Memorial de Maria Moura

3
1 Memorial de Maria Moura - Adalberto RACHEL DE QUEIROZ BIOGRAFIA Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza (CE), em 17 de novembro de 1910. descende, pelo lado materno, da estirpe dos Alencar, portanto parente do autor de O Guarani, e, pelo lado paterno, dos Queiroz, família de raízes profundamente lançadas no Quixadá e Beberibe. Em 1917 foi para o Rio de Janeiro, fugindo da terrível seca de 1915, que mais tarde a romancista iria aproveitar como tema de O Quinze, seu livro de estréia (1930). Do Rio, seguiu para Belém do Pará, onde residiu por dois anos. Em 1919 regressou a Fortaleza e, em 1921, matriculou-se no Colégio da Imaculada Conceição, onde fez o curso normal, diplomando-se em 1925, aos 15 anos. Estreou em 1927, com o pseudônimo de Rita de Queluz,, publicando trabalho no jornal O Ceará. Com apenas 20 anos, projetava-se na vida literária do país. Em 1932 publicou o romance João Miguel. Em 1939 lançou As Três Marias. Ficou 40 anos sem escrever, até lançar Memorial de Maria Moura (1992). Publicou um volume de memórias em 1998. Morreu no Rio de Janeiro, em 4 de novembro de 2003. Memorial de Maria Moura Uma das narrativas mais marcantes da escritora, a trama situa-se em meados do século XIX, no sertão. Maria Moura é uma menina que tem problemas com o padrasto quando a mãe morre e acaba envolvida em uma disputa de terras. Memorial de Maria Moura, de 1992, é o último livro produzido pela escritora cearense Rachel de Queiroz, a primeira mulher a se tornar imortal da Academia Brasileira de Letras. No romance, acompanhamos a trajetória da protagonista, que dá título à obra, que, de moça sozinha no mundo, se torna líder de um bando de aventureiros, semelhantes a jagunços, no sertão brasileiro, por volta de 1850. O livro serviu de inspiração para uma minissérie televisiva homônima e vai ganhar em breve versão para o cinema. CABRA- MACHO, SIM, SINHÔ! Rachel de Queiroz foi uma das pioneiras da segunda fase do modernismo no Brasil, caracterizada pela estética neo-realista que privilegia o texto enxuto, a descrição objetiva, a ênfase na ação exterior, o retrato social, certa complexidade psicológica e, em muitos casos, a ambientação em espaços rurais, sertanejos, distantes dos grandes centros urbanos, portanto, regionalista. Em Memorial de Maria Moura, encontramos esses elementos. Embora seja uma obra de publicação recente, o estilo que consagrou a autora permanece. O livro, em um primeiro momento, pode intimidar o leitor comum por causa do volume, já que possui quase 500 páginas. Entretanto, a estrutura lembra o formato do antigo folhetim, que possuía capítulos não muito longos, impregnados de ação, conflito amoroso e tensão constante entre as personagens, prendendo a atenção do público. Não por acaso, o romance foi adaptado para a TV. Afinal, possuía todos os elementos característicos das telenovelas. Outro fator que torna Memorial de Maria Moura uma obra de leitura mais acessível é a linguagem simples, direta, crua, que busca reproduzir a fala do sertanejo, bem como retratar a cultura popular e pitoresca. A dedicatória do livro é dirigida a, entre outros, Elisabeth I, rainha da Inglaterra entre 1558 e 1603, que, segundo Rachel, serviu de inspiração para a criação de Maria Moura, pelo caráter forte e pela liderança nata. Elisabeth, em discurso para incentivar as tropas inglesas que enfrentariam a Invencível Armada Espanhola, disse: Sei que tenho o corpo de uma mulher fraca e frágil; mas tenho também o coração e o estômago de um rei e de um rei de Inglaterra! . E Maria Moura: Nunca se viu mulher resistindo à força contra soldado. Mulher, pra homem [...] só serve pra dar faniquito. Pois, comigo eles vão ver. E, se eu sinto que perco a parada, vou-me embora com os meus homens, mas me retiro atirando. E deixo um estrago feito atrás de mim. [...] Pra ninguém mais querer botar o pé no meu pescoço; ou me enforcar num armador de rede. Quem pensou nisso já morreu . FOCO NARRATIVO A narrativa é em primeira pessoa. Contudo, ao contrário da construção tradicional, que conta com um único narrador, temos, em Memorial de Maria Moura, a presença de múltiplas vozes, o que caracteriza a polifonia, ou seja, a história é contada do ponto de vista de cada uma das personagens de maior destaque. ENREDO A estrutura do romance pode ser dividida em três partes: no eixo central, temos Maria Moura e os primos, Tonho e Irineu, com os quais ela disputa a herança. Como núcleos paralelos e secundários, temos o conflito do padre José Maria - Beato Romano; e o casal Marialva e Valentim, e a vida de ambos no circo em que ele trabalhava. No entanto, o enredo é fragmentado, quebrando a linearidade, entrelaçando as ações das diversas personagens, revelando aos poucos o passado delas por meio de vários flashbacks. No início, conhecemos a jovem Maria Moura, que, aos 17 anos, encontra a mãe morta, enforcada com o cordão de uma rede, o que, num primeiro momento, parece ter sido suicídio. A moça, que já havia perdido o pai na infância, passa a ser criada pelo padrasto, Liberato, que a seduz, aproveitando-se da carência dela, transformando-a em sua amante. Um dia, Liberato tenta induzir Maria a assinar documentos que passam para ele a propriedade herdada pelo pai dela. Diante da recusa, o padrasto a ameaça e faz insinuações de que, na verdade, a mãe de Maria talvez não tenha se matado, mas sido assassinada, fato que se confirma depois. Justamente pelo mesmo motivo, ou seja, porque a mãe também se negara a assinar aquele documento. Já tinha se passado bem uns seis meses da morte de Mãe, já tinha se desvanecido dos meus olhos o vulto do corpo pendurado, a visão daquele rosto horrível que não era o dela, quando, certa noite, ele chegou trazendo um papel enrolado, que era para eu assinar. Explicou com poucas palavras que, sendo eu de menor idade, não ia ser capaz de tomar conta da herança de Mãe. daí, Mãe também não entendia de negócios; e só de teimosia, não concordou em casar com ele e lhe passar a propriedade. (p.25) (...) Assim foi a morte do Liberato, meu padrasto. Pois no que eu me neguei a assinar a tal procuração, que é que ele fez? Começou a me ameaçar encoberto. Dizia Quando uma pessoa se mata, sempre haverá um motivo... Tua mãe, teria motivo? Mais tarde voltava ao assunto: Por acaso, teria sido ela mesma que se matou? Talvez nem fosse... (p.27) (...) Eu não podia ter mais dúvida: pelas palavras mesmo da boca do Liberato eu sabia: tinha sido ele o matador. E se ainda duvidasse, me bastava ver os olhos duros que ele me botava, ainda que fazendo carinho no meu corpo. Ele, a bem dizer, tinha confessado. Não disse mais explicado porque não precisava; afinal eu não era assim tão burra. Podia ser tola, mas burra não era. (p.28)

Transcript of Memorial de Maria Moura

Page 1: Memorial de Maria Moura

1

Memorial de Maria Moura - Adalberto

RACHEL DE QUEIROZ

BIOGRAFIA

Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza (CE), em 17 de novembro de 1910. descende, pelo lado materno, da estirpe dos Alencar, portanto parente do autor de O Guarani, e, pelo lado paterno, dos Queiroz, família de raízes profundamente lançadas no Quixadá e Beberibe. Em 1917 foi para o Rio de Janeiro, fugindo da terrível seca de 1915, que mais tarde a romancista iria aproveitar como tema de O Quinze, seu livro de estréia (1930). Do Rio, seguiu para Belém do Pará, onde residiu por dois anos. Em 1919 regressou a Fortaleza e, em 1921, matriculou-se no Colégio da Imaculada Conceição, onde fez o curso normal, diplomando-se em 1925, aos 15 anos. Estreou em 1927, com o pseudônimo de Rita de Queluz,, publicando trabalho no jornal O Ceará. Com apenas 20 anos, projetava-se na vida literária do país. Em 1932 publicou o romance João Miguel. Em 1939 lançou As Três Marias. Ficou 40 anos sem escrever, até lançar Memorial de Maria Moura (1992). Publicou um volume de memórias em 1998. Morreu no Rio de Janeiro, em 4 de novembro de 2003.

Memorial de Maria Moura

Uma das narrativas mais marcantes da escritora, a trama situa-se em meados do século XIX, no sertão. Maria Moura é uma menina que tem problemas com o padrasto quando a mãe morre e acaba envolvida em uma disputa de terras.

Memorial de Maria Moura, de 1992, é o último livro produzido pela escritora cearense Rachel de Queiroz, a primeira mulher a se tornar imortal da Academia Brasileira de Letras. No romance, acompanhamos a trajetória da protagonista, que dá título à obra, que, de moça sozinha no mundo, se torna líder de um bando de aventureiros, semelhantes a jagunços, no sertão brasileiro, por volta de 1850. O livro serviu de inspiração para uma minissérie televisiva homônima e vai ganhar em breve versão para o cinema.

CABRA-MACHO, SIM, SINHÔ!

Rachel de Queiroz foi uma das pioneiras da segunda fase do modernismo no Brasil, caracterizada pela estética neo-realista que privilegia o texto enxuto, a descrição objetiva, a ênfase na ação exterior, o retrato social, certa complexidade psicológica e, em muitos casos, a ambientação em espaços rurais, sertanejos, distantes dos grandes centros urbanos, portanto, regionalista. Em Memorial de Maria Moura, encontramos esses elementos. Embora seja uma obra de publicação recente, o estilo que consagrou a autora permanece. O livro, em um primeiro momento, pode intimidar o leitor comum por causa do volume, já que possui quase 500 páginas. Entretanto, a estrutura lembra o formato do antigo folhetim, que possuía capítulos não muito longos, impregnados de ação, conflito amoroso e tensão constante entre as personagens, prendendo a atenção do público. Não por acaso, o romance foi adaptado para a TV. Afinal, possuía todos os elementos característicos das telenovelas. Outro fator que torna Memorial de Maria Moura uma obra de leitura mais acessível é a linguagem simples, direta, crua, que busca reproduzir a fala do sertanejo, bem como retratar a cultura popular e pitoresca. A dedicatória do livro é dirigida a, entre outros, Elisabeth I , rainha da Inglaterra entre 1558 e 1603, que, segundo Rachel, serviu de inspiração para a criação de Maria Moura, pelo caráter forte e pela liderança nata. Elisabeth, em discurso para incentivar as tropas inglesas que enfrentariam a Invencível Armada Espanhola, disse: Sei que tenho o corpo de uma mulher fraca e frágil; mas tenho também o coração e o estômago de um rei

e de um rei de Inglaterra! . E Maria Moura: Nunca se viu mulher resistindo à força contra

soldado. Mulher, pra homem [ ...] só serve pra dar faniquito. Pois, comigo eles vão ver. E, se eu sinto que perco a parada, vou-me embora com os meus homens, mas me retiro atirando. E deixo um estrago feito atrás de mim. [ ...] Pra ninguém mais querer botar o pé no meu pescoço; ou me enforcar num armador de rede. Quem pensou nisso já morreu .

FOCO NARRATIVO

A narrativa é em primeira pessoa. Contudo, ao contrário da construção tradicional, que conta com um único narrador, temos, em Memorial de Maria Moura, a presença de múltiplas vozes, o que caracteriza a polifonia, ou seja, a história é contada do ponto de vista de cada uma das personagens de maior destaque.

ENREDO

A estrutura do romance pode ser dividida em três partes: no eixo central, temos Maria Moura e os primos, Tonho e Irineu, com os quais ela disputa a herança. Como núcleos paralelos e secundários, temos o conflito do padre José Maria - Beato Romano; e o casal Marialva e Valentim, e a vida de ambos no circo em que ele trabalhava. No entanto, o enredo é fragmentado, quebrando a linearidade, entrelaçando as ações das diversas personagens, revelando aos poucos o passado delas por meio de vários flashbacks. No início, conhecemos a jovem Maria Moura, que, aos 17 anos, encontra a mãe morta, enforcada com o cordão de uma rede, o que, num primeiro momento, parece ter sido suicídio. A moça, que já havia perdido o pai na infância, passa a ser criada pelo padrasto, Liberato, que a seduz, aproveitando-se da carência dela, transformando-a em sua amante. Um dia, Liberato tenta induzir Maria a assinar documentos que passam para ele a propriedade herdada pelo pai dela. Diante da recusa, o padrasto a ameaça e faz insinuações de que, na verdade, a mãe de Maria talvez não tenha se matado, mas sido assassinada, fato que se confirma depois. Justamente pelo mesmo motivo, ou seja, porque a mãe também se negara a assinar aquele documento.

Já tinha se passado bem uns seis meses da morte de Mãe, já tinha se desvanecido dos meus olhos o vulto do corpo pendurado, a visão daquele rosto horrível que não era o dela, quando, certa noite, ele chegou trazendo um papel enrolado, que era para eu assinar. Explicou com poucas palavras que, sendo eu de menor idade, não ia ser capaz de tomar conta da herança de Mãe. daí, Mãe também não entendia de negócios; e só de teimosia, não concordou em casar com ele e lhe passar a propriedade. (p.25)

(...) Assim foi a morte do Liberato, meu padrasto. Pois no que eu me neguei a assinar a tal procuração, que é que ele fez? Começou a me ameaçar encoberto. Dizia

Quando uma pessoa se mata, sempre haverá um motivo... Tua mãe, teria motivo? Mais tarde voltava ao assunto: Por acaso, teria sido ela mesma que se matou? Talvez nem fosse... (p.27)

(...) Eu não podia ter mais dúvida: pelas palavras mesmo da boca do Liberato eu sabia: tinha sido ele o matador. E se ainda duvidasse, me bastava ver os olhos duros que ele me botava, ainda que fazendo carinho no meu corpo. Ele, a bem dizer, tinha confessado. Não disse mais explicado porque não precisava; afinal eu não era assim tão burra. Podia ser tola, mas burra não era. (p.28)

Page 2: Memorial de Maria Moura

2

Memorial de Maria Moura - Adalberto

Maria Moura, aos poucos, vai perdendo o medo, até que decide matar Liberado. Apesar de tornar-se, durante a narrativa, uma mulher de fibra, muitas vezes fria e impiedosa, ela nunca havia matado ninguém, sempre encarregando outros de fazer isso. Não sei bem se sou capaz de ver sangue derramado. Nunca experimentei ver de perto o sangue dos outros; e pior será se for tirado pela minha mão. Primeiro, seduz um caboclo da região, Jardilino, que faz o serviço sujo matando o padrasto para ela, com a promessa de se casarem: Jardilino me comia com os olhos, posso dizer. Eu sabia, sentia; naquela altura o Liberato já tinha me ensinado a lidar com homem ( ...) . Eu não tinha maisnada da mocinha boba do tempo de Mãe. sabia muito bem o que um homem quer da gente

mesmo sendo um caboclo como o Jardilino (p.29). Que alívio. Tudo se passou muito bem. Na noite da terça-feira, Liberato vinha da Vargem da Cruz, encharcado de genebra, tombando em cima do cavalo o caboclo esperou escondido numa moita, à beira do lajedo, numa dobra da estrada. Me contou depois que só precisou dar um tiro, encheu ele de chumbo, bem na cara do peito (p.33). Depois, diante das insistências e das ameaças do caboclo em possuí-la, Maria induz o feitor de sua propriedade, João Rufo, a matar Jardilino: De novo tudo se passou sem erro. João Rufo, encostado no oitão, divisou o vulto do homem se aproximando, chegar perto, empurrar de leve a janela; levantar o joelho para subir um pouco e pular. O tiro pegou o caboclo pelas costas. João Rufo tinha boa pontaria, foi ensinado por Pai (p. 36). Maria Moura, agora órfã, passa a viver na propriedade, o Limoeiro, deixada pela família do pai. Contudo, a herança torna-se alvo da cobiça dos primos, Irineu e Tonho, e da mulher deste, Firma, que reivindicavam parte da propriedade. E agora? Matar aqueles dois, nem pensar. Desta vez, só quem possuía motivo era eu mesma. Não tinha ninguém pra quem desviar a culpa. E o pior é que eles eram mesmo donos de dois terços da herança, eu sabia (p.41). Diante da recusa de Maria, os primos tentam apelar para a Justiça e para a força, mas não contavam com a resistência dela, que acaba encontrando capangas para defender a casa. Depois de trocarem tiros, Maria percebe que a inferioridade numérica e a falta de munição a levariam à derrota. Decide, então, numa atitude extrema, incendiar sua tão cara residência para acobertar sua fuga e a de seus homens: Espalhei pelos cantos da casa uns canudos de pólvora que João Rufo tinha me ajudado a preparar. Derramei pelo chão e pelas paredes todo o pote de azeite de carrapato que se guardava para as candeias. ensopei tudo de azeite, o mais que podia (...) Manei João Rufo ensopar com o resto do azeite o que encontrasse de madeira descoberta; e em seguida espalhar os tições de fogo, bem acesos, perto das poças de azeite, no chão (p.68) . Paralelamente, conhecemos a história de uma prima de Maria Moura, Marialva, jovem que, ao contrário dos irmãos, não se interessava pela herança, pois se apaixona por um artista circense, Valentim: Tudo isso acontecendo no mundo e eu aqui. Trancada dentro desta casa, desde que puseram Valentim pra correr (p. 75). Auxiliada por Duarte (meio-irmão dela que depois se junta ao bando de Maria Moura), Marialva acaba fugindo para se casar, abandonando a vida amargurada que vivia, trancada por Tonho e Irineu: Eles todos saem, só eu fico, neste degredo. Trancada neste sítio velho, estas Marias Pretas dos meus pecados, este buraco do cão. Que foi que eu fiz pra me trazerem presa? Tenho ódio do Tonho (p.74). Enquanto isso, Maria Moura e seus homens, depois de escapar do Limoeiro, vagam pelo sertão, sem abrigo, Dormimos dentro do mato, naquele primeira noite, fugindo da beira dos caminhos (p.83), com pouca água, passando as maiores privações, apenas repartindo o pouco alimento que conseguiam. Acatando a liderança de Maria, o bando começa aos poucos a se organizar e se prover de montarias, alimentos e armas. Juntos,

vivem inúmeras aventuras e, seduzidos pelo ouro, começam a praticar roubos, durante um longo período, sempre obtendo sucesso, e vivendo de forma desregrada. Acabam se estabelecendo numa propriedade próxima à Lagoa do Socorro. Algum tempo depois, reaparece uma figura do passado de Maria Moura: o padre José Maria, que havia abandonado o sacerdócio. Pouco antes de mandar assassinar o padrasto, Maria havia ido se confessar, revelando a José Maria o crime que praticaria, arrependendo-se da revelação em seguida, mesmo após o padre tranquilizá-la, pois ele estava comprometido pelo segredo de confissão. Depois de tantos anos, e tendo cumprido o que prometeu, José Maria aparece pedindo a proteção de Maria, passando a se chamar desse momento em diante de Beato Romano. Depois, ficamos sabendo os motivos que levaram o Beato a mudar radicalmente sua vida. Na última paróquia em que serviu, não resistiu ao pecado da carne e acabou tendo um caso com Isabel

Dona Bela: o que se passou, não sei. Pelas Cinco Chagas de Cristo, juro que não sei. Eu estava semidespido na rede, voltei-me procurando um lençol para me cobrir o corpo

e quando vi ela estava nos meus braços, ou eu nos seus braços

que sei? Era a vida e era a morte, era o abismo, a perdição. A mulher, o perfume, o corpo macio. A paixão, meu Deus. A paixão. Senti que ia morrer e não me importava de morrer (p.157-8), Dona Bela não se conformava com a ausência do marido, Seu Anacleto, que, após descobrir a gravidez da esposa, a assassina com golpes de faca, sendo depois morto por José Maria, que o golpeou com um móvel. Voltando à Maria Moura, esta, cada vez mais, vai se tornando excessivamente autoconfiante, ousada, ambiciosa. Em uma sociedade marcada pelo poder do homem, branco e rico, ela, a despeito da condição de mulher, eleva-se dentre outros inferiorizados, como os negros escravos e os índios, e desafia o patriarcalismo. Para isso, não mede esforços, arriscando constantemente a vida. Maria acaba formando uma espécie de triângulo amoroso com seu meio-primo Duarte, homem que fabricava pólvora para ela, mas que não empunhava armas, e depois com Cirino, rapaz louro e mau-caráter, cujo pai pagou a ela para que protegesse o filho de uma enrascada. Para o desgosto dela, Cirino a trai. Depois, amargurada, humilhada, dividida entre o amor e o dever, ela busca se vingar. Captura-o, tenta matá-lo, mas não consegue. Ao contrário, entrega-se a ele no cativeiro. Finalmente, toma uma decisão que vai torturá-la: manda que Valentim, hábil no manejo de facas, execute o traidor, o que a faz sofrer muito depois. Maria Moura se interessa vivamente, após um período de marasmo, por comerciantes compradores de gado. Um certo Francelino informou-a de que esses marchantes andavam com enorme quantia de dinheiro e por isso estavam sempre protegidos por homens armados: A conversa com Seu Francelino tinha, de certa forma, acordado a velha Maria Moura ( ...) Então - Duarte, eu quero aquele dinheiro dos marchantes. A gente não pode deixar passar por fora tanto dinheiro assim (p. 484). Enquanto Duarte e Valentim vão investigar a informação, Maria, com seu bando, prepara as armas para a maior de suas aventuras, talvez a mais insana de todas, por causa do alto risco. Prevendo um eventual fracasso na missão, Maria decide fazer um testamento deixando todos os seus bens para Alexandre, o filho de Valentim e Marialva, já que ela própria não possuía nenhum herdeiro natural: Passei os olhos pelo escrito. Estava tudo direito, segundo me pareceu. A letra do escrivão era cheia de floreados. Eu deixava todas as minhas posses, imóveis e semoventes, para o menino Alexandre, filho de minha prima Marialva e do seu legítimo esposo, Valentim de Barros Oliveira (p. 490). No dia da partida, após os preparativos para a longa viagem, seus homens solicitam a permissão dela para que o Bento Romano os acompanhe: - A senhora mesma disse que havia perigo, Sinhá. E nós, então, a gente queria o Beato Romano perto

Page 3: Memorial de Maria Moura

3

Memorial de Maria Moura - Adalberto

de nós, para o caso de algum sucesso. Morrer não é nada, mas sempre se morria mais satisfeito tendo ele junto para abençoar. Pra dizer Jesus seja contigo... (p. 491). Isso acaba sendo visto com desconfiança por ela, que não tinha muita certeza de que a fé incutida pelo padre nos seus capangas era útil no tipo de vida que levavam: - Não estou gostando é desse agouro, essa conversa de ferido e moribundo (p.492). Além disso, considerava a presença do Beato e o tom de voz de seus homens uma espécie de agouro. Tudo indicava que eles não voltariam vivos dessa investida. No entanto, Rachel de Queiroz deixa em aberto o destino de suas personagens. Dessa forma, não sabemos até onde vão as aventuras dessas pessoas, desafiadas constantemente pelas adversidades que o sertão agreste lhes impõe, divididas entre o crime e o remorso, mas, acima de tudo, sobreviventes.

(Almanaque Abril Literatura Vestibular adaptado)

EXERCITANDO

01. O caboclo esperou escondido numa moita, à beira do lajeado, numa dobra da estrada. Me contou depois que só precisou dar um tiro, encheu ele de chumbo, bem na arca do peito.

Leia as assertivas e assinale a alternativa correta: a) Nesse capítulo intitulado Maria Moura, esta é quem narra os acontecimentos, deixando impressa a sua visão de mundo sobre os fatos. b) Narrado em terceira pessoa, tem-se o relato da morte do padre José Maria numa emboscada preparada pelo marido que descobrira estar sendo traído pela mulher com o padre. c) Trata essencialmente da morte de Jardilino encomendada por Maria Moura para se livrar das investidas amorosas desse personagem. d) Tem-se a história de Liberato encarregado de matar Jardilino a pedido de Maria Moura. e) Tem-se a narração das aventuras amorosas de Maria Moura com Liberato, apesar da condição de padrasto deste.

02. Leia os comentários sobre Memorial de Maria Moura: I. A polifonia discursiva, isto é, as múltiplas vozes narrativas ajudam a contar a história sob o ponto de vista de cada uma das personagens de maior destaque. II. O Beato Romano é o principal narrador de Memorial de Maria Moura e seu ponto de partida é a confissão feita por Maria Moura nos tempos em que ele levava uma vida sacerdotal. III. A estrutura narrativa dessa obra forma um verdadeiro mosaico de vozes discursivas. A seqüência correta é: a) V V V. c) F V F. e) F V V. b) V F V. d) V V F.

03. (FAFENE) Sobre Memorial de Maria Moura, de Rachel de Queiroz, podemos afirmar que I. possui final bem definido: a grande bandoleira morre, mas deixa a sua herança para Alexandre, filho de Marialva e Valentim; II. Marialva também narra alguns capítulos do livro e, apesar de ser irmã dos grandes inimigos de Maria Moura (Tonho e Irineu), acaba se juntando ao bando da prima famigerada; III.o foco narrativo, em todo o livro, é de terceira pessoa com um narrador onisciente; IV. pertence ao Modernismo da segunda fase, momento literário que exalta a violência e a rebeldia.

Está(ão) correta(s): a) apenas I; b) apenas II; c) apenas III; d) apenas II e IV; e) apenas I e IV.

04. (FAFENE) Sobre os personagens de Memorial de Maria Moura, assinale a alternativa CORRETA. a) Apesar dos insistentes pedidos do padre José Maria, Maria Moura não desiste de matar seu padrasto, Liberato. b) Como já havia exercido o sacerdócio, o padre José Maria troca de nome, mas torna-se uma espécie de líder espiritual do bando de Maria Moura. c) Após matar o marido da amante, o padre José Maria comete mais um crime: mata a amante, que está grávida de um filho seu. d) Apesar de preferir mandar que outros matem em seu nome, Maria Moura mata com as próprias mãos o caboclo Jardilino. e) Maria Moura aceita o Beato Romano em seu bando porque, apesar de ser bandoleira, nutria um grande senso de religiosidade.

05. Sobre o enredo de Memorial de Maria Moura, marque V, se verdadeiro ou F, se falso: I. Ao perder a terra que herdara do pai para os primos, Maria Moura tenta reavê-la na justiça, não conseguindo, decide tornar-se bandoleira para vingar-se dos primos Irineu e Tonho. II. Os primos Irineu, Tonho e sua mulher Firma, morrem em feroz tiroteio travado com o bando de Maria Moura. III.Marialva, irmã de Tonho e Irineu, faz de conta que não se interessa pela herança, mas se infiltra no bando da prima para agir como espiã dos irmãos. IV. Após manter relações sexuais com o padre José Maria, Maria Moura o mata e inicia sua vida de bandoleira.

A seqüência correta é: a) V F F F. b) F V F F. c) F F V F. d) F F F V. e) F F F F.