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*Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES. MEMÓRIA, UNIVERSIDADE, CIDADANIA E CONSTITUIÇÃO NA ERA DAS COMISSÕES DA VERDADE: ELUCUBRAÇÕES COMPARATIVAS A PARTIR DA VIDA E OBRA DA FAMÍLIA KUCINSKI JUAN DE ASSIS ALMEIDA BRASÍLIA/DF

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*Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de

Brasília. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.

MEMÓRIA, UNIVERSIDADE, CIDADANIA E CONSTITUIÇÃO NA ERA DAS

COMISSÕES DA VERDADE: ELUCUBRAÇÕES COMPARATIVAS A PARTIR DA VIDA E

OBRA DA FAMÍLIA KUCINSKI

JUAN DE ASSIS ALMEIDA

BRASÍLIA/DF

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2017

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................................................... 03

1. FRAGMENTOS DE UM MODUS DE REPRESSÃO NAS UNIVERSIDADES

BRASILEIRAS: A REUNIÃO DA CONGREGAÇÃO............................................................. 06

2. AS RUAS E OS NOMES: NARRATIVAS E CONFLITIVOS ENTRE O LEMBRAR E

O ESQUECER.......................................................................................................................... 08

REFLEXÕES CONCLUSIVAS............................................................................................... 12

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................... 13

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INTRODUÇÃO

“Como é possível enviar reiteradamente cartas a quem inexiste há mais de três

décadas? [...]. É como se as cartas tivessem a intenção oculta de impedir que a

sua memória na nossa memória descanse [...] a nos apontar culpas e omissões”

(KUCINSKI, 2014: p. 10),

O trecho acima epigrafado da obra do escritor Bernardo Kucinski, K.: Relato de uma

busca (2014), narrativa ficcional, oferece uma dimensão realística de omissões, aporias e

responsabilidades que circundam as disputas contemporâneas da memória. A obra tem como

eixo a procura de uma desaparecida política nos idos da ditadura civil-militar brasileira (1964-

1985) pelo seu pai - personagem central da trama: K., um judeu polonês radicado no Brasil

desde a Segunda Guerra Mundial. O entrelaçamento de narrativas ficcionais e memorialísticas1

dá o tom ao enredo da obra que se fragmenta entre duas experiências impactantes: a de um pai

que vivencia um calvário em busca do paradeiro de sua filha e a outra de uma filha que

experencia momentos de queda, prisão e morte.

Apesar de não nomeada no texto, sendo caracterizada apenas como uma jovem

professora universitária em homenagem ao teor ficcional do escrito, trata-se da professora Ana

Rosa Kucinski, militante política desaparecida desde o ano de 1974, quando integrava a Aliança

Libertadora Nacional (ALN). Ela também era docente vinculada ao Instituto de Química da

Universidade de São Paulo (USP), dado que será relevante ao desenvolvimento do presente

ensaio. Não seria temerário afirmar, que a análise do enredo da obra/vida em questão oferece

elementos e inquietudes importantes que podem servir a comparação com a Justiça de Transição

que tomou como objeto a memória e a verdade das universidades brasileiras durante a ditadura:

as comissões da verdade universitárias.

1 “Caro leitor: Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu” B. Kucinski.

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Da ação deletéria que se fez presente na trajetória pessoal e política da professora Ana

Rosa pode-se extrair quadro situacional semelhante pelo que as instituições de ensino superior

foram açodadas: dois corpos políticos que sofreram os esbulhos do regime de repressão política

e ideológica nos anos de exceção. Do mesmo modo que o percurso e as inquietudes que K.,

pai, vivenciou na busca de sua filha se fazem perceptíveis nas experiências de comissões da

verdade universitárias. Assim, procederemos a uma construção narrativa que articula

temporalidades distintas e reconfigura as noções de passado, presente e futuro: será feito um

intercâmbio entre a vida/obra da família Kucinski e o recente itinerário institucional das

universidades que recuperaram, historicamente, contextos de graves violações de direitos

humanos.

Desde a criação da Comissão Nacional da Verdade da Presidência da República com a

promulgação da Lei nº. 12.528, de 11 de novembro de 2011, a justiça de transição no Brasil

encontrou-se em um movimento de aceleração de seu tempo (PAIXÃO, 2016). Apesar de não

ser pioneira na operacionalização dos direitos de transição, provocou um interessante fenômeno

que foi a constituição de diversas comissões temáticas, setoriais, vinculadas à órgãos dos

direitos humanos e a poderes constituídos da república. Essa aceleração também desencadeou

ações entre ministérios do governo federal, como foi o caso do Ministério da Justiça, que por

meio do Aviso nº. 1.069/2012 requereu que os demais ministérios recolhessem ao Arquivo

Nacional documentos, sob sua guarda, da época da Ditadura Militar para compor o projeto

“Memórias Reveladas”, além do Ofício-Circular nº. 11/2012/SAA/SE/MEC que endereçou

pedido semelhante a todos os dirigentes de instituições públicas de ensino superior

(FAGUNDES; MÜLLER, 2014).

Nesse diapasão se insere a criação das chamadas Comissões da verdade universitárias,

realçando a primeira delas, a Comissão Anísio Teixeira da Universidade de Brasília (UnB)

surgida em esforços da então reitoria da universidade e do interesse político e acadêmico de

estudiosos e professores da casa; bem como da segunda iniciativa vinculada a Universidade

Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) que se formulou após debates institucionais e por

solicitação de entidades estudantis. Nos anos subsequentes mais de 16 iniciativas universitárias

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foram constituídas, inclusive uma Rede Nacional de Comissões da Verdade Universitárias

(RNCVU)2.

Os deslindes do desaparecimento da professora Ana Rosa e da atenção surgida para o

caso quando da criação das comissões da verdade encerram importantes elementos de análise

para a história da constituição brasileira, pois denotam certos usos e disputas da agenda de

justiça de transição inaugurada com a Constituição. Entender esse movimento recente das

comissões da verdade revela aspectos interessantes da relação da constituição como seu

contexto político, social e intelectual, pois é permitido conhecer as lutas em que se deu a

produção de conceitos, normatividades e novas interpretações do direito.

Nesse sentido, cumpre anotar, que esses usos e disputas na agenda da Justiça de

transição vem se efetivando desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Pois

segundo Cristiano Paixão, ao que dispôs em seu art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias da anistia concedida a uma série de brasileiros perseguidos, inaugurando a política

pública de memória, verdade e reparação, a própria Constituição elegeu a memória como um

constructo social das presentes e futuras gerações, ou seja, a construção das políticas de

memória e verdade se realiza num verdadeiro diálogo intergeracional, pois a constituição abre

essa possibilidade ao futuro ao ser entendida como um “processo permanente de construção e

de redefinição de direitos e liberdades” (PAIXÃO, 2011: p. 12).

“Nossa Constituição estabelece as condições desse diálogo, [...]. E

assume uma perspectiva transgeracional, ao eleger a proteção dos

direitos humanos fundamentais e da dignidade da pessoa humana como

núcleos normativos dos quais emanam outros dispositivos

constitucionais e legais” (PAIXÃO, 2011: recurso eletrônico).

Um dos aspectos marcantes das Comissões da Verdade se perfaz quando se analisa as

relações temporais que estabelecem. Como por exemplo, é comum que ao final dos seus

relatórios um conjunto de recomendações sejam propostas com o fim de impedir a recorrência

de graves violações de direitos humanos e para construir uma sociedade marcada pelo respeito

2 Segundo levantamento realizado, foram criadas comissões universitárias nas seguintes instituições de ensino, por

ordem de criação e tendo sido instituídas por ato do reitor: UnB, UFRN, UFPR, UFES, UFRJ, USP, PUC-SP,

UFRRJ, UNIFESP, UFC/UECE, UNICAMP, UFPA, UFBA, UNEB, UFSC, UNESP, Escola de Sociologia de São

Paulo e UFSM. Duas comissões ainda estão em funcionamento: UFSC e UFSM

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à democracia e aos direitos humanos3. É como se as comissões promovessem no presente um

certo rompimento com o passado, ao apontar as atrocidades pretéritas e ao indicar postulações

a um futuro desejável.

Diante desse pretenso rompimento com o passado a partir do ato de propor medidas e

políticas públicas para a não-repetição de violações percebe-se uma ação humana sobre o

tempo. Indica a intenção de demarcar e diferenciar períodos da história humana (LE GOFF,

2015, p. 132): a mediação do presente entre um passado reconstruído por seus fragmentos e um

futuro prospectivo. Dessa memória revisitada, surge uma série de indagações: incialmente o

que o ato de memória indica ao nosso tempo? Qual a importância comunicativa da história da

universidade brasileira durante a ditadura aos discentes, pesquisadores e professores que a

constituem? Quais os impactos dos estudos da memória para a relação entre passado, presente

e futuro e para a escrita da história?

FRAGMENTOS DE UM MODUS DE REPRESSÃO NAS UNIVERSIDADES

BRASILEIRAS: A REUNIÃO DA CONGREGAÇÃO

Como já frisado o presente ensaio será elaborado através de duas dimensões temporais

que muito tem a dizer: Ana Rosa/Universidade - em contexto de repressão e a experiência de

um pai/comissões universitárias – em busca da verdade.

Ana Rosa Kucinski era militante da ALN e professora universitária da USP, de seu

Instituto de Química. Desapareceu no dia 22 de abril de 1974, em companhia do seu marido,

Wilson Silva, na cidade de São Paulo quando foi presa por agentes do Estado brasileiro. Desde

então, diversas versões surgiram sobre o seu desaparecimento.

A primeira versão veio através do não-reconhecimento de sua prisão pelo então Ministro

da Justiça Armando Falcão, em nota oficial, no ano de 1975, em que é descrita como “terrorista

foragida”. Seu desaparecimento foi alardeado pelo então cardeal de São Paulo, Dom Paulo

Evaristo Arns e foi objeto de acionamento pela Comissão de Direitos Humanos da Organização

dos Estados Americanos (OEA), ainda na década de 1970, para que o Brasil fornecesse

3 Cf. Lei. 12.528/2012, art. 3º, “VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação

de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional”

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informações sobre o seu paradeiro, o que foi negado. Diversas versões foram alardeadas de que

teria sido assassinada na chamada “Casa da Morte” ou ainda que o seu corpo teria sido

incinerado na Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes, conforme o livro “Memórias de

uma guerra suja”, de autoria do ex-delegado da Polícia Civil do Espírito Santo Cláudio Guerra,

mas o que nos interessa são as últimas revelações publicadas pela Comissão Nacional da

Verdade.

Em seu relatório (BRASIL, 2014: p. 1647), a CNV dispôs que em suas investigações

pôde apurar através da checagem dos livros de entrada do Departamento de Ordem Política e

Social de São Paulo (DEOPS), a presença do Sr. Krikor Tcherkezian – Chefe da Assessoria

Especial de Segurança e Informações (AESI) da USP, no dia 23 de abril de 1974. Numa

observação rápida, pode-se pensar que essa visita ao prédio do DEOPS não guarda relação

direta com o caso da professora, mas é o contrário, guarda muitas coincidências e semelhanças,

vez que a visita se operou um dia depois da prisão da professora Ana Rosa, também da USP.

Além desse registro, a presença do chefe da AESI/USP no DEOPS foi anotada cinco dias antes

do acontecido e outra duas vezes, um mês depois do desaparecimento, em 22 de maio de 1974.

A CNV não localizou o ex-assessor para prestar esclarecimento, o que suscita muitos debates e

aferições sobre a relação entre a Universidade e a repressão policial do Estado brasileiro.

Em depoimento prestado à Comissão de Justiça e Paz, em 1990, o Sr. Bernardo

Kucinski, irmão da professora e autor da obra que é referenciada, descreveu que em janeiro de

1975 encontrou o senhor Krikor Tcherkezian (AESI/USP) nas dependências do Quartel General

do II Exército, e naquela ocasião ele se apresentara como assessor do reitor da USP. No

depoimento, Kucinski ainda afirmou que nesse contato ouviu manifestação de irritação do

assessor em razão da demora no processo administrativo de expulsão de sua irmã, professora

da USP, por abandono de função.

O caso revela que a estrutura montada para troca de informações entre os demais órgãos

de informações da Ditadura operava em sintonia e abre caminhos promissores para a revelação

da verdade de determinados acontecimentos. Sabe-se que essa estrutura foi constituída ao

interesse da captação de informações estratégicas para as ações do governo militar, que seriam

direcionadas a repressão ao dissenso político e ao controle da “ordem”. Esse aparelho

administrativo e burocrático de informações e contrainformações, com grande inserção nos

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mais diversos órgãos da administração pública, tem marco inicial com o Serviço Nacional de

Informações (SNI), criado pouco tempo depois do golpe em 1964. Anos depois,

especificamente a partir de 1967 essa estrutura de informações foi ampliada com a instalação

de Divisões de Segurança e Informações nos ministérios civis, que estimulou a expansão dos

sistemas setoriais com as Assessorias Especiais de Segurança e Informações nos órgãos

subordinados aos respectivos ministérios (JOFFILY, 2014: p. 160). No caso das Universidades

brasileiras, esses instrumentos serviram sobremaneira para realizar o expurgo ideológico de

pessoal docente, além do fornecimento de informações aos demais órgãos da mesma

comunidade.

Compreender o funcionamento dessas assessorias nas universidades e a congregação de

esforços entre setores do estado para a repressão aos seus inimigos dão claro suporte para

esclarecer a intensa participação da AESI/USP nos episódios que culminaram com a prisão,

morte e desaparição da professora Ana Rosa Kucinski. Faz recordar a surpresa de K. ao ouvir

o relato de uma amiga de sua filha de que “há gente estranha no campus. Anotam chapas de

carros. Eles estão dentro da reitoria” (KUCINSKI, 2014: p. 16). No mais, revela atitudes da

comunidade universitária em relação ao Estado autoritário, vez que denotam aspectos de uma

cultura política marcada por expressões de acomodação e colaboração.

O exemplo mais marcante dessa complacência foi a reunião da Congregação de

professores do Instituto de Química que decidiu declarar; doravante a desaparição da professora

ter sido divulgada exaustivamente na imprensa de São Paulo, nacional e internacional, o

abandono de emprego com a posterior exoneração. Os eventos que foram descritos se

consubstanciam em importantes passagens da obra literária K.: Relato de uma busca, inclusive

com a indicação de personagens históricos envolvidos no evento.

Do mesmo modo que Ana Rosa Kucinski sofreu com as ações do Estado, as

Universidades foram espaços de intenso conflito durante a Ditadura Militar. Visões de

sociedade, de luta política e de universidade convergiam e divergiam do sistema que naqueles

idos vigorava. São comuns os relatos de exonerações docentes, de patrulhamento de aulas e

eventos acadêmicos; de expulsões de estudantes com base no Decreto-Lei nº. 477, que segundo

levantamento do livro “Brasil nunca mais” prejudicou cerca de 245 estudantes durante 10 anos

de sua vigência (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985: p. 68); além das prisões, torturas,

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mortes e desaparições. Nesse sentido, o interesse do Estado brasileiro com a educação se

manifestou, em boa parte, nas ações que visavam eliminar o exercício da crítica social, através

do controle político do ensino com a repressão a professores e alunos indesejáveis

(GERMANO, 2011: p. 105).

Esse passado que é reconstruído sofre com intensas batalhas que convergem muitas

vezes para a lembrança e para o esquecimento. O caso da professora Ana Rosa é um exemplo

típico disso.

AS RUAS E OS NOMES: NARRATIVAS E CONFLITIVOS ENTRE O LEMBRAR E O

ESQUECER

Apesar da reiterada recusa da Universidade em reconhecer o erro grave que cometeu,

movimentos de direitos humanos em torno do Fórum Aberto pela Democratização da USP, em

2012, solicitaram a reitoria da Universidade que revogasse os termos da decisão constante do

processo instaurado no ano de 1974, que resultou na demissão da professora, por suposto

abandono de função, ignorando, entretanto, o seu desaparecimento forçado, que já era

noticiado, como já dito, na época pelas entidades de direitos humanos.

Muitas resistências foram colocadas para a anulação da decisão; alguns arguiam até da

impossibilidade jurídica da reforma, outros que deveriam respeitar a decisão daquela

composição da congregação. Entretanto, a situação mudou quando em 17 de abril de 2014, a

Comissão da Verdade da USP já instalada e em funcionamento solicitou que a Congregação do

Instituto de Química anulasse a demissão. O pedido foi aceito e a decisão de 1974 foi

considerada um “equívoco” da época.

O caso encerrou-se com duas ações simbólicas importantes: a Congregação do Instituto

fez um pedido formal de desculpas à família de Ana Rosa e no dia 22 de abril 2014 foi

inaugurado um monumento em homenagem à professora nos jardins do Instituto.

Essas ações simbólicas guardam relação com um trecho da obra, no momento em que o

personagem K. se dirige com um grupo de familiares de mortos e desaparecidos políticos a um

novo bairro com o intuito de inaugurar ruas com os nomes de seus entes queridos. Nesse

instante K., resolve empreender uma série de reflexões, sobretudo sobre a função pedagógica

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desse ato de homenagear e de informar às futuras gerações da relevância da democracia e dos

direitos humanos. Porém, partindo de observações dos nomes de grandes avenidas e viadutos

problematizou a presença marcante, no seio urbano, de pessoas responsáveis por grandes

atrocidades, como foi o caso da Rua Fernão Dias – ao que pensou “famoso caçador de índios e

escravos fugidos”. Reflexão que também teve quando se deparou com a avenida General

Milton Tavares de Souza, e pensou: “Foi quem criou o DOI-CODI, para onde levaram o Herzog

e o mataram [...] E tem nome de avenida. Avenida principal. Onde já se viu uma coisa dessas?”

(KUCINSKI, 2014: p. 162) e ainda passou pela Ponte Costa e Silva – que liga o Rio de Janeiro

–Niterói; daí arrematou:

“Centenas de pessoas passam aqui todos os dias, jovens, crianças, e

leem esse nome na placa e podem pensar que é um herói. Devem pensar

isso. Agora ele entendia por que as placas com os nomes dos

desaparecidos foram postas num fim do mundo” (KUCINSKI, 2014:

p. 165).

As passagens descritas acima indicam como a memória é situada num verdadeiro

conflito entre o lembrar e o esquecer. Entre esquecer a decisão da congregação, “deixar pra lá”

e o modificar nomes de ruas, problematizar homenagens e propor novas denominações. O ato

de nomear; constituir algo permanente de memória é garantia de lembrança, no entanto, esse

ato não pode ser visto como uma atitude passiva diante do presente, porque essa transmissão é

revestida de negociações, conflitos e controvérsias. Marek Tamm (2013, p. 458 – 473) em sua

abordagem cultural dos estudos de memória parte da premissa que dividir memórias do passado

não é um ato acidentalmente produzido, mas sim negociado num grupo social, através de um

modelamento, invenção, reinvenção e reconstrução do passado pelo presente.

As experiências das comissões da verdade com a dificuldade de localização de arquivos

documentais; com obstruções a implementações de colegiados; a recusa de colaboração por

parte de personagens históricos; os registros de falta de interesse da comunidade geral pelos

temas; além da dualidade desse movimento nas universidades, em que experiências surgem e

outras arrefecem, dão o indicativo da conflituosidade da temática. Aliás, 20 anos depois da

promulgação da constituição, o processo de ajuste de contas com a memória segue num

processo marcado com marchas e contramarchas (PAIXÃO, 2011: p. 161).

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Mesmo assim, podemos inferir da importância que sujeitos vítimas de repressão tem ao

proporem um livro de memórias, uma obra ficcional que retrate uma situação de opressão. A

chamada literatura do testemunho/vítimas tem o condão de manter a experiência traumática

comunicável às novas gerações. E manter essa comunicabilidade de experiências, pode ser uma

das grandes chaves de leitura para entender os relatórios finais e as recomendações que estão

sendo propostas pelas comissões. Isso parte da reflexão sobre o ato de fazer história, de uma

história que deve ser difundida e manter uma experiência comunicável através dos tempos.

Aliás, esse ato de dizer a história pode ser entendido como um direito à história que tem

a sociedade como titular. Esse dever de produção de conhecimento especializado sobre o

passado que se impõe indiretamente aos historiadores e a seus grupos profissionais, estendendo

às comissões da verdade, é uma das responsabilidades apontadas ao profissional da história

diante da institucionalização dos direitos humanos, principalmente após a Declaração Universal

dos Direitos Humanos. Em suma, os direitos humanos (DE BAETS, 2010: p.100) criam ao

trabalho do historiador o compromisso em produzir conhecimento do passado em sua

totalidade, o dever de disseminá-lo, ensiná-lo e de buscar a verdade de acontecimentos

vergonhosos da história de uma comunidade.

Registra-se essa dimensão intergeracional na construção da história, ou seja, da justiça

de transição em âmbito das universidades quando pensamos na composição dos grupos de CVs,

quando se pensa para quem a pesquisa é dirigida e sempre essa intenção de tornar o processo

um constructo coletivo e que aponta para o futuro.

A Rede Nacional de Comissões da Verdade Universitárias (RNCVU), criada no âmbito

da Comissão Nacional da Verdade em junho de 2014, indicou a necessidade de efetivação de

12 recomendações4, muitas delas permanentes que sugerem a criação de monumentos ou outros

elementos simbólicos análogos para homenagem a acadêmicos perseguidos e para reflexão

presente; revisões e anulações de decisões administrativas que visaram à restrição política;

cassação de homenagens dadas a pessoas responsáveis por violações de direitos humanos; além

do fortalecimento da Rede com a articulação e intercâmbio entre as comissões universitárias.

4 Para conferir sobre as recomendações propostas pela Rede de Comissões, consultar: BRASIL, Comissões

universitárias entregam sugestões de recomendações à CNV. Disponível em: http://www.cnv.gov.br/outros-

destaques/556-comissoes-universitarias-entregam-sugestoes-de-recomendacoes-a-cnv.html

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Ações semelhantes foram propostas pelas comissões da UnB, Unicamp, UFBA, UFRN, dentre

outras, mas esbarram, muitas vezes, na falta de interesse político dos seus dirigentes no estímulo

ao desenvolvimento dessas ações.

E o que essa intenção do diálogo coletivo indica?

Aponta uma necessidade de transmissão constante dos bens culturais e experiências

acumulados. Essas transmissões demarcam mudanças geracionais importantes e caracterizam

as gerações como processos dinâmicos e interativos (WELLER, 2010: p. 205-224). Indicam

um princípio formativo que impulsiona gerações político-sociais, ao se chamou de enteléquia

geracional, como sendo a significação do espirito do tempo em determinada época, uma

significação criada a partir do compartilhamento de “espaços sociais de experiências

conjuntivas” (WELLER, 2010: p. 218).

Quando se pensa nessas recomendações e as suas recorrentes formas de museificação

dos espaços urbanos significativos, com criação de monumentos, memoriais, nomeação de ruas,

ou ainda a utilização de imagens, textos, objetos, construções e rituais como mediadores da

memória cultural (TAMM, 2013: p. 461), pode-se pensar até que ponto essas materialidades

servem como formas de manifestação de uma memória traumática (HIRSCH, 2010: p. 1-25) e

se elas comunicam ao presente. Consultar aos registros fotográficos das invasões sofridas pela

UnB, em contexto da repressão da ditadura, pode ser um interessante meio de perceber a

memória, pois as imagens guardam o condão de represar em uma única imagem o contexto de

uma época, vide a foto do jornalista Herzog morto nas dependências de uma delegacia e a

representatividade de todo um período de opressão. No entanto, com o texto abre-se a

possibilidade de representar o que a foto não diz.

A importância dessas ações de reflexibilidade pode bem ser visualizada, em escala

reduzida, quando observamos as reações surgidas em K. ao descobrir álbuns fotográficos de

sua filha, nunca antes vistos por ele. Momento descrito no capítulo “Um inventário de

memórias” que sugere o poder das imagens em suscitar sentimentos e reflexões fortes, nas suas

palavras “algumas [fotos] até parecem contar uma história”; “fotografias, ele antes pensava,

eram apenas registros de um episódio, a prova de que aquilo que aconteceu, ou retratos de

pessoas, um documento. No entanto, ali estão fotografias que [...] parecem captar a alma da

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filha” (KUCINSKI, 2014: p. 115). Essa passagem revela um elemento comunicativo da

imagem, que faz a mediação de um evento traumático entre as gerações. No caso do

personagem K. revelou algo que ele não percebia em seu cotidiano com a sua filha. Esses

elementos de memorialização fazem parte de recomendações de várias Comissões da Verdade

universitárias, é como se um monumento, a imagem, despertasse o mesmo sentimento que K.

teve no encontro com as fotos de sua filha.

A tarefa da memória e a difusão da história ainda se relacionam com a questão da

cidadania, pois permitem o aperfeiçoamento da formação humanística do tecido social-

universitário, ao formar cidadãos que conhecem o seu passado e o intercala com o seu presente

e futuro para que possam exercer a cidadania de forma plena e ativa com respeito à democracia

e aos direitos humanos.

A nossa Constituição é marcada “por uma forte exigência de cidadania, entendida

principalmente como direito à participação ativa na vida política do país” (PAIXÃO;

BARBOSA, 2008: p. 129), e quando se fala em memória coletiva percebe-se que essa

participação é exigida a todos e todas comprometidos com a cidadania, a universidade, os

direitos humanos e com a constituição.

REFLEXÕES CONCLUSIVAS

Toda essa reconstituição histórica de um caso tão dramático para a instituição

universidade brasileira e de experiências marcantes no tema da memória e verdade do tempo

presente – apesar de um resgate parcial – permite observar as disputas que acontecem diante da

justiça de transição e de como a Constituição Federal demarca um campo aberto de

possibilidades de afirmação de seu projeto de nação. Percebe-se mais um exemplo dos

movimentos que acontecem no social e no político que recriam e enriquecem com novas

experiências as bases da justiça de transição.

As comissões da verdade universitárias são experiências retro-prospectivas do estudo

da história e da transgeracionalidade na ordem de seus trabalhos. E as suas recomendações são

grandes apostas direcionadas ao futuro da democracia.

Os últimos tempos marcados por uma exacerbação, por excelência, do uso do espaço

público para o confronto político indicam que a sociedade brasileira caminha para aprofundar

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a democracia no sentido de construir novas representação participação e deliberação política,

percebe-se que não estamos mais diante de processos de transição democrática, mas sim de

consolidação dessa democracia, que só se realiza com a cidadania inclusive nos assuntos que

envolvem a história nacional, sobretudo da instituição universidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: Nunca mais. Petrópolis, Vozes, 1985.

BRASIL, REPÚBLICA FEDERATIVA. Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade.

Volume 3, Brasília, 2014, p. 1647. Disponível em:

http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_3_pagina_1241_a_1658.pdf

DE BAEST, ANTOON. O impacto da Declaração Universal dos Direitos Humanos no estudo

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