Mercado Editorial Brasileiro 1960 1990

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    Sandra Reimo

    MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO,1960-1990.

    So Paulo: COM-ARTE FAPESP, 1996.

    _________________________________________________________________________________________

    A numerao das pginas no arquivo PDF no corresponde a da impresso em papel. A numerao da edio original est indicada em vermelho (p. x) _______________________________________________________________________________________

    Sandra Reimo

    MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO, 1960-1990.

    Sumrio

    Introduo,13

    Sobre a Noo de Best-seller,21

    Anos 60: Exploso Qualitativa da Fruio Privada, 35

    Anos 70: Industrializao e Segmentao da Cultura, 53

    Anos 80: Ecletismo e Oscilaes, 75

    Referncias Bibliogrficas, 101

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    Sandra Reimo

    MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO,1960-1990.

    Introduo

    (p.15) consenso entre os estudiosos da comunicao assinalar o ano de 1922, ano

    do advento do rdio no Brasil, como aquele que marca o incio da indstria cultural

    entre ns. O rdio inaugura um sistema de comunicao de massa que viria a se

    compor com as revistas peridicas veiculadoras de notcias e fofocas sobre

    cantores e cantoras, com o teatro de revista, com a indstria fonogrfica e ainda, a

    partir de 1929, com os filmes musicais e as chanchadas nacionais.

    tambm consenso entre os tericos brasileiros da comunicao que a

    indstria cultural no Brasil veio a se desenvolver em termos quantitativos

    realmente significativos apenas na dcada de 1960, sendo que o lanamento do

    Jornal Nacional como noticirio televisivo dirio, pela Rede Globo de Televiso, em

    1969, tomado como um marco da produo cultural industrializada no Brasil.

    Dos vrios ramos que compem a indstria da comunicao no Brasil ps-

    1960, a televiso , sem dvida, o setor sobre o qual mais se tem escrito. Essa

    dominncia quantitativa tem sua razo de ser, pois, no Brasil, a televiso o mais

    influente meio de comunicao de massa e em torno dela que gira a maioria das

    produes de nossa indstria cultural.

    (p.16) Muito se tem estudado tambm sobre o rdio e o cinema no Brasil.

    Entretanto, a produo editorial brasileira, como fato comunicacional, parece ser

    um dos ramos menos estudados da produo cultural industrializada.

    Nosso objetivo conhecer e analisar esse ramo da indstria da comunicao.

    Nossas questes so: como se comportou a produo de livros correlata ao

    desenvolvimento e maturidade da indstria cultural brasileira? Para onde vo as

    preferncias do pblico leitor? Por qu? Essas preferncias indicam avanos ou

    retrocessos culturais?

    A fim de tentar atingir nossos objetivos, utilizamos basicamente trs

    instrumentos:

    1. os dados quantitativos gerais (na o especificados) sobre o mercado editorial brasileiro: total de t tulos e de exemplares publicados e vendidos por ano, pontos de venda, segmentaa o desses t tulos etc. (mesmo conhecendo a imprecisa o dos dados e as variao es dos mesmos conforme a fonte utilizada);

    2. dados sobre os livros mais vendidos de cada ano: esses dados, que na o esta o dispon veis para todos os anos abordados, sa o utilizados como sinalizadores das tema ticas e preocupao es dominantes no setor da populaa o que tem acesso a livros;

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    3. dados histo ricos e conjunturais que ajudam a iluminar, enfocar e esclarecer os dados de vendagem.

    O primeiro passo da pesquisa1que resultou neste livro foi enfocar

    conceitualmente os termos best-seller, (p.17) mercado literrio e literatura de

    mercado. No partimos, quanto ao tema, de nenhuma viso fechada pr-concebida.

    No compartilhvamos ento e no compartilhamos agora de uma postura

    apocalptica, nem integrada (para utilizarmos a distin~o e a linguagem de

    Umberto Eco)12.

    Nossa postura um tanto mais ambgua devido complexidade do fenmeno

    em questo. Para assinalar essa complexidade, lembremos aqui a fundamental

    distin~o elaborada por Habermas entre facilita~o econmica e facilita~o

    psicolgica, em que o primeiro desses conceitos indica o carter positivo da

    comunicao de massa e da industrializao dos produtos culturais, cujo

    barateamento os torna acessveis a mais pessoas, e o segundo indica a face negativa

    do mesmo processo, que pode gerar a banalizao e a simplificao dos produtos

    culturais em busca do sucesso fcil nesse mercado ampliado2.

    Dentro dessa questo dos aspectos positivos e dos nocivos da relao entre

    produo cultural e mercado, buscamos tambm mapear as principais posturas

    conceituais sobre o vnculo entre literatura e mercado, entre alta literatura e

    literatura de mercado. Enfocando estas questes conceituais e tericas, elaboramos

    o texto Sobre a No~o de Best-seller, publicado como primeiro captulo neste

    volume.

    A partir da questo inicial, sob o enfoque escolhido e com o pressuposto

    terico referido acima, passamos (p.18) ento a analisar a produo editorial

    brasileira a partir de 1960.

    Esse perodo foi abordado no captulo intitulado Anos 60, Explos~o

    Qualitativa da Frui~o Privada. Apesar das dificuldades que enfrentamos no que diz

    respeito localizao de dados sobre a produo e o mercado editorial no perodo,

    foi possvel organizar os dados que pretendamos abordar e realizar um primeiro

    mapeamento e sinalizao de como esses dados podem ser iluminados por um

    amplo leque de fatores culturais e econmicos. Em uma poca to conturbada como

    os anos 60 no Brasil, os dados polticos conjunturais e as amplas questes polticas

    * A pesquisa foi elaborada entre 1989 e 1994, e s se tornou possvel graas ao apoio do CNPq

    (Conselho Nacional de Desenvol vimento Cientfico e Tecnolgico) atravs de uma bolsa pesquisa.

    1 Umberto Eco, Apocalpticos e Integrados.

    2 Jrgen Habermas, Mudana Estrutural da Esfera Pblica, cap. V.

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    mundiais se mostraram chaves imprescindveis para a compreenso das variaes

    das preferncias temticas dos leitores brasileiros.

    A seguir, passamos a enfocar o mercado editorial nos anos 70. Durante essa

    etapa da pesquisa ficou patente para ns o significado desse perodo em termos de

    mercado editorial e localizamos nele o crescente processo de industrializao da

    produo cultural.

    Alguns dados b|sicos correlatos ao milagre econmico brasileiro, como a

    queda nas taxas do analfabetismo, o crescimento do nmero de universitrios e o

    crescimento do Produto Interno Bruto, informam e esclarecem o crescimento

    quantitativo do mercado editorial nacional nos anos 70, dcada em que se

    ultrapassa a deplorvel barreira de um livro por habitante ao ano. Mas nas listas

    dos best-sellers da poca que ficam claras as preferncias do leitor e o atrelamento

    delas ao forte desenvolvimento da indstria cultural entre ns. Neste contexto, a

    segmentao do (p.19) mercado editorial se imps, como mostramos no captulo

    Anos 70, Industrializa~o e Segmenta~o da Cultura.

    O ltimo captulo, Anos 80, Ecletismo e Oscilaes, caracteriza os dados

    quantitativos gerais sobre o mercado editorial no perodo e, tendo como pano de

    fundo os dados gerais, examina os ttulos especficos dos livros mais vendidos.

    Muitos resultados interessantes e relevantes tornaram-se patentes nesta

    etapa da pesquisa, como por exemplo o vnculo entre a conjuntura social, um certo

    humor poltico, a varia~o na presena de autores brasileiros entre os ttulos mais

    vendidos, que apresentou aumento relativo, nas listas dos mais vendidos, durante o

    processo da abertura poltica e da campanha Diretas J. Se atentarmos para a

    especificidade dos ttulos, especialmente os do segmento no-fico, essa correlao

    torna-se ainda mais explcita.

    Os captulos deste livro foram publicados em forma de artigos que

    divulgaram resultados parciais, ainda durante a execuo da pesquisa. A indicao

    dos locais de publicao das verses originais e iniciais de cada captulo encontra-se

    nas aberturas dos mesmos.

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    Sobre a Noo de Best-seller

    (p.23) A expresso best-seller, aplicada a livros e literatura, comporta dois

    campos de significao, nem sempre coincidentes.

    A primeira significao da expresso, em sua acepo mais literal, diz

    respeito ao comportamento de vendas de um livro em um determinado mercado

    editorial. Best-sellers indica aqui os livros mais vendidos de um perodo em um local.

    Nesse sentido uma expresso quantitativa e comparativa, e que diz respeito a

    vendas.

    Ainda no sentido quantitativo de vendas, j se buscou estabelecer critrios

    no puramente comparativos para determinar um best-seller. Frank Luther Mott, em

    um texto editado em 1947, prope classificar como best-seller os livros que,

    segundo se calcula, tm uma venda total igual a 1% da populao dos Estados

    Unidos continentais na dcada em que foram publicados1. Este critrio seria vlido

    apenas para os EUA, necessitando adaptaes para outras realidades.

    (p.24) Ao lado da acepo ligada s vendas no mercado editorial, a expresso

    best-seller, quando aplicada literatura de fico, passou a designar tambm, por

    extenso, um tipo de texto caractersticas internas, imanentes, de um tipo de

    narrativa ficcional.

    Muitos autores, de tendncias e pressupostos variados, buscaram elucidar

    quais seriam as caractersticas que fariam de um texto ficcional, um texto de

    literatura best-seller tambm chamada de paraliteratura, literatura trivial,

    subliteratura, literatura de entretenimento, de massa ou de mercado.

    H um consenso de que essa literatura, descendente do romance-folhetim,

    expandiu-se a partir de meados do sculo XIX e especialmente no sculo XX, e de

    que esses textos devem ser inseridos na lista dos primeiros produtos da indstria

    cultural, a qual, por sua vez, vinculada fase monopolista do capitalismo e

    sociedade de consumo. parte esse consenso, h vrias formas de caracterizar a

    literatura de massa.

    Em seu Teoria da Literatura de Massa2, Muniz Sodr, ao abordar a estrutura

    folhetinesca presente ainda na literatura trivial, afirma que esta agencia sempre

    quatro elementos:

    1. presena de um hero i super-homem [] investido de caracter sticas

    * Este texto foi publicado originalmente na revista Comunicao & Sociedade, 18, dez. 1991.

    1 Frank Luther Mott, Golden Multitudes: The Story of Best-sellers in the United States, p. 303.

    2 Muniz Sodr, Teoria da Literatura de Massa, pp. 82-84.

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    roma nticas que acentuavam a ide ia de destino e de uma especial rejeia o das regras sociais;

    2. atualidade informativa-jornal stica;

    (p.25) 3. oposio es m ticas [] o bem e o mal, a felicidade e a amargura [...];

    4. preservaa o da reto rica culta [] a reto rica do folhetim e pobre, esquema tica [] (mas) sempre subsidia ria da literatura culta (RomantismoRealismo...).

    Esta preservao da retrica culta est presente na literatura de

    entretenimento trivial no s como estrutura, mas tambm como contedo. Esse

    fato salientado por Dieter Prokop em sua divertida descrio, no da estrutura dos

    romances para as massas, mas de seus contedos explcitos:

    Nos romances best-sellers, fascina uma mistura que rene sem escrpulos

    aquilo que visto de um ngulo rigorosamente lgico no tem relao entre si:

    combinaes de cultura letrada, resqucios de acontecimentos histricos, mas tambm,

    obscenidades agradveis (que, em geral, so apresentadas com indignaes hipcritas);

    tambm brigas familiares combinadas com smbolos de status e poder econmico e de

    luxo3.

    Tanto a enumerao dos contedos explcitos quanto a dos elementos

    estruturais encontrveis na literatura de massa ajudam a iluminar esse fenmeno da

    indstria cultural, mas no o caracterizam de forma definitiva, pois todos os

    elementos enumerados podem ser encontrados esporadicamente tambm na

    chamada alta literatura4.

    (p.26) A caracterizao dos textos da paraliteratura passa necessariamente

    pela demarcao da distncia, da diferena entre eles e os representantes da

    literatura culta, pela distino entre cultura de massa e alta cultura.

    Literatura de Massa e Literatura de Proposta

    Tomando como referncia a alta literatura, tambm chamada de literatura

    culta, erudita ou de proposta (designao preferida por Umberto Eco), Todorov e

    Ducrot caracterizam a literatura de massa como aquela em que a obra individual

    conforma-se inteiramente ao gnero e ao tipo5, ao contrrio da alta literatura em

    que cada obra tem uma originalidade prpria irredutvel. Ou seja, a habitual obra

    3 . Dieter Prokop, Fascina~o e Tdio na Comunica~o: Produtos de Monoplio e Conscincia, em

    Ciro Marcondes Filho (org.), Dieter Prokop, p. 150.

    4 Como salienta Muniz Sodr na seqncia de seu texto que acabamos de citar.

    5 Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, Dicionrio das Cincias da Linguagem, p. 189.

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    prima literria no entra em nenhum gnero a no ser o seu, mas a obra prima da

    literatura de massa precisamente o livro que melhor se insere no seu gnero6.

    Embora Todorov esteja dando nfase aqui questo dos gneros e em

    especial da contraposio da alta literatura com os gneros mais estruturados da

    literatura de massa (romance policial, romance de aventura, fico cientfica e

    romance sentimental), essa questo da originalidade nica e irredutvel (p.27)

    abrange tambm desde o nvel narrativo at o dos valores pessoais e morais.

    Processos estes que, no caso da alta literatura, produzem uma viso de mundo

    singular e inconfundvel.

    A originalidade da alta literatura, que tem sua contraposio no carter

    regrado da literatura de mercado, um fato correlato questo do esforo

    necessrio para ler um e outro tipo de texto literrio, como sintetiza Jos Paulo Paes

    retomando, neste ponto, Umberto Eco:

    Outro critrio de diferencia~o o esforo [] a cultura de massa se preocupa

    em poupar-lhe (ao consumidor), maiores esforos de sensibilidade, inteligncia ou

    mesmo aten~o ou memria []. J| a cultura de proposta n~o s problematiza todos os

    valores como tambm a maneira de represent-los na obra de arte, desafiando o fruidor

    desta a um esforo de interpretao que lhe estimula a faculdade crtica em vez de

    adormec-la7.

    Originalidade por parte da narrativa e conseqente esforo para sua fruio,

    caractersticas fundamentais da alta literatura, possibilitam que ela se coloque em

    um campo ideolgico e de funo social oposto ao da literatura de mercado.

    A literatura trivial, ao carecer de originalidade e redundar os esquemas

    perceptivos e conceituais do leitor, acaba por apenas repetir e reafirmar o mundo

    tal qual ele . E essa eterna repeti~o acaba por justific|-lo: O mundo o que , e

    assim porque assim que ele deve ser.

    (p.28) a esse repetir e justificar o fruir convencional das coisas tal como se

    encontram estruturadas no mundo real que Umberto Eco refere como o principal

    mecanismo de consolao da literatura de grande difuso. Entre os vrios

    mecanismos consolatrios presentes nas literatura best-seller (final-feliz, punio

    dos malvados, os bons provam que sempre o foram), o mais fundante, [] o

    mais satisfatrio e consolador o fato de que tudo continua no lugar.

    Essa , para Eco, a grande satisfao, a grande tranqilidade que a

    paraliteratura oferece a seu leitor. Consola~o pela reitera~o do esperado. a

    certeza de que se alguma coisa muda apenas para que tudo permanea imut|vel.

    6 Tzvetan Todorov, Tipologia do Romance Policial, em Potica da Prosa, p, 58.

    7 Jos Paulo Paes, Por uma Literatura Brasileira de Entretenimento, em A Aventura Literria: Ensaio

    sobre Fico e Fices.

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    por isso que, para Eco, a literatura de facilitao um fenmeno do campo da

    psicologia social8.

    J, por outro lado, a possibilidade de constituir uma viso singular do mundo

    e de alterar as percepes e conceituaes mecanizadas permite alta literatura o

    afastamento da reles empiria, do eterno justificar do fruir convencional do mundo

    como ele e requisito indispensvel para toda verdadeira arte e cultura

    abrem-se as portas da promessa, do que a vida poderia ser, mas no , em um

    mundo mecanizado, alienado e reificado.

    Adorno retrata essa oposio desta maneira:

    Aquilo que em geral e sem mais se poderia chamar cultura, queria, enquanto

    expresso do sofrimento e da contradio, fixar a idia de uma vida verdadeira, mas no

    queria representar como sendo vida verdadeira a simples existncia (p.29) (Dasein) e

    as categorias convencionais e superadas da ordem, com as quais a indstria cultural a

    veste, como se fosse a vida verdadeira, e essas categorias fossem a sua medida9.

    Da Teoria do Degrau Teoria do Filtro

    Buscando abrir mais o leque de problemas que envolvem a noo de best-

    seller, vejamos brevemente, em grandes divises, as principais posies avaliativas a

    respeito desse fato da comunicao de massa.

    Uma primeira posio frente literatura de mercado poderia ser chamada de

    teoria do degrau, ou seja, concebe-se a literatura trivial como uma primeira etapa,

    um degrau de preparao do leitor para torn-lo apto a enfrentar textos da

    literatura de proposta. Entre ns, brasileiros, um adepto dessa postura Jos Paulo

    Paes, que afirma:

    Da massa de leitores destes ltimos autores (Alexandre Dumas ou Agatha

    Christie) que surge a elite dos leitores daqueles (Gustave Flaubert e James Joyce) e

    nenhuma cultura realmente integrada pode se dispensar de ter, ao lado de uma

    vigorosa literatura de proposta, uma no menos vigorosa literatura de entretenimento.

    Citemos mais um trecho de Paes para reforar essa idia: [] em rela~o a

    esse nvel superior, ali|s, que uma literatura mdia de entretenimento,

    estimuladora do gosto e do hbito da leitura, adquire (p.30) o sentido de degrau de

    acesso a um patamar mais alto []10.

    8 Umberto Eco, Apocalpticos e Integrados, pp. 190-206.

    9 Theodor W. Adorno, A Indstria Cultural (conferncia radiofnica), em Gabriel Cohn (org.),

    Comunicao e Indstria Cultural, p. 292.

    10 Jos Paulo Paes, op. cit. Enfocamos aqui trs posies crticas; no mencionaremos posturas que

    consideram qualquer leitura, por si s, positiva.

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    Esta teoria do degrau se ope ao que podemos chamar de teoria do hiato e

    regress~o, ou seja, { afirma~o de que h| um hiato intransponvel entre a alta

    literatura e a de mercado, e de que esta ltima jamais poder ser via de acesso

    literatura maior, uma vez que a literatura de entretenimento no s no se

    sedimenta, como tambm um instrumento da regresso do esprito, no capaz de

    conduzir a uma conscincia crtica autnoma, mas eternamente repete e justifica o

    status quo.

    Habermas bastante adorniano ao afirmar que a intimidade com a cultura

    exercita o esprito, enquanto que o consumo da literatura de massa no deixa rastro:

    ela transmite uma experincia que n~o acumula, mas faz regredir11. Nesse caso, o

    autor est utilizando o termo literatura de massa no sentido de facilitao

    psicolgica.

    Uma terceira posio frente literatura de mercado no a aborda nem como

    degrau de acesso alta literatura, nem como seu antagnico absoluto, mas assume

    outro ngulo de viso.

    Essa terceira postura chamemo-la de teoria do filtro postula que os

    efeitos perniciosos da indstria cultural podem ser diludos ou at mesmo

    eliminados e revertidos graas a um filtro de rejeio e seleo de que o consumidor

    disporia.

    (p.31) Alfredo Bosi, um dos representantes desta posio, no que se refere a

    pelo menos um segmento social, o povo, sintetiza assim sua postura:

    O povo assimila, a seu modo [] H| um filtro com rejeies macias da matria

    impertinente, e adaptaes sensveis da matria assimil|vel [] incorporados ou

    reincorporados pela generosa gratuidade do imaginrio popular12.

    Em outro texto, Alfredo Bosi salienta que a alta cultura e a cultura popular

    so esses elementos filtrantes. Ou seja, quem, parte dos produtos da indstria

    cultural, viver a plena experincia da cultura popular ou da erudita ter uma

    capacidade de filtragem oriunda da resistncia que tm estas esferas culturais.

    Da corrente de representaes e estmulos o sujeito s guardar o que a sua

    prpria cultura vivida lhe permitir filtrar e avaliar. Mas para que se faam a seleo e a

    crtica das mensagens, preciso que o esprito do consumidor conhea outros ritmos

    que no o da indstria de signos. Se isso no ocorrer, teremos, no limite do sistema, o

    11 Jrgen Habermas, Mudana Estrutural da Esfera Pblica, p. 196.

    12 12. Alfredo Bosi, Cultura Brasileira e Culturas Brasileiras, em Dialtica da Colonizao, p. 329.

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    homem unidimensional de Marcuse, com todos os riscos polticos que traz a

    massificao13.

    Ecla Bosi, por sua vez, enfatiza que quando se fala em cultura popular como

    filtro cultura de massa deve-se falar em cultura popular vivida como (p.32)

    enraizamento, ou seja, como participa~o real, ativa e natural na existncia de uma

    coletividade14.

    Para Avaliar a Literatura Best-seller no Brasil

    Estas trs posturas frente literatura de massa, que para efeitos de

    organiza~o chamamos aqui de teoria do degrau, teoria do hiato e da regress~o e

    teoria do filtro, mesmo com seus antagonismos podem esclarecer aspectos

    diversos da literatura best-seller. Entretanto, cada uma destas posies toma outras

    feies se pensarmos nas conseqncias de adot-las frente a um mercado editorial

    e a uma realidade social como os encontrados no Brasil.

    Em rela~o ao que denominamos aqui teoria do degrau, impe-se pensar

    que seu alcance limitado quando se reconhece, no Brasil, a passagem de uma

    cultura oral para uma eletrnica sem mediao significativa da cultura escrita15 e a

    inquestionvel hegemonia cultural da televiso no pas, meio que se dedica

    prioritariamente ao entretenimento16. Em vista desses fatos no podemos

    considerar que a televiso no Brasil j domina o espao do entretenimento (p.33) e

    portanto seria suprflua a defesa de uma literatura de igual teor?17 Ao defendermos

    tal literatura no estaramos, em ltima instncia, defendendo uma literatura a

    reboque da televiso e portanto apenas reforadora desta?

    Quanto { teoria do hiato e da regress~o, impem-se a admirao e o

    reconhecimento pela precisa caracterizao da comunicao de massa e dos efeitos

    regressores desta. Entretanto, diante do Brasil de hoje e em termos de literatura,

    cabe indagar se tal postura no conduziria, no limite, a um imobilismo ou ento a

    13 Alfredo Bosi, Plural mas n~o Catico, em Alfredo Bosi (org.), Cultura Brasileira: Temas e Situaes,

    p. 10.

    14 S. Weil, A Condio Operria e Outros Estudos sobre Opresso, p.317. Citado como epgrafe por Ecla

    Bosi, Cultura e Desenraizamento, em Alfredo Bosi (org.), op. cit., p. 16.

    15 Cf. Hans M. Enzensberger, Enzensberger: Poder e Esttica Televisiva (entrevista concedida a S.

    Caparelli e A. Hohlfeld), Revista Brasileira de Comunicao, 53, pp. 10-11. Cf. tambm Jos Paulo Paes,

    op. cit.

    16 . Cf. Jos Marques Melo, Para uma Leitura Crtica da Comunicao, p. 79.

    17 Vrios estudos parecem indicar, em nvel internacional, que a televiso ocupou o lugar da

    literatura leve, mas no o da grande literatura. Cf. Jos M. Melo, op. cit., pp. 20-21.

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    uma radicalizao elitista em termos de ao e anlise cultural, dados a alta margem

    de analfabetismo e o pequeno percentual de leitores regulares no pas.

    A ltima postura abordada esquematicamente neste texto e denominada aqui

    de teoria do filtro sem dvida a que oferece maior desafio e responsabilidade

    para os pensadores da cultura no Brasil, uma vez que, para ela, a defesa contra os

    efeitos nocivos da indstria cultural e da paraliteratura (afirmao que esta posio

    partilha com a teoria do hiato) passa n~o s pela defesa e salvaguarda da alta

    cultura e da obra de arte liter|ria (como na teoria do hiato), mas tambm por

    esferas e problemas como cidadania, vivncia, interao em um corpo social, formas

    de produo e mecanismos de acesso a produtos culturais outros, diferentes e

    divergentes dos da cultura massiva e massificada.

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    Anos 60

    Exploso Qualitativa da Fruio Privada

    (p.37) As vigorosas manifestaes artstico-culturais a que assistimos no

    Brasil de 1964 a 1969 foram, como demonstrou Roberto Schwarz, uma espcie de

    flora~o tardia, o fruto de dois decnios de democratiza~o1. esse deslocamento

    cronolgico que explica um movimento cultural to ativo e participante em um

    momento de fechamento poltico e econmico, em plena ditadura.

    Esses pouco mais de quinze anos de democracia, em que o movimento

    cultural esteve prximo da massa camponesa e oper|ria, resultaram numa das

    fases mais criativas da cultura brasileira, neste sculo2, que perseverou e

    desabrochou aps a democracia ter sido derrubada e essa aproximao bloqueada,

    com o golpe de 1964. E assim, o produto cultural flora~o tardia deste contato

    passa a ser consumido apenas por uma das partes que estavam na origem desta

    equao (p.38) os intelectuais, estudantes, a classe mdia urbana intelectualizada

    Desfeitos os contatos entre movimento cultural e massa, esses bens culturais

    passam a atingir apenas o prprio grupo de seus produtores e seus entornos sociais,

    o que no impediu sua espantosa expanso. O governo militar, em seu primeiro

    momento, n~o impediu a circula~o terica ou artstica do ide|rio esquerdista, que

    embora em |rea restrita floresceu extraordinariamente3.

    A Exploso da Platia

    Os principais grupos que fizeram o panorama cultural brasileiro do perodo

    suas propostas, desdobramentos, limitaes foram retratados por Roberto

    Schwarz em seu referido artigo. Para nossos intuitos no presente estudo, convm

    ressaltar um trao comum ao perodo: a import}ncia dos gneros pblicos, do

    teatro, affiches, msica popular e jornalismo que transformam este clima em festa e

    comcio4. na solidariedade e auto-adulao da platia, ou de outras formas de

    fruio e consumao pblica, que setores da classe mdia urbana intelectualizada,

    * Este texto foi publicado originalmente, com pequenas diferenas, no Cadernos de Jornalismo e

    Editorao, 11 (26), So Paulo, Com-Arte, ECA-USP, dez. 1990.

    1 Roberto Schwarz. Cultura e Poltica, 1964 1969, em O Pai de Famlia e outros Estudos, p. 89.

    2 Chico Buarque e Paulo Pontes, Apresenta~o de Gota d'gua, p. XVI.

    3 Roberto Schwarz, op. cit., p. 62.

    4 4. Idem, p.80.

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    produtores e consumidores da cultura de esquerda de ento, expiavam seus

    fantasmas e lavavam as roupas sujas da revoluo que lhes deixara como herana o

    fato de, a partir de ento, falarem apenas entre si. (p.39) Essa produo cultural

    represada adquiria na fruio conjunta um tom de comcio, festa, solidariedade e

    exalta~o ao engajamento, esse tom exortativo e mobilizante que envolvia a todos

    parecia promover antes a resposta emocionada e esperanosa do que a reflexo e o

    distanciamento crtico5.

    Neste contexto de valorizao dos gneros pblicos, a literatura, que a partir

    do sculo XVIII6 a fruio privada por excelncia, sai do primeiro plano.

    Apesar de a literatura estar em segundo plano neste perodo em relao aos

    gneros pblicos, foi nas pginas impressas, nos livros tericos e ficcionais, que

    muitas idias e posturas, que afloraram nos palcos e telas de ento, tiveram suas

    origens, desenvolvimentos e embates. Como observou Zuenir Ventura:

    A gerao 68 talvez tenha sido a ltima gerao literria do Brasil pelo menos

    no sentido em que seu aprendizado intelectual e sua percepo esttica foram forjados

    pela leitura. Foi criada lendo, pode-se dizer, mais do que vendo7.

    Mercado Editorial nos Anos 60

    Este captulo visa de forma breve, geral e inicial, reunir alguns dados sobre o

    mercado editorial brasileiro na dcada de 1960 e, a partir desses dados, traar

    algumas observaes e levantar algumas hipteses.

    (p.40) Inicialmente vejamos alguns aspectos quantitativos do mercado

    editorial da poca.

    Em 1960, foram publicados no Brasil 36 322 827 exemplares de livros8. Uma

    vez que a populao brasileira era de 65 743 000 habitantes, teremos uma mdia de

    0,55 livros por habitante ao ano (a tiragem total estava dividida entre 3 953 ttulos).

    5 Helosa B. Hollanda e Marcos Gonalves, Cultura e Participao nos Anos 60, p. 94.

    6 Jrgen Habermas, op. cit., cap. V.

    7 Zuenir Ventura, 1968: O Ano que no Terminou, p. 51.

    8 A conceituao de livros do IBGE exclui folhetos (publicaes com menos de 48 pginas). Salvo

    indicao em contrrio, todos os dados referentes ao Brasil foram extrados dos Anurios Estatsticos

    do Brasil e dos Censos Demogrficos de 1960 e 1970 publicados pelo IBGE.

    * O IBGE no dispe de dados sobre esse item referentes aos anos de 65, 66, 68 e 70. possvel que

    os dados referentes a 67 abranjam a produo de 65 e 66. Mesmo a produo de 69 pode estar

    superestimada.

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    Quadro 1

    Relao livros por habitante/ano em alguns anos da dcada de 1960.

    Ano Populao do Brasil Tiragem total de livros publicados

    Livros por hab./ano

    1960 65 743 000 36 322 827 0,5 1961 71 868 000 36 322 827 0,4 1962 74 096 000 66 559 000 0,9 1963 76 409 000 54 222 606 0,7 1964 78 809 000 51 914 564 0,6 1967* 86 580 000 154 899 825 2,1 1969 92 282 000 68 583 400 0,7

    (p.41)O mercado editorial brasileiro se mantm nesses nveis extremamente

    baixos durante toda a dcada 60, registrando ndices que no ultrapassam a

    barreira de um livro por habitante ao ano. A transposio deste patamar s se dar

    no incio dos anos 70.

    Os mais Vendidos

    Uma reportagem da revista Veja, nmero 15, de 18 de dezembro de 1968,

    sugerindo livros como presentes de Natal, afirma que a poca foi de explos~o

    editorial e que o leitor j| conta com a mdia de seis livros novos interessantes por

    ms. Apesar de ser pequena a produ~o editorial do perodo, v|rios memorialistas

    dos anos 60 partilham essa sensa~o de explos~o, a qual deve ser creditada muito

    mais qualidade dos ttulos impressos, do que quantidade da produo editorial,

    que foi pequena, como vimos.

    Para termos uma pequena viso dos ttulos publicados e dos hbitos de

    leitura dominantes ento, tomemos como amostra o ano de 1968 e, no interior dele,

    o perodo que vai de 11 de setembro a 11 de dezembro, atravs da listas dos mais

    vendidos da revista Veja9.

    O marco inicial 11 de setembro de 1968 deve-se ao fato de esta ser a data

    de publicao do nmero 1 da revista Veja da qual utilizamos os dados (p.42)da

    se~o Livros mais Vendidos, e a data limite da utiliza~o desta se~o neste estudo

    deve-se ao fato da listagem de 11 de dezembro de 1968 ser a ltima publicada antes

    da decretao do Ato Institucional 5 (13.12.1968), fato que, grosso modo, pelo

    menos culturalmente, pode ser considerado como encerrando a dcada de 1960 e

    abrindo os anos 70 no Brasil.

    A utilizao de tal amostra acarreta vrios problemas e limitaes, dos quais

    os mais graves so:

    9 A revista Veja, 15, 19, 22 e 24, publicou, com algumas falhas, esta seo at 5 de maro de 1968. A

    partir de ento a seo vai se espaando, at ser totalmente suspensa por alguns anos.

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    1. a brevidade do per odo abrangido;

    2. a falta de informao es sobre os crite rios ou os locais dos levantamentos de dados;

    3. a na o-manutena o do mesmo nu mero de t tulos nas listagens a menor delas (4 de dezembro de 1968) aponta apenas cinco livros e as maiores apontam doze t tulos sendo a me dia dez indicao es.

    No localizamos outra revista ou jornal que mantivesse seo anloga

    durante o perodo em questo; tambm no localizamos dados sobre os mais

    vendidos do perodo em geral, nem na Cmara Brasileira do Livro, nem no Sindicato

    Nacional dos Editores de Livros, nem na Editora Nobel, entidades que atualmente

    fazem esse tipo de coleta. Com exceo das publicaes do IBGE, que so estatsticas

    gerais e no informam sobre ttulos especficos, parece que as coletas de dados

    sobre mercado editorial s comearam a ser feitas mais sistematicamente a partir

    de 1970, com o chamado milagre brasileiro.

    Mesmo levando em conta essas limitaes, possvel a utilizao desses

    dados, desde que sejam vistos (p.43) apenas como termmetros, como

    sinalizadores das publicaes e leituras de ent~o. Feitas essas ressalvas, passemos

    listagem.

    Se fizermos um balano das catorze listagens semanais de 11 de setembro a

    11 de dezembro de 1968, obteremos os seguintes ttulos como os mais vendidos:

    1. Aeroporto, Arthur Hailey, Nova Fronteira

    2. Um Projeto Para o Brasil, Celso Furtado, Saga

    3. Eros e Civilizao, Herbert Marcuse, Zahar

    4. O Desafio Americano, Jean-Jacques Servan-Schreiber, Expressa o

    5. Minha Vida, Meus Amores, Henry Spencer Ashbee, Hemus

    6. Ideologia da Sociedade Industrial, Herbert Marcuse, Zahar

    7. Materialismo Histrico e Existncia, Herbert Marcuse, Tempo Brasileiro

    8. Como Desenvolver a Memria, Joyce D. Brothers, Distribuidora Record

    9. Homem ao Zero, Leon Eliachar, Expressa o

    10. Kama Sutra, Vatsyayama, Coordenada de Bras lia

    11. A Inglesa Deslumbrada, Fernando Sabino, Sabia

    12. Filosofia na Alcova, Marque s de Sade, Conto rno

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    A primeira observao que essa listagem suscita diz respeito ao ttulo mais

    vendido Aeroporto, de Arthur Hailey. Tal ttulo e sua indiscutvel liderana de

    vendas (ele o primeiro colocado nas catorze listas investigadas) atestam a fora da

    presena da chamada literatura de mercado, ou literatura da indstria do best-seller,

    entre ns, j na dcada de 1960, quando (p.44) a produo editorial no era um

    negcio to rendoso como passou a ser a partir dos anos 70.

    Se aceitarmos que a literatura de mercado divide-se em masscult produtos

    despretensiosos que visam a um lazer francamente fugaz e descartvel e midcult10

    produtos to banais quanto os primeiros, mas que se revestem de um pretenso

    verniz erudito , veremos que o ttulo mais vendido no perodo abordado estaria

    mais prximo do masscult, ao contrrio dos mais vendidos dos anos 80, em que a

    midcult parece dominar.

    Uma segunda observao que se impe ao nos defrontarmos com esta

    listagem a constatao do alto grau de aceitao de Herbert Marcuse entre os

    leitores brasileiros de ento.

    Carlos Nelson Coutinho, em um recente artigo que tem como alvo a recepo

    de Gramsci no Brasil, nos fornece, por comparao, um coerente entendimento da

    grande aceitao de Marcuse no Brasil.

    Segundo Coutinho, o marxismo brasileiro at 1960 tinha como principais

    fontes tericas os manuais soviticos de marxismo-leninismo11 e foi s na virada

    da dcada, com o aumento da influncia da esquerda, especialmente do Partido

    Comunista Brasileiro, na vida poltica e cultural do pas, que o marxismo brasileiro

    iniciou um processo de abertura pluralista. Essa abertura no teria sido propiciada

    pelo PCB, mas tambm no foi obstaculizada por ele. (p.45) Nessa abertura

    pluralista, publicam-se no Brasil, Gramsci, Lukcs, Goldmann e Marcuse, entre

    outros.

    O racionalismo histrico-dialtico de Gramsci e Lukcs passou a ser visto como

    expresso de uma tendncia conservadora e anacrnica. Consideravam-se mais

    adequadas s urgentes tarefas impostas pela nova situao a Grande Recusa de

    Marcuse e a supostamente radical Revolu~o Epistemolgica de Althusser. Misturados

    ecleticamente entre si, mas tambm com Mao Ts-tung e Rgis Debray, Marcuse e

    Althusser ganharam um lugar privilegiado na cultura da nossa nova esquerda, que

    julgava ser a luta armada a nica via para derrotar a ditadura e resolver os problemas

    do pas,

    continua Coutinho.

    10 Conceitos de Dwight MacDonald retomados por Umberto Eco em Apocalpticos e Integrados.

    11 Carlos N. Coutinho, Cidad~o Brasileiro, Teoria e Debate, 9, pp. 58-63.

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    A idia marcuseana da Grande Recusa logo comeou a ser vista como uma

    louvao do irracionaIismo e Marcuse, a ser lido como terico da contracultura o

    inimigo seria a cultura racionalista ocidental.

    Coutinho coloca essa virada de interpretao de Marcuse como algo que se

    d no Brasil nos anos 70, com o fracasso da luta armada, afirmao com a qual

    concordamos desde que ela se coloque enquanto leitura dominante, mas no

    exclusiva, pois, acreditamos, a segunda verso, a viso de Marcuse como terico da

    contracultura, algo que se d no s a nvel de leitura, mas tambm se encontra

    nos prprios textos. E no nos esqueamos de que dos trs ttulos marcuseanos

    mais vendidos de setembro a dezembro de 1968 no Brasil, o mais vendido foi Eros e

    Civilizao, a louvao de uma sociedade humanizada em que o instinto do prazer

    deixaria de ser reprimido pelo (p.46) instinto de realidade, graas ao apaziguamento

    geral da agressividade.

    O Marcuse que vigorara ento nas listas dos mais vendidos era marxista no-

    ortodoxo, no-determinista e preocupado com Eros, com o prazer como algo

    reprimido pela civilizao e pelo racionalismo ocidental. No nos esqueamos de

    que 1968 foi um ano atpico em termos de agitaes contestatrias e manifestaes

    da contracultura no mundo todo e que o pensamento marcuseano tinha ento um

    grande impacto internacional.

    A vertente mais { direita desta abertura no pensamento poltico dos anos

    60 encontra seu porta-voz no pensamento liberal de Jean-Jacques Servan-Schreiber,

    fundador e editor do LExpress, cujo livro O Desafio Americano um manifesto

    contra a viso antiimperialista da esquerda de ento. O prefaciador da edio

    brasileira, J. Sette C}mara, enfoca assim a quest~o: O Desafio Americano no poder

    deixar de provocar um grande impacto no Brasil [] ainda vemos por detr|s de cada

    empresa privada americana que aqui aporta a sombra do Pentgono ou do

    Departamento de Estado.

    Dentro ainda da abertura pluralista que alimentava a reflexo da esquerda de

    ento que podemos localizar o clssico Um Projeto para o Brasil, de Celso Furtado,

    uma reunio de trs ensaios que, segundo o autor, na apresentao do volume, tinha

    como finalidade identificar as causas profundas da paralisia de nosso sistema

    econmico e, ao mesmo tempo, abrir um horizonte de reflexo orientado para a

    busca de solues efetivas e factveis.

    (p.47) Vimos que ao lado do Marcuse filsofo e cientista poltico h o

    Marcuse terico da contracultura, da busca da desrepresso. Assim, Eros e

    Civilizao pode ser abordado na listagem que visa caracterizar o mercado editorial

    do ano de 1968 como tambm liderando uma terceira fatia temtica desse mercado

    a faco composta pelos textos que pregam a liberao sexual e de costumes.

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    Zuenir Ventura refere-se a uma pesquisa em livrarias que afirmaria que em cada

    trs livros [] pelo menos um tratava de questes sexuais12.

    Marcuse, como terico da desrepresso, teria como colegas de temtica na

    listagem que estamos abordando: Kama Sutra, primeira publicao integral no

    Brasil desse clssico hindu de fisiologia e moral sexual, traduzido por Marcos

    Santarrita, com ilustraes fotogrficas de templos hindus; Filosofia na Alcova, do

    Marqus de Sade; e Minha Vida, Meus Amores, de Henry Spencer Ashbee, relato

    autobiogrfico de um estudioso e grande colecionador de arte ertica. No nos

    esqueamos de que foi no ano de 1968 que os Beatles bradaram: voc diz que vai

    mudar a Constitui~o, sabe, melhor liberar sua mente primeiro13.

    Leon Eliachar e Fernando Sabino so representantes do quarto segmento

    temtico do mercado editorial dos anos 60 que a listagem dos mais vendidos que

    estamos utilizando parece indicar os textos nacionais de fico. O texto de

    Fernando (p.48) Sabino, A Inglesa Deslumbrada, uma reunio de cincoenta textos

    curtos que haviam sido publicados no Jornal do Brasil e nas revistas Cludia e

    Manchete entre 1964 e 1966, perodo em que o autor foi correspondente em

    Londres. Mais da metade das narrativas contam pequenos e cmicos problemas de

    um brasileiro vivendo no exterior e a viso do pas pelos estrangeiros.

    Explicitamente cmico, o livro de Leon Eliachar, O Homem ao Zero, rene

    charges, piadas, pequenas crnicas, e apresentado como um descongestionante

    cerebral com bula e tudo.

    A tradio de uma literatura explicitamente cmica e voltada ao retrato do

    pas (iniciada por Stanislaw Ponte Preta, com Tia Zulmira e Eu, 1961, e Festival de

    Besteira que Assola o Pas I, 1965), que Leon Eliachar representa na listagem de

    1968, encontrar um amplo desenvolvimento nos anos seguintes com o prprio

    Eliachar (O Homem ao Quadrado, o Homem ao Cubo) e com a continuao do

    trabalho de Millr Fernandes, sem falarmos no tablide O Pasquim, lanado em

    junho de 1969.

    O ttulo Como Desenvolver a Memria, de Joyce Brothers, no merece maiores

    comentrios. Trata-se de um exemplar do segmento Viva melhor/Desenvolva suas

    habilidades, que sempre teve e, parece, sempre ter| espao no mercado editorial. A

    mesma psicloga americana lanou nos anos 70, no Brasil, pela mesma editora, um

    ttulo anlogo: Como Conseguir Tudo o que Voc Quer na Vida.

    Tomando, de forma geral, a lista dos mais vendidos de setembro a dezembro

    de 1968 como indicadores (p.49)da produo editorial e dos hbitos de leitura

    dominantes nos anos 60, veremos que algumas tendncias se mantm at hoje:

    12 Zuenir Ventura, op. cit., p. 33.

    13 Como j observou a respeito do tema Jos Saffioti Neto na Introdu~o de Tropiclia: 20 Anos, p.

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    1. predom nio dos textos na o-ficcionais sobre os ficcionais (excluindo os infantis e os dida ticos);

    2. predom nio do autor estrangeiro sobre o nacional;

    3. manutena o de alguns blocos tema ticos como os preferidos de vendagem: sexo e comportamento, pol tica e economia.

    Veremos, no entanto, que uma tendncia atual aparecia invertida: apenas

    trs entre os doze ttulos mais vendidos podem ser identificados como produtos

    elaborados visando explcita e dominantemente ao sucesso de vendas (Aeroporto,

    Minha Vida, Meus Amores e Como Desenvolver a Memria). Alguns outros textos

    podem ter sido oportunamente aproveitados pelo mercado editorial (Kama Sutra,

    por exemplo), mas no so textos que j tragam, no processo mesmo de sua

    elaborao, a vendagem e as listas dos mais vendidos como meta central, no so

    puramente frutos da indstria de best-sellers, tais como os textos que parecem

    predominar nas listagens dos anos 80.

    Estamos nos detendo aqui nos livros publicados, mas no podemos deixar de

    mencionar que na dcada de 1960 surgiram, no panorama cultural e editorial

    brasileiro, as revistas de poltica e cultura, que tiveram grande impacto e eram lugar

    de um acirrado debate dos problemas do pas especialmente Revista Civilizao

    Brasileira, Paz e Terra, Teoria e Prtica e aParte, respectivamente em 1965, 1966,

    1967 e 1968.

    (p.50) Observaes Finais

    As fortes manifestaes artstico-culturais da dcada de 1960 no Brasil que

    ocorreram principalmente nos gneros pblicos cinema (Cinema Novo), teatro

    (Arena, Oficina) e msica (fase engajada da msica popular brasileira,

    Tropicalismo) continham, cada uma a seu modo, uma viso de Brasil e uma

    proposta de atuao nesta realidade. No se pode dizer que houve uma proposta

    ficcional brasileira com o mesmo esprito. H livros isolados que vo nesse sentido,

    como por exemplo Quarup (1967), de Antnio Callado, talvez o ltimo romance

    brasileiro com uma abordagem totalizante do Brasil, mas no h movimentos

    liter|rios de grande divulga~o e impacto nessa dire~o. A explos~o do mercado

    editorial nos anos 60 no se deve ao fato de, tal como nos gneros pblicos, terem

    surgido movimentos literrios polmicos e relevantes.

    Vimos que a sensa~o de explos~o do mercado editorial na dcada de 1960

    no pode ser creditada ao aspecto quantitativo do mesmo; vimos, tambm, que ela

    no pode ser justificada simplesmente por caractersticas formais desse mercado

    (blocos temticos predominantes, nacionalidades dos autores mais vendidos,

    predomnio do no-ficcional sobre o ficcional); vimos ainda que ela no se deu,

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    como nos gneros pblicos, pela publicao de textos que representassem sem

    grandes e polmicos movimentos literrios que refletissem o Brasil de ento.

    Essa explos~o foi uma explos~o qualitativa que se deu num reforo mtuo

    entre o pblico leitor e editores. Leitores que dispunham, nos gneros pblicos,

    (p.51) de obras polmicas e de flego (elaboradas por produtores culturais de

    formao literria) e que buscavam nos livros a mesma qualidade e relevncia. E

    produtores editoriais, que, para acompanhar esse pblico e vender seus livros,

    tinham que se aprimorar qualitativamente cada vez mais. Esse processo parece

    tambm ter sido represado em 1968.

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    Anos 70

    Industrializao e Segmentao da Cultura

    (p.55) Brasil de 1970 a 1973: sob a presidncia do General Emlio Garrastazu

    Mdici, empossado em 1969, o pas vive o milagre brasileiro, o clima do Brasil

    grande potncia, a poltica do desenvolvimento acelerado uma dcada em um

    ano*. A classe mdia passa a ter acesso a eletrodomsticos, a comprar em

    supermercados e shopping centers, para onde vai de carro prprio. noite assiste-se

    a televiso 80% dos lares urbanos possuem o aparelho. A Rede Globo instaura a

    sua hegemonia. O Jornal Nacional, com durao de quinze minutos, exibido por essa

    rede, integra o pas com seus altos ndices de audincia e sua viso harmnica do

    pas concatenada ao esprito Brasil Grande1.

    O santo que produziu o milagre conhecido []: a brutal concentra~o de

    riqueza elevou, ao paroxismo, a capacidade (p.56) de consumo de bens durveis de uma

    parte da populao, enquanto a maioria ficou no ora-veja. Forar a acumulao de

    capital atravs da drenagem de renda das classes subalternas no novidade nenhuma.

    Novidade o grau, nunca ousado antes, de transferncia de renda de baixo para cima2,

    afirmam, em 1975, Chico Buarque e Paulo Pontes. Mas, no incio dos anos 70, a

    classe mdia no ouvia falar desta contraface de sua felicidade.

    Os primeiros anos da dcada de 1970 inserem-se em um perodo que foi

    chamado por Luiz Carlos Bresser Pereira de segundo ciclo industrial no Brasil3.

    Nesse perodo o Produto Interno Bruto cresceu a uma taxa anual de 11,3% e o

    * Este texto foi publicado originalmente na revista Comunicao & Sociedade, 20, Ed. IMS, So

    Bernardo do Campo, So Paulo, dez. 1993. Uma verso levemente modificada apareceu em Gneros

    Ficcionais, Produo e Cotidiano na Cultura Popular de Massa, organizado por Slvia Borelli (So

    Paulo/Braslia, Intercom/CNPq/Finep, 1994).

    1 Os dados histricos foram extrados principalmente de: Anurios Estatsticos do Brasil e Censos

    Demogrficos, IBGE; Suplemento Especial AI-5, O Estado de S. Paulo, 13 dez. 1978; Memria

    Fotogrfica do Brasil no Sculo XX, Nosso Sculo, vol. V.; Carlos Eduardo Lins da Silva, Muito alm do

    Jardim Botnico; Ferno Ramos (org.), Histria do Cinema Brasileiro; Laurence Hallewell, O Livro no

    Brasil: Sua Histria; Luiz Carlos Bresser Pereira, Desenvolvimento e Crise no Brasil. 1930-1983.

    2 Chico Buarque e Paulo Pontes, Introdu~o de Gota d'gua, p. xi.

    3 Luiz Carlos Bresser Pereira, op.cit., p.218 (todo o pargrafo est baseado nesse texto).

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    produto industrial a 12,7% taxas que eram de 3,2% e 2,6% respectivamente de

    1963 a 1967 e que sobem a 5,4% entre 1974 e 1981.

    Em 1974, por vrios fatores internos vinculados aos equvocos do processo

    de expanso e pelo fator exgeno do primeiro choque do petrleo, tem incio um

    processo de desacelerao econmica que resultar na recesso de 1981.

    No h uma poltica cultural correlata fase urea do milagre econmico.

    Se podemos falar de uma atuao estatal em relao produo e veiculao

    (p.57) de produtos culturais, essa a da censura e do expurgo. Da msica ao jornal,

    do cinema novela de televiso, a produo cultural submetida ao crivo da

    censura, pouco daquilo que tem algum cunho crtico ou polmico ultrapassa este

    crivo. No so poucas as histrias das atitudes mal informadas dos censores, assim

    como das tticas para dribl-los.

    Em um Suplemento Especial de 13 de dezembro de 1978, o jornal O Estado de

    S. Paulo afirma:

    Cerca de 500 filmes de longa-metragem, 450 peas teatrais, dezenas de

    programas de rdio, 100 revistas, mais de 500 letras de msica e uma dzia de sinopses

    e captulos de telenovela foram censurados nos ltimos dez anos. Os dados no so

    exatos pois muitas obras no chegaram a receber o crivo da censura. Simplesmente

    foram esquecidos e, portanto, n~o houve divulga~o dos nmeros de proibies []. No

    caso do cinema no existe apenas a interdio de filmes, mas tambm cortes e

    restries de idade. A televiso e o rdio tambm sofreram limitaes, que atingiram

    toda a programa~o [].

    Aqui e ali, algumas obras com posturas mais crticas conseguem chegar at o

    pblico, mas suas vozes no eram numerosas e altas o suficiente para encobrir a

    entonao da marcha Pra Frente Brasil ou o coro do Eu te amo, meu Brasil.

    Mais Livros nos Anos do Milagre Econmico Segundo os dados do IBGE, em 1972 ultrapassa-se no Brasil a barreira de um

    livro por habitante ao (p.58) ano. A populao nesse ano de 98 milhes de

    habitantes e produzem-se 136 milhes de livros. Em 1972, editou-se 1,3 livro por

    habitante, contra 0,8 do ano anterior. Com algumas distores, essa proporo se

    manter crescente durante a dcada, atingindo o ndice de 1,8 em 1979.

    QUADRO 1

    Relao entre a populao do Brasil e a tiragem de livros nos anos 70*

    Ano Populao do Brasil Tiragem total dos livros publicados

    Relao de livro por hab/ano

    1971 95,9 80,1 0,8 1972 98,6 136,0 1,3

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    1973 101,4 136,0 1,3 1974 104,2 144,7 1,3 1975 107,1 137,8 1,2 1976 110,1 147,2 1,2 1977 113,2 164,8 1,3 1978 116,3 186,7 1,6 1979 119,6 222,6 1,8

    * dados em milhes

    Que fios vinculam o momento referido e o crescimento do mercado editorial?

    Como se comportou o mercado editorial brasileiro no decorrer dos anos 70?

    (p.59) Polticas do Estado: Censura e Mecenato Dirigido

    A fim de esboar possveis hipteses acerca dos fatos mencionados, preciso

    primeiramente nuanar a questo, no abordando a dcada de 1970 do ponto de

    vista cultural de maneira monoltica. Para tanto, a dcada de 1970 ser subdividida

    em pelo menos trs grandes momentos: um, at 1974, que se caracteriza pela

    ausncia de uma poltica cultural e pela atitude da supresso, represso e expurgo;

    um segundo, a partir de 1975, marcado pela Poltica Nacional de Cultura (PNC),

    formulada por Ney Braga e pelo Conselho Federal de Educao, e outro, ainda, a

    partir de 1979.

    Com a PNC o estado autoritrio procura centralizar sua atuao e exercer um

    mecenato em rela~o { produo cultural e artstica por meio de prmios,

    incentivos e financiamentos.

    Centraliza~o baseada em qu? Na necessidade de revalida~o do patrimnio

    histrico e cientfico brasileiro, com o intuito de conservar o smbolo de nossa

    histria []. N~o isento o incentivo estatal cultura. Mecenas interessado, o governo

    militar chama para si a funo de julgar as novidades que interessam ou no, o que

    excessivo, apontar os males, estimular o que julga de qualidade4.

    s formulas do expurgo, a PNC faz somar as de um mecenato dirigido,

    concatenado com o projeto de distenso poltica do governo Geisel (1974 a 1978).

    (p.60) Entre esses dois momentos, encontra-se a crise do milagre

    brasileiro, que embalava os sonhos de boa parte da classe mdia. E com essa crise,

    toda uma srie de redefinies e remanejamentos comeavam a ser operados na

    vida poltica e cultural, culminando na formula~o da PNC.

    4 Flora Sussekind, Literatura e Vida Literria, p. 22.

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    Em ritmo lento, gradual e seguro, o Estado passa a gerir, sob o governo Geisel,

    a crise que se anuncia na vida brasileira [] o governo Geisel prepara-se para a

    transi~o reservando um lugar importante para a produ~o intelectual e artsitca5.

    Esses dois grandes momentos da poltica estatal em relao vida cultural

    nos anos 70 podem e devem ser nuanados e subdivididos em muitos outros que

    variaram conforme o meio de comunicao envolvido (televiso, rdio, jornal,

    revista, livro, cinema). Mesmo centrando-se em um nico meio, a ao da censura

    variou quanto intensidade e estratgia, desnudando em alguns casos, na atuao

    de varejo, a falta de critrios dos censores.

    Um terceiro momento poltico-cultural merece ainda ser destacado no

    decorrer dos anos 70 no Brasil. O substrato maior desse terceiro momento no se

    refere a uma nova posio estatal frente cultura e arte, mas a uma vigorosa

    rearticulao da sociedade civil em fins dos anos 70. Trata-se da entrada em cena do

    sindicalismo do ABC e da liderana de Lus Incio Lula da Silva. No primeiro

    semestre de 1979 houve uma greve de 160 mil metalrgicos no ABC. Fato

    semelhante (p.61) e em maior escala ocorreu tambm em abril de 1980,

    posteriormente aprovao do manifesto de criao do Partido dos Trabalhadores

    (PT) em 10 de fevereiro de 1980.

    O Cenrio da Industrializao da Cultura

    Voltemos nossa questo central: em 1972 o mercado editorial brasileiro

    ultrapassa a marca de um livro por habitante ao ano. Essa marca, com oscilaes,

    ser ascendente no decorrer da dcada de 1970.

    Para abordar esses dados em seu aspecto quantitativo preciso, de incio,

    levar em conta dois indicativos bsicos. O primeiro a queda da taxa do

    analfabetismo de 39% para 29% entre os anos de 1970 e 1980, tomando-se por

    referncia o total da populao com mais de cinco anos, e o segundo o crescimento

    do nmero de estudantes universitrios de cem mil para quase um milho no

    mesmo perodo.

    O crescimento do nmero de universitrios alicerou-se basicamente nas

    instituies privadas de ensino de terceiro grau. O estado autoritrio transferiu ao

    mercado e ao capital privado a tarefa da expanso do ensino superior e tambm

    parte do ensino de primeiro e segundo grau.

    Quanto diminuio das taxas de analfabetismo, elas resultaram em parte de

    vrias campanhas estatais, civis e eclesisticas, incluindo a, como iniciativa e no

    tanto como efeitos, o malfadado projeto Mobral (Movimento Brasileiro de

    Alfabetizao). Encerrado em 1975, o Mobral respondeu a uma Comisso

    (p.62)Parlamentar de Inqurito que averiguou suas irregularidades.

    5 Idem, ibidem.

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    Correlatamente a esses dados vinculados ao mbito educacional e cultural,

    preciso mencionar ainda o crescimento do Produto Interno Bruto no perodo de

    1967 a 1973, propiciando uma maior capacidade de consumo por parcelas da

    populao. Essa maior capacidade de consumo foi tambm alimentada

    artificialmente pela instituio do crdito direto ao consumidor. No perodo ureo

    do milagre econmico, compra-se e consome-se mais no pas.

    Esses indicadores so o cenrio em que se desenrolar uma certa

    rearticulao da indstria cultural brasileira no panorama ps-68. A comunicao

    de massa, que j estava em andamento desde 1930 no Brasil, na dcada de 1970 se

    tornar| solidificada, amadurecida e industrializada.

    Outro dado importante para enfocar o crescimento editorial no Brasil

    decorreu da aplicao de uma lei de 1968, permitindo que vrios pontos do

    comrcio varejista atuassem como pontos de venda de livros, entre eles, farmcias,

    supermercados e postos de gasolina. Os efeitos dessa lei no foram

    quantitativamente muito significativos: 2,2% do total dos livros comercializados em

    1973 o foram nestes pontos; essa porcentagem sobe para 4,4% em 1978 e decai

    para 2,1% em 1979. Mesmo assim, essa lei no deixou de ser uma atitude em prol da

    difuso do livro.

    O nmero de vendas de livros em papelarias e bancas de jornal

    quantitativamente mais significativo: em 1973, 9,6% do total dos livros

    comercializados foram vendidos em papelarias e 2,2% em bancas de (p.63)jornal;

    em 1979, 6,0% foram distribudos em papelarias e 20,9% em bancas de jornal.

    Quem mais se beneficiou das bancas de jornal como pontos de venda de

    livros foi a Editora Abril, com suas colees de livros e de fascculos a serem

    encadernados. A Bblia mais Bela do Mundo foi o primeiro empreendimento (1965)

    da Abril no setor de fascculos. Para sua distribuio e comercializao, a Abril

    utilizou a rede de dezoito mil bancas que j eslava montada no pas em funo da

    distribuio das revistas da editora.

    A partir da seguem-se muitas outras colees, entre as quais a coleo de

    livros de filosofia Os Pensadores iniciada em 1974 e a de livros de economia, Os

    Economistas, iniciada em 1982. As tiragens oscilavam entre cincoenta mil e

    quinhentos mil exemplares. Um claro caso de industrializao profissional da

    produo e da comercializao editorial.

    Mencionando o aspecto quantitativo do crescimento inicial do mercado

    editorial brasileiro dos anos 70, passaremos agora a abordar as mudanas do perfil

    dos livros vendidos em livrarias durante o decorrer da dcada. Buscaremos verificar

    tambm se h vnculos entre esses perfis dominantes e os vrios momentos

    scioculturais pelos quais o pas passou no perodo.

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    A Expanso da Televiso e o Mercado Editorial

    A televiso o meio de comunicao mais influente no Brasil e em torno

    dela que gira a indstria (p.64) cultural. O Estado autoritrio teve o seu papel no

    estabelecimento dessa influncia.

    O vertiginoso crescimento da TV no Pas era condio essencial para o sucesso

    do modelo econmico adotado a partir de 1964. O Estado jogou alto para que o nmero

    de aparelhos de TV se disseminasse pelo Brasil: construiu um moderno sistema de

    microondas, abriu possibilidade de crdito para a compra de receptores, forneceu a

    infra-estrutura indispensvel para sua expanso. E os objetivos a serem atingidos no

    eram apenas de ordem ideolgica []. A televis~o teve como fun~o a partir de 64 a

    operao de acelerar o processo de circulao do capital para viabilizar a forma de

    acumulao monopolista adotada desde ento6.

    Enfocando essa mesma questo e centrando-se no perodo ps-69, Srgio

    Mamberti, citando Eugnio Bucci, comenta: O grande projeto cultural da ditadura

    foi, sem dvida alguma, o fortalecimento e a ampliao das redes nacionais de

    televiso, alis, muito bem-sucedido7.

    curioso notar que foi s no ps-69, depois do incio da implantao das

    redes nacionais de televiso, que os intelectuais brasileiros abandonaram uma

    atitude laudatria em relao a esse meio de comunicao de massa, passando a ser

    mais cticos: A atitude adesiva e at mesmo entusi|stica, na dcada de 60, poca

    urea das leituras sobre mass communication, passou a ser crtica a partir de 708.

    (p.65)A expanso e o carter francamente dominante da televiso como

    principal meio de comunicao no Brasil favorecem um determinado segmento no

    mercado livreiro e nas listas de best-sellers: o de autores de forte presena na

    televiso.

    Assim, em 1971, o livro Milho pra Galinha, Mariquinha, de Marisa Raja

    Gabaglia, coletnea de 33 contos publicada pela editora Sabi, vende em uma

    semana dez mil exemplares s no Rio de Janeiro. Marisa atuava ento como jurada

    do programa de auditrio de Flvio Cavalcanti.

    Em 1973, Chico Ansio, j ento veterano humorista de televiso, tem dois

    livros includos na lista dos dez livros nacionais mais vendidos do ano: O Enterro do

    Ano (3) e Mentira, Terta? (6). Este ltimo livro mantm-se ainda na listagem

    referente ao ano de 1974 como o 10 livro de autor nacional mais vendido. Em

    6 Carlos Eduardo Lins da Silva, op. cit., p. 27.

    7 Srgio Mamberti, Coment|rio a Muniz Sodr, lbum de Famlia, Rede Imaginria, p. 230.

    8 Alfredo Bosi, Cultura Brasileira e Culturas Brasileiras, em Dialtica da Colonizao, p. 321.

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    1974, o autor emplaca um outro livro como o 5 mais vendido: A Curva do Calombo.

    Em 1975, Teje Preso o 5 mais vendido do ano no segmento de autores nacionais9.

    O impacto da disseminao da televiso nos anos 70 teve um efeito nocivo

    sobre o cinema: a venda de ingressos para sesses cinematogrficas, de 2,1

    ingressos por habitante ao ano em 1971, decaiu para 1,3 em 1980.

    (p.66) A Literatura e o Pas

    A partir de 1974, comea a ficar bvio que o milagre brasileiro n~o

    cumprira tudo o que prometera:

    74 parece anunciar um quadro marcado pelo crescente agravamento da crise

    do milagre econmico, a relativa perda de coeso entre as foras que sustentavam o

    regime, o crescimento da insatisfao popular e a paulatina retomada do debate

    poltico10.

    A classe mdia passa a se interessar mais pela situao do pas e os produtos

    culturais voltam a abordar enfaticamente o tema.

    Esse interesse pela situao do Brasil contemporneo simultneo

    formula~o, por parte do Estado, da Poltica Nacional de Cultura. A interven~o

    estatal nos sugere o reconhecimento de uma crescente tendncia articulao

    institucional da produo cultural no Brasil11. A conquista do mercado tema

    sempre presente tanto da parte do Estado quanto dos produtores culturais.

    A retomada das questes nacionais vai produzir toda uma literatura

    politizada e engajada. Abordando essa produo literria engajada dos anos 70,

    Helosa Buarque de Holanda a divide em trs tipos:

    (p.67)1. romances pol ticos, que se propo em a contar a histo ria, testemunhar, colar-se ao real imediato12;

    2. memo rias, relatos testemunhais;

    3. o que se poderia chamar literatura de sintoma, aquela que flagra o sentimento de opressa o e angu stia caracter stico da intelectualidade e dos artistas naquele momento.

    9 Todos os dados sobre ranking de best-sellers foram extrados das listas anuais de 1973 a 1978 da

    revista Veja. A listagem referente a 1973 foi publicada na Veja de 02 jan. 74; a de 1974 em 08 jan. 75;

    a de 1975 em 31 dez. 75; a de 1976 em 29 dez. 76; a de 1977 em 04 jan. 78 e a de 1978 em 27 dez. 78.

    10 Helosa Buarque de Holanda e Marcos A. Gonalves, Poltica e Literatura: A Fic~o da Realidade

    Brasileira, em Armando Freiras Filho (org.), Anos 70. Literatura, p. 31.

    11 Idem, p. 37

    12 Idem, p.13

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    Desses trs tipos de literatura engajada, o primeiro deles, denominado aqui

    romance poltico, o que aparecer nos anos 70 nas listas dos mais vendidos.

    Podemos incluir nesse tpico:

    Incidente em Antares, de E rico Ver ssimo, livro de autor nacional mais vendido no ano de 1973;

    Solo de Clarineta, do mesmo autor, livro mais vendido em 1974 e o 9 em 1975; Calabar, de Chico Buarque de Holanda, o 4 em 1974; Fazenda Modelo, tambe m de Chico Buarque, o mais vendido em 1975; Gota d'gua, de Chico Buarque e Paulo Pontes, livro de fica o mais vendido em 1976.

    preciso notar que, nos anos 70, a expanso dessa literatura explicitamente

    vinculada histria recente do pas, abertamente engajada, de carter s vezes at

    jornalstico, extrapola em suas causas o momento brasileiro de ento:

    (p.68) A fragmentao, o fundamento do alegrico, no est na singularidade

    do destino brasileiro do momento. Ela est na amplitude da histria do capital e na

    impossibilidade da gente dizer, num determinado momento, a totalidade. Isso que

    determina o alegrico, no a simples situao imediata do governo autoritrio de tal a

    tal ano. A alegoria anterior aos anos de represso, a forma alegrica anterior13.

    Segmentao do Mercado

    Em meados dos anos 70, ao lado dos romances polticos e dos textos

    atrelados ao star system televisivo, convivia nas listas dos livros mais vendidos uma

    literatura brasileira no diretamente engajada e de feitura literria bastante

    complexa e elaborada, como:

    Ba de Ossos, memo rias de Pedro Nava, 3 no segmento de autores nacionais no ano de 1973;

    Balo Cativo, memo rias de Pedro Nava, 6 no mesmo segmento em 1974; Cho de Ferro, de Pedro Nava, o 4 livro mais vendido em 1976 no segmento fica o; gua Viva, de Clarice Lispector, como o 8 no segmento de autores nacionais em

    1973; Avalovara, de Osman Lins, 3 no mesmo segmento em 1974; As Meninas, de L gia Fagundes Telles, o 5 de 1975 e Dora Doralina, de Raquel de Queiro s, o 6 de 1975.

    (p.69)Autores j consagrados em termos de vendagem mantiveram-se nas

    listas dos mais vendidos nos anos 70: Jorge Amado tem seu Tereza Batista como o

    13 Davi Arigucci Jr., Jornal, Realismo, Alegoria: O Romance Brasileiro Recente, Achados e Perdidos, p.

    95.

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    livro de autor nacional mais vendido em 1973 e 7 lugar no ano seguinte e Tieta do

    Agreste foi o 3 livro de fico em 1977.

    Jos Mauro de Vasconcelos reaparece em meados dos anos 70 com O Veleiro

    de Cristal, 1 no segmento de autor nacional em 1973, e Vamos Aquecer o Sol, 8 no

    mesmo segmento em 1974.

    Quanto literatura de autor no-brasileiro aparecem nas listas de mais

    vendidos principalmente representantes de uma fico norte-americana mass cult,

    como O Exorcista, o mais vendido no segmento autor estrangeiro em 1973 e 1974 e

    9 em 1975, Tubares, 2 em 1975, alm de Arthur Hailey, Morris West, J. Susann

    (Uma Vez s pouco) e Richard Bach (Ferno Capelo Gaivota).

    Mais para o final dos anos 70 teremos o boom do realismo fant|stico latino-

    americano: O Outono do Patriarca, de Gabriel Garcia Marques, 2 no segmento de

    fico em 1976, Conversa na Catedral, de Mario Vargas Llosa, 1 no segmento fico

    em 1978, e Tia Jlia e o Escrevinhador, do mesmo autor, o 2 no mesmo segmento e

    mesmo ano.

    Observa-se, assim, nas listagens anuais de livros mais vendidos, em meados

    dos anos 70, a convivncia de produes culturais bastante dspares: textos

    atrelados ao star system televisivo, romances polticos, literatura nacional

    formalmente inventiva e de difcil fruio, literatura de massa e de gosto mdio de

    autores nacionais consagrados, tudo isso ao lado de narrativas de (p.70) massa de

    autores norte-americanos ao boom do realismo fant|stico latino-americano. Essa

    coabitao disparatada deu-se porque o crescimento do mercado e sua solidificao

    conduziu a sua maior segmentao.

    Fim da Dcada: Interesse pelo Brasil

    Os ventos democratizantes que sopraram neste pas em 1978 e 1979, com o

    surgimento de um sindicalismo forte e com o processo de abertura consolidado na

    lei da Anistia em agosto de 1979, tiveram seus reflexos no mercado editorial, mais

    no setor de no-fico do que no segmento literatura ficcional.

    Os dez livros mais vendidos no ano de 1978 no segmento no-fico foram:

    1. As Veias Abertas da Amrica Latina, E. Galeano

    2. A Ditadura dos Cartis, Kurt Mirow

    3. O Governo de Joo Goulart, Moniz Bandeira

    4. Depoimento, Carlos Lacerda

    5. Cuba de Fidel, J. L. Branda o

    6. Anarquistas e Comunistas no Brasil, J. W. Foster Dulles

    7. O Relatrio Hite, Shere Hite

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    8. Lies de Liberdade, Sobral Pinto

    9. Os Militares no Poder II, Carlos Castello Branco

    10. Bagao de Beira Estrada, Ma rio Lago.

    Salta vista nessa listagem a preocupao com o levantamento da histria e

    a interpretao de fatos referentes ao Brasil recente.

    Essa preocupao com os destinos do pas e o resgate da memria de sua

    histria recente no segmento no-fico convive, no segmento literatura de fico,

    com ttulos em que dominam a presena de autores no-brasileiros e temrio no-

    vinculado realidade circundante imediata, como por exemplo Iluses, de Richard

    Bach, e Encontro no Nevoeiro, de J. M. Simmel. A disparidade entre esses dois

    segmentos do mercado editorial levou a revista Veja (27 dez.78, p. 75) ao seguinte

    coment|rio: J| se disse, alis, que o leitor deste pas diverte-se em ingls e

    preocupa-se em portugus.

    A tematizao das controvrsias e conflitos polticos contemporneos,

    dominante em 1978 no segmento no-fico, uma tendncia j verificvel desde

    1974. Em 1974, Agosto 1914, de A. Soljentsin, foi o 3 livro de autor estrangeiro

    mais vendido e no mesmo segmento, Arquiplago Gulag foi o 4 mais vendido de

    1975.

    Em 1976, no segmento no-fico, temos dois textos que enfocam mais

    precisamente a poltica nacional: Os Militares e a Poltica, de Alfred Stepan (5) e O

    Governo Kubitschek, de M. V. M. Benevides (6). Em 1977, o grande best-seller no

    segmento no-fico foi A Ilha, de Fernando Morais, relato das observaes do

    jornalista em torno de sua viagem a Cuba.

    Ser em uma zona de interseco entre o chamado segmento ficcional e o

    no-ficcional que, em 1979, teremos O que Isso Companheiro?, o grande best-seller

    que tematiza as memrias do ex-militante poltico e (p.72) ex-exilado Fernando

    Gabeira. O livro vende 80 mil exemplares em 1979 e Gabeira reacende com esse

    texto um filo que se desenvolver mais na primeira metade dos anos 80.

    Essa exploso da temtica nacional no segmento de no-fico parece ter

    sido um bom motivo para que a revista Veja alterasse sua forma de contagem anual

    de livros mais vendidos. A revista segmentou contagem em autores nacionais e

    autores estrangeiros referentes aos anos de 1973, 74 e 75 e em fico e no-fico

    nas listagens referentes aos anos de 1976, 77 e 7814.

    14 Maria Elena O. O. Assumpo tem outra hiptese para o fato. Cf. Maria Elena O. O. Assumpo, O

    Romance Brasileiro Contemporneo enquanto Produto Editorial. Segundo a autora havia um certo

    paternalismo em relao literatura brasileira e o crescimento deste segmento tornou dispensvel a

    antiga separao.

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    Resumindo, podemos dizer que so dados importantes na abordagem do

    crescimento do mercado editorial no incio dos anos 70: a queda nas taxas de

    analfabetismo, o crescimento do nmero de estudantes universitrios, a

    industrializao da produo e da comercializao editorial, inclusive em bancas de

    jornal, e o crescimento do PIB, fatos esses correlatos ao milagre econmico.

    A seguir, passamos a enfocar variaes do perfil dos livros mais vendidos em

    livrarias, no decorrer dos anos 70.

    Vimos que a expanso da comunicao de massa que se solidificou no Brasil

    nesse perodo, centrada basicamente na televiso, foi o substrato de um

    determinado segmento do mercado editorial a literatura atrelada ao star system

    televisivo.

    (p.73) A falncia do milagre econmico e a conscincia dos altos custos

    humanos e sociais que o pas tinha pago por ele, assim como a inquietao quanto

    aos rumos do futuro, vimos, incrementaram a vendagem de uma certa literatura

    ficcional de temtica poltica em meados dos anos 70. Essas preocupaes aps a

    Abertura e a Anistia impulsionaram as vendas dessa temtica no segmento no-

    ficcional.

    A segmentao de uma produo cultural voltada para o mercado, este

    tambm cada vez mais segmentado, impede que se possa identificar um padro

    nico no mercado editorial brasileiro. Encontramos aqui um mosaico complexo de

    temticas e de nveis de complexidade textual bastante indicadores desta

    segmentao.

    Industrializao da produo cultural foi esse o termo com que mais nos

    deparamos ao tentar entender e descrever o mercado editorial brasileiro nos anos

    70, seu desempenho em vendas e a literatura brasileira a presente. O fato de

    enfocar a dcada de 1970 como um perodo em que a indstria cultural e produo

    cultural massificada15 se solidificaram no Brasil no implica que aceitamos uma

    vis~o global da poca como a de um vazio cultural. Nossa nfase aqui, pela prpria

    especificidade do tema mercado editorial, foi no aspecto quantitativo da produo

    cultural do perodo e nas variaes do perfil a dominante. Isso no quer dizer que,

    mesmo sem ter atingido o mercado de forma significativa, no tenha existido nesta

    15 Lembremos que a oposio cultura de massa, para a grande maioria da populao brasileira, no

    a cultura erudita, mas sim a cultura rstica. Cf. Srgio Miceli, A Noite da Madrinha, Concluses.

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    poca produo cultural de qualidade nem elaborao16 que passasse por outros

    caminhos e rumos que no os da crescente massificao da cultura.

    16 Como exemplos de levantamento e anlise de produes culturais dos anos 70 que passaram ao

    longo da industrializao cultural, ver, entre outros, para a poesia marginal, Carlos Alberto Messeder

    Perreira, Retrato de poca: Poesia Marginal dos Anos 70, e, para a imprensa alternativa, Bernardo

    Kucinski, Jornalistas e Revolucionrios: Nos Tempos da Imprensa Alternativa.

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    Anos 80

    Ecletismo e Oscilaes

    (p.78) Dois rgos coletaram e divulgaram dados quantitativos sobre a

    produo de livros no Brasil na dcada de 1980: o Sindicato Nacional dos Editores

    de Livros, Snel, e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica, IBGE. Os dados de

    nenhum dos dois abrangem a totalidade da dcada: o Snel no coletou dados nos

    anos de 83 e 84, e o IBGE, neste tpico, enfocou apenas o perodo de 1982 a 1985.

    O Snel trabalha com dados fornecidos pelas prprias editoras; como esse

    fornecimento voluntrio, h possibilidade de suas concluses estarem

    subestimadas. O IBGE tabula dados coletados e fornecidos por rgos federais como

    o Servio de Estatstica da Educao e Cultura, do ento Ministrio de Educao e

    Cultura. Ambos chegam a resultados bastante divergentes entre si.

    Assim sendo, no h uma fonte inquestionvel de informaes quantitativas

    confiveis sobre o mercado editorial brasileiro e que cubra todo o perodo enfocado.

    Feitas essas ressalvas pode-se dizer que, no Brasil, de 1980 a 1989, a

    correlao mdia anual de livros publicados por habitante ficou em torno de 1,5

    livros, com momentos de pico de 1980 a 82 e em 1986.

    Ciente das dificuldades relativas obteno de dados sobre o assunto, em

    1992 a Cmara Brasileira do Livro estabeleceu convnio com a Fundao Joo

    Pinheiro e tornou-a responsvel por coletar e tabular dados a respeito do mercado

    editorial brasileiro, a partir de 1990. O procedimento da Fundao o da estimativa

    sobre uma amostragem de editoras. Note-se que seus resultados referentes a 1990

    so radicalmente dspares dos do Snel.

    O ndice brasileiro de livros por habitante ao ano est longe do ndice dos

    Estados Unidos, que algo em torno de dez livros por habitante1, mas no dos

    piores do planeta. Podemos confirmar essa ltima afirmao, pelo consumo de

    quilos de papel impresso (excluindo o dos jornais) ou utilizado para escrita, por

    habitante, dado que um bom indicador da capacidade de produ~o de material

    escrito, inclusive livros, uma vez que h muitas dificuldades de obteno de dados

    sobre livros nos pases subdesenvolvidos e em desenvolvimento. Os conjuntos de

    1 Conforme o presidente da Cmara Brasileira do Livro, Armando Antongini Filho, em entrevista

    Abigraf, n.145, ano XVIII, mar./abr. 93, p.64.

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    pases que tm menor desempenho neste ltimo indicador so os pases africanos e

    os pases rabes2.

    O ndice nacional de tiragem total de livros em relao aos habitantes torna-

    se mais significativo se levarmos em conta a porcentagem de analfabetos e a ampla

    parcela da populao que vive nos limites da sobrevivncia fsica, excluda, portanto,

    de qualquer acesso ao consumo, inclusive de consumo cultural.

    (p.79) QUADRO 1

    Ano Populao brasileira* (a)

    Tiragem total dos livros publicados segundo diferentes fontes Snel(b) IBGE(c) F. Joo Pinheiro(d)

    1980 121,3 242,7 1981 124,1 218,8 1982 126,9 245,9 206,9 1983 129,8 181,3 1984 132,7 178,8 1985 135,6 161,9 197,2 1986 138,4 209,1 1987 141,6 186,5 1988 144,4 161,6 1989 147,4 155,5 1990 150,4 115,0 239,3 1991 303,4

    * dados em milhes

    (a) Populaa o brasileira residente projetada. Anurio Estatstico do Brasil 1990, IBGE, 50 edia o, p.63, onde consta a seguinte nota: o valor da estimativa da populaa o (referente a 1980) e superior ao Censo Demogra fico de 1980 (119 002 706), por considerar correa o de subenumeraa o inerente aos levantamentos estat sticos.

    (b) Produo Editorial Brasileira 1987/1988, 1989 e 1990, Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Snel.

    (c) Anurios Estatsticos do Brasil, IBGE. Considera-se livro uma publicaa o na o perio dica impressa com um m nimo de 49 pa ginas sem contar as capas, Manual de Instrues ECO 7 Bibliotecas Universitrias e Especializadas, Fundaa o IBGE / MEC / Secretaria Geral.

    (d) Diagnstico do Setor Editorial Brasileiro, Ca mara Brasileira do Livro/Fundaa o Joa o Pinheiro, Belo Horizonte, abr. 1993.

    (p.80) Se esta situao lamentvel de um ponto de vista poltico e humano,

    revela, por outro lado, a grande potencialidade do mercado editorial no Brasil, uma

    2 Unesco Sources, n.14, abr. 1990, p.7. Os dados se referem a 1987.

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    vez que com uma diminuta parcela da populao em condies de ler e comprar

    livros j se atingiu o patamar citado.

    Alm disso, a parcela participante do consumo de livros enfrenta um

    complicador que a m comercializao e distribuio dos mesmos, considerada a

    pequena rede nacional de livrarias e pontos de vendas de livros.

    Levando-se em conta esses obstculos expanso do mercado editorial

    brasileiro e refletindo-se que, apesar deles, o mercado j bastante significativo,

    torna-se patente a potencialidade de seu crescimento. Note-se que apesar do ndice

    brasileiro de livro por habitante ao ano ser baixo, o fato de a populao ser

    numericamente grande, uma das maiores populaes mundiais, torna o Brasil um

    amplo mercado, comparado a outros pases: o Brasil ocupa o stimo lugar no

    mercado mundial de livros3. No quadro de um mercado dessa amplitude, colocamos

    a questo: o que se l no Brasil?

    Para a abordagem do que foi lido no Brasil na dcada de 1980 quanto a

    assuntos enfocados, tipos de narrativa e autores, sero utilizadas as listas dos dez

    ttulos mais vendidos de fico e no-fico de cada ano, publicadas por Leia Livros a

    partir de 1980. Em alguns anos no foram feitas listas anuais ou estas foram (p.81)

    menores que os tradicionais dez ttulos por segmento. Nesses casos elaboramos as

    listas anuais a partir das listas mensais. Para os anos de 1988 e 1989, utilizamos as

    listagens elaboradas pelo Datafolha e publicadas na Folha de S.Paulo, uma vez que

    Leia Livros modificou sua forma de listagem, deixando de dividir os segmentos

    fico e no-fico, como hbito em outros pases.

    Esses levantamentos dos livros mais vendidos so realizados em uma

    amostra de livrarias. O tamanho dessa amostra variou entre vinte e cincoenta

    livrarias. preciso ter em mente que as livrarias representam, segundo dados do

    Snel4, apenas algo em torno de 40 a 45% do total de vendas do mercado de livros.

    preciso levarmos em conta tambm que raramente um livro didtico ou infantil

    chega s listas dos best-sellers, devido diversidade de oferta de ttulos. No entanto,

    esses segmentos ocupam algo em torno de 45 a 70% (estimativa varivel conforme

    fontes diferentes) do total do mercado editorial.

    Mesmo sabendo da inexatido desse tipo de levantamento, cremos que as

    listas podem ser utilizadas como termmetros ou sintomas indicativos do que se I,

    no Brasil, no plano das escolhas voluntrias.

    3 Ver Abigraf (Associao Brasileira da Indstria Grfica), So Paulo, ano XVII, n.142, set./out. 92, p.

    86.

    4 Ver, por exemplo, Produo Editorial Brasileira. Anlise de Resultados 1987/1988, Snel, item:

    percentual de vendas por vias de comercializao.

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    O objetivo deste texto caracterizar o mercado editorial brasileiro nos anos

    80. Aps a apresentao desses dados quantitativos gerais passaremos a enfocar,

    utilizando as listagens de mais vendidos de cada ano, (p.82) variaes nessas

    listagens, separando por segmento (fico e no-fico) e distinguindo os autores

    brasileiros dos estrangeiros.

    A Presena dos Ficcionistas Brasileiros

    J| se disse que o brasileiro, quanto a leituras, preocupa-se em portugus,

    mas diverte-se em ingls, caracterizando-se assim o baixo ndice de presena de

    autores ficcionais brasileiros nos hbitos e na preferncia do leitor, em comparao

    com o segmento da no-fico. O leitor, na dcada de 1980, podia buscar a reflexo e

    a informao em um escritor brasileiro, mas dava preferncia a um escritor

    estrangeiro na hora da leitura de lazer ou fruio esttica.

    Durante a dcada de 1980, o nmero de escritores brasileiros entre os dez

    ttulos mais vendidos de cada ano, no setor de literatura ficcional, oscilou. Dois

    ttulos nas listas de 1981 e 1986; trs ttulos em 1980, 1982 e 1984; quatro ttulos

    em 1983 e 1989 e cinco ttulos em 1985. Em 1987 e 1988 nenhum escritor nacional

    figurou na lista dos mais vendidos no segmento.

    A baixa iniciada em 1986 comea a ser revertida em 1989, com a presena de

    quatro ttulos de escritores nacionais, dois deles de um mesmo autor: Paulo Coelho.

    O Alquimista, de Paulo Coelho ocupa o segundo lugar em 1989 (e ser o primeiro em

    1990) e Dirio de um Mago, do mesmo autor, o quinto mais vendido em 1989 (e o

    segundo em 1990).

    (p.83) Os escritores brasileiros que mais tiveram ttulos entre os dez mais

    vendidos de cada ano na dcada de 1980 foram Fernando Sabino (cinco) e Luiz

    Fernando Verssimo (quatro). Em seguida, com trs ttulos aparece Jorge Amado, e,

    com dois ttulos cada, Rubem Fonseca, Carlos Drummond de Andrade, Joo Ubaldo

    Ribeiro e Paulo Coelho. Ainda aparecem, com um ttulo cada, Antnio Calado, Ea de

    Queiroz, Igncio de Loyola Brando, Dias Gomes, Mrcio Souza e Marcelo Rubens

    Paiva.

    Aponto a seguir os ficcionistas brasileiros que apareceram durante a dcada

    de 1980.

    1980 (Leia Livros, janeiro de 1981)

    1 O Grande Mentecapto, Fernando Sabino, Record

    4 A Tragdia da Rua das Flores, Ea de Queiroz, Moraes

    8 Farda, Fardo, Camisola de Dormir, Jorge Amado, Record

    1981 (Leia Livros, janeiro ele 1982)

    3 A Falta que Ela me Faz, Fernando Sabino, Record (contos)

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    4 Sempre Viva, Antonio Callado, Nova Fronteira

    1982 (Leia Livros, dezembro de 1982)

    1 O Analista de Bag, Luiz Fernando Verssimo, L&PM (humor/contos)

    5 No Vers Pas Nenhum, Igncio de Loyola Brando, Codecri (fico

    cientfica)

    6 Sucupira, Ame-a ou Deixe-a, Dias Gomes, Civilizao Brasileira

    1983 (listas mensais publicadas por Leia Livros durante o ano)

    3 O Menino no Espelho, Fernando Sabino, Record

    6 O Analista de Bag, Luiz Fernando Verssimo, L&PM (humor/contos)

    (p.84) 8 A Ordem do Dia, Mrcio Souza, Marco Zero

    9 Outras do Analista de Bag, L. F. Verssimo, L&PM (humor/contos)

    1984 (os cinco primeiros ttulos foram extrados de Leia Livros, janeiro de 1985, os

    demais foram calculados a partir das listagens mensais dessa mesma publicao)

    6 A Grande Arte, Rubem Fonseca, Francisco Alves (policial)

    7 O Gato Sou Eu, Fernando Sabino, Record (contos)

    9 A Velhinha de Taubat, L. F. Verssimo, L&PM (humor/ contos)

    1985 (listagem elaborada a partir das listas mensais publicadas em Leia Livros)

    3 Viva o Povo Brasileiro, Joo Ubaldo Ribeiro, Nova Fronteira

    5 Tocaia Grande: A Face Obscura, Jorge Amado, Record

    6 Amar se Aprende Amando, Carlos Drummond de Andrade, Record (poesia)

    7 A Faca de Dois Gumes, Fernando Sabino, Record (contos/ o conto que d

    ttulo ao volume pode ser considerado policial)

    8 O Corpo, Carlos Drummond de Andrade, Record (poesia)

    1986 (Leia Livros, janeiro de 1987)

    5 Bufo & Spallanzani, Rubem Fonseca, Francisco Alves

    10 Blecaute, Marcelo Rubem Paiva, Brasiliense (fico cientfica).

    1987 (Leia Livros, dezembro de 1987)

    No consta nenhum escritor brasileiro.

    1988 (Folha de S. Paulo, 30 de dezem