Memórias do Teatro Guarany em Pelotas · conhecimento, “sua especificidade está no próprio...

15
Memórias do Teatro Guarany em Pelotas DALILA MÜLLER * DALILA ROSA HALLAL ** RESUMO Este artigo objetiva narrar a trajetória do Teatro Guarany em Pelotas, desde a sua inauguração, em 1921, até os dias atuais, a partir das memórias dos agentes sociais contemporâneos à história do teatro, como produtores culturais, as atuais proprietárias, frequentadores do teatro e jornalistas, contextualizando as suas origens e funções ao longo do tempo. A história oral é hoje caminho interessante para se conhecer e registrar múltiplas possibilidades que se manifestam e dão sentido a formas de vida, escolhas de diferentes grupos sociais. Para este trabalho foram utilizadas entrevistas, tendo como tema condutor o Teatro Guarany de Pelotas. Também foram utilizadas outras fontes visando dialogar com as narrativas dos entrevistados. Podemos perceber a importância da história oral para a análise da trajetória do Teatro, que passou por diferentes momentos. A abertura do Teatro se deu num contexto em que Pelotas buscava novos espaços de sociabilidade. Ao longo do tempo o Teatro se modifica e vivencia momentos de descaso. Atualmente passa por um processo de revitalização a fim de retomar sua função inicial de ser um espaço de expressão cultural da memória social de Pelotas. INTRODUÇÃO Para se valorizar um patrimônio histórico, deve-se relacioná-lo à importância da memória de um homem e de uma sociedade. Neste sentido, analisa-se a história do Teatro do Guarany em Pelotas a partir da história oral. Considera-se importante essa metodologia, pois possibilita obter informações importantes sobre determinados assuntos que não são encontradas em documentos escritos. O Teatro Guarany está em funcionamento em Pelotas á 95 anos, foi construído por três empreendedores e inaugurado no ano de 1921, mantendo-se em atividades até os dias atuais, sob a administração de herdeiros. Este artigo busca narrar a trajetória do Teatro Guarany na cidade, desde a sua inauguração, em 1921, até os dias atuais, a partir das memórias dos agentes sociais contemporâneos à história do teatro, contextualizando a sua origem e funções ao longo do tempo. * Universidade Federal de Pelotas – UFPEL/ Curso de Bacharelado em Turismo. Doutora em História. ** Universidade Federal de Pelotas – UFPEL/ Curso de Bacharelado em Turismo. Doutora em História.

Transcript of Memórias do Teatro Guarany em Pelotas · conhecimento, “sua especificidade está no próprio...

Page 1: Memórias do Teatro Guarany em Pelotas · conhecimento, “sua especificidade está no próprio fato de se prestar a diversas abordagens, de se mover num terreno pluridisciplinar”.

Memórias do Teatro Guarany em Pelotas

DALILA MÜLLER*

DALILA ROSA HALLAL**

RESUMO

Este artigo objetiva narrar a trajetória do Teatro Guarany em Pelotas, desde a sua

inauguração, em 1921, até os dias atuais, a partir das memórias dos agentes sociais

contemporâneos à história do teatro, como produtores culturais, as atuais proprietárias,

frequentadores do teatro e jornalistas, contextualizando as suas origens e funções ao longo do

tempo. A história oral é hoje caminho interessante para se conhecer e registrar múltiplas

possibilidades que se manifestam e dão sentido a formas de vida, escolhas de diferentes

grupos sociais. Para este trabalho foram utilizadas entrevistas, tendo como tema condutor o

Teatro Guarany de Pelotas. Também foram utilizadas outras fontes visando dialogar com as

narrativas dos entrevistados. Podemos perceber a importância da história oral para a análise

da trajetória do Teatro, que passou por diferentes momentos. A abertura do Teatro se deu num

contexto em que Pelotas buscava novos espaços de sociabilidade. Ao longo do tempo o

Teatro se modifica e vivencia momentos de descaso. Atualmente passa por um processo de

revitalização a fim de retomar sua função inicial de ser um espaço de expressão cultural da

memória social de Pelotas.

INTRODUÇÃO

Para se valorizar um patrimônio histórico, deve-se relacioná-lo à importância da

memória de um homem e de uma sociedade. Neste sentido, analisa-se a história do Teatro do

Guarany em Pelotas a partir da história oral. Considera-se importante essa metodologia, pois

possibilita obter informações importantes sobre determinados assuntos que não são

encontradas em documentos escritos.

O Teatro Guarany está em funcionamento em Pelotas á 95 anos, foi construído por três

empreendedores e inaugurado no ano de 1921, mantendo-se em atividades até os dias atuais,

sob a administração de herdeiros.

Este artigo busca narrar a trajetória do Teatro Guarany na cidade, desde a sua

inauguração, em 1921, até os dias atuais, a partir das memórias dos agentes sociais

contemporâneos à história do teatro, contextualizando a sua origem e funções ao longo do

tempo.

* Universidade Federal de Pelotas – UFPEL/ Curso de Bacharelado em Turismo. Doutora em História. ** Universidade Federal de Pelotas – UFPEL/ Curso de Bacharelado em Turismo. Doutora em História.

Page 2: Memórias do Teatro Guarany em Pelotas · conhecimento, “sua especificidade está no próprio fato de se prestar a diversas abordagens, de se mover num terreno pluridisciplinar”.

2

Neste estudo, a memória é a principal fonte dos depoimentos orais e há ligação direta

entre o tempo e a história.

A memória apresenta um imenso papel social. Diz-nos quem somos integrando o

nosso presente no nosso passado e dando assim fundamento a todos os aspectos

daquilo a que os historiadores chamam hoje as mentalités. Para muitos grupos, isso

significa voltar a montar o puzzle: inventar um passado adequado ao presente ou,

do mesmo modo, um presente adequado ao passado. Preservamos o passado à custa

de o descontextualizar e de, em parte o esborratar. (Fentress & Wickham, 1992:

242)

A história oral é um dos meios que promovem as aproximações entre a História e a

memória. Ou, como diz Errante (2000: 146), existe uma dependência da história oral em

relação à memória. Afirma que “as histórias orais acrescentam uma dimensão não-oficial

inestimável” às investigações, justamente por viabilizarem as narrativas dos sujeitos

envolvidos. Deste modo, a história oral possibilita certo afastamento da documentação de

caráter oficial das instituições, que muitas vezes não traduzem as experiências vividas nesse

contexto.

Alberti (1989: 41) ressalta que a história oral não pertence a um campo estrito do

conhecimento, “sua especificidade está no próprio fato de se prestar a diversas abordagens, de

se mover num terreno pluridisciplinar”. Para a autora história oral é:

[...] um método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica,...) que privilegia

a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam

acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do

objeto de estudo. Trata-se de estudar acontecimentos históricos, instituições, grupos

sociais, categorias profissionais, movimentos, etc. (ALBERTI, 1989: 52.).

No presente estudo a história oral será entendida como uma metodologia de pesquisa

que consiste em realizar entrevistas induzidas, estimuladas e gravadas, com pessoas que

podem testemunhar sobre acontecimentos, conjunturas, instituições, modo de vida ou outros

aspectos da história contemporânea.

[...] o trabalho com a História oral pode mostrar como a constituição da memória é

objeto de contínua negociação. A memória é essencial a um grupo porque está

atrelada a construção de sua identidade. Ela [a memória] é resultado de um

trabalho de organização e de seleção do que é importante para o sentimento de

unidade, de continuidade e de coerência - isto é, de identidade. É porque a memória

é mutante, é possível falar de uma história das memórias de pessoas ou grupos,

passível de ser estudada por meio de entrevistas de História oral. As disputas em

torno das memórias que prevalecerão em um grupo, em uma comunidade, ou até em

uma nação, são importantes para se compreender esse mesmo grupo, ou a

sociedade como um todo. (ALBERTI, 2005: 167).

Page 3: Memórias do Teatro Guarany em Pelotas · conhecimento, “sua especificidade está no próprio fato de se prestar a diversas abordagens, de se mover num terreno pluridisciplinar”.

3

Ao recorrer à história oral, é preciso entendê-la numa perspectiva que vai além de um

relato de fatos: é uma maneira de se chegar ao conhecimento de fatos vivenciados num dado

momento histórico, em que somente documentos escritos não poderiam revelar, por si só,

todos os sentidos circulantes num determinado meio social. Neste sentido, Chartier (2002: 84)

se refere ao relato como uma singularização da história, pelo fato de manter uma relação

específica com a verdade, pois as construções narrativas pretendem ser “[...] a reconstituição

de um passado que existiu”.

As fontes orais utilizadas no artigo fazem parte do projeto de pesquisa “Teatro

Guarany: histórias e memórias”, desenvolvido pelo Curso de Bacharelado em Turismo da

Universidade Federal de Pelotas, sob nossa coordenação. As entrevistas foram temáticas,

referindo-se às experiências ou processos específicos vivenciados ou testemunhados pelos

entrevistados em relação ao Teatro Guarany, focalizando suas histórias e vivências.

Foram utilizadas, para este trabalho, quatro entrevistas: o relato de um produtor

cultural; de uma das atuais proprietárias; de um jornalista; e de um frequentador do teatro. Os

depoimentos foram gravados e posteriormente transcritos com fidelidade, sem cortes nem

acréscimos.

As entrevistas de história oral são tomadas como fontes para a compreensão do

passado, ao lado de documentos escritos, imagens e outros tipos de registro. Caracterizam-se

por serem produzidas a partir de um estímulo, pois o pesquisador procura o entrevistado e lhe

faz perguntas, geralmente depois de consumado o fato ou a conjuntura que se quer investigar,

lhe dá o direito para relatar os fatos de acordo com o que está registrado na memória.

Além das narrativas, foram utilizadas outras fontes visando dialogar com as memórias

dos entrevistados. Entre elas, destaca-se a fonte jornalística, a qual foi coletada na hemeroteca

da Biblioteca Pública Pelotense, sendo os jornais pesquisados por alunos participantes do

projeto de pesquisa citado acima. Os jornais pesquisados foram o Diário Popular, Opinião

Pública, Ilustração Pelotense, entre outros.

Em especial destaca-se a riqueza dos procedimentos oferecidos por meio da história

oral e da análise das fontes jornalísticas para se entender a dinâmica do Teatro Guarany no

decorrer dos seus 95 anos, pois possibilitam obter informações importantes sobre o mesmo.

Page 4: Memórias do Teatro Guarany em Pelotas · conhecimento, “sua especificidade está no próprio fato de se prestar a diversas abordagens, de se mover num terreno pluridisciplinar”.

4

O TEATRO GUARANY EM PELOTAS

A partir das narrativas dos entrevistados e das fontes jornalísticas é possível traçar a

história do Teatro Guarany em Pelotas, cuja trajetória envolve vários momentos. O auge do

Teatro se dá nos primeiros anos de seu funcionamento, quando as peças de teatro eram mais

frequentes e o cinema estava na moda. As décadas de 1980 e 90 retratam o período de

decadência do Teatro Guarany, com o declínio e o fim das sessões cinematográficas,

importantes nas décadas anteriores, e o uso do Teatro, basicamente, para bailes de carnaval e

formaturas. A partir do final dos anos 2000 o Teatro passa por um processo de revitalização,

tanto estrutural como funcional, com reformas e a utilização de seu espaço para atividades

artísticas e culturais. Esses momentos serão narrados pelos nossos entrevistados.

A riqueza que circulava na cidade de Pelotas, em função de ser o centro industrial e

charqueador mais importante da Província, no final do século XIX e início do século XX,

proporcionou uma vida social e cultural intensa e os costumes, os comportamentos, o lazer, as

artes, e as atividades intelectuais – de um modo geral – foram inspirados principalmente na

Corte (Rio de Janeiro) e nos países da Europa. Neste contexto, a construção do Teatro

Guarany foi um importante acontecimento para Pelotas, servindo como espaço de encontro,

lugar de ver e ser visto da sociedade pelotense.

As elites de Pelotas eram oriundas de famílias rudes assim, gente do campo né,

agricultores, criadores de gado, charqueadores. Era gente rude, tosca, mas que

ganhou dinheiro, né e quis melhorar de padrão de vida, né refinar os costumes né. E

não por acaso muitos dos filhos dessas famílias foram mandadas pra estudar no

Rio, em São Paulo, na Bahia, nas primeiras faculdades brasileiras né ou então pra

Paris, ou pra Coimbra né estudar lá direito ou medicina né. E a sorte de Pelotas

que alguns deles voltaram pra cá né e vieram certamente com uma bagagem muito

grande de civilização daquilo que acontecia lá nos grandes centros e quiseram que

a cidade também tivesse aqueles, aqueles avanços [...], até por isso que Pelotas é

pioneira em infraestrutura urbana né, em saneamento, iluminação, saúde, educação

[...] E acho que isso é que diferencia muito Pelotas de muitas cidades do Brasil né e

fez até com que uma certa época a vida aqui cultural aqui fosse mais forte que na

própria capital do estado né. (Relato do jornalista)

No início da década de 1920, a partir da sociedade entre Rosauro Zambrano, Francisco

Santos e Francisco Xavier foi construído e inaugurado o Teatro Guarany. Segundo Caldas,

Santos e Santos (1996) a cidade precisava de um grande e confortável cinema. Foi a partir

dessa necessidade, que Francisco Santos e Xavier associam-se a Rosauro Zambrano,

fundando a empresa “Santos, Xavier & Cia.”, que posteriormente passou a chamar-se

Page 5: Memórias do Teatro Guarany em Pelotas · conhecimento, “sua especificidade está no próprio fato de se prestar a diversas abordagens, de se mover num terreno pluridisciplinar”.

5

“Zambrano, Xavier & Santos”, para construção “desse amplo e modernoso teatro”. O projeto,

orçado em 400 (quatrocentos) contos de réis foi denominado Teatro Guarany. (CALDAS,

SANTOS e SANTOS, 1996, p. 97). Um entrevistado narra o contexto cultural da época:

[...] a década de vinte foi uma década de grandes construções. Pelotas era pujante.

Pelotas era a capital econômica do Estado e cultural do Estado. Então a cidade

convivia com companhias que vinham pra Buenos Aires, Montevidéu. Pelotas era

um roteiro obrigatório, que dizer, assim como tu tinha aquele circuito da Amazônia

né, Manaus, Belém e tal, tinha do Rio de Janeiro e aqui vinculado as duas capitais

da Argentina [e do Uruguai] aqui do Prata. (Relato do frequentador do Teatro)

As motivações responsáveis pela construção do teatro ainda são conflituosas, no

entanto existe uma história que é comumente reproduzida na cidade e pela família Zambrano.

Conta-se que Rosauro Zambrano tinha um camarote cativo no Teatro Sete de Abril e que, por

engano, este havia sido vendido. Ao chegar ao Teatro e constatar o erro, o empresário teria

pedido providências que não foram atendidas. Então, Rosauro teria afirmado que nunca mais

colocaria os pés no Teatro Sete de Abril e que construiria um teatro maior, mais bonito e

confortável (Relato da proprietária). Conforme Caldas, Santos e Santos (1996), a história

contada é mais uma mistificação a respeito da fundação do Guarany. Segundo os

historiadores, a situação relatada pode ter acontecido, mas não possui relação com a

construção do Teatro. Na opinião de Caldas, Santos e Santos (1996), a narrativa envolvendo o

Teatro Sete de Abril e o Sr. Rosauro Zambrano teria sido criada muitas décadas depois da

inauguração do Guarany, quando Santos e Xavier já haviam falecido.

Caldas, Santos e Santos (1996) afirmam que a iniciativa de construir um cineteatro

partiu da parceria Santos-Xavier, de modo que Rosauro Zambrano teria participado somente

depois, como o principal financista do empreendimento. Um entrevistado também narra essa

versão da história:

Ele [Francisco Santos] perdeu o aluguel pro teatro Sete de Abril, e perdeu pra uma

concorrência pública, pra um outro empresário, ele ia ficar sem o Sete de Abril por

cinco anos [...] Ai o Francisco idealiza a construção do Guarany né. Traz um sócio

especialista em teatro, o nordestino chamado Francisco Xavier e convida o

capitalista, pra sócio, que era o Rosauro Zambrano que não era homem desse meio,

mas gostou e entrou na sociedade como capitalista. Acabou depois adquirindo a

sociedade ficando de único dono, mas essa é uma outra história. (Relato do

frequentador do Teatro)

Na noite de 30 de abril de 1921, inaugurou-se com toda a pompa o Guarany. A Companhia

Lyrica Italiana Marranti estreou com a ópera O Guarani, de Carlos Gomes. Assim como destacavam

os jornais:

Page 6: Memórias do Teatro Guarany em Pelotas · conhecimento, “sua especificidade está no próprio fato de se prestar a diversas abordagens, de se mover num terreno pluridisciplinar”.

6

Foi uma noitada magnífica e surpreendente a da inauguração do Teatro Guarany.

A beleza interior do majestoso recinto, iluminado feéricamente, num verdadeiro

esbanjamento de luz, empolgou de logo a vultuosa assistência. Não obstante a

amplitude da casa, talvez demasiada para nossa terra, ela se viu literalmente cheia,

da platéia ao paraíso [...]. (Ilustração Pelotense, 15.05.1921, p. 16)

A notícia do jornal destaca que, na inauguração, o Teatro Guarany estava cheio, desde

a plateia até as “gerais”, demonstrando a importância do Teatro para os pelotenses. O preço

diferenciado do espetáculo – 12$ a poltrona até 2$500 a geral (A OPINIÃO PÚBLICA,

30.04.1921, p. 2) – propiciava a participação de diferentes públicos.

O Teatro possuía 1088 lugares na plateia, dividida em duas classes, possuía também

camarotes de palco e de primeira e segunda ordem e as “gerais” também conhecidas como

“poleiro” ou “paraíso”, com capacidade para 1200 pessoas (A OPINIÃO PÚBLICA,

14.05.1920, p. 3).

[...] o paraíso, que é uma parte que tem umas arquibancadas acima da segunda

ordem de camarotes, que é novecentos lugares que era usado primeiro, inicialmente

ela foi criada pras pessoas que não tinham casaca, pros pobres da época poderem

assistir e depois os negros também podiam subir pra lá. (Relato do produtor

cultural)

Segundo Tavares, Michelon e Rotman (2008, p. 2) o Guarany conseguiu reunir um

público diverso quanto à classe social, “visto que o mesmo aboliu o uso da casaca o que até

então era obrigatório no Teatro Sete de Abril, promoveu espetáculos populares e manteve a

sofisticação e elegância por meio da monumentalidade da construção e decoração.”

Os entrevistados também relatam que o Teatro Guarany proporcionava a entrada de

um público diversificado, dos mais abastados da cidade até os mais pobres e inclusive os

negros. Segundo o entrevistado:

[...] era um teatro popular, o cinema popular e a oferta era de vender os ingressos

em carnês em doze em doze prestações, então o cidadão podia adquirir e pagar o

carnê. O Guarany oferecia isso. Nós encontramos um relato nos jornais com

facilidade por que realmente ele era um teatro popular. A sua geral com capacidade

pra mil lugares ele podia fazer essa diferenciação. Camarotes, geral diferenciando

preço. Ele podia fazer isso, quer dizer que no mesmo ambiente ele podia convidar a

fechada sociedade de Pelotas e também os trabalhadores e o povo que na época

chamavam de ralé. (Relato do frequentador do teatro)

A empresa “Zambrano, Xavier & Santos” não se mantém por muito tempo,

“imediatamente após a inauguração ele [Francisco Santos] se desentende com o Zambrano e

oferece a sua cota e vende, sai da sociedade não é. [...] ele manda construir o teatro Avenida e

o cine Capitólio” (Relato do frequentador do Teatro).

Page 7: Memórias do Teatro Guarany em Pelotas · conhecimento, “sua especificidade está no próprio fato de se prestar a diversas abordagens, de se mover num terreno pluridisciplinar”.

7

No mês seguinte, após sua inauguração, em maio de 1921, iniciaram-se as sessões

cinematográficas, conforme as reportagens:

Estando quasi a encerrar-se a temporada lyrica da companhia Marranti, a empreza

do Theatro Guarany resolveu inaugurar, a seguir, as suas sessões cinematographicas.

A primeira remessa de fitas está a chegar, constando as mesmas de finos lavores da

arte muda. A assignatura mensal foi novamente aberta, respeitando a empreza as

assignaturas já tomadas (A OPINIÃO PÚBLICA, 07.05.1921, p. 2)

As exibições cinematográficas ocorreram de maio de 1921 a 24 de outubro de 1996.

Em sua primeira sessão cinematográfica, o Teatro reuniu extraordinária concorrência.

Segundo Ribas (1963, p. 7), “jamais havia sido registrada tamanha afluência nos nossos

cinemas como ocorreu na noite em que o ‘cine Guarany’ foi entregue ao público.”.

Inicialmente o cinema era uma importante fonte de renda para os proprietários, como

relata o entrevistado, porém, os anos 90 do século XX, viveram o fim dos grandes cinemas em

Pelotas:

O cinema foi uma coisa explosiva assim né, era algo que dava muito dinheiro, mas

muito dinheiro mesmo né. [...] o cinema era um mercado assim em grande

ascensão, altamente rentável né, então era negócio ter um grande cinema em

Pelotas, né, com grande qualidade, né, de conforto [...] (Relato do jornalista)

Segundo Caldas e Santos (1994), o “Cine Teatro Guarany” alinhou-se à ideia de

inovação tecnológica. Havia uma preocupação constante em manter-se atualizado em relação

aos equipamentos e processos de exibição. Foi uma das primeiras salas a investir no cinema

sonoro. Segundo Ribas (1963), o Guarany não teve a primazia sobre o cinema sonoro, mas se

destacou em relação aos concorrentes por ter apresentado os melhores filmes falados da

época. Outro investimento do Cine Teatro foi o cinema em 3-D (terceira dimensão). A estreia

aconteceu no dia 20 de setembro de 1954 com o filme Museu de Cera (DIÁRIO POPULAR,

20.09.1954, p. 3).

Em 1977 os administradores investiram novamente em tecnologia: o Som

Sensurround, que era um sistema especial de efeitos sonoros criado, nos anos de 1970, pela

Universal Studios, procurava-se intensificar as sensações e impressões vivenciadas durante a

sessão cinematográfica como uma forma de se diferenciar da televisão e tornar o cinema mais

atrativo do que a simples experiência de assistir a um filme em casa. A aparelhagem do Som

Sensurround era emprestada pela distribuidora e estava associado à exibição de somente

alguns filmes como o Terremoto, no caso do Guarany (CALDAS E SANTOS, 1994). O

jornalista entrevistado relata a emoção de assistir o filme com essa tecnologia:

Page 8: Memórias do Teatro Guarany em Pelotas · conhecimento, “sua especificidade está no próprio fato de se prestar a diversas abordagens, de se mover num terreno pluridisciplinar”.

8

[...] quando foi lançado o filme Terremoto né, foi um dos maiores filmes do gênero,

filme desastre né, então o Terremoto ele foi gravado né, o áudio do filme no sistema

sensurround né e pra ser exibido então é a distribuidora do filme né, ela trazia todo

um sistema de som, caixas de som enormes assim, torres que ficavam ao fundo né

do teatro, e nas laterais e algumas entre a platéia né, então era um som

esteriofônico né com altos efeitos assim. É, era como se tu tivesse, a cadeira tremia.

Todo o cinema tremia, tu sentia tremer e era ensurdecedor assim o som. Tu tava

num terremoto né ao vivo ali, sentindo né. Foi fantástico isso, esse, esse,

lançamento desse efeito aqui. E depois o mesmo teve mais um filme também que foi,

e bom, foi uma das maiores bilheterias de todos os tempo do Guarany foi o

Terremoto né e depois teve outro filme famoso com o mesmo efeito que foi Tora!

Tora! Tora!, que era um filme sobre o ataque japonês a Pearl Harbor [...] e aí era o

mesmo efeito né com os bombardeios lá de Pearl Harbor né, era fantástico. Tu

chegava a te agachar na cadeira assim que era facinante né. Tu arrepiava, tremia.

O efeito era fantástico né. (Relato do jornalista)

A partir dos relatos, é possível dizer que o cinema foi uma importante atividade

cultural no Teatro Guarany e na cidade de Pelotas, atraindo um grande público até a década de

1980.

[...] a atividade de cinema, eu acho que por aproximadamente cinquenta anos, meio

século, ela foi a principal atividade do Guarany, era Cine Teatro Guarany, eu me

lembro da placa. Cine Teatro Guarany. (Relato do frequentador do Teatro)

[na] década de 60 nós vínhamos ao cinema. O Guarany era cinema. O cinema

dominava tudo. O cinema matou o teatro. O cinema, a poderosa indústria

cinematográfica acabou com os teatros especialmente na nossa cidade. [...] o

cinema era a grande atração cultural da cidade [...] Atividades teatrais muito

poucas naquela, naquela década. Predominava as atividades do cinema e

avassaladoras. O cinema tinha sessões às quatorze, às dezesseis, às dezoito, às

vinte, vinte duas e às vezes a meia noite. (Relato do frequentador do Teatro)

Acompanhando a tendência nacional, o cinema do Teatro Guarany fechou, no dia 24

de outubro de 1996, assim como outras salas que funcionavam em Pelotas, também fecharam

na mesma época. Sobre o fechamento, o Diário Popular trouxe:

ÚLTIMA SESSÃO DE CINEMA NO THEATRO GUARANY – Cine Guarany, um dos

mais tradicionais cinemas do Estado, encerra amanha suas atividades como sala de

cinema, permanecendo apenas como casa de eventos culturais. Inaugurada em

1921, o prédio não será colocado a venda, segundo anúncio da proprietária. A

baixa frequência de público foi a causa do fechamento do cinema. (DIÁRIO

POPULAR, 23.10.1996, CAPA)

A última sessão de cinema no Guarany foi “com sala vazia” (DIÁRIO POPULAR,

25.10.1996, CAPA), o que já vinha acontecendo nas últimas sessões, como destaca o relato a

seguir: “[...] nos anos noventa né que aí as sessões de cinema já não tinham o mesmo apelo né

e aí ele foi esvaziando por desinteresse né” (Relato do jornalista).

A proprietária relata que fechar o cinema foi a decisão mais acertada para a época:

Page 9: Memórias do Teatro Guarany em Pelotas · conhecimento, “sua especificidade está no próprio fato de se prestar a diversas abordagens, de se mover num terreno pluridisciplinar”.

9

[...] até noventa e seis eu levei o cinema, quando chegou em noventa e seis eu disse:

“Não dá mais”. Falei com minha mãe e com minha tia. Olha ou nós fechamos

agora o cinema ou vai ser muito difícil fechar depois, porque fechar, pagar todos os

funcionários, acertar todas as contas e tem que ser agora, vender aparelhagem e

terminar com o cinema. Elas concordaram e nós fechamos por que tava dando

muito prejuízo. (Relato da proprietária)

O Teatro Guarany também foi palco de bailes carnavalescos, desde a década de 1960

até a década de 1990:

Então o Guarany passa por essa atividade essencialmente cultural [o cinema], mas

ele também tem sua atividade de apelação quando desmonta praticamente o seu

interior pra fazer uma pista, pra explorar um baile de carnaval. Popular, por que o

baile não era por convite nem pra sócio. Qualquer cidadão, qualquer pessoa podia

chegar ali no guichê, comprar um ingresso e entrar. (Relato do frequentador do

Teatro)

Os jornais noticiavam, com grande ênfase, os bailes públicos de carnaval no Teatro:

BAILE PÚBLICO Espera-se também grande afluência ao tradicional baile público

do Teatro Guarani. Há inclusive, uma circunstância a ressaltar: será este o último

ano, pois posteriormente haverá reformas gerais. (DIÁRIO POPULAR, 08.02.1970,

p. 8)

Além de públicos, o Teatro alugava o espaço para bailes específicos de clubes, como

por exemplo, os bailes dos principais clubes esportivos da cidade – baile Vermelho e Preto do

Esporte Clube Brasil e o baile Azul e Amarelo do Esporte Clube Pelotas:

[...] foi lançado durante coquetel na Free Way, o Baile Vermelho e Preto, este ano

em sua sexta edição sob a liderança do empresário Paulo Musse. O vermelho e

Preto acontece dia 22, quinta-feira no Teatro Guarany, constituindo-se no grande

grito de Carnaval, como já se tornou tradição em Pelotas. (DIÁRIO POPULAR,

16.02.1990, p. 20)

Os entrevistados relembram dos bailes que participavam no Teatro Guarany:

[...] mas quando chegava na época do carnaval Pelotas tinha dois bailes públicos

muito famosos que era o baile de carnaval no teatro Sete de Abril que era digamos

assim, mais popular e o baile de carnaval no Guarany. Eles construíram ali por

cima das cadeiras, eles construíram um tablado. O tablado ficava na altura dos

camarotes e virava uma pista de baile. [...] Sessenta, setenta. Esses bailes vieram

até a década de oitenta. Eu lembro dos bailes que o Brasil promovia aqui. [...]

década de oitenta e até noventa. [...] o baile do Guarany era uma aventura pra todo

mundo. Moças que pulavam a janela fugiam e iam pro baile do Guarany. E ninguém

sabia, porque iam mascaradas. [...] O baile era um acontecimento. Muito mais

importante que os bailes do Comercial, do Brilhante, do Diamantinos. Muito mais

importante. [...] Aqui que era o baile verdadeiro, [...] (Relato do frequentador do

Teatro)

Na década de 1970 o Teatro sofreu algumas reformas que foram amplamente

noticiadas pelos jornais e são relatadas pela proprietária:

Page 10: Memórias do Teatro Guarany em Pelotas · conhecimento, “sua especificidade está no próprio fato de se prestar a diversas abordagens, de se mover num terreno pluridisciplinar”.

10

O que aconteceu: o pai e o tio tinham que reformar o teatro. Tinham que reformar o

telhado, o teto. [...] o teto era todo pintado. Era muito bonito eu me lembro do teto

com os desenhos, todo teto, alias todo o teatro, todas as paredes eram pintadas e

naquela época o pai e o tio procuraram pra fazer a reforma do telhado. Não sei te

dizer quem eles contataram, mas o orçamento era tão monumental que eles, me

lembro do pai chegar em casa dizer assim: “Bom eu pra fazer a reforma do telhado

vou ter que que vender o teatro”, de tão caro que era. [...] Aí o que eles resolveram:

contratar o Adail Bento Costa, que eu acho muito feio particularmente esse telhado,

esse forro que desceram, mas foi o que eles acharam na época. [...] era uma época

que tudo que era antigo era fora de moda. [...] tinha que ser algo moderno. [...]

Vamos pintar as paredes e tapar as pinturas e modernizar, então eu me lembro do

pai dizer, contar assim, que tiveram que dar sete demãos de tinta mãos pra tapar as

pinturas por que eram pinturas feitas com aquela casca de ovo, eram tá, e não

tapava e que hoje tá sendo recuperado né. (Relato da proprietária)

Com o rebaixamento do forro, vários aspectos do Teatro se modificaram. O desenho

no forro, que “tinha também paisagens, paisagens. Eram basicamente paisagens de partes de

óperas também né.” (Proprietária), ficou escondido, da mesma forma que a intervenção

escondeu “aquele lustre maravilhoso. Tu não podes imaginar o que é aquele lustre solto

naquele imenso espaço. Aquele lustre é belíssimo.” (Frequentador). Outra consequência do

rebaixamento foi a perda do “paraíso” (Jornalista).

Os entrevistados consideram que esta reforma resolveu os problemas que existiam no

telhado, mas prejudicou os frequentadores, que não podiam mais dispor do “paraíso” e os

aspectos estéticos do Teatro.

Mas foi ele [Adail Bento Costa] que fez a intervenção ali e no meu modo de ver ele

prejudicou a obra de arte que existe rebaixando aquele teto e escondendo [...] Era

moderno usar aquele material, eu acho que alcatex, estilopor não sei o que que é

mas, era simplesmente um momento de intervenção de demolição que aconteceu no

Brasil. Imediatamente após a inauguração de Brasília parece que tudo envelheceu

neste país e aí as pessoas foram pintando por cima da escaiola, porque surgiu a

tinta plástica. Aí surgiram os materiais leves, modernos. “Ah vamos rebaixar isso

aqui fazer um forro bonito”. Todo mundo achou bonito não é, achou maravilhoso,

mas houve uma intervenção que eu entendo como reversível. (Relato do

frequentador do Teatro)

Em oito de abril de 1970, o Teatro foi reinaugurado, com o filme O Calhambeque Mágico, o

que foi destacado pela imprensa da cidade:

Pelotas vai receber hoje um novo Teatro Guarany. A tradicional casa de

espetáculos, que há mais de meio século orgulha a cidade recebeu nova roupagem e

será entregue ao público da Zona Sul. Com novas cores. Decoração de grande

efeito: Adail Bento Costa é o responsável. A beleza clássica e o conforto moderno

estão lado a lado. [...] VEJA O QUE O GUARANY TERÁ DE INOVAÇÕES [...] foi

feita a cobertura total do fôrro com ‘Eucatex’. Externa e internamente foi pintado:

‘hall’ de entrada, sala de espera, sala de projeção, camarotes e galeria. E mais:

novo cortinado para as aberturas da sala de projeções, cortina para a ‘boca de

cena’ e bambinela e em todas as entradas para a sala de espetáculos. A ‘toallete’

Page 11: Memórias do Teatro Guarany em Pelotas · conhecimento, “sua especificidade está no próprio fato de se prestar a diversas abordagens, de se mover num terreno pluridisciplinar”.

11

para senhoras foi completamente remodelada, o mesmo aconteceu com o sanitário

masculino. E no complemento de tudo isso, funcionários solícitos impecavelmente

uniformizados, tapetes, passadeiras, ‘bomboniére’ e um espetacular sistema de som.

[...] (DIÁRIO POPULAR, 08.04.1970, p. 4)

Além de teatro, cinema e espaço para os bailes de carnaval, o Teatro Guarany foi

utilizado para cerimônias solenes de formaturas. A proprietária relata que “já tinha o curso de

Medicina e de Odonto, faziam formaturas aqui, mas só. Eu que depois que fechei [o cinema]

me dediquei a puxar as formaturas pra cá e hoje nós temos bastante” (Proprietária).

Porém, os bailes de carnaval, juntamente com as formaturas, shows, entre outras

atividades, contribuíram para destruir o Guarany, estragando cadeiras, banheiros, entre outros

aspectos do Teatro. Os entrevistados, principalmente a proprietária, que assumiu a

administração do teatro em 1992 (Relato da proprietária), relatam que essas atividades

prejudicavam e maltratavam muito o Teatro.

E os bailes de carnaval né, que eu também dei por encerrado por que acho que

maltratava muito o teatro. [...] eu fiz uns três anos também de baile de carnaval,

assisti e vi e fiz as contas não vale a pena. É muito mais prejudicial, prejudicial pro

teatro. [...] Pro Vermelho e Preto e pro Azul e Amarelo basicamente. Eles, os dois,

faziam dois ou três bailes cada um e aí quando deu, eu disse: Não. E deu. Ou eu vou

tentar preservar, manter o teatro ou [...]. Porque cada dia que tinha um baile, no

dia seguinte eu já nem chamava no dia seguinte já vinha o bombeiro pra arrumar

por que eles tiravam encanamento, eles tiravam caixa d’água, essas coisas. Era

tudo destruído. Era um horror, era um horror, tanto feminino quanto masculino. Eu

disse: Não! Deu! (Relato da proprietária)

[...] tem que se sujeitar a fazer atividade onde as pessoas estão eufóricas porque

estão formando seus filhos, e aí ele está a mais das vezes aí ele danifica uma

poltrona e se tiver que queimar e acender o cigarro ele faz, se botar o pé e queimar

e ligar uma sirene uma buzina, ou fazer coisa, quer dizer, o pobre do Guarany

passa por isso na última década. Ele se transformou num auditório. (Relato do

frequentador)

[...] aconteceu o Galpão Crioulo, também foi na época do pai, num domingo de

manhã aqui que foi gravado e que o pessoal, era um horror de gente, que queria

entrar e não tinha espaço. Também estragaram bastante. Três situações e a terceira

foi um baile de carnaval já comigo. Foi um dos motivos por que eu fechei por que

eu botava no contrato um número xis de pessoas que podiam entrar e eles botaram

quase sete mil pessoas aqui dentro. (Relato da proprietária)

E o Guarany teve shows também da FERART né, teve, por exemplo, o Gilberto Gil,

tava lançando o disco dele “Refazenda” que foi um marco assim na volta dele do

exílio, de que ele tinha sido exilado em Londres. É, teve também o show da Rita Lee,

Ovelha Negra. Foi a coisa mais louca que eu vi pra minha idade. Eu fiquei

imaginando, mas quem é que inventou de botar um show de rock dentro do

Guarany, por que as pessoas ninguém parava sentado. E era todo mundo de pé e

outros em cima das cadeiras, tanto que quando terminou o show era não sei

quantas dezenas de cadeira quebrada. (Relato do jornalista)

Page 12: Memórias do Teatro Guarany em Pelotas · conhecimento, “sua especificidade está no próprio fato de se prestar a diversas abordagens, de se mover num terreno pluridisciplinar”.

12

A memória referente ao teatro, primeiro dos bastidores que era péssimo. É horrível,

por exemplo, os camarins na época que, por exemplo, a gente se apresentava com o

Tholl tínhamos que ir um dia antes pra limpar por que era muito sujo tudo muito

sucateado. (Relato do produtor cultural)

Após esse período de descaso e estragos no teatro, em 2009, com a chegada de outra

herdeira, o Teatro passa por um processo de revitalização. Um entrevistado (Frequentador do

Teatro) relata que as proprietárias deram uma retomada, “[...] colocando o teatro no seu

caminho quase que essencialmente cultural. Agora o Guarany tem tido atividade cultural,

cultural, então mudou muito. [...]”.

Os entrevistados ressaltam que atualmente o Teatro Guarany retomou suas atividades

culturais, bem como abriu para novos públicos.

[...] o teatro um ano e meio atrás ele era praticamente uma casa de formatura, um

lugar de formatura e tinha alguns shows [...] Agora se conseguiu abrir o teatro pra

uma outra faixa do público que não frequentava. E isso eu vejo isso muito bom

assim. Começamos a brincar com a história do cinema, do teatro de novo, então se

fez representação de cinema. Atividades no foyer do teatro que não tinha. Agora vai

ter lançamento de livro, Baú da Francisca que foi todo o comércio lá dentro

vendendo lá dentro, exposição de grafitagem, shows locais acontecendo lá dentro

por que era um arrisco um lugar de mil e trezentos lugares. [...], mas tem muito

ainda que melhorar principalmente a parte estrutural. (Relato do produtor cultural)

[...] [es]tou contente assim, eu vejo muito bem assim. Acho que foi uma felicidade

pra Pelotas, pro Guarany, pra história cultural de Pelotas [...], essa grande luta né

de administrar o Guarany e viabilizar a existência dele né. [...] em muitos outros

casos a gente viu que grandes patrimônios assim históricos, arquitetônicos,

culturais né foram perdidos até por que ninguém da família tinha interesse em

sustentar uma luta pra defender, pra manter aquilo né, então eu to muito contente

de ver tudo que tem acontecido no Guarany [...] o Guarany é o pulmão de Pelotas, é

um pulmão de cultura, não se pode pensar vai fechar o Guarany, [...] (Relato do

jornalista)

Com esse novo processo de revitalização se começou abrir espaço para outro tipo

de atividade. [...] começou um público mais alternativo a frequentar, justamente por

estas outras possibilidades se abriu, por essa coisa de ter se aberto por cinema, de

ter se aberto pra produções locais, tentando fazer de tudo [...] agora nós tivemos

um uma série de apresentações: Leandro Maia, Pimenta Buena. O Moviola com

lançamento do documentário que foi um, foi um marco né. (Relato do produtor

cultural)

Porém, uma das dificuldades é em relação à manutenção e restauro do Teatro. O

Teatro Guarany é um prédio inventariado, que é a primeira forma para o reconhecimento da

importância dos bens culturais e ambientais, por meio do registro de suas características

principais.

Os entrevistados destacam o custo de se recuperar o Teatro:

Page 13: Memórias do Teatro Guarany em Pelotas · conhecimento, “sua especificidade está no próprio fato de se prestar a diversas abordagens, de se mover num terreno pluridisciplinar”.

13

[Na reforma de 1970] eles ficaram fechados uns seis, oito meses pra fazer esse

rebaixamento tudo e hoje dentro do possível a gente vai recuperando paredes e

tentando fazer alguma coisa dentro disso né, mas acho, não digo impossível, mas

recuperar tudo [é] quase impossível, porque fora o tempo que teria de ficar fechado

é muito dinheiro né pra recuperar. (Relato da proprietária)

Então é complicado, o prédio monumental, um prédio grande, tudo aqui é mega.

Quando tu abre a porta do Guarany e acende a luz tu consome muita coisa, tudo é

grande, então acredito que a família vem fazendo um esforço muito grande pra

manter o prédio, então essa atividade cultural parece que foi retomada agora. Hoje

tu vai ter que substituir toda rede elétrica, vai ter que ver a questão da rede de

lógica, vai ter que ver um projeto de prevenção contra incêndio, vai ter que revisar

alguma coisa da madeira né, que já o cupim deve de tá atacando também. A questão

das poltronas, a questão da iluminação cênica. Não tem um projeto de iluminação

cênica prum prédio enorme como esse, nossa é uma coisa louca. (Relato do

frequentador)

Apesar das dificuldades, várias ações já foram tomadas pelas proprietárias com o

objetivo de revitalizar o espaço do Teatro Guarany, destaca-se as seguintes: em 2009 a

Universidade Federal de Pelotas começou a trabalhar para identificar como era o teatro na

época de sua fundação. Foram feitos pequenos "descasques" da tintura atual para ver como

havia sido pintado. Esse mapeamento foi realizado com o objetivo de verificar a possibilidade

de um restauro (ZERO HORA, 29.04.2013, on line); em 2013 foi realizada a reforma de 12

camarins. Após a inauguração das reformas, o Teatro foi aberto para visitas guiadas gratuitas,

abertas para o público em geral, que mostraram o teatro e as obras concluídas (ZERO HORA,

29.04.2013, on line).

Porém, diante do tamanho do Teatro, um entrevistado considera que:

E hoje fazer uma intervenção no teatro Guarany não é obra pra iniciativa privada.

Que dizer, ou tu consegue aprovar um projeto e buscar recurso nas leis de incentivo

à cultura, ou então eu não sei o que vai acontecer. A família [...] tem que ter como

meta aprovar um projeto e conseguir recursos públicos pra investir na coisa

privada. (Relato do frequentador)

Para finalizar, destaca-se que a sociedade pelotense vem apoiando as ações de

revitalização que estão ocorrendo no Teatro. Um entrevistado relata que:

Então, criou também em cima desse projeto de revitalização uma moda ir ao teatro.

Então “ah tem qualquer coisa no teatro Guarany, temos que ir prestigiar por que

ele está sendo revitalizado e temos que fazer parte disso de alguma forma.” [...] tem

essa coisa de Pelotas adorar prédio histórico então eles [a população] se sentem

meio donos do teatro. (Relato do produtor cultural)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Page 14: Memórias do Teatro Guarany em Pelotas · conhecimento, “sua especificidade está no próprio fato de se prestar a diversas abordagens, de se mover num terreno pluridisciplinar”.

14

O Teatro Guarany faz parte da história da cidade de Pelotas, sendo um espaço de

marcantes acontecimentos sociais e culturais. O Teatro foi construído em 1921 e atualmente

continua em funcionamento. Porém, passou por diferentes momentos que foram relatados

pelos entrevistados.

A partir de seus relatos e das fontes jornalísticas observou-se que o auge do

funcionamento do Teatro se dá nas primeiras décadas de seu funcionamento, com os

espetáculos teatrais e as sessões cinematográficas. O período de decadência ocorre com o

declínio do cinema, com o uso do Teatro para bailes de carnaval e formaturas e, sua

consequente deterioração. O processo de revitalização se inicia no final dos anos 2000, com

reformas, democratização do espaço e sua utilização para atividades artísticas e culturais.

Percebeu-se também que a sociedade pelotense vem se apropriando deste espaço para

apresentações culturais e artísticas locais, bem como incentivando sua revitalização. Desse

modo, o Teatro Guarany retoma sua função inicial de ser um espaço de expressão cultural da

sociedade pelotense, contribuindo para o desenvolvimento de um sentimento coletivo de

pertencimento, valorizando o Teatro Guarany enquanto patrimônio da cidade de Pelotas,

construindo o sentimento de identidade e memória.

Espero que ele não seja um elefante branco, que ele continue esse elefante cinza de cimento escovado

maravilhoso, arquitetura belíssima né [Figura 1], que a gente possa, que a administração consiga devolver o

seu interior e o seu equipamento. Eu acho que essa é a nossa torcida. (Relato do frequentador do Teatro).

Figura 1 – Fachada do Teatro Guarany

Fonte: Prefeitura Municipal de Pelotas, 2015. Disponível em: www.pelotas.rs.gov.br.

Page 15: Memórias do Teatro Guarany em Pelotas · conhecimento, “sua especificidade está no próprio fato de se prestar a diversas abordagens, de se mover num terreno pluridisciplinar”.

15

REFERÊNCIAS

ALBERTI, V. Tradição oral e história oral: proximidades e fronteiras. História Oral. Revista

da Associação Brasileira de História Oral, v. 8, n. 1, p. 11-28, jan.-jun. 2005.

ALBERTI, V. História oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio

Vargas, 1989.

CALDAS, P. H.; SANTOS, Y. L. Guarany – o grande teatro de Pelotas. Pelotas:

Semeador, 1994.

CALDAS, P. H.; SANTOS, Y. L.; SANTOS, F. Pioneiro no Cinema no Brasil. Gramado-

RS, Edições Semeador, 1996.

CHARTIER, R. Do palco à página. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.

ERRANTE, A. Mas afinal, A Memória é de Quem? Histórias orais e modos de lembrar e

contar. História da Educação, Pelotas, v. 4, n. 8, p. 141-174, set. 2000.

FENTRESS, J. & WICKHAM, C. Memória Social: novas perspectivas sobre o passado.

Lisboa: Editorial Teorema, 1992.

RIBAS, P. História do Cinema na Princesa do Sul. Diário Popular, Pelotas, 1963.

TAVARES, F. S.; MICHELON, F. F. & ROTMAN, M. B. Cinema e Memória: Cine Teatro

Guarany de Pelotas/RS. In: CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, XVII, 2008,

Pelotas. Anais ... Pelotas: UFPel, 2008.

Jornais

A Opinião Pública, Pelotas, 14.05.1920.

A Opinião Pública, Pelotas, 30.04.1921.

A Opinião Pública, Pelotas, 07.05.1921.

Ilustração Pelotense, Pelotas, 15.05.1921.

Diário Popular, Pelotas, 20.09.1954.

Diário Popular, Pelotas, 08.02.1970.

Diário Popular, Pelotas, 08.04.1970.

Diário Popular, Pelotas, 16.02.1990.

Diário Popular, Pelotas, 23.10.1996.

Diário Popular, Pelotas, 25.10.1996.

Zero Hora, Porto Alegre, 29.04.2013, on line.

Zero Hora, Porto Alegre, 29.04.2013, on line.