Merlin – The Lost Years Autor: T. A. Barron · o segredo dos dragões de combate ao traiçoeiro...

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FICHA TÉCNICA Título: Merlin – The Lost Years Autor: T. A. Barron Copyright © Thomas A. Barron, 1996 Ilustração do mapa © Ian Schoener, 1996 Todos os direitos reservados Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015 Tradução: Rita Figueiredo Ilustração da capa © Larry Rostant Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1.ª edição, Lisboa, janeiro, 2015 Depósito legal n.º 385577/14 Reservados todos os direitos para Portugal à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena [email protected] www.presenca.pt

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FICHA TÉCNICA

Título: Merlin – The Lost YearsAutor: T. A. BarronCopyright © Thomas A. Barron, 1996Ilustração do mapa © Ian Schoener, 1996Todos os direitos reservadosTradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015Tradução: Rita FigueiredoIlustração da capa © Larry RostantComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.ª edição, Lisboa, janeiro, 2015Depósito legal n.º 385577/14

Reservados todos os direitospara Portugal àEDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 [email protected]

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Este livro é dedicado a Patricia Lee Gauch,

amiga leal, escritora dedicada, editora exigente

com especial estima pelo Ben,

de quatro anos de idade, que vê e plana como um falcão.

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Nota do Autor

Não sei muito sobre feiticeiros, mas há uma coisa que aprendi: São uma caixinha de surpresas.

Quando terminei de escrever Merlin Effect, um romance que segue uma única trama da lenda do rei Artur desde os antigos tempos dos druidas quase até ao início do século xxi, percebi que esse fio me tinha envolvido de tal forma que não conseguia escapar. Quando o puxava, ele puxava -me de volta. Quando o desenrolava, ele envolvia -me ainda mais intensamente.

O fio era o próprio Merlin. É um tipo misterioso e cati vante, um feiticeiro que consegue voltar atrás no tempo, que se atreve a desafiar até mesmo a Morte Tríp lice e que consegue procurar o Santo Graal enquanto fala com os espíritos dos rios e das árvores. Percebi que queria conhecê -lo melhor.

Os estudiosos modernos argumentam que o mito de Merlin pode ter derivado de uma figura histórica real, um profeta druida que viveu algures no País de Gales no século vi d. C. Mas essa é uma discussão para os historiadores. Pois, independentemente de ele ter ou não existido nos anais da História, Merlin existe certa-mente no reino da imaginação. Há muito que ali vive e ali continua a pros perar. Ocasionalmente, até recebe visitas. E uma vez que eu queria escrever uma obra produto da imaginação, e não do domí-nio his tórico, a porta de Merlin estava completamente aberta.

E assim, antes que eu pudesse começar a protestar, Merlin fez os seus próprios planos para mim. Outros meus livros e projetos tive-ram de esperar. Estava na altura de explorar um aspeto diferente da sua lenda, um que fosse profundamente pessoal para o feiticeiro.

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Desconfiava que, como acontece com a maior parte das coisas na vida, quanto eu mais aprendesse sobre Merlin, menos saberia realmente. E, como seria de esperar, tive desde o início consciência de que mesmo um pequeno contributo para uma mitologia tão maravilhosa seria um grande desafio. Mas a curiosidade pode ser uma poderosa motivação. E Merlin era insistente.

Foi então que surgiu a primeira surpresa do feiticeiro. Ao mer-gulhar nos contos tradicionais sobre Merlin, encontrei uma lacuna inexplicável no folclore. A juventude de Merlin — os tempos cruciais e formativos, em que ele terá provavelmente descoberto as suas próprias origens obscuras, a sua própria identidade e os seus próprios poderes — só era mencionada de passagem, ou não era mencionada de todo. Os momentos em que experienciou a tris teza ou a alegria pela primeira vez, os momentos em que con -quistou uma ou duas partículas de sabedoria, continuavam por explorar.

A maioria dos contos tradicionais segue a mesma abordagem de Thomas Malory e ignora completamente o início da vida de Merlin. Algumas histórias falam do seu nascimento, da sua mãe atormentada, do seu pai desconhecido e da sua infância precoce. (Num relato, ele fala fluentemente em defesa da mãe, quando tinha apenas um ano de idade.) Depois não voltamos a ouvir falar dele até já ser consideravelmente mais velho, quando é encontrado a explicar o segredo dos dragões de combate ao traiçoeiro rei Vortigern. Pelo meio há uma lacuna de vários anos. Talvez, como alguns supõem, tenha vagueado sozinho pela floresta durante esses anos perdidos da lenda. Ou talvez... tenha viajado para outro lugar.

Esta lacuna no início da vida de Merlin contrasta gran demente com a enorme quantidade de material que temos sobre os seus últi-mos anos. Enquanto adulto, ele assume muitas formas (por vezes contraditórias), sendo descrito como profeta, mago, Louco da Floresta, impostor, sacerdote, vidente e bardo. Aparece em alguns dos primei ros mitos da Grã -Bretanha celta, vários deles tão anti-gos que as suas fontes já eram obscuras quando os grandes épi-cos galeses do Mabinogion foram escritos, há mil anos. Merlin, o feiticeiro, está presente na Rainha das Fadas, de Spenser, e em Orlando Furio so, de Ariosto. Ele aconselha o jovem rei em Morte d’Artur de Malory, monta o cenário de Stonehenge no poema

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de Robert de Boron, do século xii, intitulado Merlin, faz muitas profecias em Historia Regnum Brittaniae, de Godofredo de Mon-mouth.

Mais recentemente, escritores tão diversos como Shakes peare, Ten nyson, Thomas Hardy, T. H. White, Mary Stewart, C. S. Lewis, Lev Tolstói e John Steinbeck passaram tempo com esta figura fas-cinante, bem como muitos outros em outros tantos lugares. No entanto, com raras exceções, como a de Mary Stewart, poucos abor-daram a juventude de Merlin.

E assim, os primeiros anos de Merlin continuam a ser estranha-mente misteriosos. Ficamos sem conhecer as suas primeiras dificul-dades, os seus medos e as aspirações. Quais eram os seus sonhos mais profundos? As suas paixões? Como descobriu os seus talentos invulgares? Como é que lidou com a tragédia e a perda? Como veio a conhe cer, talvez até mesmo a aceitar, o seu próprio lado obscuro? Como é que encontrou inicialmente as obras espirituais dos drui-das e, para o mesmo efeito, dos gregos antigos? Como conciliava o seu desejo de poder e o horror que sentia ao ver como este era abusado? Resumindo, como se tornou ele o feiticeiro e mentor do rei Artur, que ainda hoje celebramos?

O folclore tradicional não responde a este tipo de perguntas. O mesmo se pode dizer das palavras atribuídas ao próprio Merlin. Com efeito, ficamos com a impressão de que ele estava determi-nado a não falar do seu passado. Um leitor do folclore tradicional poderia facilmente imaginar Merlin como um velho, sentado ao lado do jovem Artur, a refletir distraidamente sobre os «anos per-didos» da sua juventude. No entanto, só podemos especular sobre se ele estaria a comentar a brevidade da vida, ou talvez a referir -se a um capítulo desconhecido do seu próprio passado.

Sou da opinião de que, durante os anos perdidos de Merlin, ele não desapareceu apenas do mundo da histó ria e da música. Pelo contrário, acredito que ele próprio desa pareceu — do mundo tal como o conhecemos.

Esta história, que compreende vários volumes, vai tentar preen-cher essa lacuna. Começa quando um jovem, sem nome e sem memória do seu passado, dá à costa no País de Gales. Termina quando esse mesmo rapaz, tendo ganho e perdido muito, está pronto para assumir um papel central na lenda do rei Artur.

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Entretanto acontece muita coisa. Ele descobre o dom da segunda visão, mas paga caro o privilégio. Começa a falar com os animais, as árvores e os rios. Encontra Stonehenge original, muito mais antigo do que o círculo de pedra cuja construção lhe é atribuída na planície de Salisbury, em Inglaterra. Mas primeiro tem de aprender o significado do nome druídico de Stonehenge, Dança dos Gigan‑tes. Ele explora a sua primeira gruta de cristal. Viaja até à ilha per-dida de Fincayra (que se lê como Fianchuivé em gaélico), conhecida na mitologia celta como uma ilha sob as ondas, uma ponte entre a Terra dos seres humanos e o Outro Mundo dos seres espirituais. Encontra algumas figuras cujos nomes são familiares no folclore antigo, incluindo o grande Dagda, o maléfico Rhita Gawr, a trágica Elen, o misterioso Domnu, o sábio Cairpré, e a vital Rhia. Também encontra outros menos familiares, como Shim, Stangmar, T’eilean e Garlatha, e a Grande Elusa. Descobre que a verdadeira visão exige mais do que os olhos; que a verdadeira sabedoria une quali-dades frequentemente separadas, como a fé e a dúvida, feminino e masculino, claro e escuro; que o verdadeiro amor mistura alegria e tristeza. E, mais importante de tudo, ganha o nome Merlin.

São necessárias algumas palavras de agradecimento: a Currie, minha esposa e melhor amiga, por guardar tão bem a minha soli-dão; aos nossos endiabrados filhos Denali, Brooks, Ben, Ross e Larkin, pelo seu sentido de humor e a sua capacidade de deslum-bramento, ambos abundantes; a Patricia Lee Gauch, pela sua fé inabalável na possibilidade de uma história ser verdade; a Victoria Acord e Patricia Waneka, pela sua preciosa ajuda; a Cynthia Kreuz--Uhr, pela sua compreensão das fontes entrelaçadas do mito; a todos os que me incentivaram ao longo do caminho, especialmente Madeleine L’Engle, Dorothy Markinko e M. Jerry Weiss; a todos os bardos, poetas e contadores de histórias e estudiosos que con-tribuíram ao longo de muitos séculos para a história de Merlin; e, naturalmente, ao próprio feiticeiro esquivo.

Acompanhem -me enquanto Merlin nos revela a história dos seus anos perdidos. Nesta viagem, vocês são testemunhas, eu sou o escriba e Merlin é o nosso guia. Mas sejamos cautelosos, pois, como sabemos, os feiticeiros são uma caixinha de surpresas.

T. A. B.

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Prólogo

Se eu fechar os olhos e inspirar o ritmo ondulante do mar, ainda consigo lembrar ‑me desse dia distante. Áspero, frio e sem vida, tão vazio de promessas como os meus pulmões estavam vazios de ar.

Desde esse dia já vi muitos outros, mais do que tenho forças para contar. No entanto, aquele dia brilha tão intensamente como o próprio Galator, tão brilhante como o dia em que descobri o meu próprio nome, ou quando embalei pela primeira vez um bebé cha‑mado Artur. Talvez me lembre tão claramente porque a dor, como uma cicatriz na minha alma, se recusa a desaparecer. Ou talvez seja por ter marcado o fim de tanta coisa. Ou por ter marcado tanto um fim como um início: o início dos meus anos perdidos.

Uma onda negra subiu do mar ondulante e dela ergueu -se uma mão.

Quando a onda subiu mais, erguendo -se na direção do céu cinzento como ela, a mão subiu também. Uma pulseira de espuma envolvia o pulso, enquanto dedos desesperados palpavam algo que não conseguiam encontrar. Era a mão de alguém pequeno. Era a mão de alguém fraco, demasiado fraco para continuar a lutar.

Era a mão de um rapaz.Com um som de aspiração profundo, a onda começou a formar

uma crista, inclinando -se firmemente na direção da costa. Parou por um instante, pairando entre o oceano e a terra, entre o Atlân-tico melancólico e a perigosa e escarpada costa do País de Gales, naqueles tempos conhecido como Gwynedd. Em seguida, o som de

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aspiração transformou -se num poderoso rugido quando a onda se desmoronou, lançando o corpo inerte do rapaz contra as rochas negras.

A cabeça bateu numa pedra, tão violentamente que o crânio se teria certamente aberto se não estivesse coberto por uma espessa cabeleira. Ele ficou completamente imóvel, exceto quando a brisa soprada pela onda seguinte lhe despenteava o cabelo, negro por baixo das manchas de sangue.

Uma gaivota com um aspeto doente, vendo a sua forma imó-vel, saltou por cima de um amontoado de pedras para ver melhor. Aproximando o bico do rosto do rapaz, tentou puxar uma fieira de algas que se lhe enrolara na orelha. A ave puxou e torceu, gras-nando furio samente.

Finalmente, as algas soltaram -se. Triunfante, a ave saltou para um dos braços nus do rapaz. Sob os farrapos de uma túnica cas-tanha ainda colada a ele, parecia muito pequeno, mesmo para um miúdo de sete anos. Mas algo no seu rosto — talvez a forma das sobrancelhas ou as rugas em volta dos olhos — fazia com que se parecesse muito mais velho.

Naquele instante, ele tossiu, vomitou água do mar e tossiu nova-mente. Com um guincho, a gaivota largou as algas e esvoaçou para um poleiro pedregoso.

O rapaz permaneceu imóvel por um momento. Só sentia o sabor de areia, lodo e vómito. Só conseguia sentir a dor latejante na cabeça e as rochas espetando -se -lhe nos ombros. Veio mais um ataque de tosse, mais um jorro de água do mar. Uma inspiração hesitante e difícil. Depois uma segunda inspiração, seguida de uma terceira. Len tamente, a mão delgada cerrou -se num punho.

As ondas subiam e desciam, subiam e desciam. Durante muito tempo, a pequena chama de vida do rapaz vacilou à beira da escuri-dão. Sob a palpitação, a sua mente parecia estranhamente vazia. Quase como se tivesse perdido uma parte do seu ser. Ou como se tivesse sido erigido algo como um muro a separá -lo de uma parte de si, deixando apenas uma persistente sensação de medo.

A respiração do rapaz abrandou. O punho relaxou. Ele arque-jou, talvez preparando -se para tossir novamente, mas, em vez disso, ficou imóvel.

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Cautelosamente, a gaivota foi -se aproximando.Depois, de um lugar qualquer, uma pequena onda de energia

começou a percorrer -lhe o corpo. Algo no seu interior ainda não estava pronto para morrer. Ele mexeu -se novamente, respirou novamente.

A gaivota estacou.Ele abriu os olhos. Tremendo de frio, virou -se para o lado.

Sentindo a areia áspera na boca, tentou cuspir, mas só conseguiu vomitar com o sabor rançoso das algas e da água salgada.

Com esforço, levantou um braço e limpou a boca à túnica em farrapos. Depois estremeceu, sentindo o alto dorido na nuca. Fazendo por se sentar, apoiou o cotovelo numa pedra e ergueu -se.

Ficou ali sentado, a ouvir o mar. Para lá do pulsar inces sante das ondas, para lá do latejar que sentia na cabeça, pensou por instantes ter ouvido outra coisa — uma voz, talvez. Uma voz de outro tempo, outro lugar, mas não conseguia lembrar -se de onde.

Subitamente, apercebeu -se de que não conseguia lembrar -se de nada. De onde tinha vindo. Da sua mãe. Do seu pai. Do seu nome. O seu próprio nome. Por mais que tentasse, não se conseguia lem-brar. Do seu próprio nome.

— Quem sou eu?!Ouvindo aquele grito, a gaivota grasnou e levantou voo.Vendo o seu reflexo numa poça de água, o rapaz deteve -se a

observar. Um rosto estranho, pertencente a um rapaz que não reconheceu, fitava -o. Os olhos dele, e o cabelo, eram negros como carvão, com partículas douradas dispersas. As suas orelhas, que eram quase triangulares e pontiagudas na parte superior, pareciam estranhamente grandes em comparação com o resto do rosto. Também a testa era muito alta. No entanto, o nariz era estreito e pequeno, mais um bico do que um nariz. No conjunto, o rosto não parecia formar um todo coeso.

Reuniu forças e levantou -se. Com a cabeça às voltas, apoiou -se num pináculo de pedra até as tonturas abrandarem.

O seu olhar vagueou pela costa deserta. Por toda a parte havia rochas e mais rochas espalhadas, formando uma barreira negra contra o mar. As rochas só se sepa ravam num lugar — e mesmo aí faziam -no relutantemente —, em volta das raízes de um velho car-

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valho. Com a casca a cair, o velho carvalho estava voltado para o oceano como quem permanecia naquela posição há séculos. Tinha um buraco profundo no tronco, aberto pelo fogo muito tempo atrás. A idade deformara -lhe todos os ramos, torcendo alguns em nós. E, ainda assim, a árvore mantinha -se de pé, com as raízes ancoradas, imutável contra a tempestade e o mar. Atrás do carva-lho havia um bosque escuro de árvores mais jovens, e, atrás delas, altas falésias ainda mais escuras.

Desesperado, o rapaz observou a paisagem em busca de algo que reconhecesse, qualquer coisa que fizesse a sua memória regressar. Não reconheceu nada.

Virou -se para o mar aberto, apesar do ardor dos salpicos salgados. As ondas rolavam e desmoronavam -se, uma após outra, após outra. Nada para além de ondas cinzentas infinitas, tanto quanto o jovem conseguia ver. Pôs -se novamente à escuta da voz misteriosa, mas ouviu apenas o chamado de uma gaivota empoleirada nos penhascos.

Teria vindo algures dali, do outro lado do mar?Esfregou vigorosamente os braços nus para acabar com os

arrepios. Vendo um monte de algas soltas numa rocha, pegou -lhe. Soube que em tempos aquela massa verde disforme dançara com o seu próprio ritmo gracioso, antes de ser arrancada e lançada à deriva. Agora estava caída, sem vida, na sua mão. Perguntou -se porque é que também ele fora arrancado e de onde.

Ouviu um gemido grave. Aquela voz outra vez! Tinha vindo das rochas atrás do velho carvalho.

Inclinou -se para a frente, na direção da voz. Pela pri meira vez, notou uma dor surda entre as omoplatas. Só podia supor que, tal como acontecera com a sua cabeça, as costas tivessem sido atiradas contra as rochas. No entanto, a dor pareceu -lhe um pouco mais profunda, como se algo por baixo dos seus ombros tivesse sido arrancado há muito tempo.

Depois de vários passos hesitantes, chegou à velha árvore. Incli-nou -se contra o enorme tronco, com o cora ção a bater com força. Voltou a ouvir o misterioso gemido. E voltou a segui -lo.

Frequentemente, os seus pés descalços escorregavam nas pedras molhadas, fazendo -o tombar para o lado. Aos tropeções e com a túnica castanha e esfarrapada a agitar -se -lhe em volta das pernas,

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parecia uma desengonçada ave marinha a caminhar ao longo da costa. Contudo, durante todo esse tempo, soube sempre o que era realmente: um rapaz solitário, sem nome e sem casa.

Foi então que a viu. Caído no meio das pedras estava o corpo de uma mulher, com o rosto ao lado de uma poça de água. O seu longo cabelo solto, da cor de uma lua de verão amarelada, estava espalhado em volta da cabeça como raios de luz. Tinha maçãs do rosto salientes e uma pele que poderia ser descrita como cremosa se não estivesse tão pálida. A sua comprida túnica azul, rasgada em alguns pontos, estava coberta de areia e algas. No entanto, a qualidade da lã, bem como o pendente de pedras preciosas que usava num fio de couro ao pescoço, revelava que fora em tempos uma mulher abastada e importante.

Precipitou -se para ela. A mulher soltou novo gemido, um som de dor incessante. Ele quase conseguia sentir a sua agonia ao mesmo tempo que sentia aumentar a esperança. Conheço ‑a?, perguntou -se enquanto se curvava sobre o corpo retorcido. Depois, vinda de um lugar de anseio profundo, a pergunta: Ela conhece ‑me?

Tocou -lhe apenas com um dedo na face fria como o mar. Observou -a executando várias inspirações curtas e difíceis. Ouviu os seus gemidos terríveis. E, com um sus piro, admitiu para si mesmo que a mulher lhe era totalmente estranha.

Ainda assim, enquanto a observava, não conseguia supri mir a esperança de que ela tivesse chegado àquela costa com ele. Se não tivesse vindo na mesma onda, podia ao menos ter vindo do mesmo lugar. Talvez, se sobrevivesse, pudesse preencher o vazio da sua memória. Talvez soubesse o seu nome! Ou os nomes da sua mãe e do seu pai. Ou talvez... talvez fosse realmente a sua mãe.

Uma onda gélida bateu -lhe nas pernas. Os arrepios regres saram, justamente quando a esperança desvanecia. Ela podia não sobre-viver, e mesmo que sobrevivesse, provavelmente não o conhecia. E não podia certamente ser a sua mãe. Seria esperar demasiado. Além disso, a mulher não podia ser menos parecida com ele. Era realmente bonita, mesmo à beira da morte como estava — bonita como um anjo. E ele tinha visto o seu próprio reflexo. Sabia qual era a sua aparência. Parecia -se menos com um anjo e mais com um demónio desgrenhado e raquítico.

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Um rosnado fez -se ouvir atrás dele.O rapaz virou -se. Sentiu um aperto no estômago. Ali, nas som-

bras do bosque escuro, estava um enorme javali.Com um rosnado grave e raivoso a vibrar -lhe na garganta, o

javali saiu do meio das árvores. Pelugem castanha eriçada cobria--lhe o corpo inteiro, à exceção dos olhos e de uma cicatriz cinzenta na pata dianteira esquerda. As presas, afiadas como punhais, esta-vam escurecidas com o sangue de uma caçada anterior. Mas mais assustadores ainda eram os seus olhos vermelhos, que brilhavam como brasas.

O javali moveu -se suavemente, quase com leveza, apesar da sua forma pesada. O rapaz deu um passo atrás. A fera tinha um peso muito superior ao seu. Bastaria uma patada para o derrubar. Um golpe com a presa cortar -lhe -ia a carne em tiras. O javali parou abrup-tamente e contraiu os ombros musculados, preparando -se para atacar.

Olhando para trás, o rapaz só conseguia ver as ondas violentas do oceano. Não podia fugir por ali. Agarrou num pedaço retorcido de madeira para usar como arma, embora soubesse que este nem perfuraria a pele do javali. Ainda assim, tentou fincar os pés nas rochas escorregadias, preparando -se para o ataque.

Foi então que se lembrou. O buraco no tronco do car valho! Embora a árvore estivesse a meia distância entre ele e o javali, talvez conseguisse chegar lá primeiro.

Começou a correr para a árvore, mas estacou abrup tamente. A mulher. Não podia simplesmente deixá -la ali. No entanto, a sua possibilidade de sobrevivência dependia da velocidade. Com um esgar, largou o pedaço de madeira e agarrou -lhe nos braços inertes.

Contraindo as pernas trémulas, tentou soltá -la das rochas. Fosse de toda a água que tinha engolido ou da iminência da morte, a mulher parecia -lhe tão pesada como as próprias rochas. Final-mente, sob o olhar fulminante do javali, ela cedeu.

O rapaz começou a arrastá -la para a árvore. As pedras aguçadas cortavam -lhe os pés. Com o coração acelerado e a cabeça a latejar, puxou com toda a sua força.

O javali voltou a rosnar, desta vez foi mais como um riso rouco. Todo o corpo do animal se contraiu, com as narinas dilatadas e as presas a brilhar. E depois atacou.

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Embora o rapaz estivesse a apenas alguns metros da árvore, algo o impedia de correr. Pegou numa pedra quadrada e atirou -a à cabeça do javali. Um instante antes de os alcançar, o javali mudou de direção. A pedra passou a uma curta distância dele e caiu rui-dosamente no solo.

Espantado com a possibilidade de ter intimidado a fera, o rapaz curvou -se rapidamente para apanhar mais uma pedra. Então, sen-tindo movimento por cima do ombro, virou -se.

Dos arbustos atrás do velho carvalho saiu um enorme veado. De cor castanha, à exceção das botas brancas nas patas, que bri-lhavam como o mais puro quartzo, o veado baixou as enormes hastes. Com as sete pontas de cada lado apontadas como espadas, o veado precipitou -se para o javali. Mas a fera moveu -se mesmo a tempo de se esqui var ao golpe.

Quando o javali se virou e rosnou ferozmente, o veado saltou mais uma vez. Aproveitando o momento, o rapaz arrastou a mulher para o buraco da árvore. Dobrando -lhe as pernas contra o peito, enfiou -a completamente dentro da toca. A madeira, ainda carbo-nizada por algum fogo antigo, enrolava -se à volta dela como uma grande carapaça negra. Ele enfiou -se no pequeno espaço ao lado da mulher enquanto o javali e o veado se rodeavam, batendo com as patas no chão e rosnando furiosamente.

Com um olhar colérico, o javali fingiu carregar sobre o veado e precipitou -se para a árvore. Encolhido na toca, o rapaz recuou o mais que pôde. No entanto, o seu rosto estava tão perto da casca nodosa da abertura que conseguiu ainda assim sentir o hálito quente do javali quando as presas deste atacaram descontrola-damente o tronco. Uma das presas arranhou o rosto do rapaz, abrindo -lhe um golpe por baixo do olho.

Nesse momento, o veado atirou -se sobre o flanco do javali. A fera corpulenta voou pelo ar e aterrou de lado junto aos arbustos. Com sangue a escorrer de uma pata ferida, o javali levantou -se com esforço.

O veado baixou a cabeça, prestes a saltar novamente. Hesitando por uma fração de segundo, o javali rosnou uma última vez antes de se esgueirar para o meio das árvores.

Com uma lentidão majestosa, o veado virou -se para o rapaz. Por um breve momento, os olhos deles cruzaram -se. De alguma

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forma, o rapaz soube que não recordaria nada daquele dia com a mesma clareza com que recordaria os lagos castanhos sem fundo dos olhos fixos do veado, olhos profundos e misteriosos como o próprio oceano.

E então, tão subitamente como tinha aparecido, o veado saltou por cima das raízes retorcidas do carvalho e desapareceu de vista.

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