Mercado Editorial Brasileiro 1960 1990
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Sandra Reimo
MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO,1960-1990.
So Paulo: COM-ARTE FAPESP, 1996.
_________________________________________________________________________________________
A numerao das pginas no arquivo PDF no corresponde a da impresso em papel. A numerao da edio original est indicada em vermelho (p. x) _______________________________________________________________________________________
Sandra Reimo
MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO, 1960-1990.
Sumrio
Introduo,13
Sobre a Noo de Best-seller,21
Anos 60: Exploso Qualitativa da Fruio Privada, 35
Anos 70: Industrializao e Segmentao da Cultura, 53
Anos 80: Ecletismo e Oscilaes, 75
Referncias Bibliogrficas, 101
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Sandra Reimo
MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO,1960-1990.
Introduo
(p.15) consenso entre os estudiosos da comunicao assinalar o ano de 1922, ano
do advento do rdio no Brasil, como aquele que marca o incio da indstria cultural
entre ns. O rdio inaugura um sistema de comunicao de massa que viria a se
compor com as revistas peridicas veiculadoras de notcias e fofocas sobre
cantores e cantoras, com o teatro de revista, com a indstria fonogrfica e ainda, a
partir de 1929, com os filmes musicais e as chanchadas nacionais.
tambm consenso entre os tericos brasileiros da comunicao que a
indstria cultural no Brasil veio a se desenvolver em termos quantitativos
realmente significativos apenas na dcada de 1960, sendo que o lanamento do
Jornal Nacional como noticirio televisivo dirio, pela Rede Globo de Televiso, em
1969, tomado como um marco da produo cultural industrializada no Brasil.
Dos vrios ramos que compem a indstria da comunicao no Brasil ps-
1960, a televiso , sem dvida, o setor sobre o qual mais se tem escrito. Essa
dominncia quantitativa tem sua razo de ser, pois, no Brasil, a televiso o mais
influente meio de comunicao de massa e em torno dela que gira a maioria das
produes de nossa indstria cultural.
(p.16) Muito se tem estudado tambm sobre o rdio e o cinema no Brasil.
Entretanto, a produo editorial brasileira, como fato comunicacional, parece ser
um dos ramos menos estudados da produo cultural industrializada.
Nosso objetivo conhecer e analisar esse ramo da indstria da comunicao.
Nossas questes so: como se comportou a produo de livros correlata ao
desenvolvimento e maturidade da indstria cultural brasileira? Para onde vo as
preferncias do pblico leitor? Por qu? Essas preferncias indicam avanos ou
retrocessos culturais?
A fim de tentar atingir nossos objetivos, utilizamos basicamente trs
instrumentos:
1. os dados quantitativos gerais (na o especificados) sobre o mercado editorial brasileiro: total de t tulos e de exemplares publicados e vendidos por ano, pontos de venda, segmentaa o desses t tulos etc. (mesmo conhecendo a imprecisa o dos dados e as variao es dos mesmos conforme a fonte utilizada);
2. dados sobre os livros mais vendidos de cada ano: esses dados, que na o esta o dispon veis para todos os anos abordados, sa o utilizados como sinalizadores das tema ticas e preocupao es dominantes no setor da populaa o que tem acesso a livros;
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3. dados histo ricos e conjunturais que ajudam a iluminar, enfocar e esclarecer os dados de vendagem.
O primeiro passo da pesquisa1que resultou neste livro foi enfocar
conceitualmente os termos best-seller, (p.17) mercado literrio e literatura de
mercado. No partimos, quanto ao tema, de nenhuma viso fechada pr-concebida.
No compartilhvamos ento e no compartilhamos agora de uma postura
apocalptica, nem integrada (para utilizarmos a distin~o e a linguagem de
Umberto Eco)12.
Nossa postura um tanto mais ambgua devido complexidade do fenmeno
em questo. Para assinalar essa complexidade, lembremos aqui a fundamental
distin~o elaborada por Habermas entre facilita~o econmica e facilita~o
psicolgica, em que o primeiro desses conceitos indica o carter positivo da
comunicao de massa e da industrializao dos produtos culturais, cujo
barateamento os torna acessveis a mais pessoas, e o segundo indica a face negativa
do mesmo processo, que pode gerar a banalizao e a simplificao dos produtos
culturais em busca do sucesso fcil nesse mercado ampliado2.
Dentro dessa questo dos aspectos positivos e dos nocivos da relao entre
produo cultural e mercado, buscamos tambm mapear as principais posturas
conceituais sobre o vnculo entre literatura e mercado, entre alta literatura e
literatura de mercado. Enfocando estas questes conceituais e tericas, elaboramos
o texto Sobre a No~o de Best-seller, publicado como primeiro captulo neste
volume.
A partir da questo inicial, sob o enfoque escolhido e com o pressuposto
terico referido acima, passamos (p.18) ento a analisar a produo editorial
brasileira a partir de 1960.
Esse perodo foi abordado no captulo intitulado Anos 60, Explos~o
Qualitativa da Frui~o Privada. Apesar das dificuldades que enfrentamos no que diz
respeito localizao de dados sobre a produo e o mercado editorial no perodo,
foi possvel organizar os dados que pretendamos abordar e realizar um primeiro
mapeamento e sinalizao de como esses dados podem ser iluminados por um
amplo leque de fatores culturais e econmicos. Em uma poca to conturbada como
os anos 60 no Brasil, os dados polticos conjunturais e as amplas questes polticas
* A pesquisa foi elaborada entre 1989 e 1994, e s se tornou possvel graas ao apoio do CNPq
(Conselho Nacional de Desenvol vimento Cientfico e Tecnolgico) atravs de uma bolsa pesquisa.
1 Umberto Eco, Apocalpticos e Integrados.
2 Jrgen Habermas, Mudana Estrutural da Esfera Pblica, cap. V.
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mundiais se mostraram chaves imprescindveis para a compreenso das variaes
das preferncias temticas dos leitores brasileiros.
A seguir, passamos a enfocar o mercado editorial nos anos 70. Durante essa
etapa da pesquisa ficou patente para ns o significado desse perodo em termos de
mercado editorial e localizamos nele o crescente processo de industrializao da
produo cultural.
Alguns dados b|sicos correlatos ao milagre econmico brasileiro, como a
queda nas taxas do analfabetismo, o crescimento do nmero de universitrios e o
crescimento do Produto Interno Bruto, informam e esclarecem o crescimento
quantitativo do mercado editorial nacional nos anos 70, dcada em que se
ultrapassa a deplorvel barreira de um livro por habitante ao ano. Mas nas listas
dos best-sellers da poca que ficam claras as preferncias do leitor e o atrelamento
delas ao forte desenvolvimento da indstria cultural entre ns. Neste contexto, a
segmentao do (p.19) mercado editorial se imps, como mostramos no captulo
Anos 70, Industrializa~o e Segmenta~o da Cultura.
O ltimo captulo, Anos 80, Ecletismo e Oscilaes, caracteriza os dados
quantitativos gerais sobre o mercado editorial no perodo e, tendo como pano de
fundo os dados gerais, examina os ttulos especficos dos livros mais vendidos.
Muitos resultados interessantes e relevantes tornaram-se patentes nesta
etapa da pesquisa, como por exemplo o vnculo entre a conjuntura social, um certo
humor poltico, a varia~o na presena de autores brasileiros entre os ttulos mais
vendidos, que apresentou aumento relativo, nas listas dos mais vendidos, durante o
processo da abertura poltica e da campanha Diretas J. Se atentarmos para a
especificidade dos ttulos, especialmente os do segmento no-fico, essa correlao
torna-se ainda mais explcita.
Os captulos deste livro foram publicados em forma de artigos que
divulgaram resultados parciais, ainda durante a execuo da pesquisa. A indicao
dos locais de publicao das verses originais e iniciais de cada captulo encontra-se
nas aberturas dos mesmos.
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Sobre a Noo de Best-seller
(p.23) A expresso best-seller, aplicada a livros e literatura, comporta dois
campos de significao, nem sempre coincidentes.
A primeira significao da expresso, em sua acepo mais literal, diz
respeito ao comportamento de vendas de um livro em um determinado mercado
editorial. Best-sellers indica aqui os livros mais vendidos de um perodo em um local.
Nesse sentido uma expresso quantitativa e comparativa, e que diz respeito a
vendas.
Ainda no sentido quantitativo de vendas, j se buscou estabelecer critrios
no puramente comparativos para determinar um best-seller. Frank Luther Mott, em
um texto editado em 1947, prope classificar como best-seller os livros que,
segundo se calcula, tm uma venda total igual a 1% da populao dos Estados
Unidos continentais na dcada em que foram publicados1. Este critrio seria vlido
apenas para os EUA, necessitando adaptaes para outras realidades.
(p.24) Ao lado da acepo ligada s vendas no mercado editorial, a expresso
best-seller, quando aplicada literatura de fico, passou a designar tambm, por
extenso, um tipo de texto caractersticas internas, imanentes, de um tipo de
narrativa ficcional.
Muitos autores, de tendncias e pressupostos variados, buscaram elucidar
quais seriam as caractersticas que fariam de um texto ficcional, um texto de
literatura best-seller tambm chamada de paraliteratura, literatura trivial,
subliteratura, literatura de entretenimento, de massa ou de mercado.
H um consenso de que essa literatura, descendente do romance-folhetim,
expandiu-se a partir de meados do sculo XIX e especialmente no sculo XX, e de
que esses textos devem ser inseridos na lista dos primeiros produtos da indstria
cultural, a qual, por sua vez, vinculada fase monopolista do capitalismo e
sociedade de consumo. parte esse consenso, h vrias formas de caracterizar a
literatura de massa.
Em seu Teoria da Literatura de Massa2, Muniz Sodr, ao abordar a estrutura
folhetinesca presente ainda na literatura trivial, afirma que esta agencia sempre
quatro elementos:
1. presena de um hero i super-homem [] investido de caracter sticas
* Este texto foi publicado originalmente na revista Comunicao & Sociedade, 18, dez. 1991.
1 Frank Luther Mott, Golden Multitudes: The Story of Best-sellers in the United States, p. 303.
2 Muniz Sodr, Teoria da Literatura de Massa, pp. 82-84.
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roma nticas que acentuavam a ide ia de destino e de uma especial rejeia o das regras sociais;
2. atualidade informativa-jornal stica;
(p.25) 3. oposio es m ticas [] o bem e o mal, a felicidade e a amargura [...];
4. preservaa o da reto rica culta [] a reto rica do folhetim e pobre, esquema tica [] (mas) sempre subsidia ria da literatura culta (RomantismoRealismo...).
Esta preservao da retrica culta est presente na literatura de
entretenimento trivial no s como estrutura, mas tambm como contedo. Esse
fato salientado por Dieter Prokop em sua divertida descrio, no da estrutura dos
romances para as massas, mas de seus contedos explcitos:
Nos romances best-sellers, fascina uma mistura que rene sem escrpulos
aquilo que visto de um ngulo rigorosamente lgico no tem relao entre si:
combinaes de cultura letrada, resqucios de acontecimentos histricos, mas tambm,
obscenidades agradveis (que, em geral, so apresentadas com indignaes hipcritas);
tambm brigas familiares combinadas com smbolos de status e poder econmico e de
luxo3.
Tanto a enumerao dos contedos explcitos quanto a dos elementos
estruturais encontrveis na literatura de massa ajudam a iluminar esse fenmeno da
indstria cultural, mas no o caracterizam de forma definitiva, pois todos os
elementos enumerados podem ser encontrados esporadicamente tambm na
chamada alta literatura4.
(p.26) A caracterizao dos textos da paraliteratura passa necessariamente
pela demarcao da distncia, da diferena entre eles e os representantes da
literatura culta, pela distino entre cultura de massa e alta cultura.
Literatura de Massa e Literatura de Proposta
Tomando como referncia a alta literatura, tambm chamada de literatura
culta, erudita ou de proposta (designao preferida por Umberto Eco), Todorov e
Ducrot caracterizam a literatura de massa como aquela em que a obra individual
conforma-se inteiramente ao gnero e ao tipo5, ao contrrio da alta literatura em
que cada obra tem uma originalidade prpria irredutvel. Ou seja, a habitual obra
3 . Dieter Prokop, Fascina~o e Tdio na Comunica~o: Produtos de Monoplio e Conscincia, em
Ciro Marcondes Filho (org.), Dieter Prokop, p. 150.
4 Como salienta Muniz Sodr na seqncia de seu texto que acabamos de citar.
5 Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, Dicionrio das Cincias da Linguagem, p. 189.
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prima literria no entra em nenhum gnero a no ser o seu, mas a obra prima da
literatura de massa precisamente o livro que melhor se insere no seu gnero6.
Embora Todorov esteja dando nfase aqui questo dos gneros e em
especial da contraposio da alta literatura com os gneros mais estruturados da
literatura de massa (romance policial, romance de aventura, fico cientfica e
romance sentimental), essa questo da originalidade nica e irredutvel (p.27)
abrange tambm desde o nvel narrativo at o dos valores pessoais e morais.
Processos estes que, no caso da alta literatura, produzem uma viso de mundo
singular e inconfundvel.
A originalidade da alta literatura, que tem sua contraposio no carter
regrado da literatura de mercado, um fato correlato questo do esforo
necessrio para ler um e outro tipo de texto literrio, como sintetiza Jos Paulo Paes
retomando, neste ponto, Umberto Eco:
Outro critrio de diferencia~o o esforo [] a cultura de massa se preocupa
em poupar-lhe (ao consumidor), maiores esforos de sensibilidade, inteligncia ou
mesmo aten~o ou memria []. J| a cultura de proposta n~o s problematiza todos os
valores como tambm a maneira de represent-los na obra de arte, desafiando o fruidor
desta a um esforo de interpretao que lhe estimula a faculdade crtica em vez de
adormec-la7.
Originalidade por parte da narrativa e conseqente esforo para sua fruio,
caractersticas fundamentais da alta literatura, possibilitam que ela se coloque em
um campo ideolgico e de funo social oposto ao da literatura de mercado.
A literatura trivial, ao carecer de originalidade e redundar os esquemas
perceptivos e conceituais do leitor, acaba por apenas repetir e reafirmar o mundo
tal qual ele . E essa eterna repeti~o acaba por justific|-lo: O mundo o que , e
assim porque assim que ele deve ser.
(p.28) a esse repetir e justificar o fruir convencional das coisas tal como se
encontram estruturadas no mundo real que Umberto Eco refere como o principal
mecanismo de consolao da literatura de grande difuso. Entre os vrios
mecanismos consolatrios presentes nas literatura best-seller (final-feliz, punio
dos malvados, os bons provam que sempre o foram), o mais fundante, [] o
mais satisfatrio e consolador o fato de que tudo continua no lugar.
Essa , para Eco, a grande satisfao, a grande tranqilidade que a
paraliteratura oferece a seu leitor. Consola~o pela reitera~o do esperado. a
certeza de que se alguma coisa muda apenas para que tudo permanea imut|vel.
6 Tzvetan Todorov, Tipologia do Romance Policial, em Potica da Prosa, p, 58.
7 Jos Paulo Paes, Por uma Literatura Brasileira de Entretenimento, em A Aventura Literria: Ensaio
sobre Fico e Fices.
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por isso que, para Eco, a literatura de facilitao um fenmeno do campo da
psicologia social8.
J, por outro lado, a possibilidade de constituir uma viso singular do mundo
e de alterar as percepes e conceituaes mecanizadas permite alta literatura o
afastamento da reles empiria, do eterno justificar do fruir convencional do mundo
como ele e requisito indispensvel para toda verdadeira arte e cultura
abrem-se as portas da promessa, do que a vida poderia ser, mas no , em um
mundo mecanizado, alienado e reificado.
Adorno retrata essa oposio desta maneira:
Aquilo que em geral e sem mais se poderia chamar cultura, queria, enquanto
expresso do sofrimento e da contradio, fixar a idia de uma vida verdadeira, mas no
queria representar como sendo vida verdadeira a simples existncia (p.29) (Dasein) e
as categorias convencionais e superadas da ordem, com as quais a indstria cultural a
veste, como se fosse a vida verdadeira, e essas categorias fossem a sua medida9.
Da Teoria do Degrau Teoria do Filtro
Buscando abrir mais o leque de problemas que envolvem a noo de best-
seller, vejamos brevemente, em grandes divises, as principais posies avaliativas a
respeito desse fato da comunicao de massa.
Uma primeira posio frente literatura de mercado poderia ser chamada de
teoria do degrau, ou seja, concebe-se a literatura trivial como uma primeira etapa,
um degrau de preparao do leitor para torn-lo apto a enfrentar textos da
literatura de proposta. Entre ns, brasileiros, um adepto dessa postura Jos Paulo
Paes, que afirma:
Da massa de leitores destes ltimos autores (Alexandre Dumas ou Agatha
Christie) que surge a elite dos leitores daqueles (Gustave Flaubert e James Joyce) e
nenhuma cultura realmente integrada pode se dispensar de ter, ao lado de uma
vigorosa literatura de proposta, uma no menos vigorosa literatura de entretenimento.
Citemos mais um trecho de Paes para reforar essa idia: [] em rela~o a
esse nvel superior, ali|s, que uma literatura mdia de entretenimento,
estimuladora do gosto e do hbito da leitura, adquire (p.30) o sentido de degrau de
acesso a um patamar mais alto []10.
8 Umberto Eco, Apocalpticos e Integrados, pp. 190-206.
9 Theodor W. Adorno, A Indstria Cultural (conferncia radiofnica), em Gabriel Cohn (org.),
Comunicao e Indstria Cultural, p. 292.
10 Jos Paulo Paes, op. cit. Enfocamos aqui trs posies crticas; no mencionaremos posturas que
consideram qualquer leitura, por si s, positiva.
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Esta teoria do degrau se ope ao que podemos chamar de teoria do hiato e
regress~o, ou seja, { afirma~o de que h| um hiato intransponvel entre a alta
literatura e a de mercado, e de que esta ltima jamais poder ser via de acesso
literatura maior, uma vez que a literatura de entretenimento no s no se
sedimenta, como tambm um instrumento da regresso do esprito, no capaz de
conduzir a uma conscincia crtica autnoma, mas eternamente repete e justifica o
status quo.
Habermas bastante adorniano ao afirmar que a intimidade com a cultura
exercita o esprito, enquanto que o consumo da literatura de massa no deixa rastro:
ela transmite uma experincia que n~o acumula, mas faz regredir11. Nesse caso, o
autor est utilizando o termo literatura de massa no sentido de facilitao
psicolgica.
Uma terceira posio frente literatura de mercado no a aborda nem como
degrau de acesso alta literatura, nem como seu antagnico absoluto, mas assume
outro ngulo de viso.
Essa terceira postura chamemo-la de teoria do filtro postula que os
efeitos perniciosos da indstria cultural podem ser diludos ou at mesmo
eliminados e revertidos graas a um filtro de rejeio e seleo de que o consumidor
disporia.
(p.31) Alfredo Bosi, um dos representantes desta posio, no que se refere a
pelo menos um segmento social, o povo, sintetiza assim sua postura:
O povo assimila, a seu modo [] H| um filtro com rejeies macias da matria
impertinente, e adaptaes sensveis da matria assimil|vel [] incorporados ou
reincorporados pela generosa gratuidade do imaginrio popular12.
Em outro texto, Alfredo Bosi salienta que a alta cultura e a cultura popular
so esses elementos filtrantes. Ou seja, quem, parte dos produtos da indstria
cultural, viver a plena experincia da cultura popular ou da erudita ter uma
capacidade de filtragem oriunda da resistncia que tm estas esferas culturais.
Da corrente de representaes e estmulos o sujeito s guardar o que a sua
prpria cultura vivida lhe permitir filtrar e avaliar. Mas para que se faam a seleo e a
crtica das mensagens, preciso que o esprito do consumidor conhea outros ritmos
que no o da indstria de signos. Se isso no ocorrer, teremos, no limite do sistema, o
11 Jrgen Habermas, Mudana Estrutural da Esfera Pblica, p. 196.
12 12. Alfredo Bosi, Cultura Brasileira e Culturas Brasileiras, em Dialtica da Colonizao, p. 329.
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homem unidimensional de Marcuse, com todos os riscos polticos que traz a
massificao13.
Ecla Bosi, por sua vez, enfatiza que quando se fala em cultura popular como
filtro cultura de massa deve-se falar em cultura popular vivida como (p.32)
enraizamento, ou seja, como participa~o real, ativa e natural na existncia de uma
coletividade14.
Para Avaliar a Literatura Best-seller no Brasil
Estas trs posturas frente literatura de massa, que para efeitos de
organiza~o chamamos aqui de teoria do degrau, teoria do hiato e da regress~o e
teoria do filtro, mesmo com seus antagonismos podem esclarecer aspectos
diversos da literatura best-seller. Entretanto, cada uma destas posies toma outras
feies se pensarmos nas conseqncias de adot-las frente a um mercado editorial
e a uma realidade social como os encontrados no Brasil.
Em rela~o ao que denominamos aqui teoria do degrau, impe-se pensar
que seu alcance limitado quando se reconhece, no Brasil, a passagem de uma
cultura oral para uma eletrnica sem mediao significativa da cultura escrita15 e a
inquestionvel hegemonia cultural da televiso no pas, meio que se dedica
prioritariamente ao entretenimento16. Em vista desses fatos no podemos
considerar que a televiso no Brasil j domina o espao do entretenimento (p.33) e
portanto seria suprflua a defesa de uma literatura de igual teor?17 Ao defendermos
tal literatura no estaramos, em ltima instncia, defendendo uma literatura a
reboque da televiso e portanto apenas reforadora desta?
Quanto { teoria do hiato e da regress~o, impem-se a admirao e o
reconhecimento pela precisa caracterizao da comunicao de massa e dos efeitos
regressores desta. Entretanto, diante do Brasil de hoje e em termos de literatura,
cabe indagar se tal postura no conduziria, no limite, a um imobilismo ou ento a
13 Alfredo Bosi, Plural mas n~o Catico, em Alfredo Bosi (org.), Cultura Brasileira: Temas e Situaes,
p. 10.
14 S. Weil, A Condio Operria e Outros Estudos sobre Opresso, p.317. Citado como epgrafe por Ecla
Bosi, Cultura e Desenraizamento, em Alfredo Bosi (org.), op. cit., p. 16.
15 Cf. Hans M. Enzensberger, Enzensberger: Poder e Esttica Televisiva (entrevista concedida a S.
Caparelli e A. Hohlfeld), Revista Brasileira de Comunicao, 53, pp. 10-11. Cf. tambm Jos Paulo Paes,
op. cit.
16 . Cf. Jos Marques Melo, Para uma Leitura Crtica da Comunicao, p. 79.
17 Vrios estudos parecem indicar, em nvel internacional, que a televiso ocupou o lugar da
literatura leve, mas no o da grande literatura. Cf. Jos M. Melo, op. cit., pp. 20-21.
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uma radicalizao elitista em termos de ao e anlise cultural, dados a alta margem
de analfabetismo e o pequeno percentual de leitores regulares no pas.
A ltima postura abordada esquematicamente neste texto e denominada aqui
de teoria do filtro sem dvida a que oferece maior desafio e responsabilidade
para os pensadores da cultura no Brasil, uma vez que, para ela, a defesa contra os
efeitos nocivos da indstria cultural e da paraliteratura (afirmao que esta posio
partilha com a teoria do hiato) passa n~o s pela defesa e salvaguarda da alta
cultura e da obra de arte liter|ria (como na teoria do hiato), mas tambm por
esferas e problemas como cidadania, vivncia, interao em um corpo social, formas
de produo e mecanismos de acesso a produtos culturais outros, diferentes e
divergentes dos da cultura massiva e massificada.
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Anos 60
Exploso Qualitativa da Fruio Privada
(p.37) As vigorosas manifestaes artstico-culturais a que assistimos no
Brasil de 1964 a 1969 foram, como demonstrou Roberto Schwarz, uma espcie de
flora~o tardia, o fruto de dois decnios de democratiza~o1. esse deslocamento
cronolgico que explica um movimento cultural to ativo e participante em um
momento de fechamento poltico e econmico, em plena ditadura.
Esses pouco mais de quinze anos de democracia, em que o movimento
cultural esteve prximo da massa camponesa e oper|ria, resultaram numa das
fases mais criativas da cultura brasileira, neste sculo2, que perseverou e
desabrochou aps a democracia ter sido derrubada e essa aproximao bloqueada,
com o golpe de 1964. E assim, o produto cultural flora~o tardia deste contato
passa a ser consumido apenas por uma das partes que estavam na origem desta
equao (p.38) os intelectuais, estudantes, a classe mdia urbana intelectualizada
Desfeitos os contatos entre movimento cultural e massa, esses bens culturais
passam a atingir apenas o prprio grupo de seus produtores e seus entornos sociais,
o que no impediu sua espantosa expanso. O governo militar, em seu primeiro
momento, n~o impediu a circula~o terica ou artstica do ide|rio esquerdista, que
embora em |rea restrita floresceu extraordinariamente3.
A Exploso da Platia
Os principais grupos que fizeram o panorama cultural brasileiro do perodo
suas propostas, desdobramentos, limitaes foram retratados por Roberto
Schwarz em seu referido artigo. Para nossos intuitos no presente estudo, convm
ressaltar um trao comum ao perodo: a import}ncia dos gneros pblicos, do
teatro, affiches, msica popular e jornalismo que transformam este clima em festa e
comcio4. na solidariedade e auto-adulao da platia, ou de outras formas de
fruio e consumao pblica, que setores da classe mdia urbana intelectualizada,
* Este texto foi publicado originalmente, com pequenas diferenas, no Cadernos de Jornalismo e
Editorao, 11 (26), So Paulo, Com-Arte, ECA-USP, dez. 1990.
1 Roberto Schwarz. Cultura e Poltica, 1964 1969, em O Pai de Famlia e outros Estudos, p. 89.
2 Chico Buarque e Paulo Pontes, Apresenta~o de Gota d'gua, p. XVI.
3 Roberto Schwarz, op. cit., p. 62.
4 4. Idem, p.80.
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produtores e consumidores da cultura de esquerda de ento, expiavam seus
fantasmas e lavavam as roupas sujas da revoluo que lhes deixara como herana o
fato de, a partir de ento, falarem apenas entre si. (p.39) Essa produo cultural
represada adquiria na fruio conjunta um tom de comcio, festa, solidariedade e
exalta~o ao engajamento, esse tom exortativo e mobilizante que envolvia a todos
parecia promover antes a resposta emocionada e esperanosa do que a reflexo e o
distanciamento crtico5.
Neste contexto de valorizao dos gneros pblicos, a literatura, que a partir
do sculo XVIII6 a fruio privada por excelncia, sai do primeiro plano.
Apesar de a literatura estar em segundo plano neste perodo em relao aos
gneros pblicos, foi nas pginas impressas, nos livros tericos e ficcionais, que
muitas idias e posturas, que afloraram nos palcos e telas de ento, tiveram suas
origens, desenvolvimentos e embates. Como observou Zuenir Ventura:
A gerao 68 talvez tenha sido a ltima gerao literria do Brasil pelo menos
no sentido em que seu aprendizado intelectual e sua percepo esttica foram forjados
pela leitura. Foi criada lendo, pode-se dizer, mais do que vendo7.
Mercado Editorial nos Anos 60
Este captulo visa de forma breve, geral e inicial, reunir alguns dados sobre o
mercado editorial brasileiro na dcada de 1960 e, a partir desses dados, traar
algumas observaes e levantar algumas hipteses.
(p.40) Inicialmente vejamos alguns aspectos quantitativos do mercado
editorial da poca.
Em 1960, foram publicados no Brasil 36 322 827 exemplares de livros8. Uma
vez que a populao brasileira era de 65 743 000 habitantes, teremos uma mdia de
0,55 livros por habitante ao ano (a tiragem total estava dividida entre 3 953 ttulos).
5 Helosa B. Hollanda e Marcos Gonalves, Cultura e Participao nos Anos 60, p. 94.
6 Jrgen Habermas, op. cit., cap. V.
7 Zuenir Ventura, 1968: O Ano que no Terminou, p. 51.
8 A conceituao de livros do IBGE exclui folhetos (publicaes com menos de 48 pginas). Salvo
indicao em contrrio, todos os dados referentes ao Brasil foram extrados dos Anurios Estatsticos
do Brasil e dos Censos Demogrficos de 1960 e 1970 publicados pelo IBGE.
* O IBGE no dispe de dados sobre esse item referentes aos anos de 65, 66, 68 e 70. possvel que
os dados referentes a 67 abranjam a produo de 65 e 66. Mesmo a produo de 69 pode estar
superestimada.
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Quadro 1
Relao livros por habitante/ano em alguns anos da dcada de 1960.
Ano Populao do Brasil Tiragem total de livros publicados
Livros por hab./ano
1960 65 743 000 36 322 827 0,5 1961 71 868 000 36 322 827 0,4 1962 74 096 000 66 559 000 0,9 1963 76 409 000 54 222 606 0,7 1964 78 809 000 51 914 564 0,6 1967* 86 580 000 154 899 825 2,1 1969 92 282 000 68 583 400 0,7
(p.41)O mercado editorial brasileiro se mantm nesses nveis extremamente
baixos durante toda a dcada 60, registrando ndices que no ultrapassam a
barreira de um livro por habitante ao ano. A transposio deste patamar s se dar
no incio dos anos 70.
Os mais Vendidos
Uma reportagem da revista Veja, nmero 15, de 18 de dezembro de 1968,
sugerindo livros como presentes de Natal, afirma que a poca foi de explos~o
editorial e que o leitor j| conta com a mdia de seis livros novos interessantes por
ms. Apesar de ser pequena a produ~o editorial do perodo, v|rios memorialistas
dos anos 60 partilham essa sensa~o de explos~o, a qual deve ser creditada muito
mais qualidade dos ttulos impressos, do que quantidade da produo editorial,
que foi pequena, como vimos.
Para termos uma pequena viso dos ttulos publicados e dos hbitos de
leitura dominantes ento, tomemos como amostra o ano de 1968 e, no interior dele,
o perodo que vai de 11 de setembro a 11 de dezembro, atravs da listas dos mais
vendidos da revista Veja9.
O marco inicial 11 de setembro de 1968 deve-se ao fato de esta ser a data
de publicao do nmero 1 da revista Veja da qual utilizamos os dados (p.42)da
se~o Livros mais Vendidos, e a data limite da utiliza~o desta se~o neste estudo
deve-se ao fato da listagem de 11 de dezembro de 1968 ser a ltima publicada antes
da decretao do Ato Institucional 5 (13.12.1968), fato que, grosso modo, pelo
menos culturalmente, pode ser considerado como encerrando a dcada de 1960 e
abrindo os anos 70 no Brasil.
A utilizao de tal amostra acarreta vrios problemas e limitaes, dos quais
os mais graves so:
9 A revista Veja, 15, 19, 22 e 24, publicou, com algumas falhas, esta seo at 5 de maro de 1968. A
partir de ento a seo vai se espaando, at ser totalmente suspensa por alguns anos.
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1. a brevidade do per odo abrangido;
2. a falta de informao es sobre os crite rios ou os locais dos levantamentos de dados;
3. a na o-manutena o do mesmo nu mero de t tulos nas listagens a menor delas (4 de dezembro de 1968) aponta apenas cinco livros e as maiores apontam doze t tulos sendo a me dia dez indicao es.
No localizamos outra revista ou jornal que mantivesse seo anloga
durante o perodo em questo; tambm no localizamos dados sobre os mais
vendidos do perodo em geral, nem na Cmara Brasileira do Livro, nem no Sindicato
Nacional dos Editores de Livros, nem na Editora Nobel, entidades que atualmente
fazem esse tipo de coleta. Com exceo das publicaes do IBGE, que so estatsticas
gerais e no informam sobre ttulos especficos, parece que as coletas de dados
sobre mercado editorial s comearam a ser feitas mais sistematicamente a partir
de 1970, com o chamado milagre brasileiro.
Mesmo levando em conta essas limitaes, possvel a utilizao desses
dados, desde que sejam vistos (p.43) apenas como termmetros, como
sinalizadores das publicaes e leituras de ent~o. Feitas essas ressalvas, passemos
listagem.
Se fizermos um balano das catorze listagens semanais de 11 de setembro a
11 de dezembro de 1968, obteremos os seguintes ttulos como os mais vendidos:
1. Aeroporto, Arthur Hailey, Nova Fronteira
2. Um Projeto Para o Brasil, Celso Furtado, Saga
3. Eros e Civilizao, Herbert Marcuse, Zahar
4. O Desafio Americano, Jean-Jacques Servan-Schreiber, Expressa o
5. Minha Vida, Meus Amores, Henry Spencer Ashbee, Hemus
6. Ideologia da Sociedade Industrial, Herbert Marcuse, Zahar
7. Materialismo Histrico e Existncia, Herbert Marcuse, Tempo Brasileiro
8. Como Desenvolver a Memria, Joyce D. Brothers, Distribuidora Record
9. Homem ao Zero, Leon Eliachar, Expressa o
10. Kama Sutra, Vatsyayama, Coordenada de Bras lia
11. A Inglesa Deslumbrada, Fernando Sabino, Sabia
12. Filosofia na Alcova, Marque s de Sade, Conto rno
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A primeira observao que essa listagem suscita diz respeito ao ttulo mais
vendido Aeroporto, de Arthur Hailey. Tal ttulo e sua indiscutvel liderana de
vendas (ele o primeiro colocado nas catorze listas investigadas) atestam a fora da
presena da chamada literatura de mercado, ou literatura da indstria do best-seller,
entre ns, j na dcada de 1960, quando (p.44) a produo editorial no era um
negcio to rendoso como passou a ser a partir dos anos 70.
Se aceitarmos que a literatura de mercado divide-se em masscult produtos
despretensiosos que visam a um lazer francamente fugaz e descartvel e midcult10
produtos to banais quanto os primeiros, mas que se revestem de um pretenso
verniz erudito , veremos que o ttulo mais vendido no perodo abordado estaria
mais prximo do masscult, ao contrrio dos mais vendidos dos anos 80, em que a
midcult parece dominar.
Uma segunda observao que se impe ao nos defrontarmos com esta
listagem a constatao do alto grau de aceitao de Herbert Marcuse entre os
leitores brasileiros de ento.
Carlos Nelson Coutinho, em um recente artigo que tem como alvo a recepo
de Gramsci no Brasil, nos fornece, por comparao, um coerente entendimento da
grande aceitao de Marcuse no Brasil.
Segundo Coutinho, o marxismo brasileiro at 1960 tinha como principais
fontes tericas os manuais soviticos de marxismo-leninismo11 e foi s na virada
da dcada, com o aumento da influncia da esquerda, especialmente do Partido
Comunista Brasileiro, na vida poltica e cultural do pas, que o marxismo brasileiro
iniciou um processo de abertura pluralista. Essa abertura no teria sido propiciada
pelo PCB, mas tambm no foi obstaculizada por ele. (p.45) Nessa abertura
pluralista, publicam-se no Brasil, Gramsci, Lukcs, Goldmann e Marcuse, entre
outros.
O racionalismo histrico-dialtico de Gramsci e Lukcs passou a ser visto como
expresso de uma tendncia conservadora e anacrnica. Consideravam-se mais
adequadas s urgentes tarefas impostas pela nova situao a Grande Recusa de
Marcuse e a supostamente radical Revolu~o Epistemolgica de Althusser. Misturados
ecleticamente entre si, mas tambm com Mao Ts-tung e Rgis Debray, Marcuse e
Althusser ganharam um lugar privilegiado na cultura da nossa nova esquerda, que
julgava ser a luta armada a nica via para derrotar a ditadura e resolver os problemas
do pas,
continua Coutinho.
10 Conceitos de Dwight MacDonald retomados por Umberto Eco em Apocalpticos e Integrados.
11 Carlos N. Coutinho, Cidad~o Brasileiro, Teoria e Debate, 9, pp. 58-63.
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A idia marcuseana da Grande Recusa logo comeou a ser vista como uma
louvao do irracionaIismo e Marcuse, a ser lido como terico da contracultura o
inimigo seria a cultura racionalista ocidental.
Coutinho coloca essa virada de interpretao de Marcuse como algo que se
d no Brasil nos anos 70, com o fracasso da luta armada, afirmao com a qual
concordamos desde que ela se coloque enquanto leitura dominante, mas no
exclusiva, pois, acreditamos, a segunda verso, a viso de Marcuse como terico da
contracultura, algo que se d no s a nvel de leitura, mas tambm se encontra
nos prprios textos. E no nos esqueamos de que dos trs ttulos marcuseanos
mais vendidos de setembro a dezembro de 1968 no Brasil, o mais vendido foi Eros e
Civilizao, a louvao de uma sociedade humanizada em que o instinto do prazer
deixaria de ser reprimido pelo (p.46) instinto de realidade, graas ao apaziguamento
geral da agressividade.
O Marcuse que vigorara ento nas listas dos mais vendidos era marxista no-
ortodoxo, no-determinista e preocupado com Eros, com o prazer como algo
reprimido pela civilizao e pelo racionalismo ocidental. No nos esqueamos de
que 1968 foi um ano atpico em termos de agitaes contestatrias e manifestaes
da contracultura no mundo todo e que o pensamento marcuseano tinha ento um
grande impacto internacional.
A vertente mais { direita desta abertura no pensamento poltico dos anos
60 encontra seu porta-voz no pensamento liberal de Jean-Jacques Servan-Schreiber,
fundador e editor do LExpress, cujo livro O Desafio Americano um manifesto
contra a viso antiimperialista da esquerda de ento. O prefaciador da edio
brasileira, J. Sette C}mara, enfoca assim a quest~o: O Desafio Americano no poder
deixar de provocar um grande impacto no Brasil [] ainda vemos por detr|s de cada
empresa privada americana que aqui aporta a sombra do Pentgono ou do
Departamento de Estado.
Dentro ainda da abertura pluralista que alimentava a reflexo da esquerda de
ento que podemos localizar o clssico Um Projeto para o Brasil, de Celso Furtado,
uma reunio de trs ensaios que, segundo o autor, na apresentao do volume, tinha
como finalidade identificar as causas profundas da paralisia de nosso sistema
econmico e, ao mesmo tempo, abrir um horizonte de reflexo orientado para a
busca de solues efetivas e factveis.
(p.47) Vimos que ao lado do Marcuse filsofo e cientista poltico h o
Marcuse terico da contracultura, da busca da desrepresso. Assim, Eros e
Civilizao pode ser abordado na listagem que visa caracterizar o mercado editorial
do ano de 1968 como tambm liderando uma terceira fatia temtica desse mercado
a faco composta pelos textos que pregam a liberao sexual e de costumes.
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Zuenir Ventura refere-se a uma pesquisa em livrarias que afirmaria que em cada
trs livros [] pelo menos um tratava de questes sexuais12.
Marcuse, como terico da desrepresso, teria como colegas de temtica na
listagem que estamos abordando: Kama Sutra, primeira publicao integral no
Brasil desse clssico hindu de fisiologia e moral sexual, traduzido por Marcos
Santarrita, com ilustraes fotogrficas de templos hindus; Filosofia na Alcova, do
Marqus de Sade; e Minha Vida, Meus Amores, de Henry Spencer Ashbee, relato
autobiogrfico de um estudioso e grande colecionador de arte ertica. No nos
esqueamos de que foi no ano de 1968 que os Beatles bradaram: voc diz que vai
mudar a Constitui~o, sabe, melhor liberar sua mente primeiro13.
Leon Eliachar e Fernando Sabino so representantes do quarto segmento
temtico do mercado editorial dos anos 60 que a listagem dos mais vendidos que
estamos utilizando parece indicar os textos nacionais de fico. O texto de
Fernando (p.48) Sabino, A Inglesa Deslumbrada, uma reunio de cincoenta textos
curtos que haviam sido publicados no Jornal do Brasil e nas revistas Cludia e
Manchete entre 1964 e 1966, perodo em que o autor foi correspondente em
Londres. Mais da metade das narrativas contam pequenos e cmicos problemas de
um brasileiro vivendo no exterior e a viso do pas pelos estrangeiros.
Explicitamente cmico, o livro de Leon Eliachar, O Homem ao Zero, rene
charges, piadas, pequenas crnicas, e apresentado como um descongestionante
cerebral com bula e tudo.
A tradio de uma literatura explicitamente cmica e voltada ao retrato do
pas (iniciada por Stanislaw Ponte Preta, com Tia Zulmira e Eu, 1961, e Festival de
Besteira que Assola o Pas I, 1965), que Leon Eliachar representa na listagem de
1968, encontrar um amplo desenvolvimento nos anos seguintes com o prprio
Eliachar (O Homem ao Quadrado, o Homem ao Cubo) e com a continuao do
trabalho de Millr Fernandes, sem falarmos no tablide O Pasquim, lanado em
junho de 1969.
O ttulo Como Desenvolver a Memria, de Joyce Brothers, no merece maiores
comentrios. Trata-se de um exemplar do segmento Viva melhor/Desenvolva suas
habilidades, que sempre teve e, parece, sempre ter| espao no mercado editorial. A
mesma psicloga americana lanou nos anos 70, no Brasil, pela mesma editora, um
ttulo anlogo: Como Conseguir Tudo o que Voc Quer na Vida.
Tomando, de forma geral, a lista dos mais vendidos de setembro a dezembro
de 1968 como indicadores (p.49)da produo editorial e dos hbitos de leitura
dominantes nos anos 60, veremos que algumas tendncias se mantm at hoje:
12 Zuenir Ventura, op. cit., p. 33.
13 Como j observou a respeito do tema Jos Saffioti Neto na Introdu~o de Tropiclia: 20 Anos, p.
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1. predom nio dos textos na o-ficcionais sobre os ficcionais (excluindo os infantis e os dida ticos);
2. predom nio do autor estrangeiro sobre o nacional;
3. manutena o de alguns blocos tema ticos como os preferidos de vendagem: sexo e comportamento, pol tica e economia.
Veremos, no entanto, que uma tendncia atual aparecia invertida: apenas
trs entre os doze ttulos mais vendidos podem ser identificados como produtos
elaborados visando explcita e dominantemente ao sucesso de vendas (Aeroporto,
Minha Vida, Meus Amores e Como Desenvolver a Memria). Alguns outros textos
podem ter sido oportunamente aproveitados pelo mercado editorial (Kama Sutra,
por exemplo), mas no so textos que j tragam, no processo mesmo de sua
elaborao, a vendagem e as listas dos mais vendidos como meta central, no so
puramente frutos da indstria de best-sellers, tais como os textos que parecem
predominar nas listagens dos anos 80.
Estamos nos detendo aqui nos livros publicados, mas no podemos deixar de
mencionar que na dcada de 1960 surgiram, no panorama cultural e editorial
brasileiro, as revistas de poltica e cultura, que tiveram grande impacto e eram lugar
de um acirrado debate dos problemas do pas especialmente Revista Civilizao
Brasileira, Paz e Terra, Teoria e Prtica e aParte, respectivamente em 1965, 1966,
1967 e 1968.
(p.50) Observaes Finais
As fortes manifestaes artstico-culturais da dcada de 1960 no Brasil que
ocorreram principalmente nos gneros pblicos cinema (Cinema Novo), teatro
(Arena, Oficina) e msica (fase engajada da msica popular brasileira,
Tropicalismo) continham, cada uma a seu modo, uma viso de Brasil e uma
proposta de atuao nesta realidade. No se pode dizer que houve uma proposta
ficcional brasileira com o mesmo esprito. H livros isolados que vo nesse sentido,
como por exemplo Quarup (1967), de Antnio Callado, talvez o ltimo romance
brasileiro com uma abordagem totalizante do Brasil, mas no h movimentos
liter|rios de grande divulga~o e impacto nessa dire~o. A explos~o do mercado
editorial nos anos 60 no se deve ao fato de, tal como nos gneros pblicos, terem
surgido movimentos literrios polmicos e relevantes.
Vimos que a sensa~o de explos~o do mercado editorial na dcada de 1960
no pode ser creditada ao aspecto quantitativo do mesmo; vimos, tambm, que ela
no pode ser justificada simplesmente por caractersticas formais desse mercado
(blocos temticos predominantes, nacionalidades dos autores mais vendidos,
predomnio do no-ficcional sobre o ficcional); vimos ainda que ela no se deu,
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como nos gneros pblicos, pela publicao de textos que representassem sem
grandes e polmicos movimentos literrios que refletissem o Brasil de ento.
Essa explos~o foi uma explos~o qualitativa que se deu num reforo mtuo
entre o pblico leitor e editores. Leitores que dispunham, nos gneros pblicos,
(p.51) de obras polmicas e de flego (elaboradas por produtores culturais de
formao literria) e que buscavam nos livros a mesma qualidade e relevncia. E
produtores editoriais, que, para acompanhar esse pblico e vender seus livros,
tinham que se aprimorar qualitativamente cada vez mais. Esse processo parece
tambm ter sido represado em 1968.
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Anos 70
Industrializao e Segmentao da Cultura
(p.55) Brasil de 1970 a 1973: sob a presidncia do General Emlio Garrastazu
Mdici, empossado em 1969, o pas vive o milagre brasileiro, o clima do Brasil
grande potncia, a poltica do desenvolvimento acelerado uma dcada em um
ano*. A classe mdia passa a ter acesso a eletrodomsticos, a comprar em
supermercados e shopping centers, para onde vai de carro prprio. noite assiste-se
a televiso 80% dos lares urbanos possuem o aparelho. A Rede Globo instaura a
sua hegemonia. O Jornal Nacional, com durao de quinze minutos, exibido por essa
rede, integra o pas com seus altos ndices de audincia e sua viso harmnica do
pas concatenada ao esprito Brasil Grande1.
O santo que produziu o milagre conhecido []: a brutal concentra~o de
riqueza elevou, ao paroxismo, a capacidade (p.56) de consumo de bens durveis de uma
parte da populao, enquanto a maioria ficou no ora-veja. Forar a acumulao de
capital atravs da drenagem de renda das classes subalternas no novidade nenhuma.
Novidade o grau, nunca ousado antes, de transferncia de renda de baixo para cima2,
afirmam, em 1975, Chico Buarque e Paulo Pontes. Mas, no incio dos anos 70, a
classe mdia no ouvia falar desta contraface de sua felicidade.
Os primeiros anos da dcada de 1970 inserem-se em um perodo que foi
chamado por Luiz Carlos Bresser Pereira de segundo ciclo industrial no Brasil3.
Nesse perodo o Produto Interno Bruto cresceu a uma taxa anual de 11,3% e o
* Este texto foi publicado originalmente na revista Comunicao & Sociedade, 20, Ed. IMS, So
Bernardo do Campo, So Paulo, dez. 1993. Uma verso levemente modificada apareceu em Gneros
Ficcionais, Produo e Cotidiano na Cultura Popular de Massa, organizado por Slvia Borelli (So
Paulo/Braslia, Intercom/CNPq/Finep, 1994).
1 Os dados histricos foram extrados principalmente de: Anurios Estatsticos do Brasil e Censos
Demogrficos, IBGE; Suplemento Especial AI-5, O Estado de S. Paulo, 13 dez. 1978; Memria
Fotogrfica do Brasil no Sculo XX, Nosso Sculo, vol. V.; Carlos Eduardo Lins da Silva, Muito alm do
Jardim Botnico; Ferno Ramos (org.), Histria do Cinema Brasileiro; Laurence Hallewell, O Livro no
Brasil: Sua Histria; Luiz Carlos Bresser Pereira, Desenvolvimento e Crise no Brasil. 1930-1983.
2 Chico Buarque e Paulo Pontes, Introdu~o de Gota d'gua, p. xi.
3 Luiz Carlos Bresser Pereira, op.cit., p.218 (todo o pargrafo est baseado nesse texto).
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produto industrial a 12,7% taxas que eram de 3,2% e 2,6% respectivamente de
1963 a 1967 e que sobem a 5,4% entre 1974 e 1981.
Em 1974, por vrios fatores internos vinculados aos equvocos do processo
de expanso e pelo fator exgeno do primeiro choque do petrleo, tem incio um
processo de desacelerao econmica que resultar na recesso de 1981.
No h uma poltica cultural correlata fase urea do milagre econmico.
Se podemos falar de uma atuao estatal em relao produo e veiculao
(p.57) de produtos culturais, essa a da censura e do expurgo. Da msica ao jornal,
do cinema novela de televiso, a produo cultural submetida ao crivo da
censura, pouco daquilo que tem algum cunho crtico ou polmico ultrapassa este
crivo. No so poucas as histrias das atitudes mal informadas dos censores, assim
como das tticas para dribl-los.
Em um Suplemento Especial de 13 de dezembro de 1978, o jornal O Estado de
S. Paulo afirma:
Cerca de 500 filmes de longa-metragem, 450 peas teatrais, dezenas de
programas de rdio, 100 revistas, mais de 500 letras de msica e uma dzia de sinopses
e captulos de telenovela foram censurados nos ltimos dez anos. Os dados no so
exatos pois muitas obras no chegaram a receber o crivo da censura. Simplesmente
foram esquecidos e, portanto, n~o houve divulga~o dos nmeros de proibies []. No
caso do cinema no existe apenas a interdio de filmes, mas tambm cortes e
restries de idade. A televiso e o rdio tambm sofreram limitaes, que atingiram
toda a programa~o [].
Aqui e ali, algumas obras com posturas mais crticas conseguem chegar at o
pblico, mas suas vozes no eram numerosas e altas o suficiente para encobrir a
entonao da marcha Pra Frente Brasil ou o coro do Eu te amo, meu Brasil.
Mais Livros nos Anos do Milagre Econmico Segundo os dados do IBGE, em 1972 ultrapassa-se no Brasil a barreira de um
livro por habitante ao (p.58) ano. A populao nesse ano de 98 milhes de
habitantes e produzem-se 136 milhes de livros. Em 1972, editou-se 1,3 livro por
habitante, contra 0,8 do ano anterior. Com algumas distores, essa proporo se
manter crescente durante a dcada, atingindo o ndice de 1,8 em 1979.
QUADRO 1
Relao entre a populao do Brasil e a tiragem de livros nos anos 70*
Ano Populao do Brasil Tiragem total dos livros publicados
Relao de livro por hab/ano
1971 95,9 80,1 0,8 1972 98,6 136,0 1,3
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1973 101,4 136,0 1,3 1974 104,2 144,7 1,3 1975 107,1 137,8 1,2 1976 110,1 147,2 1,2 1977 113,2 164,8 1,3 1978 116,3 186,7 1,6 1979 119,6 222,6 1,8
* dados em milhes
Que fios vinculam o momento referido e o crescimento do mercado editorial?
Como se comportou o mercado editorial brasileiro no decorrer dos anos 70?
(p.59) Polticas do Estado: Censura e Mecenato Dirigido
A fim de esboar possveis hipteses acerca dos fatos mencionados, preciso
primeiramente nuanar a questo, no abordando a dcada de 1970 do ponto de
vista cultural de maneira monoltica. Para tanto, a dcada de 1970 ser subdividida
em pelo menos trs grandes momentos: um, at 1974, que se caracteriza pela
ausncia de uma poltica cultural e pela atitude da supresso, represso e expurgo;
um segundo, a partir de 1975, marcado pela Poltica Nacional de Cultura (PNC),
formulada por Ney Braga e pelo Conselho Federal de Educao, e outro, ainda, a
partir de 1979.
Com a PNC o estado autoritrio procura centralizar sua atuao e exercer um
mecenato em rela~o { produo cultural e artstica por meio de prmios,
incentivos e financiamentos.
Centraliza~o baseada em qu? Na necessidade de revalida~o do patrimnio
histrico e cientfico brasileiro, com o intuito de conservar o smbolo de nossa
histria []. N~o isento o incentivo estatal cultura. Mecenas interessado, o governo
militar chama para si a funo de julgar as novidades que interessam ou no, o que
excessivo, apontar os males, estimular o que julga de qualidade4.
s formulas do expurgo, a PNC faz somar as de um mecenato dirigido,
concatenado com o projeto de distenso poltica do governo Geisel (1974 a 1978).
(p.60) Entre esses dois momentos, encontra-se a crise do milagre
brasileiro, que embalava os sonhos de boa parte da classe mdia. E com essa crise,
toda uma srie de redefinies e remanejamentos comeavam a ser operados na
vida poltica e cultural, culminando na formula~o da PNC.
4 Flora Sussekind, Literatura e Vida Literria, p. 22.
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Em ritmo lento, gradual e seguro, o Estado passa a gerir, sob o governo Geisel,
a crise que se anuncia na vida brasileira [] o governo Geisel prepara-se para a
transi~o reservando um lugar importante para a produ~o intelectual e artsitca5.
Esses dois grandes momentos da poltica estatal em relao vida cultural
nos anos 70 podem e devem ser nuanados e subdivididos em muitos outros que
variaram conforme o meio de comunicao envolvido (televiso, rdio, jornal,
revista, livro, cinema). Mesmo centrando-se em um nico meio, a ao da censura
variou quanto intensidade e estratgia, desnudando em alguns casos, na atuao
de varejo, a falta de critrios dos censores.
Um terceiro momento poltico-cultural merece ainda ser destacado no
decorrer dos anos 70 no Brasil. O substrato maior desse terceiro momento no se
refere a uma nova posio estatal frente cultura e arte, mas a uma vigorosa
rearticulao da sociedade civil em fins dos anos 70. Trata-se da entrada em cena do
sindicalismo do ABC e da liderana de Lus Incio Lula da Silva. No primeiro
semestre de 1979 houve uma greve de 160 mil metalrgicos no ABC. Fato
semelhante (p.61) e em maior escala ocorreu tambm em abril de 1980,
posteriormente aprovao do manifesto de criao do Partido dos Trabalhadores
(PT) em 10 de fevereiro de 1980.
O Cenrio da Industrializao da Cultura
Voltemos nossa questo central: em 1972 o mercado editorial brasileiro
ultrapassa a marca de um livro por habitante ao ano. Essa marca, com oscilaes,
ser ascendente no decorrer da dcada de 1970.
Para abordar esses dados em seu aspecto quantitativo preciso, de incio,
levar em conta dois indicativos bsicos. O primeiro a queda da taxa do
analfabetismo de 39% para 29% entre os anos de 1970 e 1980, tomando-se por
referncia o total da populao com mais de cinco anos, e o segundo o crescimento
do nmero de estudantes universitrios de cem mil para quase um milho no
mesmo perodo.
O crescimento do nmero de universitrios alicerou-se basicamente nas
instituies privadas de ensino de terceiro grau. O estado autoritrio transferiu ao
mercado e ao capital privado a tarefa da expanso do ensino superior e tambm
parte do ensino de primeiro e segundo grau.
Quanto diminuio das taxas de analfabetismo, elas resultaram em parte de
vrias campanhas estatais, civis e eclesisticas, incluindo a, como iniciativa e no
tanto como efeitos, o malfadado projeto Mobral (Movimento Brasileiro de
Alfabetizao). Encerrado em 1975, o Mobral respondeu a uma Comisso
(p.62)Parlamentar de Inqurito que averiguou suas irregularidades.
5 Idem, ibidem.
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Correlatamente a esses dados vinculados ao mbito educacional e cultural,
preciso mencionar ainda o crescimento do Produto Interno Bruto no perodo de
1967 a 1973, propiciando uma maior capacidade de consumo por parcelas da
populao. Essa maior capacidade de consumo foi tambm alimentada
artificialmente pela instituio do crdito direto ao consumidor. No perodo ureo
do milagre econmico, compra-se e consome-se mais no pas.
Esses indicadores so o cenrio em que se desenrolar uma certa
rearticulao da indstria cultural brasileira no panorama ps-68. A comunicao
de massa, que j estava em andamento desde 1930 no Brasil, na dcada de 1970 se
tornar| solidificada, amadurecida e industrializada.
Outro dado importante para enfocar o crescimento editorial no Brasil
decorreu da aplicao de uma lei de 1968, permitindo que vrios pontos do
comrcio varejista atuassem como pontos de venda de livros, entre eles, farmcias,
supermercados e postos de gasolina. Os efeitos dessa lei no foram
quantitativamente muito significativos: 2,2% do total dos livros comercializados em
1973 o foram nestes pontos; essa porcentagem sobe para 4,4% em 1978 e decai
para 2,1% em 1979. Mesmo assim, essa lei no deixou de ser uma atitude em prol da
difuso do livro.
O nmero de vendas de livros em papelarias e bancas de jornal
quantitativamente mais significativo: em 1973, 9,6% do total dos livros
comercializados foram vendidos em papelarias e 2,2% em bancas de (p.63)jornal;
em 1979, 6,0% foram distribudos em papelarias e 20,9% em bancas de jornal.
Quem mais se beneficiou das bancas de jornal como pontos de venda de
livros foi a Editora Abril, com suas colees de livros e de fascculos a serem
encadernados. A Bblia mais Bela do Mundo foi o primeiro empreendimento (1965)
da Abril no setor de fascculos. Para sua distribuio e comercializao, a Abril
utilizou a rede de dezoito mil bancas que j eslava montada no pas em funo da
distribuio das revistas da editora.
A partir da seguem-se muitas outras colees, entre as quais a coleo de
livros de filosofia Os Pensadores iniciada em 1974 e a de livros de economia, Os
Economistas, iniciada em 1982. As tiragens oscilavam entre cincoenta mil e
quinhentos mil exemplares. Um claro caso de industrializao profissional da
produo e da comercializao editorial.
Mencionando o aspecto quantitativo do crescimento inicial do mercado
editorial brasileiro dos anos 70, passaremos agora a abordar as mudanas do perfil
dos livros vendidos em livrarias durante o decorrer da dcada. Buscaremos verificar
tambm se h vnculos entre esses perfis dominantes e os vrios momentos
scioculturais pelos quais o pas passou no perodo.
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A Expanso da Televiso e o Mercado Editorial
A televiso o meio de comunicao mais influente no Brasil e em torno
dela que gira a indstria (p.64) cultural. O Estado autoritrio teve o seu papel no
estabelecimento dessa influncia.
O vertiginoso crescimento da TV no Pas era condio essencial para o sucesso
do modelo econmico adotado a partir de 1964. O Estado jogou alto para que o nmero
de aparelhos de TV se disseminasse pelo Brasil: construiu um moderno sistema de
microondas, abriu possibilidade de crdito para a compra de receptores, forneceu a
infra-estrutura indispensvel para sua expanso. E os objetivos a serem atingidos no
eram apenas de ordem ideolgica []. A televis~o teve como fun~o a partir de 64 a
operao de acelerar o processo de circulao do capital para viabilizar a forma de
acumulao monopolista adotada desde ento6.
Enfocando essa mesma questo e centrando-se no perodo ps-69, Srgio
Mamberti, citando Eugnio Bucci, comenta: O grande projeto cultural da ditadura
foi, sem dvida alguma, o fortalecimento e a ampliao das redes nacionais de
televiso, alis, muito bem-sucedido7.
curioso notar que foi s no ps-69, depois do incio da implantao das
redes nacionais de televiso, que os intelectuais brasileiros abandonaram uma
atitude laudatria em relao a esse meio de comunicao de massa, passando a ser
mais cticos: A atitude adesiva e at mesmo entusi|stica, na dcada de 60, poca
urea das leituras sobre mass communication, passou a ser crtica a partir de 708.
(p.65)A expanso e o carter francamente dominante da televiso como
principal meio de comunicao no Brasil favorecem um determinado segmento no
mercado livreiro e nas listas de best-sellers: o de autores de forte presena na
televiso.
Assim, em 1971, o livro Milho pra Galinha, Mariquinha, de Marisa Raja
Gabaglia, coletnea de 33 contos publicada pela editora Sabi, vende em uma
semana dez mil exemplares s no Rio de Janeiro. Marisa atuava ento como jurada
do programa de auditrio de Flvio Cavalcanti.
Em 1973, Chico Ansio, j ento veterano humorista de televiso, tem dois
livros includos na lista dos dez livros nacionais mais vendidos do ano: O Enterro do
Ano (3) e Mentira, Terta? (6). Este ltimo livro mantm-se ainda na listagem
referente ao ano de 1974 como o 10 livro de autor nacional mais vendido. Em
6 Carlos Eduardo Lins da Silva, op. cit., p. 27.
7 Srgio Mamberti, Coment|rio a Muniz Sodr, lbum de Famlia, Rede Imaginria, p. 230.
8 Alfredo Bosi, Cultura Brasileira e Culturas Brasileiras, em Dialtica da Colonizao, p. 321.
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1974, o autor emplaca um outro livro como o 5 mais vendido: A Curva do Calombo.
Em 1975, Teje Preso o 5 mais vendido do ano no segmento de autores nacionais9.
O impacto da disseminao da televiso nos anos 70 teve um efeito nocivo
sobre o cinema: a venda de ingressos para sesses cinematogrficas, de 2,1
ingressos por habitante ao ano em 1971, decaiu para 1,3 em 1980.
(p.66) A Literatura e o Pas
A partir de 1974, comea a ficar bvio que o milagre brasileiro n~o
cumprira tudo o que prometera:
74 parece anunciar um quadro marcado pelo crescente agravamento da crise
do milagre econmico, a relativa perda de coeso entre as foras que sustentavam o
regime, o crescimento da insatisfao popular e a paulatina retomada do debate
poltico10.
A classe mdia passa a se interessar mais pela situao do pas e os produtos
culturais voltam a abordar enfaticamente o tema.
Esse interesse pela situao do Brasil contemporneo simultneo
formula~o, por parte do Estado, da Poltica Nacional de Cultura. A interven~o
estatal nos sugere o reconhecimento de uma crescente tendncia articulao
institucional da produo cultural no Brasil11. A conquista do mercado tema
sempre presente tanto da parte do Estado quanto dos produtores culturais.
A retomada das questes nacionais vai produzir toda uma literatura
politizada e engajada. Abordando essa produo literria engajada dos anos 70,
Helosa Buarque de Holanda a divide em trs tipos:
(p.67)1. romances pol ticos, que se propo em a contar a histo ria, testemunhar, colar-se ao real imediato12;
2. memo rias, relatos testemunhais;
3. o que se poderia chamar literatura de sintoma, aquela que flagra o sentimento de opressa o e angu stia caracter stico da intelectualidade e dos artistas naquele momento.
9 Todos os dados sobre ranking de best-sellers foram extrados das listas anuais de 1973 a 1978 da
revista Veja. A listagem referente a 1973 foi publicada na Veja de 02 jan. 74; a de 1974 em 08 jan. 75;
a de 1975 em 31 dez. 75; a de 1976 em 29 dez. 76; a de 1977 em 04 jan. 78 e a de 1978 em 27 dez. 78.
10 Helosa Buarque de Holanda e Marcos A. Gonalves, Poltica e Literatura: A Fic~o da Realidade
Brasileira, em Armando Freiras Filho (org.), Anos 70. Literatura, p. 31.
11 Idem, p. 37
12 Idem, p.13
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Desses trs tipos de literatura engajada, o primeiro deles, denominado aqui
romance poltico, o que aparecer nos anos 70 nas listas dos mais vendidos.
Podemos incluir nesse tpico:
Incidente em Antares, de E rico Ver ssimo, livro de autor nacional mais vendido no ano de 1973;
Solo de Clarineta, do mesmo autor, livro mais vendido em 1974 e o 9 em 1975; Calabar, de Chico Buarque de Holanda, o 4 em 1974; Fazenda Modelo, tambe m de Chico Buarque, o mais vendido em 1975; Gota d'gua, de Chico Buarque e Paulo Pontes, livro de fica o mais vendido em 1976.
preciso notar que, nos anos 70, a expanso dessa literatura explicitamente
vinculada histria recente do pas, abertamente engajada, de carter s vezes at
jornalstico, extrapola em suas causas o momento brasileiro de ento:
(p.68) A fragmentao, o fundamento do alegrico, no est na singularidade
do destino brasileiro do momento. Ela est na amplitude da histria do capital e na
impossibilidade da gente dizer, num determinado momento, a totalidade. Isso que
determina o alegrico, no a simples situao imediata do governo autoritrio de tal a
tal ano. A alegoria anterior aos anos de represso, a forma alegrica anterior13.
Segmentao do Mercado
Em meados dos anos 70, ao lado dos romances polticos e dos textos
atrelados ao star system televisivo, convivia nas listas dos livros mais vendidos uma
literatura brasileira no diretamente engajada e de feitura literria bastante
complexa e elaborada, como:
Ba de Ossos, memo rias de Pedro Nava, 3 no segmento de autores nacionais no ano de 1973;
Balo Cativo, memo rias de Pedro Nava, 6 no mesmo segmento em 1974; Cho de Ferro, de Pedro Nava, o 4 livro mais vendido em 1976 no segmento fica o; gua Viva, de Clarice Lispector, como o 8 no segmento de autores nacionais em
1973; Avalovara, de Osman Lins, 3 no mesmo segmento em 1974; As Meninas, de L gia Fagundes Telles, o 5 de 1975 e Dora Doralina, de Raquel de Queiro s, o 6 de 1975.
(p.69)Autores j consagrados em termos de vendagem mantiveram-se nas
listas dos mais vendidos nos anos 70: Jorge Amado tem seu Tereza Batista como o
13 Davi Arigucci Jr., Jornal, Realismo, Alegoria: O Romance Brasileiro Recente, Achados e Perdidos, p.
95.
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livro de autor nacional mais vendido em 1973 e 7 lugar no ano seguinte e Tieta do
Agreste foi o 3 livro de fico em 1977.
Jos Mauro de Vasconcelos reaparece em meados dos anos 70 com O Veleiro
de Cristal, 1 no segmento de autor nacional em 1973, e Vamos Aquecer o Sol, 8 no
mesmo segmento em 1974.
Quanto literatura de autor no-brasileiro aparecem nas listas de mais
vendidos principalmente representantes de uma fico norte-americana mass cult,
como O Exorcista, o mais vendido no segmento autor estrangeiro em 1973 e 1974 e
9 em 1975, Tubares, 2 em 1975, alm de Arthur Hailey, Morris West, J. Susann
(Uma Vez s pouco) e Richard Bach (Ferno Capelo Gaivota).
Mais para o final dos anos 70 teremos o boom do realismo fant|stico latino-
americano: O Outono do Patriarca, de Gabriel Garcia Marques, 2 no segmento de
fico em 1976, Conversa na Catedral, de Mario Vargas Llosa, 1 no segmento fico
em 1978, e Tia Jlia e o Escrevinhador, do mesmo autor, o 2 no mesmo segmento e
mesmo ano.
Observa-se, assim, nas listagens anuais de livros mais vendidos, em meados
dos anos 70, a convivncia de produes culturais bastante dspares: textos
atrelados ao star system televisivo, romances polticos, literatura nacional
formalmente inventiva e de difcil fruio, literatura de massa e de gosto mdio de
autores nacionais consagrados, tudo isso ao lado de narrativas de (p.70) massa de
autores norte-americanos ao boom do realismo fant|stico latino-americano. Essa
coabitao disparatada deu-se porque o crescimento do mercado e sua solidificao
conduziu a sua maior segmentao.
Fim da Dcada: Interesse pelo Brasil
Os ventos democratizantes que sopraram neste pas em 1978 e 1979, com o
surgimento de um sindicalismo forte e com o processo de abertura consolidado na
lei da Anistia em agosto de 1979, tiveram seus reflexos no mercado editorial, mais
no setor de no-fico do que no segmento literatura ficcional.
Os dez livros mais vendidos no ano de 1978 no segmento no-fico foram:
1. As Veias Abertas da Amrica Latina, E. Galeano
2. A Ditadura dos Cartis, Kurt Mirow
3. O Governo de Joo Goulart, Moniz Bandeira
4. Depoimento, Carlos Lacerda
5. Cuba de Fidel, J. L. Branda o
6. Anarquistas e Comunistas no Brasil, J. W. Foster Dulles
7. O Relatrio Hite, Shere Hite
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8. Lies de Liberdade, Sobral Pinto
9. Os Militares no Poder II, Carlos Castello Branco
10. Bagao de Beira Estrada, Ma rio Lago.
Salta vista nessa listagem a preocupao com o levantamento da histria e
a interpretao de fatos referentes ao Brasil recente.
Essa preocupao com os destinos do pas e o resgate da memria de sua
histria recente no segmento no-fico convive, no segmento literatura de fico,
com ttulos em que dominam a presena de autores no-brasileiros e temrio no-
vinculado realidade circundante imediata, como por exemplo Iluses, de Richard
Bach, e Encontro no Nevoeiro, de J. M. Simmel. A disparidade entre esses dois
segmentos do mercado editorial levou a revista Veja (27 dez.78, p. 75) ao seguinte
coment|rio: J| se disse, alis, que o leitor deste pas diverte-se em ingls e
preocupa-se em portugus.
A tematizao das controvrsias e conflitos polticos contemporneos,
dominante em 1978 no segmento no-fico, uma tendncia j verificvel desde
1974. Em 1974, Agosto 1914, de A. Soljentsin, foi o 3 livro de autor estrangeiro
mais vendido e no mesmo segmento, Arquiplago Gulag foi o 4 mais vendido de
1975.
Em 1976, no segmento no-fico, temos dois textos que enfocam mais
precisamente a poltica nacional: Os Militares e a Poltica, de Alfred Stepan (5) e O
Governo Kubitschek, de M. V. M. Benevides (6). Em 1977, o grande best-seller no
segmento no-fico foi A Ilha, de Fernando Morais, relato das observaes do
jornalista em torno de sua viagem a Cuba.
Ser em uma zona de interseco entre o chamado segmento ficcional e o
no-ficcional que, em 1979, teremos O que Isso Companheiro?, o grande best-seller
que tematiza as memrias do ex-militante poltico e (p.72) ex-exilado Fernando
Gabeira. O livro vende 80 mil exemplares em 1979 e Gabeira reacende com esse
texto um filo que se desenvolver mais na primeira metade dos anos 80.
Essa exploso da temtica nacional no segmento de no-fico parece ter
sido um bom motivo para que a revista Veja alterasse sua forma de contagem anual
de livros mais vendidos. A revista segmentou contagem em autores nacionais e
autores estrangeiros referentes aos anos de 1973, 74 e 75 e em fico e no-fico
nas listagens referentes aos anos de 1976, 77 e 7814.
14 Maria Elena O. O. Assumpo tem outra hiptese para o fato. Cf. Maria Elena O. O. Assumpo, O
Romance Brasileiro Contemporneo enquanto Produto Editorial. Segundo a autora havia um certo
paternalismo em relao literatura brasileira e o crescimento deste segmento tornou dispensvel a
antiga separao.
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Resumindo, podemos dizer que so dados importantes na abordagem do
crescimento do mercado editorial no incio dos anos 70: a queda nas taxas de
analfabetismo, o crescimento do nmero de estudantes universitrios, a
industrializao da produo e da comercializao editorial, inclusive em bancas de
jornal, e o crescimento do PIB, fatos esses correlatos ao milagre econmico.
A seguir, passamos a enfocar variaes do perfil dos livros mais vendidos em
livrarias, no decorrer dos anos 70.
Vimos que a expanso da comunicao de massa que se solidificou no Brasil
nesse perodo, centrada basicamente na televiso, foi o substrato de um
determinado segmento do mercado editorial a literatura atrelada ao star system
televisivo.
(p.73) A falncia do milagre econmico e a conscincia dos altos custos
humanos e sociais que o pas tinha pago por ele, assim como a inquietao quanto
aos rumos do futuro, vimos, incrementaram a vendagem de uma certa literatura
ficcional de temtica poltica em meados dos anos 70. Essas preocupaes aps a
Abertura e a Anistia impulsionaram as vendas dessa temtica no segmento no-
ficcional.
A segmentao de uma produo cultural voltada para o mercado, este
tambm cada vez mais segmentado, impede que se possa identificar um padro
nico no mercado editorial brasileiro. Encontramos aqui um mosaico complexo de
temticas e de nveis de complexidade textual bastante indicadores desta
segmentao.
Industrializao da produo cultural foi esse o termo com que mais nos
deparamos ao tentar entender e descrever o mercado editorial brasileiro nos anos
70, seu desempenho em vendas e a literatura brasileira a presente. O fato de
enfocar a dcada de 1970 como um perodo em que a indstria cultural e produo
cultural massificada15 se solidificaram no Brasil no implica que aceitamos uma
vis~o global da poca como a de um vazio cultural. Nossa nfase aqui, pela prpria
especificidade do tema mercado editorial, foi no aspecto quantitativo da produo
cultural do perodo e nas variaes do perfil a dominante. Isso no quer dizer que,
mesmo sem ter atingido o mercado de forma significativa, no tenha existido nesta
15 Lembremos que a oposio cultura de massa, para a grande maioria da populao brasileira, no
a cultura erudita, mas sim a cultura rstica. Cf. Srgio Miceli, A Noite da Madrinha, Concluses.
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poca produo cultural de qualidade nem elaborao16 que passasse por outros
caminhos e rumos que no os da crescente massificao da cultura.
16 Como exemplos de levantamento e anlise de produes culturais dos anos 70 que passaram ao
longo da industrializao cultural, ver, entre outros, para a poesia marginal, Carlos Alberto Messeder
Perreira, Retrato de poca: Poesia Marginal dos Anos 70, e, para a imprensa alternativa, Bernardo
Kucinski, Jornalistas e Revolucionrios: Nos Tempos da Imprensa Alternativa.
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Anos 80
Ecletismo e Oscilaes
(p.78) Dois rgos coletaram e divulgaram dados quantitativos sobre a
produo de livros no Brasil na dcada de 1980: o Sindicato Nacional dos Editores
de Livros, Snel, e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica, IBGE. Os dados de
nenhum dos dois abrangem a totalidade da dcada: o Snel no coletou dados nos
anos de 83 e 84, e o IBGE, neste tpico, enfocou apenas o perodo de 1982 a 1985.
O Snel trabalha com dados fornecidos pelas prprias editoras; como esse
fornecimento voluntrio, h possibilidade de suas concluses estarem
subestimadas. O IBGE tabula dados coletados e fornecidos por rgos federais como
o Servio de Estatstica da Educao e Cultura, do ento Ministrio de Educao e
Cultura. Ambos chegam a resultados bastante divergentes entre si.
Assim sendo, no h uma fonte inquestionvel de informaes quantitativas
confiveis sobre o mercado editorial brasileiro e que cubra todo o perodo enfocado.
Feitas essas ressalvas pode-se dizer que, no Brasil, de 1980 a 1989, a
correlao mdia anual de livros publicados por habitante ficou em torno de 1,5
livros, com momentos de pico de 1980 a 82 e em 1986.
Ciente das dificuldades relativas obteno de dados sobre o assunto, em
1992 a Cmara Brasileira do Livro estabeleceu convnio com a Fundao Joo
Pinheiro e tornou-a responsvel por coletar e tabular dados a respeito do mercado
editorial brasileiro, a partir de 1990. O procedimento da Fundao o da estimativa
sobre uma amostragem de editoras. Note-se que seus resultados referentes a 1990
so radicalmente dspares dos do Snel.
O ndice brasileiro de livros por habitante ao ano est longe do ndice dos
Estados Unidos, que algo em torno de dez livros por habitante1, mas no dos
piores do planeta. Podemos confirmar essa ltima afirmao, pelo consumo de
quilos de papel impresso (excluindo o dos jornais) ou utilizado para escrita, por
habitante, dado que um bom indicador da capacidade de produ~o de material
escrito, inclusive livros, uma vez que h muitas dificuldades de obteno de dados
sobre livros nos pases subdesenvolvidos e em desenvolvimento. Os conjuntos de
1 Conforme o presidente da Cmara Brasileira do Livro, Armando Antongini Filho, em entrevista
Abigraf, n.145, ano XVIII, mar./abr. 93, p.64.
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pases que tm menor desempenho neste ltimo indicador so os pases africanos e
os pases rabes2.
O ndice nacional de tiragem total de livros em relao aos habitantes torna-
se mais significativo se levarmos em conta a porcentagem de analfabetos e a ampla
parcela da populao que vive nos limites da sobrevivncia fsica, excluda, portanto,
de qualquer acesso ao consumo, inclusive de consumo cultural.
(p.79) QUADRO 1
Ano Populao brasileira* (a)
Tiragem total dos livros publicados segundo diferentes fontes Snel(b) IBGE(c) F. Joo Pinheiro(d)
1980 121,3 242,7 1981 124,1 218,8 1982 126,9 245,9 206,9 1983 129,8 181,3 1984 132,7 178,8 1985 135,6 161,9 197,2 1986 138,4 209,1 1987 141,6 186,5 1988 144,4 161,6 1989 147,4 155,5 1990 150,4 115,0 239,3 1991 303,4
* dados em milhes
(a) Populaa o brasileira residente projetada. Anurio Estatstico do Brasil 1990, IBGE, 50 edia o, p.63, onde consta a seguinte nota: o valor da estimativa da populaa o (referente a 1980) e superior ao Censo Demogra fico de 1980 (119 002 706), por considerar correa o de subenumeraa o inerente aos levantamentos estat sticos.
(b) Produo Editorial Brasileira 1987/1988, 1989 e 1990, Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Snel.
(c) Anurios Estatsticos do Brasil, IBGE. Considera-se livro uma publicaa o na o perio dica impressa com um m nimo de 49 pa ginas sem contar as capas, Manual de Instrues ECO 7 Bibliotecas Universitrias e Especializadas, Fundaa o IBGE / MEC / Secretaria Geral.
(d) Diagnstico do Setor Editorial Brasileiro, Ca mara Brasileira do Livro/Fundaa o Joa o Pinheiro, Belo Horizonte, abr. 1993.
(p.80) Se esta situao lamentvel de um ponto de vista poltico e humano,
revela, por outro lado, a grande potencialidade do mercado editorial no Brasil, uma
2 Unesco Sources, n.14, abr. 1990, p.7. Os dados se referem a 1987.
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vez que com uma diminuta parcela da populao em condies de ler e comprar
livros j se atingiu o patamar citado.
Alm disso, a parcela participante do consumo de livros enfrenta um
complicador que a m comercializao e distribuio dos mesmos, considerada a
pequena rede nacional de livrarias e pontos de vendas de livros.
Levando-se em conta esses obstculos expanso do mercado editorial
brasileiro e refletindo-se que, apesar deles, o mercado j bastante significativo,
torna-se patente a potencialidade de seu crescimento. Note-se que apesar do ndice
brasileiro de livro por habitante ao ano ser baixo, o fato de a populao ser
numericamente grande, uma das maiores populaes mundiais, torna o Brasil um
amplo mercado, comparado a outros pases: o Brasil ocupa o stimo lugar no
mercado mundial de livros3. No quadro de um mercado dessa amplitude, colocamos
a questo: o que se l no Brasil?
Para a abordagem do que foi lido no Brasil na dcada de 1980 quanto a
assuntos enfocados, tipos de narrativa e autores, sero utilizadas as listas dos dez
ttulos mais vendidos de fico e no-fico de cada ano, publicadas por Leia Livros a
partir de 1980. Em alguns anos no foram feitas listas anuais ou estas foram (p.81)
menores que os tradicionais dez ttulos por segmento. Nesses casos elaboramos as
listas anuais a partir das listas mensais. Para os anos de 1988 e 1989, utilizamos as
listagens elaboradas pelo Datafolha e publicadas na Folha de S.Paulo, uma vez que
Leia Livros modificou sua forma de listagem, deixando de dividir os segmentos
fico e no-fico, como hbito em outros pases.
Esses levantamentos dos livros mais vendidos so realizados em uma
amostra de livrarias. O tamanho dessa amostra variou entre vinte e cincoenta
livrarias. preciso ter em mente que as livrarias representam, segundo dados do
Snel4, apenas algo em torno de 40 a 45% do total de vendas do mercado de livros.
preciso levarmos em conta tambm que raramente um livro didtico ou infantil
chega s listas dos best-sellers, devido diversidade de oferta de ttulos. No entanto,
esses segmentos ocupam algo em torno de 45 a 70% (estimativa varivel conforme
fontes diferentes) do total do mercado editorial.
Mesmo sabendo da inexatido desse tipo de levantamento, cremos que as
listas podem ser utilizadas como termmetros ou sintomas indicativos do que se I,
no Brasil, no plano das escolhas voluntrias.
3 Ver Abigraf (Associao Brasileira da Indstria Grfica), So Paulo, ano XVII, n.142, set./out. 92, p.
86.
4 Ver, por exemplo, Produo Editorial Brasileira. Anlise de Resultados 1987/1988, Snel, item:
percentual de vendas por vias de comercializao.
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O objetivo deste texto caracterizar o mercado editorial brasileiro nos anos
80. Aps a apresentao desses dados quantitativos gerais passaremos a enfocar,
utilizando as listagens de mais vendidos de cada ano, (p.82) variaes nessas
listagens, separando por segmento (fico e no-fico) e distinguindo os autores
brasileiros dos estrangeiros.
A Presena dos Ficcionistas Brasileiros
J| se disse que o brasileiro, quanto a leituras, preocupa-se em portugus,
mas diverte-se em ingls, caracterizando-se assim o baixo ndice de presena de
autores ficcionais brasileiros nos hbitos e na preferncia do leitor, em comparao
com o segmento da no-fico. O leitor, na dcada de 1980, podia buscar a reflexo e
a informao em um escritor brasileiro, mas dava preferncia a um escritor
estrangeiro na hora da leitura de lazer ou fruio esttica.
Durante a dcada de 1980, o nmero de escritores brasileiros entre os dez
ttulos mais vendidos de cada ano, no setor de literatura ficcional, oscilou. Dois
ttulos nas listas de 1981 e 1986; trs ttulos em 1980, 1982 e 1984; quatro ttulos
em 1983 e 1989 e cinco ttulos em 1985. Em 1987 e 1988 nenhum escritor nacional
figurou na lista dos mais vendidos no segmento.
A baixa iniciada em 1986 comea a ser revertida em 1989, com a presena de
quatro ttulos de escritores nacionais, dois deles de um mesmo autor: Paulo Coelho.
O Alquimista, de Paulo Coelho ocupa o segundo lugar em 1989 (e ser o primeiro em
1990) e Dirio de um Mago, do mesmo autor, o quinto mais vendido em 1989 (e o
segundo em 1990).
(p.83) Os escritores brasileiros que mais tiveram ttulos entre os dez mais
vendidos de cada ano na dcada de 1980 foram Fernando Sabino (cinco) e Luiz
Fernando Verssimo (quatro). Em seguida, com trs ttulos aparece Jorge Amado, e,
com dois ttulos cada, Rubem Fonseca, Carlos Drummond de Andrade, Joo Ubaldo
Ribeiro e Paulo Coelho. Ainda aparecem, com um ttulo cada, Antnio Calado, Ea de
Queiroz, Igncio de Loyola Brando, Dias Gomes, Mrcio Souza e Marcelo Rubens
Paiva.
Aponto a seguir os ficcionistas brasileiros que apareceram durante a dcada
de 1980.
1980 (Leia Livros, janeiro de 1981)
1 O Grande Mentecapto, Fernando Sabino, Record
4 A Tragdia da Rua das Flores, Ea de Queiroz, Moraes
8 Farda, Fardo, Camisola de Dormir, Jorge Amado, Record
1981 (Leia Livros, janeiro ele 1982)
3 A Falta que Ela me Faz, Fernando Sabino, Record (contos)
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4 Sempre Viva, Antonio Callado, Nova Fronteira
1982 (Leia Livros, dezembro de 1982)
1 O Analista de Bag, Luiz Fernando Verssimo, L&PM (humor/contos)
5 No Vers Pas Nenhum, Igncio de Loyola Brando, Codecri (fico
cientfica)
6 Sucupira, Ame-a ou Deixe-a, Dias Gomes, Civilizao Brasileira
1983 (listas mensais publicadas por Leia Livros durante o ano)
3 O Menino no Espelho, Fernando Sabino, Record
6 O Analista de Bag, Luiz Fernando Verssimo, L&PM (humor/contos)
(p.84) 8 A Ordem do Dia, Mrcio Souza, Marco Zero
9 Outras do Analista de Bag, L. F. Verssimo, L&PM (humor/contos)
1984 (os cinco primeiros ttulos foram extrados de Leia Livros, janeiro de 1985, os
demais foram calculados a partir das listagens mensais dessa mesma publicao)
6 A Grande Arte, Rubem Fonseca, Francisco Alves (policial)
7 O Gato Sou Eu, Fernando Sabino, Record (contos)
9 A Velhinha de Taubat, L. F. Verssimo, L&PM (humor/ contos)
1985 (listagem elaborada a partir das listas mensais publicadas em Leia Livros)
3 Viva o Povo Brasileiro, Joo Ubaldo Ribeiro, Nova Fronteira
5 Tocaia Grande: A Face Obscura, Jorge Amado, Record
6 Amar se Aprende Amando, Carlos Drummond de Andrade, Record (poesia)
7 A Faca de Dois Gumes, Fernando Sabino, Record (contos/ o conto que d
ttulo ao volume pode ser considerado policial)
8 O Corpo, Carlos Drummond de Andrade, Record (poesia)
1986 (Leia Livros, janeiro de 1987)
5 Bufo & Spallanzani, Rubem Fonseca, Francisco Alves
10 Blecaute, Marcelo Rubem Paiva, Brasiliense (fico cientfica).
1987 (Leia Livros, dezembro de 1987)
No consta nenhum escritor brasileiro.
1988 (Folha de S. Paulo, 30 de dezem