Memórias de um Gigolô - Marcos Rey

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Marcos Rey

Memrias de um gigol

CRCULO DO LIVRO

CRCULO DO LIVRO S.A. Caixa postal 7413 01051 So Paulo, Brasil Edio integral Copyright by Edmundo Donato Capa: layout de Natanael Longo de Oliveira; foto de Thor Crespi Licena editorial para o Crculo do Livro por cortesia do autor Venda permitida apenas aos scios do Crculo Composto pela Linoart Ltda. Impresso e encadernado pelo Crculo do Livro S.A. 2 4 6 8 10 9 7 5 3 86 88 89 87

Em memria de Oswald de Andrade

Mariano: Foi no Dom Casmurro, l na General Jardim, que voc me falou de sua autobiografia. Se lembra disso, deve lembrar tambm da minha ameaa, ento um estmulo: "Se no fizer o livro em dez anos, roubo-lhe o tema". Pois bem, j faz dez anos. E agora que sua autobiografia est no prelo, com meu nome, repito-lhe o que Sinh disse a Heitor dos Prazeres, o verdadeiro autor do famoso Jura: "O samba como um passarinho, pertence a quem pegar". No bem o mesmo caso. Sua estria no estava nem no comeo. Por outro lado, se escrita, seria mais saborosa e autntica do que esta. Mal consegui imitar o seu jeito. Todavia, eu no poderia esperar mais para apresentar ao pblico, num retrato de corpo inteiro, o famoso habitante da noite paulistana, a quem dedico este volume, com a maior cara-de-pau. o AUTOR

I O adeus da buena-dichaFazendo breve exame de conscincia no posso me considerar um fracasso total. bem verdade que deixei alguns otrios escaparem e no desconfiei de uma tal Joaninha, insignificante, que se levantou no meio da noite, num hotel da Boca, como se fosse ao banheiro, e escapou me levando a carteira. Ossos do ofcio. Estava de porre, evidentemente. No resto no me sa mal, chegando, em certa ocasio, a ter a vida que pedi a Deus. Para quem comeou de to baixo fui longe demais. E longe at de iate quando no auge da profisso. Fiz o que pude, ora sem tosto, ora com dinheiro que caa do cu, mas passando a distncia das fbricas e de todo lugar onde se trabalha no duro. J pensaram no que seria de mim se fosse obrigado a produzir rolims e esquadrias metlicas? No sou ingrato, todavia, nem mesmo mau sujeito. Fui apenas um tipo vido de novidades, capaz de mover-se com certa bossa e ritmo numa situao difcil. E que grande capacidade de improviso! Tive de sobra essa virtude nacional, til sobrevivncia de milhes e milhes de brasileiros. Mas falava da gratido, minha infinita gratido, convertida em flores no tmulo de tia Antonieta, a santa que me iluminou a infncia. Sim, leitores, o autor destas linhas foi sobrinho da conhecida madame Antonieta, a 9 astrloga, a quiromante, a cartomante, a mdium vidente e auditiva, a telepata, a benzedeira, uma das mulheres mais procuradas neste pas. Embora no grupo escolar tivessem me proibido de distribuir seus volantes de propaganda, a popularidade que minha saudosa tia desfrutava enchia-me de satisfao e crena num futuro estupendo. Com que vaidade eu lia seus impressos amarelos e roxos, guardados numa caixa de sapato no quartinho do fundo! Nos bons tempos at nos jornais publicou anncios, recortados e colados num lbum que a clientela folheava na sala de espera.

garoto! aqui que reside madame Antonieta? Esse reside provinha, invariavelmente, dos mulatos pernsticos da polcia. Um deles costumava usar capa de chuva e outro tinha o hbito montono de girar uma chave em torno do dedo. Um tira um tira e no nada difcil identific-los. Uma das coisas que titia me ensinou, e que nunca esqueci. Tnhamos que estar prevenidos. Menino gil e prudente, corria para o interior da casa e avisava: Os tiras chegaram! Tia Antonieta, apesar do reumatismo citico e dos sessenta e tantos anos, mergulhava debaixo dos lenis, como a prpria Maria Lenk, e ato contnuo punhase a gemer. No mesmo tempo, lanava seu baralho colorido dentro do criadomudo. Se houvesse clientes, eu, com o dedo nos lbios, pedia que entrassem no minsculo quarto de empregada e l permanecessem com a respirao suspensa. E ainda soltava algumas galinhas pela casa para dar polcia uma atmosfera domstica e inocente. Depois, voltava porta da rua para fazer os putos entrarem, j com uma resposta na ponta da lngua: Titia no teve tempo de fazer as camisas, est muito doente. 10 Os tiras entravam e iam me seguindo atravs de um estreito corredor, lanando olhares curiosos por todos os lados, assim at o quarto escuro de tia Antonieta. No pude fazer o servio! ela bradava ao v-los. Estou com quarenta graus de febre! Vocs, do Bom Retiro, so uns desalmados! Pagam uma misria e me fazem trabalhar como uma escrava! Eu corria para ela, desamparado. Quer um mdico, tia? Chame o dr. Martelite! V telefonar na farmcia. Os tiras entreolhavam-se. O mais ousado tomava a palavra: A senhora no madame Antonieta? Antonieta Bruneti. A cartomante? Cartomante, eu? Um deles tirava um dos impressos roxos do bolso. A prova. Tia Antonieta fingia no ver nem ouvir.

Chame o dr. Martelite! Estou morrendo! Quero um padre! A eu chorava de ensopar o rosto, abraado minha tia, que tremia dos ps cabea e clamava por gua, mdico e padre. A senhora no mais buena-dicha? O futuro s a Deus pertence sentenciava tia Antonieta, querendo informar com isso que j no se dedicava mais s suas prticas miraculosas. Os tiras so homens como ns e tambm se comovem. Uma vez, um deles deixou dinheiro para titia chamar o mdico e outro fez questo de enfiar- lhe o termmetro debaixo do brao, que ela quebrou com uma leve e salvadora presso muscular. Voltaremos outro dia. 11 Deixem-me em paz, senhores. Preciso de minhas ltimas foras para educar esta criana. Mal conclua a frase, e eu j exibia aos policiais meus cadernos do grupo escolar, sempre com nota cem nos ditados e exerccios de linguagem. Era aluno exemplar, o melhor da classe. Apenas samos mal num dia em que uma das suas clientes encerradas no quarto da empregada sentiu falta de ar e desmaiou fazendo um rudo enorme. Os tiras foram ver do que se tratava e descobriram quinze senhoras engavetadas em metro e meio quadrado de espao. Nessa triste tarde, um carro vulgarmente apelidado de tintureiro levou tia Antonieta para a delegacia e o Juizado de Menores teria me levado tambm se no fosse a bondade de uma vizinha esprita que me escondeu no galinheiro de seu cortio. Nessa ocasio, tia Antonieta abandonou as cartas e a leitura das mos por uma temporada. Andou costurando calas e camisas para as lojas do Bom Retiro, mas faltava-lhe vocao para esse tipo menos nobre de trabalho. Aps uma briga infernal com um judeu da Rua Jos Paulino, que acusou titia injustamente de ter vendido peas suas para uma loja concorrente, ela voltou sua farta e crescente clientela. Mesmo assim, por segurana, no pegava o baralho, dando preferncia s benzeduras e passes. Tia Antonieta efetuava milagres que presenciei com meus prprios olhos. Creio que foi a pessoa que mais intensivamente combateu o

quebrante e o olho gordo. Os espritos do mal passaram apertado. Titia movia-lhes luta sem trgua, no permitindo-lhes nenhuma vitria entre a Barra Funda, Casa Verde e Bom Retiro. Por isso as mes, as crianas, as vivas aflitas, as solteironas, os doentes, os bicheiros e o pessoal dos centros espritas nutriam por tia Antonieta a maior admirao e respeito. 12 Infelizmente, benzer e dar passes servio mal remunerado. O presidente do Centro F e Caridade combatia minha tia apenas porque ela exigia alguma paga em troca do bem que praticava. Sempre havia algum tentando prejudic-la como se a boa senhora no precisasse de dinheiro para viver. Teve que reabrir seu consultrio, desta vez com uma publicidade mais discreta. Lembro-me de que eu mesmo distribua seus volantes amarelos e roxos s portas do Cine So Pedro, nos dias reservados s "senhoras e senhoritas". Algumas costureiras cooperavam tambm, entregando os impressos s suas freguesas, e na feira do Arouche os carregadores ganhavam mil-ris para divulgar a propaganda e dizer s patroas que madame Antonieta curava enfermidades e adivinhava o futuro como ningum neste mundo. No pensem, por favor, que minha saudosa tia tinha relaes e crentes apenas na arraia-mida. Um senador, que a visitava duas ou trs vezes ao ano, deixava sobre a mesa uma nota de cem mil-ris, e no Natal mandava-lhe uma cesta com tudo que agrada ao paladar. Um mdico do bairro sempre a presenteava apenas para que dissesse aos enfermos que a visitassem: "V consultar o dr. Azevedo. Para mim Deus no cu e ele na terra". Mas as notas mais altas e os melhores presentes provinham de uma tal dona Carola que, com passes e gua fluida, titia curara de cncer. Possua em suma boa clientela na sociedade, inclusive polticos que desejavam galgar posies. Todavia era mentira que o prprio governador do Estado frequentava nossa casa. Tia Antonieta espalhava isso no com o intuito de desmoraliz-lo, mas para valorizar seu conceito profissional. Pessoalmente, era uma criatura agradabilssima. Sabia contar estrias como s ela sobre assombraes, mulas-sem-cabea, lobisomens, vampiros, leprosos que raptavam crianas e corcundas encantados. 13

Quantas vezes, a vizinhana reunia-se em casa para ouvi-la, o que se prolongava at que as crianas chorassem de medo. Outras vezes, com sua voz cantada, lia alto o Livro de So Cipriano e a Bruxa vora, aos quais tinha a maior venerao, tanto que mandara encadern-los. Descendente de espanhis e italianos, claro que tia Antonieta no entendia de macumba como os negros, mas ganhava bom dinheirinho criando galinhas pretas. Vendia-as por preo elevado aos macumbeiros do bairro e, se faltavam, mergulhava as galinhas brancas num banho de tinta, base de piche, apenas para manter a freguesia. Outra coisa a que se dedicava era a promoo de casamentos. Santo Antnio simpatizava com ela. Suas rezas, seus trabalhos nas festas juninas; suas magias com clara de ovo surtiam resultados magnficos. Quantas vezes entravam em casa jovens que haviam sido defloradas, coisa comum nas quartas-feiras de cinzas. A maioria casava-se, mesmo porque titia aconselhava manter a desgraa em segredo. Se o felizardo no era o sedutor, dava s moas, no dia do casamento, um vidrinho com sangue de galinha para derramarem no lenol nupcial. As moas ficavam eternamente gratas e continuavam a frequentar nossa casa, nunca se esquecendo de levarem-me biscoitos com receio de que eu, em contato com a garotada, pudesse romper o sigilo. Receio vo, pois juro por Deus que s fiz essa brincadeira inocente trs vezes. Embora no fosse muito dada limpeza da casa, que cheirava a galinhas e seus excrementos, embora no gostasse de lavar roupa por causa do reumatismo, tia Antonieta era cozinheira de mo-cheia. Sempre tnhamos convidados para suas macarronadas, polpetes, nhoque e berinjelas recheadas. Era exigente nas questes de paladar e nunca dizia no a um vinho, a uma cachacinha, se bem fosse o anisete 14 sua bebida predileta. Para mim, dava quinado com ovos, que ela prpria batia em rtmicos movimentos. Se um dia me faltasse o litro de Gambarota, a pobre senhora tinha vontade de morrer. Queria-me forte e feliz. Devo a ela, ainda, minha iniciao cultural: foi nos seus almanaques que aprendi a ler e a interessar-me pelos mistrios da cincia ao lado dos versos dos poetas antigos. Aos doze anos, j sabia tudo sobre bales, telgrafo sem fio, fongrafos e pianolas. Tambm j sabia

que Casimiro de Abreu e lvares de Azevedo haviam morrido tuberculosos, provavelmente devido masturbao. Se alguma pessoa na rua, no quarteiro ou no bairro adoecesse, podia contar com a ajuda imediata, espontnea e desinteressada de tia Antonieta. A era realmente incansvel e s largava o doente depois de v-lo recuperado, brincalho e disposto a dividir com ela uma dose verde de anisete. E se o sujeito morria, o seu era o nome mais lembrado para banhar e vestir o cadver, fazer caf e bolinhos no velrio e rezar pela salvao da alma. Tinha tambm as melhores palavras para consolar os parentes e o dom de transformar o enterro numa festa, contando na cozinha as anedotas mais picantes e imprprias para a ocasio. Tia Antonieta era simples e humana, igual e comunicativa. Seu nico defeito, se assim pudesse ser chamado, era a vaidade de ver seu nome impresso nos volantes de propaganda. Vaidade tola, reconheo, pois sempre sobrava um reclame para conden-la pelas atividades extraterrenas. Meu rancor polcia est completamente justificado, porquanto teria, quem sabe, ficado rica se no fosse to insistente perseguio. E acredito piamente que desejava a fortuna menos por ela do que por mim, to verdadeiro e quente era o amor que me dedicava. A bem da verdade, nunca soube com clareza qual o parentesco que nos unia. Chamava-a de tia, mas talvez fosse minha 15 madrasta, alguma sucessora de minha me, que tambm no conheci nem de retratos. Infelizmente, quando faleceu, eu tinha pouca idade e jamais lhe havia feito perguntas sobre meus familiares. possvel que, no decorrer desta narrativa, volte a falar de minha querida tia Antonieta, com um sentimentalismo meio piegas, to condenvel hoje em dia, mas no h jeito de evitar. Fico todo derramado quando me lembro dela, o que sucede amide. Era com efeito uma criatura generosa que possua ligao direta com Deus, os santos e o alm. Foi ela em seu bairro a primeira pessoa que pressentiu e mesmo anunciou a revoluo de 1930, no porque j tivesse seu rdio de galena, mas porque recebeu mensagens espritas. No momento em que escrevo estas linhas, recordo-me arrasado de sua morte imprevista, to chorada nos trs bairros de seu domnio. Doente ela era h muito

tempo, porm, todos supunham que chegaria, altaneira, casa dos noventa. Morreu muito antes. Na vspera, sentindo dores no corpo e urinando sangue, chamou-me sua cama. Vi o antigo baralho em suas mos: o moo trigueiro, a loura perigosa, o arrogante rei de ouros, o misterioso s de espadas que todas suas clientes temiam, a romntica dama de copas com seus beijos espalhados na carta, o curinga metlico, promissor e invencvel o dois de paus, insignificante e indesejado, o sete-belo, principesco, generoso e amante. L estavam todas as cartas em suas mos ressequidas, cansadas de revelarem segredos, doenas, amores, traies, rancores, mortes e fortunas. Milhares e milhares de pessoas haviam acreditado nelas e partido delas para erguerem seus castelos. Madame Antonieta pediu-me que repartisse o baralho, o que fiz com um misto de febre e alegria. Depois, comeou a ler o que diziam as cartas nas suas 16 mltiplas e labirnticas combinaes. Sabia que era o meu destino que estava sendo desvendado sobre suas cobertas xadrezes e gastas. Ah, que medo eu tive! Os olhinhos de tia Antonieta estavam vivos, oblquos, mas suplicantes. No queria que as cartas nada revelassem em meu prejuzo. E se ela fixava as cartas, olhando-as de frente, encarando aquelas figuras e smbolos coloridos, eu apenas passava os olhos pelo baralho, fingindo-me alheio s suas mensagens e previses. Voc vai conhecer uma pessoa muito bondosa disse ela. Esta. A dama de ouros. Uma senhora distinta e amiga. Vejo tambm dinheiro, bastante dinheiro. Mas sua grande desgraa vai ser a mulher. No as mulheres, uma s mulher. Cuidado com ela e com o valete de espadas. Foi, talvez, a maior previso que tia Antonieta fez em sua vida e foi tambm a ltima porque no mesmo instante teve sono, tanto sono que precisei lhe tirar as cartas das mos e cobrir-lhe os braos com a coberta. No dia seguinte, estranhando que ainda no se tivesse levantado, fui ao seu quarto e sacudi-a. Sacudia um manequim: morrera.

II A Dama de OuroSa rua a gritar, espantado com a novidade da morte e com o silncio que cresceu, como fogo, na17 quela casa. Em poucos minutos a vizinhana foi chegando, as mulheres e crianas do cortio ao lado, a famlia do vendeiro, as lavadeiras e costureiras do bairro, e mais tarde algumas pessoas da classe mdia, entre elas o prprio dono da casa, aborrecido pois h dez meses tia Antonieta no pagava o aluguel. Todos clientes de titia, gente que lhe dera a mo para ser lida ou que acreditara em suas cartas. As crianas j haviam sido benzidas por ela e curadas do quebrante. Vieram feirantes, os bicheiros e os pinguos do bairro. No sei quem tratou do atestado de bito e quem pagou o caixo. Durante todo o dia e a noite foi um entra-e-sai contnuo, um desfile interminvel de pessoas amigas e desconhecidas, que invadiam a casa e acabavam localizando-se na cozinha para o caf. Algumas, inescrupulosas, levavam pertences de tia Antonieta: panelas, pratos, garfos, e facas, xales, sapatos, vestidos velhos, e outras, mais inescrupulosas ainda, desapareciam com espelhos, tapetes, cadeiras, penico, cortinas, congleo, o mrmore do pichich e tudo o que encontravam. Vendo esse assalto, tratei de pr no bolso, como lembrana, o encardido e encantado baralho de tia Antonieta, que at hoje conservo com a maior ternura. A voracidade dos vizinhos e estranhos chegou a aterrorizar-me. O potinho cheio de moedas de tia Antonieta evaporou e com ele os vidrinhos de homeopatia, as tesouras, os culos, a lapiseira e o ovo de pau da costura. Tive medo de que me roubassem tambm, levando-me no sei para onde, mas o pior seria se me internassem em algum colgio como sugeria o farmacutico. A voz geral aconselhava que me entregassem ao juiz de menores (vi a mquina de costura voando pela janela) no porque se preocupassem comigo mas porque achavam que eu sabia coisas demais para minha idade e teria que esquec- las por bem ou por mal. 18

medida que a casa ia ficando vazia, mais aumentava meu temor e o eco das injrias que lanavam sobre mim, acusando de ser um moleque de rua, um ladrozinho de feira, um corruptor de meninas, esquecidos de que eu contava apenas quatorze anos. Foi ento que vi a Dama de Ouro, junto ao caixo, com seu ar sereno e saudvel, perfumando aquele ambiente de gente suja e malcheirosa. No era jovem, devia ter ultrapassado os cinquenta, porm vestia-se com esmero, com luxo mesmo; usava luvas de pelica, casaco de peles, sapatos muito altos e estava bastante pintada, inclusive os cabelos, cor de fogo ou de bronze, sei l. No chorava ante o cadver, mas no roubava nada, nada comentava nem se misturava com aquele povo de segunda classe. Lembro- me de que seus olhos verdes e bonitos vagavam pela sala procura de alguma coisa e essa coisa era eu, precisamente. Ps a mo em minha cabea e, mais prximo, certifiquei-me de que era realmente a figura do baralho, no esttica, mas viva, mexendo-se pela sala e sorrindo-me. Voc o sobrinho de Antonieta? Respondi, aflito, que sim, eu mesmo. Ela alargou seu sorriso de dentes de prolas e afagou-me com sua mo enluvada que deveria ocultar unhas compridas e vermelhas. A memria desanuviou-se: era uma das mais generosas clientes de tia Antonieta. Na ltima revoluo mandara-lhe leite, carne e cobertores. Num Natal enviara-me um trenzinho de corda. A senhora madame Iara? A Dama de Ouro abriu a bolsa preta e lustrosa e retirou dela um pequeno e elegante carto de visita. No tenho tempo agora. Depois do enterro, pegue suas roupinhas e v para este endereo. No mesmo instante, a Dama de Ouro desmaterializou-se, deixando a presena de seu perfume, que valia pelo sumo de mil cravos e rosas. As outras pes19 soas torceram o nariz quando ela entrou e saiu. Passaram a falar mal dela e dizer coisas que no teria coragem de botar nesta pgina, e voltaram ao tema desagradvel de minha internao.

Para fugir ameaa, escondi-me no galinheiro de titia, cuja ltima galinha preta estava sendo roubada por uma mulheraa gorda como um elefante. Fiquei l, entre penas e titica, encolhido e trmulo, quase febril at o momento em que fecharam o caixo. Voltei, ento, sala. Quase uma dzia de carros formariam o acompanhamento. Fui no automvel do farmacutico, justamente o homem que mais insistia em minha internao. No Cemitrio do Ara, vi o buraco triste onde o caixo foi mergulhado. O secretrio-geral do centro esprita fez a orao final, sem esquecer de condenar certos hbitos e prticas da buena-dicha. Na volta, chorando, puseram-me no carro do bicheiro, sr. Joo. Este no queria que eu fosse internado; pelo caminho, carinhosamente, veio perguntando se eu sabia o que era um grupo, um duque, um terno e um milhar seco. Pretendia usar-me em seu chal. No me pagaria ordenado, mas teria casa e comida de graa. Era noite quando os acompanhantes voltaram s suas casas. S entrei na minha para apanhar a trouxa de roupa. O proprietrio j tomara conta dela e com o dedo grosso esfregando em meu nariz, disse- me que titia era uma caloteira e que devia para todos os estabelecimentos do bairro. Se eu fosse mais velho, obrigar-me-ia a pagar sua dvida de dez meses. O bicheiro pegou-me pela mo e quis levar-me. O farmacutico se ops e tambm um feirante que morava no cortio ao lado. Comearam a discutir o meu destino a princpio calmamente e depois aos brados. Eu apertei no bolso o baralho encantado. A Dama de Ouro estava entre as cartas, ao meu lado, uma espcie de Pimpinela Escarlate de saias. 20 Houve uma reunio na casa do feirante. Apenas o farmacutico insistia na minha internao, todos desejavam meus servios. O maldito feirante queria-me para sua banca, o bicheiro para anotar o jogo e uma costureira (que entrou na disputa) para entregar vestidos. Eu ouvia calado, fora da contenda. Puseram-me um caqui na boca, que me deu nojo embora ainda goste de caqui. Mas a voz mais alta e perigosa era a do farmacutico. Mesmo ele j no advogava a causa da internao. Perguntou-me se tinha medo de sangue. Ah, tambm desejava meus servios: entregar remdios e talvez aplicar injees. Dizia, no entanto, que se preocuparia com meu futuro, colocando-me no ginsio. Era um sujeitinho

antiptico e dele s me interessava sua coleo de almanaques, e o livro do Jeca Tatu. A discusso prolongou-se at altas horas da noite e no chegaram a nenhum resultado. Ela continuaria no dia seguinte, porm, eu dormiria na casa do farmacutico. Foi uma das piores noites de minha vida, passada em claro num div do laboratrio. Que frieza havia ali, entre os frascos de remdio, seringas de injeo, ampolas, agulhas e aqueles vidros de leo de rcino. Imaginei que, ao menor sintoma de doena, picariam meu corpo com agulhas e obrigar-me-iam a tomar o enjoativo leo. Fiquei apavorado. Mesmo no escuro, examinei o baralho, demorando-me na Dama de Ouro e no Valete de Espadas. s seis da manh j estava de p, lavando a boca. Fui tomar caf com o farmacutico, sua esposa, uma magrela feia, e seu filho, da minha idade, que me olhava com desconfiana. Depois, pediram-me que lavasse as xcaras. Evidente: queriam escravizar- me. Logo em seguida, chegavam o bicheiro, o feirante e a costureira para prosseguir a discusso. Ela comeou acalorada. Afastei-me e desci para a farmcia. Tirei o carto do bolso: Rua Amador Bueno 21 madame Iara. O endereo da Dama de Ouro. Ouvindo as vozes dos donos do meu destino, dei alguns passos em direo esquina e depois disparei a todo vapor atropelando garotos que entravam no grupo escolar. Alguns quarteires alm, perguntei a um padeiro onde ficava aquela rua. O que vai fazer l, moleque? Na sua idade? Continuei andando e renovando a pergunta que a todos causava espanto, surpresa e escndalo. Cheguei a sentir-me perdido como os meninos dos contos de fada que se perdem nas florestas e acabam abrigando-se na casa de monstros ou de gnios. Foi um jornaleiro de banca, surdo como uma porta, que me deu a primeira informao til. Teria que atravessar a Avenida So Joo. Fui andando para frente a sentir um pesado enjo no estmago, o maior enjo que senti em toda minha vida. Queria vomitar, mas no tinha o qu. Os prdios altos da avenida balanavam e o prprio cho ia e vinha como se eu estivesse no convs de um navio. Sim, enjo de alto-mar. Eu agora no estava mais perdido na floresta, porm no oceano como um nufrago numa casquinha de noz. Sensao ainda pior.

Passara do Inferno Verde ao Atlntico de minha revolta e assustada imaginao infantil. Atravessei a avenida. Lendo placas de rua, desorientado, dando voltas inteis, sempre com o enjo, com medo de afogar-me e de ser perseguido por um navio corsrio pilotado pelo farmacutico, a costureira, o feirante ou o bicheiro, dei com os olhos num casaro colonial, de janelas verdes, batido de sol, amplo, aberto e iluminado. Embaixo era um emprio e na parte alta, to alta naquela manh, morava minha protetora, a Dama de Ouro, que logo surgiu janela, com a necessria colher de ch, rodeada de suas sobrinhas, jovens, pintadas, esportivas, pecaminosas e alegres. Aquilo, meu Deus, era um transatlntico no mar de 22 prdios, empreendendo um cruzeiro de luxo, tendo como capit minha Dama de Ouro. A capit acenava-me com sua beleza madura e sua bondade sem comrcio. Suas comandadas balanavam no ar, mos esvoaantes e prdigas. Da para alm tudo foi sonho. Vamos salvar o menino! Ele est perdido no oceano! Tragam uma corda! Inventem uma corda!

Apesar do medo tambm sorri, julgando-me j salvo dos perseguidores de mo em gancho. O farmacutico-pirata no me capturaria mais nem o bicheiro de perna de pau. Nem a costureira de papagaio empoleirado no ombro. Aquilo era um transatlntico de luxo com sales para jogos, brinquedos e festins. As marujas comearam a fazer a corda, improvisada com peas ntimas femininas, frgeis, sedosas e escorregadias. Confesso que tive certo pudor de segurar a ponta que me lanavam, um porta-seios. Mas estava com vontade de subir, deixando para trs o casaro esverdeado, rasteiro e frio onde morara tantos anos com tia Antonieta. Comecei a escalada vendo as marujas puxando a corda l de cima, com seus cabelos soltos, cheirosos e matinais. Perdi contato com o solo martimo, j a caminho. Vi a primeira vigia, pela qual espiei. No era para um menino ver. A Frana estava ali dentro com sua cultura e suas inovaes. Fui subindo, subindo. Mais fora!

Puxem o garoto! Que belezinha que ele ! Como ele levinho, coitado!

Subindo, subindo. Fui subindo, subindo. Debruadas para iar-me as marujas mostravam-me os seus seios aerodinmicos, arfantes e nutritivos. A capit no puxava a cor23 da, apenas dava ordens com uma piteira na boca, orgulhosa do milagre do salvamento. Olhei para trs e vi as caravelas superadas dos meus perseguidores, os piratas dos antros pobres da cidade martima. Mais fora! Upa! Upa! Ele vem vindo! Como bonito o sobrinho da buena-dicha!

As mos das salvadoras j me tocavam a cabea. J me iavam pelo corpo, buscando lugares mais baixos e mais propcios para completar a misso de salvamento. Uma delas fazia-o por brincadeira, cascateando uma gargalhada. Outras estavam compenetradas e vitoriosas. Mas todas emitiam gritinhos, que logo se transformaram numa cano em minha homenagem: "O menino salvo das guas pelas sereias". Msica que elas e eu inventamos na hora para a grande ocasio. E sob um sol vermelho, de vero ardente, cheguei, enfim, ao tombadilho festivo, todo suado e sorridente. Vencido pelo cansao, com o corpo amortecido, joguei-me, pequenino e recompensado, ao colo maternal da capit, a Dama de Ouro do baralho encantado de tia Antonieta.

III A colher de chDormi a primeira noite no sobrado de madame Iara, a capit, envelopado nos mais finos e frescos lenis. Falei da colher de ch. Realmente, ela encos24 tou-me nos lbios uma leve e porosa xcara de ch, antes do seu boa-noite, que cheirava a dentifrcio e limpeza. Tive o mais reconfortante sono de oito horas, como a cincia aconselha e os vagabundos aceitam. Ao acordar, no ouvi rudos e pus-me a examinar o camarote: as paredes, pintadas de novo, eram azuis como a prpria manh de minha salvao, e l no havia cheiros nem insetos como em casa de minha falecida e pranteada tia. Fiquei horas deitado, feito um prncipe plebeu, a descobrir pelo contato e depois pelo raciocnio que um lenol de percal melhor do que um feito de saco. Descoberta elementar, mas que alterou profundamente minha filosofia de vida. Eu ansiava, todavia, para rever minha protetora, toda vestida de prata e lantejoulas, chefiando suas borbolticas mariposas, leves e primaveris, ruidosas e confiantes, enfiadas em seus vestidos coloridos e apertados. Para ser franco, pouco me lembrava das agruras da vspera, da morte, do caixo, do Ara e mesmo das discusses sobre o destino que me seria dado. Estava envolvido demais, respirando uma nova atmosfera e ainda ao sabor dolente das ondas martimas que sacolejavam o barco das sereias. Bom dia, meu filho! A porta abriu-se num impulso seco e inesperado. L estava minha salvadora, com o mesmo cheiro Gessy de outro dia, roupas novas e limpas, piteira nos dedos e um carinho quente em cada palavra. Logo mais, chegavam em bando as marinheiras. Queriam ver-me de perto e tocar-me com seus dedos pontudos e curiosos. Eu estava ali para ser exposto, mostrado, feito um bicho raro de jardim zoolgico penosamente adquirido pela prefeitura municipal. Sorrindo, saa-me bem. que incrvel capacidade de adaptao a minha! Nada estranhava, nada temia, nada repelia, completamente vontade naquele lar

25 que me abria as portas. Deixei que me tocassem e que rissem de mim e sobretudo que me beijassem e me marcassem de batom. No fundo, minha magreza causava pena, e todas queriam me transformar num touro forte e sensual, tanto que logo vieram as gemadas, o copo de leite, a goiabada, o mamo e as gelias coloridas e frescas. Uma das marinheiras repetia: Coitadinho dele, coitadinho! Puxa, como magro, santo Deus! Mas vai ficar forte, vo ver. At que ele bonito, apesar de tudo! Outra: Outra: Outra: Uma bonita e sentimental festa pela manh. Depois, todas elas, as trfegas marujas, as insensatas sereias, com risinhos intermitentes e metlicos, foram me despindo sob os olhares meigos e longos da capit. No pensem que me acanhei, ladies and gentlemen. A situao era rara e explosiva demais para que meus quatorze anos oferecessem resistncia moral ou muscular. Fiz corpo mole e, completamente pelado, fui transportado, via area, esbarrando nos fios das lmpadas at a banheira embutida cuja torneira para meu espanto jorrava gua quente. Que coisa feia comentava a capit. Vocs so umas danadas. O menino deve estar morto de vergonha. No estava. As marujas cercaram a banheira para ensaboar-me, coisa que deve ter acontecido ao califa Arun al-Rachid, o grande protetor das artes e da civilizao muulmana. Sulto aos quatorze anos, seria absurdo e pretensioso exigir da vida mais do que ela me dava. L estavam minhas odaliscas, armadas de sabonetes e esponjas, a tirar do meu corpo e do 26

meu esprito os ltimos vestgios materiais da pobreza. Eu era todo espuma e suavidade, j familiarizado com as diversas marcas de sabonete, sentindo as ccegas que me provocavam aqueles dedos longos e indiscretos. Quando elas me consideraram limpo, tiraram-me da banheira morna e transportaram-me em seus braos para a cama. Vi-me envolvido em polpudas e rseas toalhas, imensos mata-borres que me secavam dos ps cabea. Depois, veio a novidade do talco, neve microscpica, caindo de pequenos tonis santos, que elas chacoalhavam sobre mim num festival de risinhos. Os mais etreos e impulsivos tapinhas atingiam-me o corpo todo, espalhando sobre sua excelncia, o beb, o p branco e gelado. Sei que tais descries deveriam ser mais curtas. A vida de uma criana ingnua, salva das guas, no interessa aos adultos. Mas espero no futuro tirar uma edio deste livro, s para menores, quando contarei em detalhes esta parte de minha meninice, muito mais movimentada e saudosa do que aquela em que Casimiro de Abreu viveu caando sanhaos a lao. O fato que o menino puro que eu era encontrou a plena felicidade no bordel assptico e arejado de madame Iara. Verdade, senhoras e senhores educadores. Sempre tempo de renovar conceitos. No est perfeitamente comprovado que um garoto precisa de pais, irmos e tios para se sentir seguro, amparado e bem-formado. Gostaria que alguma madre superiora assistisse epopia hidrulica daquele banho para avaliar como est superado tudo o que se diz, inadvertidamente, sobre educao e formao dos jovens. Urge uma reviso imediata em matria to importante, o que talvez nos colocasse em posio de vantagem e inveja entre os pases subdesenvolvidos. Tratemos, contudo, de passar bem depressa so27 bre essa parte, o que fao com tristeza. Embora ningum acredite. O corao, de Amicis, foi durante muitos anos meu livro de cabeceira. Apenas me deixem dizer que fui um menino surpreendente, quase um prodgio, embora no recitasse nas festinhas escolares. Quando madame Iara me perguntou se sabia ler, mostrei-lhe meu certificado de admisso ao ginsio. Minha tia queria-me advogado, provavelmente para libert-la da cadeia, quando precisasse. Peguei papel e lpis e comecei a exibir minha caligrafia. Peguei um jornal sobre a mesa e li um trecho

com voz caprichada, dramtica e corrente. Aplausos e mais aplausos. Animado, disse quais eram os pases e capitais de todos os pases da Europa, os maiores rios do mundo, as montanhas mais altas, a distncia que separa a Terra da Lua e outras maravilhas do conhecimento humano. A capit mal podia crer, e eu prosseguia falando nas diversas raas, religies, regimes polticos e enumerando todos os presidentes da Repblica, desde o marechal Deodoro da Fonseca ao dr. Getlio Vargas. Conhecia tambm o nome do governador, do prefeito e, graas minha tia, de alguns delegados. Eu era um gnio, sabia tudo, tudo, quem duvidasse que fizesse perguntas. Fui guindado, ento, posio de menino prodgio, uma espcie de Shirley Temple dentro do bordel, servial e compenetrado, com uma palavra gentil para todas as marujas e seus simpticos fregueses. Porm, o que mais fascinava era a minha caligrafia e a facilidade com que eu escrevia frases nas margens dos jornais e cadernos velhos. Uma delas, revelando sua encantadora ignorncia, pediu-me que escrevesse uma carta sua mezinha que morava em Minas Gerais. No me fiz de rogado e com a maior boa vontade redigi quatro pginas fluentes e bonitas, que a prpria capit leu em voz alta, favorecida pela luz que entrava pela janela. Termi28 nou-a com uma lgrima nos olhos, de orgulho e comoo, e beijou-me como se eu fosse seu filho. A mineirinha comprou-me uma caneta-tinteiro, e minha carreira teve incio. Passei a ser o escriba oficial e definitivo do bordel. Redator de prostbulos foi com efeito meu primeiro emprego. Raramente era o dia em que no escrevia uma carta sob encomenda. Cartas para me, irmos, filhos, parentes distantes, gigols e amantes ocasionais. Inmeras vezes, testei minha habilidade ante os olhos curiosos da freguesia, gente de timo corao e muito inclinada a me dar gorjetas, sempre que eu descia rua para comprar cigarros e cervejas. Em poucos meses tornei-me um correspondente de mo-cheia, redao prpria, mo firme e especializada em redigir cartas para meretrizes. Foi com incontida vaidade que recebi solicitaes de outros bordis, prximos e distantes. Chegava a

ficar com os dedos amortecidos de tanto escrever. Havia fila em nossa sala de visita. Uma tarde madame Iara disse: O menino no pode continuar trabalhando de graa. abuso. Comecei, a, a receber gratificaes em espcie: meias, sapatos, camisas, gravatas, vaselina para o cabelo e mesmo ternos completos. Em pouco tempo fiquei com o guarda-roupa cheio. O que ia fazer com tanta roupa? Tinha cinco dzias de meias, trs de cuecas e oito pares de sapatos. Chega de presentes decidiu madame. Agora, paguem em dinheiro. As moas da casa pagaro mil-ris por carta. Os fregueses, dois mil-ris. E as mulheres de outras casas trs mil-ris. Justssima tabela. No fim daquele ms ganhei mais de duzentos mil-ris, o ordenado de muitos pais de famlia. Naquela ocasio, nenhum garoto entregador de coisas ou funcionrio de escritrio ganhava 29 mais do que oitenta mil-ris. Fiquei animado e feliz. Dinheiro vivo era melhor. Podia pagar as minhas despesas, e a maior, no momento, era a compra de um mao de cigarros Astria, por oitocentos ris, todos os dias. Bem pertinho de casa havia um minsculo parque de diverses, e eu gostava de exercitar-me no tiro ao alvo. Diariamente deixava uns dois mil-ris naquelas espingardinhas ladronas. Em seguida, descobri o prazer das vesperais nos cines So Pedro e Santa Ceclia, com ingressos comprados com meu prprio dinheiro. Assim, ia ao cinema duas vezes por semana, pois havia uma noite em que eu, madame Iara e algumas de suas marujas frequentvamos o luxuoso Rosrio ou o Paramount, seguido de uma sorvetada no Campo Belo. Com meu porta- nqueis e minha carteira de couro, sentia-me homem adulto e at com coragem para entrar num bar e tomar uma cerveja preta, ouvindo, ao lado, a conversa mole de malandros e bocas-de-espera. Para conhecer, conquistar e amar a cidade era preciso dinheiro e nisso era um felizardo. No ms de dezembro, quase um ano aps minha vida sob a tutela de madame Iara, redigi tantas cartas e cartes, tantas e tantos, que fiquei com a impresso embaraosa de que enriquecia. Ganhei um conto de ris.

Madame Iara, amiga e conselheira, chegou at a prevenir-me dos perigos do dinheiro excessivo, mas no imaginem que ela exigisse algo. Tudo que eu ganhava s a mim pertencia. Apenas obrigou-me a abrir conta na Caixa Econmica, o que fiz de m vontade: o dinheiro j fazia ccegas e eu sonhava comprar uma bicicleta a motor. Certa manh, radiosa, madame Iara assistiu a um desfile na avenida e voltou para casa com a idia obsessiva de alistar-me no escotismo. No me adiantou resistir, pois as marujas fizeram coro, doidas para me ver de uniforme. No dia seguinte eu j estava ins30 crito no escotismo do grupo escolar da Barra Funda e dali fomos a uma casa comercial da Rua So Bento adquirir farda, leno vermelho, anel de couro, basto, apito, cantil e mochila. Vi-me diante do espelho no exato momento em que me enfiaram na cabea um ridculo chapelo que arrancou brados de minha torcida feminina. "Um viva ao Setor Oeste no nenhum favor!" Estava no escotismo, candidato primeira vaga de submonitor e escalado para o prximo desfile de 7 de Setembro, com material completo, da Barra Funda Praa da S e dali ao Parque da gua Branca. Apenas onze quilmetros carregando uma vasta bandeira nacional na posio correta, vigiado por um monitor convicto, vrias vezes medalhado por ter escalado o pico do Jaragu e cujo pai, alemo e nazista, morrera de colapso sobre uma das mais altas montanhas do mundo. Fui sempre um indisciplinado e inimigo do exibicionismo dos uniformes. Eu sabia sobre sexo mais do que qualquer outro garoto da minha idade, adorava bebidas alcolicas, j descobrira a delcia de encaapar a bola preta na sinuca. Mas em matria de exerccios fsicos, banhos frios, brigas de galo, jogos de futebol, natao e unha-na-mula eu era um fracasso total, um tmido e um covarde. O homem, no vence pela fora dos msculos, graas a Deus. Gostoso era ver as coxas das meninas quando pulavam cordas e espiar pelo buraco da fechadura as marujas de madame Iara tomando banho. Adorava tambm recortar retratos de atrizes de cinema e mulheres nuas, embora com o receio de que se repetisse comigo o que sucedera a Casimiro de Abreu e lvares de Azevedo.

Dono desse temperamento maduro, no poderia mesmo vidrar-me pelo escotismo e nenhum respeito 31 me despertava o retrato de Baden Powell dependurado na sede. Todavia, eu fingia bem, mostrava-me atento, aprendia as canes escoteiras e armar barracas de lona. Era, porm, um escoteiro solitrio, sempre a fumar cigarros, escondido dos graduados e a fazer-me de doente quando me solicitavam esforos. O pior, no entanto, foi o desfile, to ansiosamente esperado pela capit e pelas marujas. Obrigaram-me a deitar cedo para levantar cedo. Fui uniformizado para a sede, com a mochila cheia de panos para fazer volume e o cantil a pesar-me do lado direito. Na sede, centenas de escoteiros felizes e antipticos j se colocavam em fila. O chefe, um velhusco com cinquenta anos de escotismo, ordenou o incio da marcha. Horrvel com aquele sol forte, a manh abafada e o peso que carregava nas costas, sem falar da bandeira. Suava pelo corpo todo. Logo tive sede e levei o cantil boca. Um lquido diferente! Que espcie estranha de refresco! Gostei, porm, e repeti os goles, sedento. Ao passar na altura da Rua Timbiras, vi um grupo familiar de pessoas. As marujas de madame Iara, felizes, acenando com lenos, decotadas, cabelos esvoaantes e rostos pintados. A prpria Iara estava ali, com lgrimas nos olhos, e ao mesmo tempo orgulhosa da minha participao nos festejos patriticos de 7 de Setembro. Assim que me viram, todas elas romperam o cordo de isolamento e aproximaram-se de mim exultantes e puseram-se a beijar-me estrepitosamente. Causou estranheza. O prprio chefe veio ver do que se tratava. 32 O mais vexatrio foi quando elas aplaudiram. Mais respeito com a bandeira! advertiu o chefe. Sua famlia? perguntou escandalizado. Minhas primas disse eu. Voc est o mais lindo de todos! exclamou.

Madame Iara enfiou-me um bombom na boca.

Voltei a virar o cantil na boca. Algumas quadras alm j estava vazio e minhas pernas perderam a consistncia e os prdios se desfizeram em muitos pontos pretos. Brincadeira de uma das marujas: pusera usque no cantil. Dormi na sede, entre capacetes, flmulas e tacapes indgenas, e s fui retirado de l muitas horas depois por madame Iara e duas de suas comandadas. No fiz carreira no escotismo. Jamais chegaria a submonitor e confesso que no aspirava essa alta graduao. Por outro lado, fui acusado de falta de esprito cvico por ignorar as letras dos hinos patriticos, o ponto de partida e chegada dos nibus e por no ajudar os velhinhos a atravessarem as ruas. Causei at certo escndalo numa excurso quando tirei do bolso o baralho ensebado de tia Antonieta e ofereci-me a ler o futuro da turma por dois mil-ris a cabea. E ningum me perdoou o fato de ter feito certa necessidade fsica dentro de um dos gloriosos capacetes da Revoluo de 32. Certa manh, houve uma reunio de submonitores, monitores e guias e resolveram expulsar-me da corporao, visto ter eu desenhado, numa das paredes da sede, uma mulher nua e declarado no praticar uma boa ao todos os dias como exigiam os estatutos. No me importei, porm a capit e suas marujas ficaram ofendidssimas. Foram em grupo sede e armaram l o maior escarcu presenciado pelo Setor Oeste, e uma delas, talvez Nanete, arranhou o rosto do venerando chefe chamando-o de fanchono e depravado. Outra virou no cho a sopa dos pobres, inundando o santurio dos escoteiros da Barra Funda. Aquilo tudo me agradou, j que preferia ficar em casa, seminu, lendo revista, ouvindo rdio e papeando com as marujas e 33 seus fregueses. Por outro lado, as obrigaes do escotismo roubavam-me tempo para redigir as cartas, to generosamente pagas. Nunca mais se falou em escotismo l em casa e nem a linha de tiro fiz. A farda demos para um garoto pobre, o apito era usado para denunciar a presena dos tiras e o basto foi partido na cabea de um folgado que se recusou a pagar o mich. Quanto ao cantil, conservo-o at hoje em meu museu particular, que espero seja um dia aberto visitao pblica, sob a tutela do governo federal ou da Universidade Catlica.

IV As demais figuras do baralhoMal sa do escotismo aconteceu um fenmeno fabuloso com as minhas pernas: comearam a crescer. Observei que o mesmo sucedia com meus braos, o tronco e o resto. A pele do rosto sofria alteraes visveis, a tal ponto que um dos fregueses da casa deu-me um aparelho de barba. Cresci doze centmetros em pouco mais de um ano e tive que redigir muitas cartas para comprar novas roupas. Com que orgulho sa do alfaiate Garcia com meu terno de calas compridas, que dali a meses ficaria curto por ter encolhido e por ter eu crescido ainda mais. Quando completei dezesseis anos, a capit organizou uma bela festa com champanhe e tudo, e recebi um mun34 do de presentes, entre eles uma assinatura do O Globo Juvenil, pois eu andava fascinado com as estrias em quadrinho, principalmente aquelas que exibiam lindas moas em trajes sumrios. Abro aqui um parntesis para lhes dizer que andava apaixonado pela princesa Narda, noiva de Mandrake, por Dale Harden, pequena de Flash Gordon, e por Dayse Mae, a curvilnea namorada de Lil Abner. Fechando pa-rntesis, digo que aquela festa, imprevista para mim, marcou um dos dias mais felizes de minha vida, a maior prova de que eu estava amparado e cercado de amigos. Evidentemente os momentos difceis haviam passado. Tinha saudades de tia Antonieta, e levara flores ao seu tmulo pobre, mas no desejaria voltar quela vida de privaes e temores. L, com madame Iara, tinha de tudo: uma geladeira sempre cheia de frutas, gelias, refrescos, queijos e salames; na sala de espera, jornais, revistas, almanaques e alguns romances, e o guarda-roupa cheio de roupas boas e elegantes. At dinheiro no me faltava, graas imensa correspondncia dos moradores, vizinhos e frequentadores da casa. Assopre as velinhas! Vamos! Nanete ajudou! Assoprou junto! Bom pulmo! Com um nico sopro apagava dezesseis!

Nanete era um dos braos direitos do estabelecimento. Alta, ruiva, majestosa e sempre falando alto era uma espcie de subgerente, a que pagava impostos, fazia compras, fechava a porta aos penetras, entendia-se com os tiras e tratava com os russos das prestaes. Tinha um admirvel tino comercial e podia perfeitamente gerenciar uma grande loja em qualquer ponto da cidade. Graas a ela, madame Iara podia descansar aps o almoo e s vezes viajar para o litoral. No entanto, a maior amiga da capit no era a 35 expedita Nanete, e sim Geni, menorzinha, rechonchuda, muito pintada, voz aveludada e com muitas amizades nos outros bordis do bairro. Assim, se Nanete era o ministro da Fazenda, Geni ocupava o Ministrio das Relaes Exteriores. Se corria algum boato de que iam acabar com o meretrcio, era Geni quem visitava as outras casas para testar as informaes. Era tambm a que fazia visitas aos delegados e que mantinha contato com pessoas influentes para qualquer eventualidade. Conhecia muitos jornalistas que, por amizade a Geni, no veiculavam notcias contra a localizao do meretrcio no centro da cidade. Geni exercia suas atividades com muita segurana, desembarao e certo idealismo. rsula, uma eslava, no sei de que pas, j fora casada com um pequeno industrial, e oriunda da burguesia fazia questo de impor no estabelecimento um clima de boas maneiras, educao e afabilidade. Era quem comprava os jornais e revistas, dona de nossa pequena biblioteca. Jamais permitia um palavro e mesmo anedotas picantes. Se algum fregus perdesse a linha, ficava rubra de dio e enxotava-o. Era o ministro da Educao e Cultura. A pasta da Sade era ocupada por uma uruguaia, Consuelo, a encarregada da farmcia da casa, com centenas de vidros de remdio e caixas contendo preservativos. Foi desta moa, alis muito experimentada, que recebi uma srie de conselhos teis, inclusive uma aula prtica sobre o uso de permanganato. Consuelo representava verdadeira barreira contra os bacilos da famlia coco, e orgulhava-se de jamais ter apanhado qualquer doena perigosa. Muito amiga do farmacutico, estava sempre a par das ltimas novidades dos laboratrios e teria sido uma grande mdica se no tivesse conhecido um certo gigol chamado Julinho. Berta, baixota, loura, espevitada,

neurastnica, assumiu o Ministrio da Guerra no dia em que uma caftina, chamada Daly, comeou a roubar fre36 gueses de Iara, fazendo concorrncia de preos com uma deslealdade

impressionante. A pequena Berta perdeu a cabea vendo os michs escassearem e foi casa de Daly, disposta a briga, e l armou tremenda confuso, culminando com a quebra de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Os resultados, porm, foram timos. Daly deixou de fazer concorrncia, e naquela mesma semana houve um pequeno congresso de caftinas no qual os preos foram rigorosamente tabelados. Mas nada disso teria acontecido se no fora a interveno armada da explosiva Berta. O Ministrio do Turismo estava merecidamente ocupado pela francesa Simone, que organizava festas, reunies, visitas, passeios, frias e viagens a Santos, So Vicente, Itanham e mesmo ao Rio de Janeiro. Sabia preos de passagens, hotis, refeies, partida e chegada de nibus, trens e avies. Era o prprio Expresso Cometa, sempre disposta a dar graa, alegria e movimento vida de todos os moradores e amigos da casa. Como gostvamos de Simone! E como sofria, a coitada, quando no havia dinheiro suficiente para tais desperdcios. Teresa, simples, domstica, eficiente, prevenida, era o ministro de Obras Pblicas. Foi ela quem teve a idia de ampliar a cozinha, de mandar construir um cmodo no quintal e de fundir a sala de jantar sala de espera para dar melhor aparncia e grandeza ao meretrcio. Precisavam ver com que segurana lidava com pedreiros, pintores e eletricistas. Tinha em seu quarto um estoque de tomadas, soquetes, maanetas, trincos, pregos, tachinhas e tintas para as paredes. Ela no teria problemas nos primeiros anos da Rssia comunista, to afeita aos trabalhos masculinos e vigorosos. Falta, ainda, nomear o ministro de Assistncia Social, a simptica Luana, que se comovia tanto com crianas, mendigos, velhinhos, doentes e fracassados. Raro o ms em que no organizava uma lista para socorrer 37 algum, comprar remdios, salvar famlias do despejo, pagar taxas escolares e rezar missas pela alma de conhecidos. Claro que era extremamente religiosa, pois perdia o mais caro mich do mundo no decorrer de suas novenas e promessas. Uma

vez foi a p at a Penha agradecer a sade recuperada de uma empregada baiana, a maior ladrona que j conheci. Pediu-me para ir junto. Fui, mas na Praa da S tomei o bonde. A est o ministrio completo de madame Iara, a capit. Era democrtico, sim, possibilitando a todas o direito de falar, discutir, brigar e discordar. Todavia, ela governava a casa com mo firme, personalidade e um perfeito senso de justia. Se numa discrdia no dava a primeira palavra, dava a ltima. Conhecia a vida e as criaturas humanas. Acreditava no destino mas no se submetia a ele de braos cruzados. Nos momentos de aflio era quem melhor mantinha a calma e o discernimento. Combatia excessos, evitava polmicas e no deixava ningum explorar ningum. A porcentagem que cobrava das suas afilhadas era a das mais justas. Ficava com cinquenta por cento, porm dava-lhes casa, um ambiente higinico, toalhas, desinfetantes, msica, revistas, petiscos, beberetes e o calor de sua amizade adulta. Eu estava sempre do lado dela quando um dos ministros tocava no assunto desagradvel das porcentagens. E jamais deixei de acusar as que recebiam fregueses clandestinos para fugir diviso dos lucros. Podia gostar das outras, como amigas, mas era capit que devia minha salvao e felicidade. Defendia seus interesses com unhas e dentes, e um dia que vi a baiana, empregada, roubar um nquel do pichich dei-lhe um vibrante tapa no rosto e xingueia de pau-de-arara. Uma tal de Judy, que se rebelou contra o meio a meio, quase rompe a harmonia daquela casa, provocando num sbado quente um pandemnio que me 38 deu clicas. Mas a capit serena, altiva, sentindo minha mo adolescente apertar a sua sob a mesa, fechou a questo e expulsou a insubmissa com todo o vigor. Pensem nas despesas que tenho! bradava. Aluguel, limpeza, porteiro, duas criadas, dinheiro para os tiras e jornalistas. Devia at tirar mais da metade. Sacudi a cabea, afirmativamente, j tomando posio. Mas a senhora cobra muito pelas refeies e pela hospedagem. O preo de qualquer penso da Baro de Limeira. No exploro ningum. E

as que no esto satisfeitas que vo embora. H muitas espeluncas por a espera de vocs. Vo e sei que voltaro em menos de um ms com o rabo entre as pernas.

Os homens gostam de casas bonitas, limpas e agradveis. Ns vivemos de aparncias, no? No falei dos serviais, parte integrante da tripulao. A baiana ladra era a Rutona, mau-carter, mas um gnio na cozinha. Suas moquecas e vataps aumentaram minha alegria de viver. A arrumadeira, um tipo albino, banhada em soda custica, chamava-se Dina. Finalmente, o porteiro, o nosso Buster Keaton, magro, calado, com seu fraque colado no corpo como goma-arbica e, segundo a impresso geral, inclusive da polcia, era viciado em entorpecentes. A verdade que nos bons tempos faturara muitssimo. Cinquenta ou mais mil-ris por noite. A casa de madame Iara, porm, eram tambm os seus fregueses: os ocasionais e os habituais. Os ocasionais no ultrapassavam a mdia de dez por dia, e apenas aos sbados e vsperas de feriados havia superlotao e filas. O movimento comeava depois do almoo e prolongava-se at as quatro da madrugada. Todos os cmodos eram ocupados, por isso eu tinha licena 39 de ficar na rua at mais tarde. Posso dizer que esses fregueses pertenciam na maioria imensa classe mdia, j que o operariado no podia pagar a tabela exigida. Eram subgerentes e gerentes de loja, professores, contadores, estudantes de cursos superiores, funcionrios pblicos e bancrios bem remunerados, donos de lojas e pequenas indstrias, jornalistas, msicos de cabars, apressados pais de famlia com responsabilidades e um grande nmero de interioranos, entre eles prefeitos, donos de jornais, de casa de jogos, turistas perdidos na grande cidade, mdicos e advogados de pequenas e mortas cidades. Boas pessoas que, aps um curto romance com Teresa, Berta, Simone, Luana ou qualquer outra, saam de l felizes, realizados, e acabavam por transformar sua euforia em nqueis que iam s mos profissionais do nosso Buster Keaton. Esses eram os ocasionais, que l apareciam uma vez na vida e outra na morte apenas para poder dizer aos outros que conheciam o mundo. Gente que, ao chegar em casa, ia tomar leite na cozinha envergonhado de sua aventura e com verdadeira nsia de beijar os filhos e netos. Eram necessrios milhares e milhares desses tipos para sustentar o estabelecimento de madame Iara. Mas, felizmente, havia os outros.

Os

fregueses

habituais

quase

sempre

procuravam

conhecer

todas

as

marinheiras, depois, fixavam-se numa delas. Cada maruja possua cinco ou seis fzocas que as visitavam semanalmente. Homens sedentos de romance e dilogo. Esses transitavam pela casa, iam cozinha, abriam a geladeira, retiravam guaran e azeitonas, ouviam o rdio, ligavam a vitrola, desfilavam em cuecas, tomando todas as liberdades. Muitos prestavam pequenos e grandes favores: um tapeceiro ps cortinas na casa a preo de banana, um mdico examinava as marujas sem cobrar nada, um advogado resolvia os casos jurdicos e os donos 40 de lojas nunca vinham com as mos abanando. Traziam cortes de vestidos, sabonetes, ferros eltricos, bibels, sandlias, meias que no desfiam, soutiens, pijamas, latas de cera, doces, bebidas e tanta coisa mais. At as empregadas e Buster Keaton recebiam presentes. Num dia em que o porteiro teve um acesso de asma foi internado e curado sem que ele ou madame Iara tivessem que gastar um tosto. Bons fregueses, amigos, gentis e protetores. Mas havia tambm os chatos. Davam-me com o n dos dedos na cabea e chamavam-me de Joo. Um deles acusou-me de lhe ter tirado dinheiro da carteira, quando foi a Rutona, suponho. Tive que me baixar, gil, para no levar um tabefe. Os piores eram os jogadores de bicho. Enquanto se divertiam com as marujas, eu tinha de ficar no chal espera dos resultados. Uma vez, um desses gaiatos pegou um terno. Mais que depressa, alterei o resultado e fiquei com o dinheiro: cento e sessenta mil-ris. Que semana! Alm desses habituais havia os mais habituais ainda, os amigos de todos os dias, geralmente pouco endinheirados. Um tal de Gumercindo, jornalista, embeiou-se por Simone e foi um deus-nos-acuda. Quis largar a esposa com quatro filhos e fugir com a maruja. Madame teve que intervir e dar conselhos. Outro habitualssimo era um locutor de rdio, o maior cartaz entre as moas, sempre com um zero na carteira e uma lbia de causar inveja. Berta apaixonou-se por ele e foram viver juntos durante um ms; acabou voltando arrependida e decepcionada com as sopas de vento que o locutor serviu. No posso esquecer um turco, o Abbud. Queria que todas as marujas se apaixonassem por ele, mas seu romance foi com a Rutona baiana, com quem, dizia, pretendia casar-se. Lembro-me de um poeta, o Alcindo,

autor de um livreco, Castelos na areia, o maior encalhe editorial do primeiro meio sculo. Queria romance 41 com Luana. Resta-me falar do professor de um grande colgio, o maior copo que j vi, sempre com a boca mole, os olhos amortecidos e fazendo longas declaraes de amor Teresa. Caftens e gigols eram repelidos por madame Iara que declarava no toler-los. S permitia namoros inocentes. Apenas uma vez amoleceu e justamente com o Valete de Espadas, justamente com ele.

V O menino vira homemOs anos passavam lentos, cheios e felizes. Por insistncia e ponderao de madame Iara, fiz um curso preparatrio ao ginsio num ano. Meu meio de vida, no entanto, continuava a ser a redao das cartas, o pequeno escrevente florentino de Amicis. O trabalho, porm, j me cansava e a turma reagiu mal ao aumento que solicitei. que minhas despesas cresciam. Ficara vaidoso em matria de vesturio, s frequentava os cinemas caros do centro, pegava txis de quando em quando, no passava um dia sem beber alguma coisa e fumava cigarros de primeira categoria. Na sinuca s vezes deixava algum, e se conseguia namoradinhas, as despesas dobravam. Recorri ao baralho de tia Antonieta, jurando que ela me ensinara a ler os destinos humanos. Como conhecia todas as pessoas daquele mundo, no me era difcil adivinhar coisas, fazer previses, advertncias, estimular 42

receios, prevenir contra inimigos evidentes, sempre com aluses reticentes a cartas, enfermidades, viagens, brigas em famlia, embaraos e mortes. Adquiri grande prtica, e embora eu mesmo achasse as funes um tanto humilhantes para um homem, complementava com elas os meus gastos. Aqui nem preciso dizer que o convvio com as marujas no era meramente platnico, pois sempre nos surgem boas idias quando no h o que fazer. A prpria capit apadrinhou e estimulou as primeiras experincias, escolhendo como professora a comunicativa Simone, a quem rendo minhas homenagens pelo alto esprito didtico e profissional. A essa altura, creio, j posso dizer por que bagunou o comrcio da correspondncia. Se elas nada me cobravam, com que autoridade ia eu cobrar o meu servio? Depois de conhecer Simone, tive curiosidade pelas outras, o que me foi satisfeito sem problemas ou splicas. At a Rutona baiana, a cozinheira ladra, teve que pagar em espcie as mensagens que eu lhe redigia para a Baixa do Sapateiro. A arrumadeira albina foi no dia seguinte e da passei a trocar interesses com as marujas de outros navios, dependentes de minha pena fcil e inteligente. Ao chegar aos dezessete anos o sexo j no oferecia segredos para mim e comeava a v-lo como uma mercadoria igual s outras. Cheguei, inclusive, prematuramente a deixar as marujas em paz, voltando a cobrar pelos meus servios redacionais, to necessitado estava de dinheiro. Nesse tempo tive uma dispendiosa namorada nos Campos Elsios, o que me obrigava a pedir emprestado at a Buster Keaton, o silencioso porteiro. Mas o sonho de Buster era ter um fraque novo e por isso no me emprestava muito nem por muito tempo. Quando completei dezoito anos, a capit comeou a mostrar-se preocupada com meu futuro. Vivia me perguntando o que eu desejava ser, qual 43 a profisso que seguiria. Era uma conversa desagradvel e eu ficava plido quando ela pleiteava para mim um emprego pblico, usando das influncias de um de seus mais importantes fregueses. Realmente eu no sabia o que queria ser. Alis, sabia, sim. No queria ser nada. A vida que eu levava era boa demais para ser trocada por outra duvidosa. Levantava tarde, muito tarde, fazia uma bela refeio matinal e depois ia redigir as cartas. Depois do almoo, dormia at as quatro. Ento, saa

pela cidade, sem rumo nem ambies, conversando com um e com outro, bebericando nos bares, jogando sinuca, fofocando sem roteiro, at a noite, quando voltava para casa e jantava. Se a noite me convidava, me dizia "venha", eu saa, seno, ficava no transatlntico namorando as marujas ou jogando cartas com elas at a madrugada. Sempre ia dormir balo, com o caco cheio, a lngua solta, ou cansado de danar o tango com a Berta, amante fantica do ritmo. Justamente nessa poca, descobri os cabars, nos quais entrava, apesar de menor de idade, pois conhecia os porteiros, viciados no tiro ao alvo. Amigavelmente, comprava-lhes meia dzia de rolhas e arrolhava-lhes a boca. Assim, ia eu ao O.K., ao Wonder Bar, ao Imprio. Minhas despesas aumentaram e comecei a ficar aflito, pois no que uma cerveja nesses lugares custava vinte mil-ris? Se fosse um dia sim outro no s de bebida gastaria trezentos mil-ris! Muito dinheiro! Para safar-me dessa, fiz-me jogador de bicho, imaginoso, entendedor da mecnica e dado a decifrar sonhos. Cheguei a acertar muitos ternos, duques e centenas, mas foi mais o que perdi, confesso. A sinuca oferecia maior segurana e rentabilidade. Ca na pateao. Ficava brincando com as bolas do Taco de Ouro, fazendo a vara espirrar, como se fosse analfabeto em efeitos e tabelas. Uns rapazes simpticos do XI de Agosto viam e achavam graa. A eu convidava-os para uma 44 partida a cinco mil-ris. Acabava ganhando por meio cordo ou nem isso, s para tapear. Fingia temer o "dobro ou nada", mas ia, sorrateiro, cheio de dengue, fazendo-me nervoso. Deixava toda a responsabilidade na bola sete e ganhava por pura casualidade. A sinuca foi minha salvao naquele ano. Mas logo fui ficando manjado nos sales como pateador profissional. Ningum queria jogar comigo a no ser os matutos e os estudantes dos cursos secundrios, que no tinham dinheiro. Minha fama de dissimulador chegou at os bilhares da Praa Marechal Deodoro e do Largo do Arouche. Passei a tentar sorte nos bairros, buraco n'gua. Nos bairros ningum joga com estranhos e os caras so duros e no gostam de apostar a dinheiro. Foi um reinado curto que apenas rendeu dinheiro para meu ingresso nos cabars em sua fase aguda das tpicas e marimbas. O fato que dia a dia eu mais profundamente mergulhava nesse mundo sul-americano de sensaes baratas, mas

que tinham para mim um envolvente encanto. Enquanto danava ou via os pares danarem, acalentava a idia de ter um dia meu prprio cabar, com saletas no fundo para jogos, alguns gramas de cocana para os doentes e prostitutas que soubessem a arte do tango, da mentira e da explorao. Isso que era sonhar: um grande retrato de Carlito Gardel na gerncia, meu nome trocado para Ramn, uma vintena de danarinas me badalando, fazendeiros entrando e saindo com a safra do caf debaixo do brao e Buster Keaton de fraque novo na porta. Um menino da minha idade tinha o direito a essas evases, contemplao lusco-fusco dessas miragens noturnas. Num arrojo de imaginao, via-me em noites de comemoraes e excessos, mandando os lees-de-chcara desocuparem o salo para que eu e minha favorita danssemos um tango comprido e demaggico, com passes de equilibrismo e elegncia. Depois, caa na 45 realidade e voltava para casa a tempo de ver os ltimos fregueses de madame tentando espichar sua madrugada. Esta era minha vida, minhas senhoras e meus senhores. Assim, ou quase assim, fui dos quatorze aos vinte anos, da morte de minha tia Antonieta, a astrloga, decadncia de minha querida Dama de Ouro, madame Iara. Antes disso, porm, do trmino de sua fase de ouro, muita coisa aconteceu e me aconteceu, to importantes como as que j relatei, e muito mais difceis de serem relatadas. Certo dia de 1937, ou no, madame Iara recebeu uma nova afilhada, uma maruja que passou a estimar com todo o seu corao de me e caftina. Chamavase Guadalupe, a Virgem de Guadalupe, ou simplesmente Lupe, ou ainda Lu, para os preguiosos. Mal completara dezoito anos e tinha dentro de si um motor que puxava sua carga leve com um tremendo arranco para a vida adentro. Quando passava pela gente chacoalhava o ar, emitia ondas sonoras, luminosas e magnticas. Ela fazia parar corda de relgio, o cuco da parede se assanhava, o rdio dava esttica, a vitrola desafinava, Buster Keaton, o porteiro, comeava a falar, e acontecia uma srie infindvel de desarranjos mecnicos como se os habitantes do planeta Ming, governados pela princesa Azura, quisessem invadir o nosso, usando o poderio cientfico de seus inventos e raios infernais. Ela entrou na casa e logo ficou dona porque as outras perto dela iam ficando pequenas, derretendo-se,

volatilizando-se at o nada absoluto. Apenas madame Iara com seus cinquenta e mais anos no se despersonalizava, a mesma, intacta, perfeita, sempre a chefe, a protetora e a amiga. Quando vi aquele fenmeno de beleza e dinamismo entrando em casa, toda de p, durinha, virginal, radiosa, como uma flecha a caminho do alvo do 46 parque, algo parecido com um avio, com uma flor, uma jia e um domingo de sol, fiquei vidrado, como se diz hoje, e me aproximei dela. Este meu afilhado. Lu. S Lu? A princpio me chame de Lupe.

Durante quarenta e oito horas, fui o criado de Lu, o faxineiro de seu quarto, o arrumador de cama, o carregador de malas e o boy que lhe comprou dentifrcios, sabonetes, perfumes e todas suas armas de agresso, posse e morte. Mas alegria de pobre dura pouco, e a minha durou muito pouco mesmo. Dois dias depois, algum vai entrando sem dar trela ao Buster Keaton. Olhei. Encarei o tipo. Parei no meio do corredor para lhe impedir a passagem. Fiz cara de mau e tarado. Sabem quem era? Sabem vocs quem era? O Valete de Espadas.

VI O Valete de EspadasO Valete de Espadas (s podia ser ele, sim, era ele, estava na cara, fugitivo de um baralho velho) foi entrando ereto e sem problemas. Vestia-se de branco, sapato de duas cores, colarinho engomado, gravata estreitinha, com prendedor ostensivo, abotoaduras de ouro falso, cabelos empastados de vaselina, nariz aquilino, magro e gil, pisada enrgica. 47 Quando se voltou, vi-o de frente: dentes amarelados, bigodinho bem-tratado, brilhante, costeletas, e a inconfundvel cabeleira a jaqueto dos gigols manjados. Seus sapatos novos rangiam no assoalho carunchado. garoto, a Lu est a? Acho que sim. Est ou no est? No sei. V ver. Diga que o Esmeraldo chegou. Sabia, adivinhava.

O Valete de Espadas chamava-se Esmeraldo. Fui bater no quartinho de Lu, to cuidadosamente arrumado por mim naquelas quarenta e oito horas. Ela abriu a porta, sorriso molhado, largo e contagiante. Seu Esmeraldo est a. No! Est mesmo? O Esmeraldo?

Lu beijou-me no rosto por ser eu o portador da boa notcia e dependurou-se no pescoo de Esmeraldo dobrando as pernas no ar, toda alegria, saudade, exploso e cinema. Era o encontro grudento de dois amantes. Quando se largaram, depois de um beijo que me jogou de encontro parede, voltaram-se em minha direo e ele enfiou uma nota de cinco mil-ris no bolsinho de meu palet: Ela: No preciso, ele afilhado da dona.

Fui para o banheiro, rasguei a nota em mil pedacinhos e joguei-os no buraco da privada. Estava certo, convicto. Era o Valete de Espadas, meu inimigo definitivo, como o professor Moriarty era de Sherlock, como Saki era de Mandrake, como o Bolo era de Popeye. Um inimigo mais velho do que eu, uns dez anos, mais experiente, mais senhor de si e j contando com um trofu em suas mos. Daquele momento em diante, tudo mudou. Pas48 sei a irritar-me quando me pediam cartas, a maltratar minha freguesia, para espanto da capit. Se ia ao tiro ao alvo no acertava uma. Os cabars passaram a ser lugares de sofrimento, hospitais de dores-de-cotovelo, as ruas e avenidas levavam distncia e solido, as msicas provocavam-me lgrimas e apenas o lcool ajudava um pouco, fuga de uma realidade humilhante e esmagadora. Um porre todas as noites. A geladeira da capit vivia vazia porque eu a esvaziava. E o pior era ouvir o Valete: garoto, v comprar cerveja pra mim. Quis fazer-me de escravo: tinha que descer para comprar cerveja, cigarros, fsforos, revistas, jornais, lmina de barbear, graxa de sapato e vaselina para o cabelo. No me dava descanso, sempre a exibir sua carteira recheada de notas, tendo Lu ao redor do pescoo, envolvendo-o at cans-lo com seus braos redondos, lisos e inquietos. Desa! V comprar O Dia. O gigol passava a maior parte do dia com Lu. Bastava que ela fizesse um mich e invadia o quarto para tomar-lhe o dinheiro, um prazer para Lu. A capit no gostou, mas Esmeraldo soube amaci-la com atenes, presentes e a promessa de trazer para l cavalheiros importantes. Disse que andava circulando entre jogadores endinheirados e que a todos falava de sua casa. Era muito relacionado. O pior no isso, o pior que querem fechar. No tenha medo. Por qu, Esmeraldo? Porque sou amigo da polcia.

Era certo que trazia fregueses para Lupe, j que tinha interesse nisso, mas duvidava de que pudesse proteger a casa de uma invaso policial.

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Vamos jogar cunca, pessoal.

Isto Esmeraldo sabia fazer bem, doido por uma

jogatina, maneiroso nas cartas, olhos vivos, atento a tudo, jogando para ganhar, no por distrao. A capit tambm tinha o fraco das cartas e sentava-se mesa com ele, convidando Simone, Teresa, Berta ou qualquer outra. Se Lu entrasse na rodada, eu ficava sapeando e lanando sorrisinhos para ela; seno, ia cozinha preparar um gim-tnica ou vermute com gelo, o primeiro de uma srie sem fim. O movimento de fichas indicava que tambm no jogo o Valete tinha sorte, queimando os cacifes alheios. Aquelas pobres operrias do amor deixavam sobre a mesa quase tudo o que ganhavam, pois o diabo do gigol com seu aparelho visual de raios X conhecia o jogo dos outros. Parecia sentir o cheiro dos curingas e caa fora, mas quando estavam em suas mos, suas cartas ficavam grossas, impenetrveis numa dissimulao perfeita. Num sbado depenou todas as afilhadas da capit, e depois permitindo licena para Lu foi com ela ao teatro e ao restaurante. Cheio de dio, eu pensava numa forma de elimin-lo. Comecei por protestar contra a jogatina, mas as perdedoras no estavam revoltadas. Queriam perder mais, as otrias. Voc est com cime. De quem? De Esmeraldo. Que bobagem, Berta. Tenho namorada.

Ningum acreditava em mim, porm temiam que Esmeraldo, to vivo, desconfiasse do meu discreto interesse por Lupe e fizesse a minha pele. Valente dizia ser, principalmente com uma arma branca na mo, e a prova eram suas passagens pela polcia de vrios Estados. Costumava contar estrias, que as marujas ouviam atentas e fascinadas das exibies orais de masculinidade. Ouvindo essas bravatas, madame Iara, preo50

cupada, olhava para mim. Carinhosamente foi dizendo para que me esquecesse de Lu. H moas mais bonitas. No gosto de Lu. No minta, meu filho. Tenha cuidado. Esse tal Esmeraldo no est para

brincadeira. Nenhuma delas apostaria um tosto em mim, e sendo fraco temia que meu rival visse ainda mais do que costumava ver. Venha jogar, garoto! Faltara parceiro para o cunca. Fui porque Lu estava na parada, mas depois de ter ido embora a metade do meu cacife, ela fez cara de doente, levou a mo cabea como se estivesse num palco e saiu da mesa. Substituda por Berta. Continuei o jogo, caprichando, rezando pela presena cnica dos curingas salvadores, porm os endemoninhados insistiam em no aparecer. Lupe, luz e precipcio, reapareceu na porta, esquisita, olhando-me, foi chegando como uma cadela de luxo, cheia de plos brilhantes, postou-se ao meu lado, com os olhos na direo da estrela Sirius, mos soltas, esquecidas, sob a mesa, boquinha encolhida assoprava o ar, no queria nada e queria tudo. Sentia tocar em minha mo uma mosca de carto, de superfcie lisa e plastificada, agradvel, porm eltrica. Baixei os olhos como se fosse rezar e vi a maruja, isto , seus dedos, segurando com audcia e cumplicidade um curinga de dois metros de altura, novinho em folha, charmoso, atraente e meu. Peguei a arma secreta, substituindo-a por um msero cinco de paus, que enfiei entre os dedos colantes e mgicos da Virgem de Guadalupe. Alguns minutos depois, eu atirava as cartas sobre a mesa, bradando "bati!" As moas me felicitaram, porm o gigol ficou lvido e espalhou tambm suas cartas com rancor e desejo de matar algum. 51 Aqui h truta. O qu? Truta.

E provava sua suspeita que era uma certeza: tinha dois curingas. Estvamos jogando com trs? Dois baralhos, dois curingas. Por que o terceiro? Olhou-me, soltando as mos, agitando os dedos, pronto para a agresso. O que foi? Vai apanhar, garoto! Ouviu? Vou lhe marcar o rosto. Por qu? Por que est chorando, voc? Fui eu, Aldo. Tu?

Lu comeou a chorar.

Meu corao disparou, porm, no me atrevia a olhar para a capit a fim de pedir socorro. Por brincadeira disse ela. Tirei o curinga de outro baralho. Fiquei com Pena? Foi mesmo pena ou outra coisa? pena do rapazinho. Mas no esperou a resposta: vibrou a bofetada. O rosto de Lu foi atirado para o lado e mal voltou posio natural de nascimento j recebeu novo golpe curto, rpido e estrepitoso. Meu Deus! Sangue! Sangue que molhava a boca de Lu e pingava na mesa. Sangue! Nunca pude ver sangue. Se ele no existisse eu seria o maior valente deste mundo, bateria em mil Esmeraldos, mas no posso com sangue, odeio sangue. O gigol ia atacar-me. Ouvimos ento a voz salvadora e certeira da capit. 52 casa. A capit levantou-se; quis demorar-me mais, porm ela puxou-me pelo brao e levou-me para o quarto. Depois, voltou para cuidar de Lupe, obrigando-a a lavar a boca ensanguentada. No quero ver coisa alguma e esta foi a ltima vez que se jogou nesta Mais um tapa em algum e chamo a polcia. Escute aqui, minha senhora. . . Chamo a polcia, est ouvindo? No gosto de valentes nesta casa. Mas a senhora pode ver que. . .

No quarto, comecei a esmurrar o travesseiro at incharem os punhos. Maldito Valete de Espadas. Jamais deixaria de odi-lo. Era o meu inimigo, o completo vilo que teria de derrotar. Comecei a estudar as possibilidades de uma luta frontal. Mais velho do que eu, talvez tivesse mais malcias. J brigara muitas vezes com malandros da pior espcie. No era alto nem atltico, mas malevolente, escorregadio, quem sabe mestre do rabo-de-arraia e da capoeira. Talvez tivesse uma navalha na meia, Deus meu! No era assim, com estupidez e desatino que eu o venceria. Teria que craniar a vitria, lanar as cascas de banana, usar de estratagema e crocodilagem. noite, eu e o gigol nos topamos cara a cara no estreito corredor tendo o frgil Buster Keaton como testemunha. Deixe minha mina em paz, guri. Que mina? Espere a, vamos conversar, Esmeraldo. No bote a mo em minha mina seno o opero da apendicite.

No se pode conversar com uma pessoa que usa esse tipo de linguagem. Evito a gria excessiva, que marca o malandro e fecha-lhe as portas. J tinha grandes aspiraes sociais. No lhe disse mais nada, porm, naquela mesma noite, tive que ouvir os conselhos maternais da capit. 53 Jamais levei to a srio um conselho. No olhava para Esmeraldo e quando estava presente ignorava a existncia de Lupe. Todavia, o mundo cheio de mistrios. Trs dias mais tarde, Lupe e ele voltaram s boas, amantes como nunca. Quando iam para o quarto e eu estava na sala, o co esquecia a porta aberta para que eu visse Lupe desvestir-se, atravs do espelho. Co, mil vezes co. Sozinho em meu quarto, tirava o baralho santo de tia Antonieta do bolso e lanava indagaes ao destino. L estava o Valete de Espadas com sua elegncia suburbana e a ameaa cortante do seu naipe. Antiptico igual ao prprio Esmeraldo. Minha protetora, a Dama de Ouro, envelhecera um pouco naqueles seis Voc no devia ter apanhado a carta. No sabia que era de outro baralho. Mesmo que no fosse. Pensa que tenho medo desse tuberculoso?

anos, j descorada, prejudicada nos seus ngulos retos, com manchas em sua superfcie lisa. Mas qual, buena-dicha, entre as cartas seria Lu? Havia uma que entrava e saa em todas as cartadas! Uma dama de copas, romntica e volvel, voltada ora para mim ora para o infame Valete de Espadas. H coisas que um cartomante amador no sabe ver nas cartas, s mesmo a experincia longa e total de tia Antonieta. Rezei por sua alma, ajoelhado, e jurei que mandaria fazer uma missa em sua homenagem assim que pudesse. Amanheci, no dia seguinte, como se um camaro da Light tivesse passado sobre mim. O corpo doa nas juntas e a alma em toda a sua extenso. Bebi um litro de gua mineral, com o mal-estar acre de uma ressaca. Outras humilhaes teria que passar, mais surras daria no travesseiro, mais noites mal-dormidas, e at uma exploso de lgrimas no colo da capit. O rumo do destino, porm, ia mudar no s para mim como tambm para todos que navegavam no transatlntico florido da capit. 54

VII O Destino bate porta: madame Iara no abreDepois de mil notcias, reclamaes, artigos e diz-que-diz-que nos jornais, o poderio do dinheiro venceu e a zona teria mesmo que se confinar no Bom Retiro. Uma batalha perdida. Certo sbado tarde, a polcia bateu na porta, mas madame Iara, prudentemente, no abriu. J perdera direito casa e seus mveis e utenslios mais caros estavam sendo transportados para outro endereo. Queria, porm, resistir ainda e nisso era insultada por todos, principalmente por Esmeraldo que afirmava ser amigo dos tiras e limpo com os delegados. Uma tarde, segurou minha mo entre as suas.

Voc vai junto, meu filho. Para onde? Para onde eu for. No sei, no. J dei tanto trabalho para a senhora, e como v nem posso Quero que entre numa faculdade. Qual sua vocao? Nenhuma. No faz mal, cuidarei de voc assim mesmo.

mais me sustentar.

Mas eu no pretendia isso; j no era criana, tinha que ser independente, caminhar sobre minhas prprias pernas, no ter medo do mundo, conquistar meu lugar ao sol. . . ou sombra. Alm disso, receava que a Dama de Ouro fosse comear sua rpida e triste decadncia comercial, e eu no gostaria de precipitla com meu peso morto. Passei a ver o transatlntico da capit com olhares de adeus. Fixava nos 55 olhos aquelas paredes desbotadas, o congleo verde e ramado, a gaiola do papagaio, o enorme crucifixo, os mveis negros e desbeiados, a mesa oval da sala de jantar, os abajures dos quartos, o assoalho com suas tbuas soltas, os fios eltricos com as flores de papel, a ramagem da rea e do quintal e sobretudo o cheiro de p-de-arroz, os perfumes ambulantes e ainda os retratos de artistas de cinema recortados das revistas e pregados nos quartos. E junto com o que via, fixava o que j no via e sentia, o grande banho triunfal da primeira manh, as espumas aladas, os sorrisos de euforia, a quentura da gua e a aqutica malcia daqueles dedos femininos. A batida aconteceu no sbado seguinte. Como se adivinhasse naquela semana, flertei o tempo todo com Lupe e pus uma rosa em sua cabeceira. Comprei-lhe cigarros e sorvetes, na ausncia do Valete. Atrevidamente, segurei-lhe a mo sob a mesa, na hora do jantar. Onde vai se isto acabar? Volto para o Rio disse ela. Foi de onde viemos. Com Esmeraldo? Decerto.

Fui acompanhar a capit numa novena e diante dos santos prometi ser um bom catlico at a morte. Mas antes queria uma ajudazinha. Recorri tambm macumba, graas baiana Rutona, doutora no assunto. Os olhos, porm, do esprito mais se voltavam para minha tia morta. Levei flores sua sepultura, quando soube que j tinham desenterrado os seus ossos. Trouxe as flores de volta e as distribu marujada para ter um pretexto de novo contato com Lupe. 56 Muito previdente, a capit pagou os ordenados das serviais e deu roupas, mantimentos e dinheiro para Buster Keaton. No tivera tempo de comprar um fraque novo. Isto no vai acabar disse ele. Acaba, sim. No acaba. Sou porteiro h trinta anos, sempre as mesmas conversas. Em todo caso, boa sorte. E voc, para onde vai? Ao deus-dar. Voc moo, sabe se arranjar.

Foi na sexta noite, com a casa quase vazia porque as pessoas que se prezam temem batidas. Acordamos no dia seguinte chateados. Um caminho levou alguns mveis, mas o comrcio continuou e tarde quase todas as marujas estavam l, inclusive Lupe e Esmeraldo. Ele, romntico, no quarto, seminu, esperava Lupe para uma hora de amor na tarde quente. A capit tomava ch, Berta bordava, Teresa ouvia rdio e eu contava o dinheiro. A polcia no pediu licena, no tocou a campainha, no mostrou papis. Vi um vasto tintureiro parar na porta e dei o alarma. A casa, pelo quintal, comunicava-se com a propriedade vizinha, e esta tinha acesso a outra rua. J estudramos essa retirada, se algum vexame fosse imposto. Todas as portas dos quartos se abriram ao mesmo tempo e um japons, imberbe e mope, foi a primeira figura que discerni, saindo da alcova de Simone. A capit, com toda a dignidade, tomou a dianteira, enquanto eu fechava a porta da rua. A marujada gritava, confusa, desordenada, apavorada. Lupe, saindo do banheiro, foi entrar no quarto de Esmeraldo. No deixei.

Saia, saia, v com as outras, pelos fundos.

Ela obedeceu-me, aglomerando-se com as demais fugitivas, entre elas a albina e a Rutona, que no precisavam fugir. Esmeraldo estava naquele justo momento no banheiro. Tive a certeza disso ao entrar em seu quarto, vazio. 57 A polcia arrombava a porta. Esmeraldo saiu do banheiro e foi para seu quarto, quando eu me precipitava pelo corredor, como uma bala, indo juntar-me s marujas no quintal e passando pela casa vizinha. O ltimo rudo que ouvi foi da porta da rua, arrombada com estrondo. Eu prendia na minha mo a mo de Lupe, e fomos dos primeiros a chegar rua. Vamos embora ordenei. E Esmeraldo? No vi. Estava no quarto? No vi, mocinha. Vamos. Ela lembrou-se, espantada:

Contornamos o quarteiro quase tranquilos, enquanto a capit entrava num txi com Teresa e Berta e me atirava beijos. Rutona chorava na rua. Simone refugiouse num bar. At Buster Keaton ainda vi com seu fraque ensebado, rumando para a So Joo. Quero saber de Esmeraldo! bradava Lupe. Chegamos esquina da rua, e de l se podia ver perfeitamente o casaro que madame Iara habitara durante tantos anos. Um tumulto na porta, gente gritando, guardas, tiras, cachorros, estudantes e curiosos. A retirada fora perfeita, apenas um prisioneiro. Pudemos v-lo, eu e Lupe. Vimos Esmeraldo entrar no tintureiro envolto num lenol, o que me lembrou a santa figura do mahatma Gandhi. Mos maldosas, na confuso, enquanto ele estava no banheiro, entraram no quarto e jogaram todas as suas roupas sobre a marquise de uma casa comercial ao lado. Das meias gravata. Foi preso nu, ridculo e bronqueado. 58

VIII Imploro a Deus: o Diabo corre em meu auxlioConduzido por Lupe, fomos parar numa casa de cmodos, suspeita, na Vila Buarque, onde uma famlia de tratamento, morando nos fundos, com crianas, cachorros e rdio alto, garantia o aspecto de respeitabilidade. Mas a luminosa criatura com a qual me perdera na floresta procura de um sobradinho de chocolate, no queria dar-me a devida ateno, ainda apaixonada ou ligada ao Valete de Espadas, embrulhado em seu lenol de alvura imaculada. Ficamos no mesmo quarto, de frente para a rua, apenas por economia, pois ela chorava por Esmeraldo e me empurrava com dedos de ao, demonstrando uma crueldade inominvel. A verdade humilhante que passamos nossa noite de npcias acordados, a matar pulgas, a espantar mosquitos, sem que eu conseguisse beijarlhe os dedos dos ps. Nunca falei tanto em to poucas horas, suplicando-lhe, contando-lhe minha infncia pauprrima, tentando comov-la, rezando ajoelhado, recitando versos dos almanaques, prometendo-lhe mundos e fundos e por fim tentando suicidar-me com uma gilete enferrujada de um antigo inquilino. s seis horas da manh eu estava rouco, resfriado de tanto exibir-lhe minha juvenil nudez, com os olhos inflamados de tanto chorar, vencido, descabelado e j sem esperanas. Na manh seguinte, a Virgem de Guadalupe, que eu raptara de um prostbulo com o auxlio da polcia, continuava a mesma ou ento muito pior. Exigiu que a deixasse em paz com sua dor e fosse 59 pedir socorro minha protetora, cujo novo endereo conhecamos. Expliquei-lhe que no seria possvel, j que era homem feito, e no podia viver pendurado em ningum numa cidade cheia de oportunidades, considerada o maior centro industrial da Amrica Latina, onde prevenir acidentes era dever de todos. Lu no quis sair do quarto, e contando meus minguados mil-ris, fui explorar o bairro e comprar-lhe bananas, sanduches e uma rosa vermelha. Por que gasta dinheiro em porcarias? disse ela, apontando a flor.

Na segunda noite, renovei os ataques, ora pelo flanco direito, ora pelo flanco esquerdo, usando a ttica da surpresa, dos recuos e avanos inesperados, como um general que tenta em vo conquistar uma fortaleza boiando nas nuvens. Conclu, todavia, que a fora bruta, a violncia mesmo planejada e cientfica, no poderia alcanar resultados. Sou realmente um homem de paz, das boas maneiras e dos acordos inviolveis. No terceiro dia, com os msculos gastos e a respirao precria, resolvi adoecer de maleita, enfermidade que tem infelicitado esta vasta nao to afeita contemplao lrica beira dos rios e lagoas. Comecei a tremer como um autntico terremoto. Nunca participei de um, mas j havia me familiarizado com eles, no cinema. Pedi maruja que me jogasse cobertores, enquanto meus motores ligados faziam a cama, a cadeira, os copos, vidros de remdio e tudo o mais vibrar num ritmo montono e dramtico. Lu apareceu com um termmetro. besteira! protestei. E tive que lhe explicar que h dois tipos distintos de maleita: a quente e a fria; a quente acusa febre, a fria, no. Lupe aceitou a explicao e um vizinho, prestativo, tambm. Logo correu pela casa 60 de cmodos que um inquilino estava sofrendo de maleita fria. Talvez existam mesmo os dois tipos: a quente e a fria. Se erro, senhores mdicos, corrijam-me. O corao de Lupe no suportou ver-me tremer toda uma semana, sem comida, sem conforto, sem carinho. Como eu ocupava a cama e ela era forada a dormir no cho, cansou-se da dureza do assoalho e numa noite em que eu balbuciava palavras que pareciam uma despedida, veio aninhar-se ao meu lado. Vocs no sabem o que alegria, mas continuei a tremer mais alguns minutos, fazendo descer a cortina daquela encenao, aquela pea que permaneceu uma semana em cartaz, com espetculos seguidos sem descanso: Fui abraando Lu e retirando sob o peso das cobertas o obstculo sedoso de sua lingerie. No encontrei resistncia, pois s uma alma perversa recusaria o ltimo desejo de um condenado morte. Primeiramente, senti o contato do meu corpo nas asas de um anjo, depois, veio a sensao do vo teste de um pra-quedista em domingo no clube, seguida do velejar britnico no litoral de Taiti, acompanhado da delcia de uma orquestra

caprichando a mais bela melodia, que se transformou numa suave intoxicao por champanhe francs e por fim algo que se abria, com toda a certeza as montanhas de Ali-Bab, oferecendo um banquete de diamantes em seu interior exclusivo, mido e misterioso. O mal, o inexplicvel, o absurdo que h sempre uma tendncia mrbida e positiva de voltar-se realidade. Tive que sair da montanha, apenas com o consolo de que poderia voltar a ela com um simples "abre-te Ssamo". Estvamos molhados de suor, esgotados, felizes, sim, mas j com o pensamento grudado na miservel subsistncia. Como duro ter que pensar no teto e no po! Bomios e vagabundos de todo o mundo, uni-vos! 61 Ao terminar o primeiro ms de febril e excitante convivncia, descobrimos que estvamos sem um tosto, e apesar do meu bom humor, a maruja enfrentava srias preocupaes. Voc sabe fazer alguma coisa? Tem plano para o futuro? Vai procurar emprego? Quer morrer de fome? Gosta mesmo de mim? Respondi que no. Respondi que no. Respondi que no. Respondi que no. Respondi que sim, que sim. Lu ergueu-se com uma resoluo determinada, sentou-se diante de uma pobre banqueta, diante de um espelho oval, tirou o material de guerra da bolsa e comeou a pintar-se com segurana, vivacidade e senso artstico. Um tanto amassada naquele ms de fria romntica e preguia, foi modificando-se e, em poucos minutos, outra Lu surgiu em seu lugar, novinha em folha, sada da fbrica, algo semelhante a uma boneca francesa. Tive medo de que seu doubl no me reconhecesse, eu, macilento e perplexo malarioso. E realmente, a Lu que se ergueu da banqueta, espargindo perfume, no me disse palavra, abrindo a porta

como uma sonmbula rumo plmbea tarde paulistana. Sejamos breves e explcitos. Horas depois, apenas com um boto solto na blusa, voltava com ar displicente e fazia-me sinal para uma pizza no Papai, com vinhos e bocejos, mas sem comentrio nem revolta. Eu deixava-me ficar desvalido naquele quarto miservel, espantando mosca e ouvindo o choro das crianas plebias. No tinha o que fazer nem o desejava. A minha Lu saa tarde, para o trotuar, passiva e casualmente. Voltava para levarme ao jantar ou ao 62 cinema e ainda comprava cigarros. S um cafajeste sem-vergonha aceitaria uma vida assim. Precisava reagir imediatamente, ainda naquele ano. A situao era incmoda e o pior era o silncio de Lu, que no se referia aos homens com os quais se encontrava. Eram estudantes, japoneses, corretores, pretos, gordos ou grosseiros? Nada me dizia, nada. Preferia que se queixasse e me atirasse ofensas. Eu estava sendo um Valete de Espadas, apenas mais suave e brincalho. E o mais grave, isso me aborrecia de verdade, era o minguado faturamento. Voc a moa mais linda da cidade, Lu. um desastre ganhar to pouco. A gente deve se contentar com o que vem. O que Esmeraldo faria no meu lugar? Pergunte para ele, j deve estar em liberdade. No o viu mais? No. Jura?

Imbecil cena de cime. Ah, no podia continuar espantando moscas e ouvindo o rdio do vizinho! Lembrei-me vagamente de Simone, que usava de tantos truques para se valorizar. Muitos homens, de outros meios, a supunham casada e a imaginavam exclusiva. No era a nica a usar o mesmo truque. Esta tarde vamos sair juntos. O qu? Sair juntos. Mas precisamos de dinheiro, Tumache.

(Parntesis aberto por causa desse nome prprio que surge pela primeira vez no livro. Tumache era o mesmo que too much, expresso inglesa, que Lu ouvia muito nos filmes de amor. O apelido foi inventado por ela, razo por que o aceitava: Tumache.) 63 Que idia! Vamos! Pinte-se! Quero-a como uma colegial do Caetano de Campos. Alis, Por isso mesmo irei com voc.

levar o livro de histria natural do filho da vizinha. Comece! Vou orient-la. O robozinho de carne voltou banqueta, sob as luzes do meu bom gosto. No conseguiu fazer o rosto mais belo do que era, mas lhe caram como uma luva as roupas simples das escolares e, quando segurou o volume de histria natural com nojo e incerteza,