de cellesmarques dans la mmoire du dire et dans la mmoire de lnonc. On yconsidre la langue comme lieu de mmoire. Les traces de la mmoire

    fonctionnent dans des processus didentication du sujet dans son rapport la langue: dans lironie, limitation, lexcs de correction, la dngation, lerire, le chant. Ces lments ont une valeur discursive et posent des questions

    pour le travail sur la langue dans les espaces institutionnels. La rexion

    considre des possibilits de developpement dun travail sur la langue quidonne un statut consistant un vaste matriel symbolique mis au silencedans lhistoire de la nationalisation, et qui survit dune faon constitutivecomme mmoire dans la langue.

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    the discursive memory and enunciation memory. The language here is view as placeof memory. The vestige (trace) of memory in the language works as identication

    processes in relationship subject/language: irony, imitation, excess of correction,denial, laugh, sing. These elements have the discursive value and challenge the current

    work which considers the language as a dened characteristic without considering theabove mentioned characteristics of memory. This taught may consider possibilities ofa work about language that raises vast symbolic material, which were silenced throughthe history of nationalization, and survives as part of memory in the language.

    Key words: language, memory, immigration, identication processes

    Exponho aspectos analticos e tericos sobre a memria no campo da linguagem,

    na rea do discurso, onde se considera que a memria histrica inscreve-se nosdiscursos, nos enunciados, constituindo-os, e, como temos observado, tambmna estrutura das lnguas - de lnguas especcas. Estudando relao da lnguacom a memria discursiva da imigrao no Brasil, observamos como os traosde memria da lngua interditada reaparecem no processo de identicao dosujeito com a(s) lngua(s). Esta constatao coloca desaos ao trabalho coma lngua em espaos institucionais. Procuramos instaurar modos de lidar comesses traos de memria na lngua que os contemplem como constitutivos darelao sujeito/lngua.

    A questo envolve dimenses pblicas e particulares da relao dos sujeitoscom a(s) lngua(s). Se, pelas vias do simblico, a memria histrica determinacertas formaes discursivas que funcionam em escalas coletivas como padresde referncias semnticas que constituem os sujeitos, essa memria funcionatambm na esfera tida como privada ou pessoal pelos sujeitos envolvidos, jem funo de processos de silenciamento. Eles produzem efeitos de sentidoque tm aparncia de pessoais, mas que se constituem, entretanto, tambmeles, nos lastros da memria coletiva, em uma histria que se tece atravs dosestados nacionais modernos. Identicar o entrecruzamento destas duas esferas,coletiva e pessoal, leva a desvendar o funcionamento de um meticuloso trabalho

    da memria, na articulao, s vezes subterrnea e involuntria, do mnemnicocom a palavra. A ateno a esta articulao resulta na impossibilidade dedesconsiderarmos o sensvel na produo do sujeito de linguagem, das prticashumanas e do prprio conhecimento1.

    Considerando o processo de nacionalizao, sobretudo na dcada de 1930, dosimigrantes do perodo republicano no Brasil (1880-1830), estudamos como ostraos da memria histrica so materializados na lngua: tanto em sua estruturaquanto na relao dos sujeitos com as lnguas. A histria da imigrao predispe arelao sujeito/lngua, dada a injuno e o apagamento de lnguas. Observamos

    ainda que a sensibilidade presente nessa delicada relao com as lnguas eas formas lingsticas componente do sentido. Nesta direo, consideramosdesejvel e possvel estabelecer um estatuto mais consistente presena de umvasto material silenciado ao longo da histria brasileira, que sobrevive comomemria de lnguas apagadas, assim produzindo os seus efeitos no discurso.

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    1. A nacionalizao dos imigrantes e a questo das lnguas

    Os estudos que deram lugar s presentes reexes resultam de uma pesquisasobre relaes entre oralidade, escrita e memria, com o foco na memriadiscursiva da imigrao (Payer, 2006). A investigao contou com anlises defatos histricos, tais como a interdio das lnguas dos imigrantes no Brasil nasgrandes guerras, das condies polticas e ideolgicas dessa interdio, em que selocalizam discursos nacionalistas diversos sobre a lngua. Alm de fatos histricoscircunstanciados, estudamos tambm o processo mais amplo de nacionalizaodo imigrante, ao qual o Estado esteve atento e promoveu aes administrativasdesde o incio do sculo XX. A interdio ocial das lnguas estrangeiras, nocontexto das guerras argumento imaginariamente suciente , no foi de todoindependente, segundo a nossa leitura, do processo mais amplo de nacionalizaodos imigrantes, como processo constitutivo do Estado brasileiro, instalado j h

    mais tempo.

    Neste processo ressaltou-se a relao tensa estabelecida entre a lngua nacionalbrasileira e as lnguas maternas dos imigrantes. Foi incisivo o investimentodo Estado em implantar a lngua nacional nas reas de imigrao, com umtrabalho minucioso sobre as escolas para o cultivo (implantao) da lnguaportuguesa. Ele foi realizado, entre outros atos ociais, atravs da Campanhada Nacionalizao do Ensino Primrio nas regies de densa imigrao.Apesar destas aes, como se sabe, imigrantes resistem ao abandono da lngua

    materna. E, neste sentido, para quem trabalha sobre a linguagem e o sujeitode linguagem, importa sobretudo observar que a lngua apagada neste processoconstitui justamente a lngua maternado sujeito (imigrante), funo simblicacrucial na constituio dos sujeitos de linguagem (Rvuz, 1998). No contextode imigrao em massa, especialmente, temos observado que a lngua maternaencontra-se imbuda de sentidos e valores relacionados coletividade, distintosdaqueles da lngua nacional, implantada e cultivada pelo Estado. Assim,estudar o funcionamento das lnguas na histria da imigrao, fazendo certosdeslocamentos tericos necessrios para trabalh-las relativamente memria,acabou nos conduzindo a compreender uma necessidade terica fundamental:a de se discernir entre estas diferentes dimenses discursivas da linguagem,que so a lngua materna e a lngua nacional (Payer, 2006; 2007; 2009).

    Portanto, compreendida deste modo, a questo que se coloca na atualidade, aonosso ver, no exatamente a do resgate ou preservao das lnguas maternassilenciadas. A questo passa por compreender o modo como essas lnguasapagadas na histria funcionam em processos discursivos atuais.

    Nesta direo, cabe compreender os modos de funcionamento da resistncia, suasmarcas no sujeito. Alm da permanncia mais integral das lnguas (dialetos) dos

    imigrantes em algumas reas do pas, h tambm sua presena mais remota, naforma de traos de memria das lnguas apagadas, presentes na materialidadeda lngua portuguesa praticada por essa populao. E ainda, de forma maissutil, como temos observado, a lngua apagada guarda um lugar no sujeito,como lngua apagada mesmo, sendo neste lugar que ela signica. A este modo

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    mais difuso de presena/memria das lnguas maternas dos imigrantes temoscongurado mais propriamente como objeto de investigao.

    Observam-se modos diversos de presena, na materialidade discursiva, daslnguas dos imigrantes, em relao lngua nacional, a produzir, na atualidade,certas relaes dos sujeitos para com a(s) lngua(s). Estas relaes vm constituir,no bojo de amplos processos de subjetivao que se formam no Estado Moderno(Foucault, 1995), um especco modo de identicao e objetivao: seja dosujeito, seja da lngua, seja da relao sujeito/lngua (Payer, 2009). Estudara relao entre memria e lngua na situao da imigrao massiva tem nospermitido compreender como a lngua funciona como bem simblico do Estado,por isso constitutivo dos processos histricos de subjetivao que se do nasociedade moderna. Temos, pela histria, um modo de ser sujeito, falante deuma lngua, que tem com esta lngua uma relao regrada (ou desregrada),congurada no bojo dos dispositivos disciplinares da racionalidade moderna.

    Passamos a consideraes sobre a memria discursiva e a memria dosenunciados, para retomar adiante a questo da memria da lngua e reetir sobrepossibilidades de um trabalho institucional em que a lngua seja compreendidaem seu estatuto de memria histrico-discursiva.

    2. Memria discursiva, memria do enunciado e memria na lngua

    A compreenso da memria discursiva trabalhada desde os primrdios dateoria do discurso, e abrange, em suma, o modo de existncia histrica dosenunciados no seio das prticas sociais (Courtine, 1981), no sentido de algo quefala antes, em outro lugar, independentemente (Pcheux, 1988). A memria dodizer (Orlandi, 1999) funciona requisitando sentidos anteriores de palavras e dediscursos, em sua relao s formaes discursivas e ideolgicas, de modo quefaam sentido na enunciao presente. Segundo esta autora, o fato de que h umj-dito que sustenta a possibilidade mesma de todo dizer, fundamental para secompreender o funcionamento do discurso (idem, p. 32). O discursivo funciona,pois, em relao intrnseca com a memria, na medida em que se diz com baseem discursos que nos antecedem circulando na histria e na sociedade.

    A memria do dizer, constitutiva do sentido, apresenta-se ainda sob outromodo, como memria do enunciado (M. Foucault, 1987), enquanto campoassociado de formulaes mediante o qual os enunciados produzem sentidos eefeitos de memria. Este autor observa que o campo associado dos enunciados condio para a funo enunciativa se exercer. Mas se essa memria discursiva,porque constitutiva do dizer, nem sempre localizvel textualmente, o modocomo ela trabalhada por J.-J. Courtine (1981), mostra como as suas marcaspodem ser identicadas na estrutura lingstica mesma dos enunciados. Oautor relaciona as observaes de Foucault (1987) aos dispositivos de anlise

    da materialidade lingstica, conforme a proposta terica de Pcheux (1969;1975). Courtine (1981) transpe assim a observao da memria discursivapara o nvel do enunciado, analisando as formas de seu aparecimento: comoa supresso das citaes entre um discurso primeiro e um discurso segundoque cita, onde se v funcionar simultaneamente tanto a memria quanto o

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    apagamento, e a recitao de discursos em retomadas ritualsticas. Na estruturaenunciativa, observa o autor, encontram-se os indcios da memria no discurso,que funcionam tambm pelo avesso, diramos, pelas pistas dos apagamentos desentidos que funcionam nas prticas discursivas.

    E se Courtine fala nesses apagamentos de enunciados, E. Orlandi (1992) examinaas formas do silncio, teorizando sobre o silenciamento: o silncio constitutivoprprio ao dizer e o silncio local, a censura. Um fato que se ressalta namemria discursiva dos imigrantes consiste daquilo que, luz dessa reexo,compreendemos como um processo de silenciamento da lngua materna dosimigrantes, com toda a dimenso simblica a investida, relativamente ao fatode que essa lngua materna foi suplantada na histria pelo portugus como lnguanacional. Nos documentos relativos nacionalizao dos imigrantes, identica-seo silncio local, a censura, no contexto das guerras. Contudo, de modo amplo,

    nota-se tambm um silncio constitutivo, na medida em que o discurso danacionalidade, por si, j silencia a discursividade dos imigrantes e suas lnguas.

    Mas na atualidade, sobretudo, que signicam os resqucios dosilenciamentoda lngua. Este fato marca-se com regularidade no dizer. A transformao dosujeito, coletivamente, de falante de italiano a portugus objeto de discursoque se repete nas entrevistas. Tal passagem, com suas injunes e tenses,marca-se como um fato sensvel para essa coletividade.

    A partir dessa compreenso da memria no dizer, observando-a na linguagem

    atual, dirigimos a ateno para um modo material especco de aparecimentoda memria: a lngua. Pelo funcionamento involuntrio da memria, na lngua,notam-se marcas da passagem do sujeito de italiano a brasileiro, nos maisdiversos lugares da estrutura da lngua atualmente praticada. Considerando naestrutura lingstica os traos de memria, compreendemos como a memriahistrico-discursiva se materializa, alm do discursivo, e alm dos enunciados,na lngua ela mesma, isto , em formas especcas da lngua enquanto transpassede sistemas o italiano no portugus. Memria de uma lngua outra enquantosujeito coletivo, memria de uma lngua na outra, memria de uma alteridadeconstitutiva desse sujeito brasileiro. A memria histrico-discursiva apresenta-

    se j na lngua, em estruturas mnimas, como variaes sonoras, fonticas,entoacionais, morfolgicas, etc. neste sentido que pensamos que a lnguaencontra-se em pleno funcionamento como um lugar de memria, comoespecicaremos.

    3. A lngua como lugar de memria

    Neste sentido consideramos a lngua, tambm ela, como um lugar de memria,como lugar signicativo de reconhecimento da memria, de que falam P. Norae Le Goff (1994), como veremos, e cuja considerao de interesse para se

    alcanar um trabalho sobre a lngua, l onde falvamos sobre ensino delngua. Como, de resto, em outras situaes e instituies em que a questodas lnguas se mostre sensvel.

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    Le Goff (1994), ao expor os mltiplos modos de funcionamento e administraoda memria nas sociedades histricas, refere-se distino, apontada por P. Nora(apud Le Goff, idem) entre a memria histrica - na perspectiva das grandesmitologias coletivas, sob o modelo da rememorao, da memorizao, quaseconfundidas com a histria e a memria coletiva, entendida como o que cado passado no vivido dos grupos, ou o que os grupos fazem do passado (Idem,p. 472). A nova histria ganha vigor, conforme o autor, a partir do conhecimentodos lugares de memria, como os lugares topogrcos (arquivos, bibliotecas,museus); os lugares monumentais (arquiteturas); os simblicos (comemoraes,peregrinaes) e os funcionais (manuais, as autobiograas ou as associaes).Isso porque, segundo o autor, tambm estes memoriais tm a sua histria(idem, p. 473). O autor chama a ateno para a importncia do que ele consideracomo verdadeiros lugares de memria:

    no podemos nos esquecer dos verdadeiros lugares de memria, aqueles onde se deveprocurar, no a sua elaborao, no a produo, mas os criadores e os denominadoresda memria coletiva: Estados, meios sociais e polticos, comunidades de experinciashistricas ou de geraes, levadas a constituir os seus arquivos em funo dos usosdiferentes que fazem da memria (Le Goff, 1994: 473).

    Dentre os arquivos destacados pelo autor como fundamentais para a compreensoda memria coletiva, encontram-se os arquivos orais. Para ns, no Brasil,importa sobremaneira o seu estudo. Conforme se compreende no campo daanlise do discurso, o estudo da oralidade fundamental para a compreenso

    dos traos da imigrao, e tambm de tantas outras histrias, presentes naconstituio do sujeito brasileiro. desse modo que encontramos a lngua emseu pleno funcionamento como lugar de memria.

    Ocorre que, sobretudo na lngua, no se trata de memria imediatamentelocalizvel, voluntria e consciente, impressa em monumentos, pronta paraser resgatada. Pois, como dissemos, comum ao funcionamento da memriano campo da linguagem no se mostrar como tal, uma vez que a memria, como dissemos, fundamentalmente constitutiva do discurso, da lngua e dosujeito. Ela opera sob a forma da evidncia dos sentidos, aparecendo tambm

    nas suas falhas. Na explicitao dos traos da memria histrica tomados nojogo da lngua, enquanto discurso, j investiram fortemente os pesquisadoresque instauraram o campo de estudos do discurso. De nossa parte, observandoa lngua materna de imigrantes no discurso, notando desdobramentos em suapresena, compreendemos que os sujeitos podem encontrar os elementos dememria coletiva, l onde, como dissemos, ressoam certos efeitos de aparnciapessoal, mas que so, tambm eles, produzidos ao longo do processo desilenciamento que acompanha a histria da nacionalizao dos imigrantes.

    Nessa ausncia de positividades, nota-se que na lngua a memria funciona

    de vrios modos. De um lado, funciona a memria constitutiva na lngua doimigrante, presente na sua prtica atual da lngua. Materialmente presentena estrutura, na sonoridade, nas construes sintticas, entre outros, oselementos de memria na lngua no se expem plenamente ao sujeito falante,como alteridade lingstica, como outra lngua. Antes, soam para o falante

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    como evidncias da prpria linguagem. Este funcionamento se d, por exemplo,quando os sujeitos dizem que no falam a lngua dos antepassados, e quetampouco tm em sua fala as marcas dela, quando, no entanto, elas podemser identicadas em sua linguagem. De outro lado funciona uma memriarepresentadada lngua, quando o falante reconhece elementos de alteridadelingstica, em situaes onde pode representar elementos da sua lnguacomo sendo da ordem de uma alteridade em relao ao portugus. Que, noentanto, ele fala. Observam-se certas situaes de imitao, teatralidade, comrepresentao (cnica) da lngua dos antepassados, representada assim comolngua do imigrante, lngua de antigamente, que no teria lugar no presente(Payer, 2006). Alm do fato de falar uma lngua (italiano), tambm o cantarnessa lngua, o riso que a acompanha, a denegao da presena de seus traos,assim como a ultra-correo da lngua nacional participam dos processos deidenticao dos sujeitos, situados entre a memria e o esquecimento, como

    marcas, no jogo do funcionamento (atual) da memria histrica tomada nojogo da lngua, conforme a rica expresso de D. Maldidier (2003).

    Curiosamente, estes processos tambm manifestam, pelo avesso, a identicaoa um outro estranho que to familiar, como observou Freud (1919). Emsuma, de modo representado e/ou de modo constitutivo, a memria da(s)lngua(s) se insere nos processos de identicao, como um o que tece osimblico dos sujeitos em sociedade.

    Estudar os diferentes modos de funcionamento da memria nos leva a

    compreender ainda que, em relao lngua, a memria histrico-discursiva que constitutiva dos sujeitos nem sempre representada como tal. Isso ocorre,entre outros fatores, em funo dos saberes que a historiograa torna (ou no)disponveis ao corpo social, pelas vias de uma escola que tambm nacional,ela mesma parte do dispositivo da nacionalidade, conforme a racionalidademoderna. Mas tambm, por outro lado, esse funcionamento no deixa de operarna esfera do recalque, no sentido de que fatos vividos no foram simbolizadospelo/para o sujeito.

    Concluindo: por um trabalho com a lngua como lugar de memria

    Considerando o que foi dito, um trabalho com a lngua como lugar de memriatorna-se complexo. Em primeiro lugar, h que se considerar uma iluso,corrente, da possibilidade de reparao ao dano do apagamento da lnguarealizado historicamente. Esta iluso vai ao lado do que J. Authier-Revuzchama de mito compensatrio de um suposto encontro com o real na lnguamaterna como se fosse a lngua originria (apud Payer, 2006:105-107). De fato,a perda (separao) do real, inerente entrada na linguagem, que atinge osujeito (em qualquer lngua) tende a ser negligenciada ao se tratar da lnguamaterna em contextos multilingsticos. A iluso de que haja real preso

    linguagem funciona de modo ainda mais insidioso se pensado em relao auma lngua suposta originria para o sujeito. Quando esta iluso opera, emprocessos educacionais e em polticas lingsticas, estes processos acabam setornando inecazes, uma vez que podem trabalhar sob o efeito de reposiode uma mtica identidade perdida, o que pode pouco ou nada (re)atualizar dos

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    processos de identicao reais do sujeito com a lngua e com sua histria, deque falamos acima.

    Para explicitar este aspecto, reporto-me a situaes de ensino de lngua italiana

    a sujeitos descendentes de imigrantes. Tais projetos so encontradios em reasde imigrao no Brasil, como o projeto de ensino de italiano desenvolvido emuma escola pblica de Nova Trento, em Santa Catarina (Laurindo, 2008). Mesmosendo projetos bem intencionados na direo de trabalhar as identicaes dosujeito, no se pode esquecer que, em situaes como esta, a lngua italianapara o sujeito escolar estrangeira, dada a sua materialidade, diversa daquelada lngua materna resultante dos dois sistemas lingsticos ainda que se possaquestionar o quanto estrangeira a lngua italiana nesta situao. O modo demobilizao de sentidos e formas de seu conhecimento formal se assemelhaqueles propostos pelo ensino de qualquer outra lngua estrangeira.

    Procurando contornar este mito, consideramos a possibilidade de trabalhar amemria histrico-discursiva, ela mesma, tal como a envolve a lngua, de umlado. E, de outro, os processos de identicao do sujeito relativamente smaterialidades em questo. Vislumbramos um trabalho que ultrapasse a memriarepresentada, de modo a mobilizar as identicaes no nvel da memriaconstitutiva, instncia onde opera mais rmemente a relao do sujeito comos traos de memria instaurados ao longo da histria de sua inscrio no modode vida e de signicao brasileiros ainda que se possa identicar a um modoimigrante de ser brasileiro.

    Para ns, os objetivos e os dispositivos de um trabalho dessa natureza com amemria no coincidem, tampouco, com a produo cultural da memria,de ns promocionais, para o mercado ou a cincia. Mais signicativo, aonosso ver, do ponto de vista de um trabalho eminentemente simblico, quesujeito e sociedade possamformular discursivamente, reconhecendo, e tendoreconhecidas, as memrias que os constituem historicamente: relacion-las,compar-las a interpretaes possveis e verses disponveis; reorganizar,esquecer, desfazer-se de saberes, (re)atualizar outros.

    Um trabalho teoricamente sustentado com a memria discursiva presente nalngua, em mbito social e pessoal, pode levar a memria representada a seexpandir, na elaborao de sentidos, em que a colocao em palavra daquiloque constitutivo, passa a ganhar terreno sobre a memria constitutiva, quandoesta se encontra opacicada e no reconhecida institucionalmente, no quediz respeito lngua. Ao nosso ver, compreender os traos dessa identicaona relao com a lngua resulta em mexidas signicativas nos processos deidenticao em relao s lnguas.

    Em uma sociedade como a nossa, em que houve silenciamento, e onde h

    tambm barulho excessivo, estes processos de identicao no so de todopercebidos, explcitos ou compreendidos pelos sujeitos que deles participam.So processos que funcionam insidiosamente, muitas vezes sua revelia, sobo modo do esquecimento ou persistncia remota das materialidades, comomemria. pelo silenciamento tambm, observa E. Orlandi (1999) que os

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    processos de identicao se instalam. Embora se encontrem certos elementosde representao do fato de ter havido (ou haver) mais de uma lngua, bemcomo certo (re)conhecimento da histria da imigrao, o fato de ter havidotambm silenciamento na relao dos sujeitos com sua lngua materna instala

    processos de sentidos opacos, polissmicos, uma vez que, alm de uma polticade lnguas que jogou com o silncio, houve tambm o desdobrar desse silncio:um silncio sobre o silenciamento.

    No se sabe ao certo tudo o que se passa no subterrneo da memria da relaocom as lnguas, maternas, nacionais, estrangeiras, e suas materialidades.Relaes de aceitao, recusa, ironia, desdm, elogio, indiferena instalam-senesse jogo. No entanto, basta comear a escavar para que, j nas camadas maissuperciais dessa arqueologia da lngua, nos deparemos com a vastido e o valordo material simblico que foi e continua sendo soterrado no estabelecimento

    da lngua e da racionalidade homogeneizantes prpria ao Estado Moderno, aotornar regrada e objetiva nossa relao com a lngua, com os sentidos, conoscomesmos. Nesta direo, interessante darmos passos adiante da na camadade lngua nacional que recobre os recnditos do imenso material subterrneoonde se encontram armazenados de modo quase indelvel, mas muito sensvel,os elementos de memria da/na lngua.

    Notas

    (*) Doutora em Lingstica pela Unicamp, Professora Titular da Univs (MG). Professora convidadada USP e pesquisadora associada do Labeurb/Unicamp.

    1Uma verso preliminar deste trabalho foi apresentada no V Seminrio Memria, Cincia e Arte.Razo e Sensibilidade na Produo do Conhecimento, do Centro de Memria e Faculdade deEducao, Unicamp, 2007.

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