Memórias de um sargento de milícias

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ROMANCE DE TRANSIÇÃO?“Memórias de um sargento de milícias” (Manoel Antônio de Almeida)

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Sua história tem pouca coisa de notável. Fora Leonardo algibebe em Lisboa, sua pátria; aborrecera-se porém do negócio, e viera ao Brasil. Aqui chegando, não se sabe por proteção de quem, alcançou o emprego de que o vemos empossado, e que exercia, como dissemos, desde tempos remotos. Mas viera com ele no mesmo na vio, não sei fazer o quê , uma certa Maria da hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitona. O Leonardo, fazendo-se-lhe justiça, não era nesse tempo de sua mocidade mal-apessoado, e sobretudo era maganão. Ao sair do Tejo, estando a Maria encostada à borda do navio, o Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão a ssentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu- se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disf arce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. Era isto uma declaração em forma, segundo os usos da terra: levaram o re sto do dia de namoro cerrado; ao anoitecer passou-se a mesma cena de pisade la e beliscão, com a diferença de serem desta vez um pouco mais fortes; e no dia seguinte estavam os dois amantes tão extremosos e familiares, que pareciam sê-lo de muitos anos.

O nascimento do herói

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Quando saltaram em terra começou a Maria a sentir certos enojos: foram os dois morar juntos: e daí a um mês manifestaram-se claramente os efeitos da pisadela e do beliscão; sete meses depois teve a Maria um filho, formidável menino de qua se três palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e chorão; o qual, logo depoi s que nasceu, mamou duas horas seguidas sem largar o peito. E este nascimento é certamente de tudo o que temos dito o que mais nos interessa , porque o menino de quem falamos é o herói desta história.

O nascimento do herói

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ROMANCE DE EXCEÇÃO EM NOSSO ROMANTISMO, TEM UM MALANDRO NO PAPEL DE HERÓI E COLOCA A CLASSE MÉDIA EM CENA LITERÁRIA

As “Memórias” nos dão, na verdade, um corte sincrônico da vida familiar brasileira nos meios urbanos em uma fase em que já se esboçara uma estrutura não mais propriamente colonial, mas ainda longe do quadro industrial-burguês. E, como o autor conviveu de fato com o povo, o espelhamento foi distorcido apenas pelo ângulo da comicidade. Que é, de longa data, o viés pelo qual o artista vê o típico e, sobretudo o popular. (Alfredo Bosi, História concisa da literatura brasileira, 1970)

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SOBRE O AUTOR:

MANOEL ANTÔNIO DE ALMEIDA, A VOZ DE EXCEÇÃO DE NOSSO ROMANTISMO OU MESMO O PRECUR-SOR DO REALISMO NO BRASIL (MACHA-DO DE ASSIS O TINHA COMO REFEREN-CIAL), NASCEU NO RIO DE JANEIRO EM 1831 E MORREU EM UM NAUFRÁGIO DO VAPOR HERMES, NAS IMEDIAÇÕES DE MACAÉ, EM 1861.FILHO DE PORTUGUESES DE ORIGEM HUMILDE, ESTUDOU NO RIO E, DEPOIS, TEVE PASSAGEM PELA ACADEMIA DE BELAS-ARTES, FORMANDO-SE EM MEDICINA EM 1855. TRABALHOU NO CORREIO MERCANTIL, ELABORANDO O SUPLEMENTO QUE EDITOU SOB O PSEUDÔNIMO DE “UM BRASILEIRO”. PUBLICOU-O QUANDO TINHA 22 ANOS. TRABALHOU COMO ADMINISTRADOR NA TIPOGRAFIA NACIONAL, OFICIAL DA SECRETARIA DE NEGÓCIOS DA FAZENDA E DIRETOR DA IMPERIAL ACADEMIA DE MÚSICOS E ÓPERA NACIONAL.

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NARRADOR:

Publicado em folhetim (entre 1852 e 1853) no suplemento “A Pacotilha”;

Contrasta com os romances românticos de sua época:

primeiro por ter como protagonista um anti-herói;

segundo, pelo seu caráter documental (retrata a sociedade carioca do tempo de Dom João VI);

terceiro, pelo tom de crônica que dá leveza e aproxima a fala à linguagem com que foi escrito.

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NARRADOR:

Apesar do título sugerir um narrador-personagem, Memórias... caracteriza-se por ser um narrador em terceira pessoa (ele), que conta a história sem dela participar, e na posição de observador dos acontecimentos;

O cinismo bem-humorado; sistemáticas interferências nas situações sempre divertidas que relata; ironias e brincadeiras envolvendo costumes dos personagens que relata; juízo crítico a respeito do que vai documentando, revelando-se de forma claramente debochada.

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NARRADOR:“Quanto ao moral, se os sinais físicos não falham, quemolhasse para a cara do Sr. José Manoel assinava-lhe logo umlugar distinto na família dos velhacos de quilate. E quem talfizesse não se enganava de modo algum: o homem era o queparecia ser. Se tinha alguma virtude, era a de não enganarpela cara. Entre todas as suas qualidades possuía uma queinfelizmente caracterizava naquele tempo, e talvez que aindahoje, positiva e claramente o fluminense, era a maledicência.José Manoel era uma crônica vivia, porém crônica escandalosa, não só de todos os seus conhecimentos eamigos, e das famílias destes, mas ainda dos conhecidos eamigos dos seus amigos e de suas famílias.”

Nota: a execração do personagem refere-se a certos costumes da sociedade carioca, através dos ridicularizados, e por outro lado suaviza-o pelo tom bem-humorado.

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NARRADOR:“Era a sobrinha de Dona Maria já muito desenvolvida, porém que, tendo perdido as graças de menina, ainda não tinha adquirido a beleza de moça: era alta, magra, pálida; andava com o queixo enterrado no peito, trazia as pálpebras sempre baixas, e olhava a furto; tinha os braços finos e compridos; o cabelo, cortado, dava-lhe apenas até o pescoço, e como andava mal penteada e trazia a cabeça sempre baixa, uma grande porção lhe caía sobre a testa e olhos, como uma viseira.”

Nota: observe a caracterização antirromântica da personagem Luisinha.

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NARRADOR:“Passemos por alto sobre os anos que decorreram desde o nascimento e o batizado de do nosso memorando e vamos encontrá-lo já na idade de sete anos.”

Nota: o narrador suprime etapas narrativas, ora transita da 1º (eu) para a terceira (ele) pessoa, assumindo uma cumplicidade com o leitor, cujo caráter metalinguístico o faz anunciar procedimentos modernistas.

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ENREDO

Leonardo nasceu no tempo do Rei (início do século XIX), sendo filho de “uma pisadela e um beliscão” entre um meirinho (Leonardo Pataca) e uma saloia (Maria da Hortaliça), quando vinham de um navio de Portugal para o Rio.

Desde a folia do batizado do herói, começa a rondá-lo a polícia, representada pelo major Vidigal;

Os pais se separam, devido a infidelidade de Maria, que foge amasiada com um capitão no mesmo navio em que conhecera o pai de Leonardo.

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ENREDO

O menino, após levar um pontapé de Leonardo Pataca, do qual jamais se esqueceria, é abandonado à própria sorte;

Seu padrinho e vizinho, o barbeiro, resolve criá-lo. Devota-lhe muito amor e todos os cuidados, incluindo o futuro de Leonardo, que quer ver transformado em padre;

Estuda a muito custo as primeiras letras, abandonando a escola por causa das estripulias para ser coroinha.

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ENREDO

Por uma série de desordens praticadas na igreja, o padre o exorta, e ele cresce nesse ritmo, sem se encaixar em nenhum dos projetos que o tio idealizara, o que aumenta a ojeriza que a vizinha e madrinha sente por Leonardo;

Não se interesse nem pelos estudos nem pelo trabalho, preferindo desde cedo toda sorte de malandragens, que vão caracterizar o seu comportamento ao longo do romance.

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ENREDO

Quando adulto, Luisinha torna-se a predileta de Leonardo, o seu primeiro amor. Entretanto, as intrigas e fofocas contra o rapaz provocam o casamento dela com outro homem, José Manuel, o mal-caráter e renomado caça-dotes;

Com a morte do padrinho, e o dote que este deixa com Leonardo, aquele torna a morar com o pai, que após uma segunda desilusão amorosa com uma cigana, passa a viver com Chiquinha, a filha da comadre.

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ENREDO

A comadre se torna protetora de Leonardo, mas a filha dela, sua “madrasta”, com ele se desentende, levando-o a ser expulso segunda vez da casa do pai;

Leonardo encontra o antigo companheiro das traquinagens de infância, Tomás da Sé. Mora uns tempos com a família do amigo e apaixona-se por Vidinha, mulata de vinte anos, com quem namora por algum tempo.

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ENREDO

Nessa fase é preso por vadiagem pelo major Vidigal, conseguindo fugir antes de chegar à cadeia. Arruma emprego na despesa real, para se livrar da perseguição do major, este envergonhado por tê-lo deixado fugir e com desejos de vingança;

Deixa rápido o trabalho por encrencas: tenta conquistar a mulher de um colega.

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ENREDO O major o transforma em soldado para não perdê-lo de

vista;

Ao ajudar o bicheiro Teotônio a fugir, numa batida em que deveria prendê-lo, Leonardo é preso novamente;

Devido a um pedido da comadre, uma ex-amante do major, Maria Regalada, intercede pelo rapaz, que por fim é solto e promovido ao cargo de sargento de milícias;

Ocorre então o desfecho da história, com o casamento entre Leonardo e Luisinha, que a essa altura “enviuvou” e o herói toma posse da herança que o padrinho lhe deixara, já que nela seu pai não mexera.

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ESPAÇO:Rio de Janeiro

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TEMPO: “ERA NO TEMPO DO REI...”INÍCIO DO SÉCULO XIX

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ENTRE O UNIVERSO DA ORDEM E DESORDEMo A espinha dorçal do funcionamento de nossa sociedade (segundo

Antonio Candido e Roberto Schwarz):

Na medida em que lutam pela sobrevivência, os personagens de Memórias... transitam entre o universo da ordem e desordem sem moralismos nem escrúpulos, uma vez que suas virtudes compensam seus pecados;

Além da “lei das compensações”, há a lei da “política de favor”, do qual parece nascer o famoso “jeitinho brasileiro”, “uma mão lava outra”;

Há uma amoralidade no comportamento de Leonardo, uma espécie de anti-herói que prenuncia o Macunaíma de Mário de Andrade;

A caracterização da classe média, com traços que a diferenciam das outras classes sociais, será retomada por Machado de Assis, captando, assim, uma dimensão precisa da realidade brasileira a revés do nacionalismo patriótico e ufanista.

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LINGUAGEM Linguagem despojada e precisa, estilo coloquial;

Aproximação com as conquistas só-depois feitas pela geração heroica do Modernismo (1922-1929): aproximação entre a fala e a escrita.

Combinação de ironia e espírito crítico;

Bom humor e estilo jocoso de costumes populares, incluindo a linguagem.

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LINGUAGEMDepois disto entraram todos em conferência. O major desta vez achou o pedido muito justo, em conseqüência do fim que se tinha em vista. Com a sua influência tudo alcançou; e em uma semana entregou ao Leonardo dois papéis: — um era a sua baixa de tropa de linha; outro, sua nomeação de Sargento de Milícias. Além disto recebeu o Leonardo ao mesmo tempo carta de seu pai, na qual o chamava para fazer-lhe entrega do que lhe deixara seu padrinho, que se achava religiosamente intacto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Passado o tempo indispensável do luto, o Leonardo, em uniforme de Sargento de Milícias, recebeu-se na Sé com Luizinha, assi stindo à cerimônia a família em peso. Daqui em diante aparece o reverso da medalha. Seguiu-se a morte de D. Maria, a do Leonardo-Pataca, e uma enfiada de acontecimentos tristes que pouparemos aos leitores, fazendo aqui ponto final.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, Emília; ANTÔNIO, Severino; PATROCÍNIO, Mauro Ferreira. Manuel Antônio de Almeida. In: Português: redação, gramática, literatura e interpretação de texto. São Paulo: Nova Cultural, 1999; p. 381-384.

Imagens: Cooperativa do Saber, professora Soninha.

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ROMANCE DE TRANSIÇÃO?“Memórias de um sargento de milícias” (Manoel Antônio de Almeida)