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  • JOS SARA MAGO

    MEMORIAL DO CONVENTORomance

    Memorial do convento 3A PROVA.indd 3Memorial do convento 3A PROVA.indd 3 16/07/13 17:0716/07/13 17:07

  • Copy right 2013 by Herdeiros de Jos Saramago

    1a edio, Editorial Caminho S.A., Lisboa, 1982

    A editora manteve a grafia vigente em Portugal, observando as regras do Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990.

    Capa:Hlio de Almeida

    sobre Sem ttulo (1999), aquarela e colagem sobre papel,de Arthur Luiz Piza, 16x21 cm.

    Coleo Particular.

    Reviso:Huendel Viana

    2013

    Todos os direi tos desta edio reser va dos editora schwarcz s.a.

    Rua Ban deira Pau lista, 702, cj. 3204532-002 So Paulo sp

    Tele fone: (11) 3707-3500Fax: (11) 3707-3501

    www.com pa nhia das le tras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)(Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

    Sara mago, Jos, 1922-2010

    Memorial do convento : romance / Jos Sara mago.

    1a ed. So Paulo : Com pa nhia das Letras, 2013.

    isbn: 978-85-359-2309-4

    1. Romance portugus I. Ttulo.

    13-06982 cdd-869.3

    ndice para cat logo sis te m tico:1. Romances : Literatura portuguesa 869.3

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    D. Joo, quinto do nome na tabela real, ir esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou h mais de dois anos da ustria para dar infantes coroa portu-guesa e at hoje ainda no emprenhou. J se murmura na corte, dentro e fora do palcio, que a rainha, provavelmente, tem a madre seca, insinuao muito resguardada de orelhas e bocas delatoras e que s entre ntimos se confi a. Que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade no mal dos homens, das mulheres sim, por isso so repudiadas tantas vezes, e segundo, material prova, se necessria ela fosse, porque abundam no reino bastardos da real semente e ainda agora a procisso vai na praa. Alm disso, quem se extenua a implorar ao cu um fi lho no o rei, mas a rainha, e tambm por duas razes. A primeira razo que um rei, e ainda mais se de Portugal for, no pede o que unicamente est em seu poder dar, a segunda razo porque sendo a mu-lher, naturalmente, vaso de receber, h de ser naturalmente suplicante, tanto em novenas organizadas como em oraes ocasionais. Mas nem a persistncia do rei, que, salvo difi cul-

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    tao cannica ou impe dimento fi siolgico, duas vezes por semana cumpre vigorosamente o seu dever real e conjugal, nem a pacincia e humildade da rainha que, a mais das pre-ces, se sacrifi ca a uma imobilidade total depois de retirar-se de si e da cama o esposo, para que se no perturbem em seu gerativo acomodamento os lquidos comuns, escassos os seus por falta de estmulo e tempo, e cristianssima reteno moral, prdigos os do soberano, como se espera de um ho-mem que ainda no fez vinte e dois anos, nem isto nem aquilo fi zeram inchar at hoje a barriga de D. Maria Ana. Mas Deus grande.

    Quase to grande como Deus a baslica de S. Pedro de Roma que el-rei est a levantar. uma construo sem ca-boucos nem alicerces, assenta em tampo de mesa que no precisaria ser to slido para a carga que suporta, miniatura de baslica dispersa em pedaos de encaixar, segundo o anti-go sistema de macho e fmea, que, mo reverente, vo sendo colhidos pelos quatro camaristas de servio. A arca donde os retiram cheira a incenso, e os veludos carmesins que os envolvem, separadamente para que se no trilhe o rosto da esttua na aresta do pilar, refulgem luz dos grosss-simos brandes. A obra vai adiantada. J todas as paredes esto fi rmes nos engonos, aprumadas se veem as colunas sob a cornija percorrida de latinas letras que explicam o nome e o ttulo de Paulo v Borghese e que el-rei h muito tempo deixou de ler, embora sempre os seus olhos se com-prazam no nmero ordinal daquele papa, por via da igualda-de do seu prprio. Em rei seria defeito a modstia. Vai ajus-tando nos buracos apropriados da cimalha as fi guras dos profetas e dos santos, e por cada uma fez vnia o camarista, afasta as dobras preciosas do veludo, a est uma esttua

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    oferecida na palma da mo, um profeta de barriga para baixo, um santo que trocou os ps pela cabea, mas nestas involun-trias irreverncias ningum repara, tanto mais que logo el--rei reconstitui a ordem e a solenidade que convm s coisas sagradas, endireitando e pondo em seu lugar as vigilantes entidades. Do alto da cimalha o que elas veem no a Praa de S. Pedro, mas o rei de Portugal e os camaristas que o ser-vem. Veem o soalho da tribuna, as gelosias que do para a capela real, e amanh, hora da primeira missa, se entretan-to no regressarem aos veludos e arca, ho de ver el-rei de-votamente acompanhando o santo sacrifcio, com o seu s-quito, de que j no faro parte estes fi dalgos que aqui esto porque se acaba a semana e entram outros ao servio. Por baixo desta tribuna em que estamos, outra h, tambm vela-da de gelosias, mas sem construo de armar, capela fosse ou ermitrio, onde apartada assiste a rainha ao ofcio, nem mesmo a santidade do lugar tem sido propcia gravidez. Agora s falta colocar a cpula de Miguel ngelo, aquele arrebatamento de pedra aqui em fi ngimento, que, por suas excessivas dimenses, est guardada em arca parte, e sendo esse o remate da construo lhe ser dado diferente aparato, que o de ajudarem todos ao rei, e com um rudo retumbante ajustam-se os ditos machos e fmeas nos mtuos encaixes, e a obra fi ca pronta. Se o poderoso som, que ecoara por toda a capela, pde chegar, por salas e extensos corredores, ao quarto ou cmara onde a rainha espera, fi que ela sabendo que seu marido vem a.

    Que espere. Por enquanto, ainda el-rei est a preparar-se para a noite. Despiram-no os camaristas, vestiram-no com o trajo da funo e do estilo, passadas as roupas de mo em mo to reverentemente como relquias de santas que tives-

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    sem trespassado donzelas, e isto se passa na presena de ou-tros criados e pajens, este que abre o gaveto, aquele que afasta a cortina, um que levanta a luz, outro que lhe modera o brilho, dois que no se movem, dois que imitam estes, mais uns tantos que no se sabe o que fazem nem por que esto. Enfi m, de tanto se esforarem todos fi cou preparado el-rei, um dos fi dalgos retifi ca a prega fi nal, outro ajusta o cabeo bordado, j no tarda um minuto que D. Joo v se encaminhe ao quarto da rainha. O cntaro est espera da fonte.

    Mas vem agora entrando D. Nuno da Cunha, que o bis-po inquisidor, e traz consigo um franciscano velho. Entre passar adiante e dizer o recado h vnias complicadas, fl o-reios de aproximao, pausas e recuos, que so as frmulas de acesso vizinhana do rei, e a tudo isto teremos de dar por feito e explicado, vista a pressa que traz o bispo e consi-derando o tremor inspirado do frade. Retiram-se a uma parte D. Joo v e o inquisidor, e este diz, Aquele que alm est frei Antnio de S. Jos, a quem falando-lhe eu sobre a triste-za de vossa majestade por lhe no dar fi lhos a rainha nossa senhora, pedi que encomendasse vossa majestade a Deus para que lhe desse sucesso, e ele me respondeu que vossa majestade ter fi lhos se quiser, e ento perguntei-lhe que queria ele signifi car com to obscuras palavras, porquanto sabido que fi lhos quer vossa majestade ter, e ele respondeu--me, palavras enfi m muito claras, que se vossa majestade prometesse levantar um convento na vila de Mafra, Deus lhe daria sucesso, e tendo declarado isto, calou-se D. Nuno e fez um aceno ao arrbido.

    Perguntou el-rei, verdade o que acaba de dizer -me sua eminncia, que se eu prometer levantar um convento em Mafra terei fi lhos, e o frade respondeu, Verdade , senhor,

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    porm s se o convento for franciscano, e tornou el-rei, Como sabeis, e frei Antnio disse, Sei, no sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, a f no tem mais que responder, construa vossa majestade o convento e ter brevemente sucesso, no o construa e Deus decidir. Com um gesto mandou el-rei ao arrbido que se retirasse, e depois perguntou a D. Nuno da Cunha, virtuoso este frade, e o bispo respondeu, No h outro que mais o seja na sua ordem. Ento D. Joo, o quinto do seu nome, assim assegurado sobre o mrito do empenho, levantou a voz para que claramente o ouvisse quem estava e o soubessem ama-nh cidade e reino, Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um fi lho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos, e todos disseram, Deus oua vossa majestade, e ningum ali sabia quem iria ser posto prova, se o mesmo Deus, se a virtude de frei Antnio, se a potncia do rei, ou, fi nalmente, a fertilidade difi cultosa da rainha.

    D. Maria Ana conversa com a sua camareira -mor portu-guesa, a marquesa de Unho. J falaram das devoes do dia, da visita feita ao convento das carmelitas descalas da Con-ceio dos Cardais, e da novena de S. Francisco Xavier, que amanh principiar em S. Roque, um falar de rainha e marquesa, jaculatrio e ao mesmo tempo lacrimoso quando proferem os nomes dos santos, pungitivo se houver meno de martrios ou sacrifcios particulares de padres e madres, mesmo no excedendo uns e outros a simples macerao do jejum ou a oculta fustigao do cilcio. Mas el-rei j se anun-ciou,