MERLO, Márcia. O Que Faço Com Meus Diários de Campo
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5/21/2018 MERLO, M rcia. O Que Fa o Com Meus Di rios de Campo
Design, Arte, Moda e Tecnologia.So Paulo: Rosari, Universidade Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 408
MrciaMerlo;Pro
fDra.;PPGMestradoemDesig
n:UniversidadeAnhembiMorum
bi
ResumoEste artigo discute a utilizao da observao participante no Design
e na Moda. Alm do debate em torno do mtodo etnogrfico,
tambm se prope a problematizar acerca do manuseio e
conservao do material coletado, compreendido aqui comodocumentos de processo e registro de reflexes, que guardam
suas particularidades tanto na coleta quanto na conservao e
no manuseio. Desta forma, o texto objetiva repensar formas de
reintegrar o contedo do material coletado por meio do registro
de fontes orais e visuais, da observao participante no cotidiano,
associados riqueza encontrada no universo multifacetado por
meio da memria dos interlocutores da pesquisa e necessidade
de apresentar resultados, tambm, em formato de texto acadmico.
Palavras-Chave: design; moda; antropologia
OQUEFAOCOMOSMEUSDIRIOSDEC
AMPO?
INQUIETAESDEUMAANTROPLOGANO
DESIGNENAMODA.
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Design, Arte, Moda e Tecnologia.So Paulo: Rosari, Universidade Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 409
O que fao com os meus dirios de campo? Inquietaes de uma antroploga no Design e na Moda.
IntroduoComeo com uma pequena apresentao para depois compartilhar uma inquietao.
Tenho trabalhado h alguns anos na docncia em cursos de Moda Design e Negcios.
Atualmente fao parte do corpo docente do Programa de Mestrado em Design da Anhembi-
Morumbi. Apresentada minha insero neste universo que no o da minha formao, j que
venho da Antropologia, inicio o que me proponho neste artigo discutir as aproximaes entre
reas que, guardadas suas particularidades, partilham de uma substanciao comum o
humano.
Trabalhar com a observao participante, a primeira vista, parece muito sedutor. No
entanto, trata-se de uma escolha de muita responsabilidade e desafios, que ultrapassa, por
vezes, o prprio mtodo. O que significa isto? Quero dizer, que independe da boa vontade
do (a) pesquisador (a) e igualmente de uma aplicao muito tcnica de um conjunto deprocedimentos metodolgicos. De fato, entrar nesta questo discutir a construo de
conhecimento por meio de religao de saberes.
Formada em Histria pela PUCSP, minha insero na Antropologia aconteceu com
populaes nativas de So Sebastio, Ilhabela e Ubatuba, o que resultou em uma dissertao
de mestrado, uma tese de doutorado, dois livros, alguns artigos cientficos, matrias jornalsticas
em imprensa local e, muitas questes acerca do que pude aprofundar e compreender do
presenciado, do que consegui captar, desvelar, desvendar do que me foi revelado e do que
meus olhos, corao e mente observaram e discerniram. Digo isto porque optei em trabalharcom narraes livres por meio de coleta de histrias orais, depoimentos e histrias de vida;
assim, trabalhando com a memria dos antigos moradores pude registrar como pensavam a
histria de seu lugar perpassando a sua prpria histria.
Para deixar mais claro, o recorte de minha pesquisa de campo durante uma dcada
abriu a possibilidade de conhecer outras faces e ouvir outras vozes destes lugares. Deparei
com o universo caiara negro, aprofundei os estudos em relao s transformaes ocorridas
com o turismo na regio e como os antigos moradores rememoraram sua existncia. Percebi
que da memria afro-brasileira pouco se evidenciava como uma possvel contribuio a esseuniverso, mesmo quando perguntava, a um caiara negro participante da congada, acerca da
presena negra no lugar. Ao indagar sobre o negro, os depoimentos logo caam na justificativa
de que em Ilhabela no existia racismo, e, s vezes, mesmo nas narraes livres, esta verso
era explicitada entre negros e brancos. Ao longo da pesquisa e convivncia, ao criarmos laos
de amizade e confiabilidade, no entanto, outras verdades comearam a surgir trazendo a tona
o racismo sofrido e vivido por tais populaes, revelando por intermdio do trabalho com a
Memria, outra histria local refletindo as relaes raciais no seio da nao brasileira.
Alm desse aprendizado humano, compreendi o quanto o trabalho com abordagens
terico-metodolgicas em torno da Memria, utilizando-se da observao participante,
oneroso, inquietante e exige uma postura tica do (a) pesquisador (a). Ao tratarmos da
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observao participante dentro do desenvolvimento do mtodo etnogrfico construdo ao
longo da Histria da Antropologia evidencia-se que uma ao de profunda insero do
pesquisador no meio escolhido e de longa durao e extenso.
Em outras palavras, ao optar pelas narraes livres, inicia-se a busca pelos antigoscontadores de histrias, senhores da tradio ou quem puder contar ou lembrar algo que
remeta a origemi e a alguma forma de permanncia das antigas tradies de carter popular,
seja por meio de manifestaes culturais existentes, seja por meio da memria. Sendo assim,
o fio da memria d o tom ao texto. E constata-se que ainda se tece enquanto se conta e ouve
histrias, mas tambm se percebe que o velho narrador com suas narrativas d lugar a novas
informaes. O antigo territrio agora tem novos donos e novas relaes...
Dito isto, enfatiza-se que no s os elementos culturais interessam a uma pesquisa
dessa natureza, mas tambm seus produtores. Esses produtores so encarados como
interlocutores, uma vez que se compartilha do pensamento de Geertz (1989) quando se
refere ao objeto de estudo da Antropologia dizendo que o objetivo maior desta cincia
o alargamento do discurso humano (p. 32). Partindo desse pressuposto terico, a relao
estabelecida entre o pesquisador e o pesquisado de este ltimo tornar-se interlocutor, o que
propicia outra qualidade ao estudo.
Desta forma, indaga-se em como podemos desenvolver mergulhos deste gnero em
outras reas do conhecimento humano? A seguir apresentarei algumas inquietaes que
esto me direcionando a um caminho interessante no Design.
ITINERRIOS: caminhos tortuosos, resultados incrveis...Um caminho
A idia central trazer para o universo da pesquisa em Design e Moda, as teorias e
mtodos da cincia antropolgica, por meio das Teorias da Memria e do uso da observao
participante. Parte-se da constatao de que h muitas lacunas encontradas nas fontes
escritas, por isto pretende-se obter respostas nas fontes orais. Tambm ao adentrarmos o
universo do Design e da Moda, os objetos e seus produtores permeiam nosso olhar e se
tornam objetos de nosso estudo.
Um dos tericos da Memria, Michel Pollak, retrata a linha tnue que une/separa a
histria oral dos documentos:
A multiplicao dos objetos que podem interessar histria, produzidos pelahistria oral, implica indiretamente aquilo que eu chamaria de uma sensibilidadeepistemolgica especfica, aguada. Por isso mesmo acredito que a histriaoral obriga a levar ainda mais a srio a crtica das fontes. E, na medida em que,atravs da histria oral, a crtica das fontes torna-se imperiosa e aumenta a
exigncia tcnica e metodolgica, acredito que somos levados a perder, almda ingenuidade positivista, a ambio e as condies de possibilidade de uma
O que fao com os meus dirios de campo? Inquietaes de uma antroploga no Design e na Moda.
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histria vista como cincia de sntese para todas as outras cincias humanase sociais (POLLAK, 1992, p. 208).
Como Pollak, tambm, acredita-se neste projeto que fazer um trabalho de memria
apoiado nas fontes escritas e nas orais trazer para dentro do universo cientfico um discurso
sensvel pluralidade das realidades. Temos uma possibilidade no de objetividade, mas de
objetivao, que leva em conta a pluralidade das realidades e dos atos (ibidem, p. 211).
Ao ouvir as histrias de uns e de outros, assim como ao olhar para os objetos/artefatos
que permeiam a vida social, o pesquisador percebe-se compondo um mosaico em que os
pedacinhos (fragmentos) das lembranas/histrias de um vo se encostando aos de outros,
formando uma paisagem do passado baseada no presente vivido. A lembrana tambm o
momento da reviso. O que a movimenta o presente, que ao sinalizar o vivido direciona o
rememorar aos processos vividos, assim como aos no-ditos, silenciados, clandestinos, deacordo com o que se objetiva neste ato.
Pollak ao constatar o silncio, o no-dito, nos faz pensar na memria subterrnea e
sobre os processos silenciados no cotidiano de nossas existncias. O autor, ao nos esclarecer
o porqu dos no-ditos, aponta para um possvel motivo do silenciamento das memrias e
tambm o porqu de, em alguns momentos, quando se tem uma escuta e uma situao-
limite, emergirem lembranas, rompendo os silncios:
(...) h uma permanente interao entre o vivido e o aprendido, o vivido eo transmitido. E essas constataes se aplicam a toda forma de memria,individual e coletiva, familiar, nacional e de pequenos grupos. O problema quese coloca a longo prazo para as memrias clandestinas e inaudveis o de suatransmisso intacta at o dia em que elas possam aproveitar uma ocasio parainvadir o espao pblico e passar do no-dito contestao e reivindicao;o problema de toda memria oficial o de sua credibilidade, de sua aceitaoe tambm de sua organizao (POLLAK, 1989, p. 9).
Percebe-se que o que est em jogo na memria tambm o sentido da identidade
individual e do grupo (ibidem, p. 10). Nesse sentido, entende-se que as narrativas servempara historiar o cotidiano vivido, levando-se em conta at onde o raio da memria consegue
alcanar. Tambm o pesquisador presencia na relao com o objeto da pesquisa, que no
caso o prprio sujeito da histria narrada, sutilezas que direcionam o desenrolar do trabalho.
Algo que se presentifica ao conhecermos as narrativas dos sujeitos que vivem o lugarii
cotidianamente. Nas palavras de Ecla Bosi:
A veracidade do narrador no nos preocupou: com certeza seus erros e lapsosso menos graves em suas conseqncias que as omisses da histria oficial.
Nosso interesse est no que foi lembrado, no que foi escolhido para perpetuar-se na histria de sua vida (BOSI, 1979, p. 1).
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Complementando a idia desenvolvida por Bosi, ao esclarecer o objetivo da antropologia
interpretativa, Geertz traduz, em parte, a preocupao que permeia este estudo:
Olhar as dimenses simblicas da ao social arte, religio, ideologia, cincia,lei, moralidade, senso comum no afastar-se dos dilemas existenciais davida em favor de algum domnio emprico de formas no-emocionalizadas; mergulhar no meio delas. A vocao essencial da antropologia interpretativano responder s nossas questes mais profundas, mas colocar nossadisposio as respostas que outros deram (...) e assim inclu-las no registro deconsultas sobre o que o homem falou (GEERTZ, 1989, p. 40-1).
Mesmo conscientes de que escutamos e vivenciamos reflexes sobre a prpria
existncia de quem narra a sua histria para o ouvinte, no caso, o antroplogo e os designers-
pesquisadores, o que percebemos que nem sempre o ns e os outros esto to distantesquanto aparecem, e, muitas das questes subjetivas deles so as do prprio pesquisador.
Em pesquisas desta natureza, possvel constatar-se que nem sempre o ns e os outros
esto to distantes quanto aparecem, ou quanto queremos afastar, e muitas das questes
subjetivas deles so as do prprio pesquisador e tudo isto pode auxiliar a pensar e ampliar a
atuao pessoal e profissional em qualquer rea em que estejamos inseridos, pois em nossa
volta estamos ns mesmos.
Dito isto, mais uma questo se coloca em uma pesquisa que tem como pressuposto a
utilizao da observao participante e do recurso da memria. Alis, ao se tratar de memriaviva, no d para se abrir mo da vivncia com o grupo pesquisado. Trabalhar com a histria
oral e de vida, requer perceber nuances do prprio ato de rememorar, ou seja, a observao
minuciosa e participante de tudo o que envolve o pesquisado e de seu entorno. Sendo assim,
nos apoiamos no trabalho etnogrfico, to caro Antropologia. Tambm, neste caso,
preciso estar atento e consciente de que escutamos e vivenciamos reflexes sobre a prpria
existncia de quem narra a sua histria para o ouvinte. Cabe, tambm, ao pesquisador ter um
distanciamento necessrio para analisar o observado e vivido, mas no estamos dizendo com
isto que acreditamos em imparcialidade, o que afirmamos que a prtica em questo exige
uma postura consciente e tica do pesquisador.
A Memria diz respeito ao que permanece entre o feito e dito de um indivduo e seu
grupo, assim como o que no dito, ou melhor, aquilo que se silencia e cai no esquecimento.
Podemos dizer que h tantas memrias quantos grupos existirem, no entanto, tambm
podemos afirmar que h lembranas subterrneas, clandestinas que escondem outras
verdades. Conhec-las significa entrarmos em outros mundos ou mergulharmos nesses
j to velhos conhecidos nossos, mas to pouco pensados no turbilho em que vivemos,
ou, pensados por outros ngulos, alm de nossos conceitos e experincias. Por isto, neste
estudo, os objetos tambm se tornam contadores de histrias, pois carregam (evidenciam)prticas sociais e culturais diversas. No s o que se ouve ser pensado e trabalhado, mas o
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que se v, pois se compreende a cultura como um texto que se l, e, em uma sociedade onde
h o apelo (superexposio) ao visual, o visto ser lido e revisto.
Entre as narrativas, estabelece-se a relao entre o narrador e a substncia do que
se conta, assim como podemos incluir a coisa narrada - o objeto da Memria. WalterBenjamin em seu texto O narrador, expe uma questo crucial e que nos leva a pensar o
tempo presente contido no desejo de lembrar ou esquecer. O entorno (ou substncia) de toda
memria o tempo presente, o que se vive, o que se lembra, o que se viveu que no pode
mais ser vivido, mas pode ser lembrado. Assim como, o que no se viveu necessariamente,
mas, de tanto sentido que faz, torna-se algo to ntimo e seu, que pode ser contado. Neste
sentido, tambm vejo aproximao entre o Design e a Memria dos objetos.
A narrativa (...) ela prpria, num certo sentido, uma forma artesanal de
comunicao. Ela no est interessada em transmitir o puro em si da coisanarrada como uma informao ou um relatrio. Ela mergulha a coisa na vidado narrador para em seguida retir-la dele. (...) Assim, seus vestgios estopresentes de muitas maneiras nas coisas narradas, seja na qualidade de quemas viveu, seja na qualidade de quem as relata. (BENJAMIN, 1985, p. 205)
Portanto, Memria traz o estudo das representaes sociais, das identidades e do
imaginrio, da cultura. O pesquisador se deleita nas possibilidades de conhecer e interpretar
seu objeto de estudo, alm de obrigar-se a buscar caminhos para tal conhecimento se efetivar
e gerar frutos, tambm sociais e culturais.Talvez por tudo o que foi exposto at agora que algo sempre me inquietou em relao
produo cientfica como fruto de pesquisa com populaes nativas ou de qualquer grupo
humano: o que fazer com o material que recolhemos se precisamos transformar os relatos em
um texto acadmico que est sujeito s normas e tcnicas que nem sempre se referem a uma
forma que melhor apresente e/ou represente o que desejamos refletir e transmitir. Por vezes,
vira algo bastante diferente daquilo que foi recolhido das fontes orais, isto para no dizer o que
fazer com as imagens que, na maioria das vezes, so utilizadas para preencher um espao
vazio ou para ilustrar algo que acaba sem vida no meio de tantas palavras, conceitos, teorias.Tambm algumas imagens acabam surtindo o efeito de aliviar a leitura, ou melhor, distrair o
leitor, o que acaba comprometendo outros significados dados no ato do registro na tentativa
de abarcar a totalidade das relaes em uma busca de captar as intersubjetividades e inter-
relaes em jogo. Parece que no campo do Design e da Moda, reas propcias ao estudo, uso
e abuso de imagens, encontro mais referncias para pensar minhas inquietaes e tambm
para torn-las mais instigantes.
Tal desafio j se evidencia de longa data entre os etnlogos e etngrafos na histria
da cincia antropolgica. Tanto que uma das discusses recentes refere-se em abrir os
dirios antropolgicos para revelar os acertos e os percalos das pesquisas de campo, o que
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tambm significa explicitao metodolgica. Malinowski, j nos apresentava tal inquietao
nas primeiras dcadas do sculo XX ao dizer que a etnografia,
cincia em que o relato honesto de todos os dados talvez ainda maisnecessrio que em outras cincias, infelizmente nem sempre contou nopassado com um grau suficiente deste tipo de generosidade. Muitos dos seusautores no utilizam plenamente o recurso da sinceridade metodolgica aomanipular os fatos e apresentam-nos ao leitor como que extrados do nada.(...) A meu ver, um trabalho etnogrfico s ter valor cientfico irrefutvel se nospermitir distinguir claramente, de um lado, os resultados da observao diretae das declaraes e interpretaes nativas e, de outro, as inferncias do autor,baseadas em seu prprio bom-senso e intuio psicolgica. (MALINOWSKI,1976, p.22)
O objeto o prprio sujeito e o mtodo aquele que mais aproxima a possibilidade
de conhecer seu modo de viver sem reduzi-lo ao que queremos ou podemos perceber. Para
isso a fundamentao terica sempre esteve lado a lado observao minuciosa e ao registro
detalhado, com o intuito de captar a materialidade da cultura em questo, assim como sua
dimenso simblica. Talvez essa seja uma grande pretenso, mas poderia ser diferente?
Ento o que fazer com todo o material recolhido, com o que foi observado, sentido, no
compreendido e relatado, s vezes, somente em nossas anotaes e dirios de campo?
Ainda Malinowski apia algumas das observaes feitas aqui, em relao ao registro
das fontes de informao e a verso final:
Na etnografia, o autor , ao mesmo tempo, o seu prprio cronista e historiador;suas fontes de informao so, indubitavelmente, bastante acessveis, mastambm extremamente enganosas e complexas; no esto incorporadasa documentos materiais fixos, mas sim ao comportamento e memria deseres humanos. Na etnografia, freqentemente imensa a distncia entrea apresentao final dos resultados da pesquisa e o material bruto dasinformaes coletadas pelo pesquisador atravs de suas prprias observaes,das asseres dos nativos, do caleidoscpio da vida tribal. O etngrafo tem
que percorrer esta distncia ao longo dos anos laboriosos que transcorremdesde o momento em que pela primeira vez pisa numa praia nativa e faz asprimeiras tentativas no sentido de comunicar-se com os habitantes da regio,at fase final dos seus estudos, quando redige a verso definitiva dosresultados obtidos. (ibidem, p. 22-3)
Pesquisa de natureza etnogrfica ou que utilizam tcnicas qualitativas a partir desta
metodologia de pesquisa de campo, geralmente, revelam a problemtica do manuseio e
conservao do material, que os crticos genticos chamam de documentos de reflexo:
dirios, anotaes, correspondncias. O que tambm ocorre com esboos, croquis, rascunhos,cadernos de notas, projetos que perpassam o processo criativo dos designers e artistas, que
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nem sempre acabam contemplados ou devidamente armazenados ao ponto de revelar o grau
de importncia que tiverem na construo dos objetos/artefatos/histrias que encerram na
materialidade em si. Salles esclarece acerca do trabalho sobre tais documentos de processo
para os artistas e cientistas ao dizer que
Fragmentos podem parecer para um observador desavisado uma cadeia deaes isoladas. O importante, no entanto, perceber que os princpios quenorteiam aquele processo aparecem quando o seu observador estabelecerelaes entre os gestos: ao longo do trabalho de manuseio de fragmentos,estes ganham significado na sua relao com o todo.Este trabalho de estabelecer relaes entre ndices de uma histria nabusca pela compreenso do todo o mesmo manuseio de rastros feito peloarquelogo, o gelogo e o historiador. (Manuscrtica, no. 7, p.89)
A partir de tal idia pensei como salvaguardar e ampliar as interpretaes de minhas
anotaes de viagens, dirios de campo, gravaes de entrevistas, depoimentos, histrias
de vida, fotografias, filmagens de festas ou do cotidiano desses grupos, que representam,
aps anos de coleta, um acervo rico a partir das reais possibilidades de registro. Percebe-se
ao ler alguns textos da Revista Manuscrtica, que a crtica gentica, assim como os registros
etnogrficos podem oferecer base para tal estudo e anlise, principalmente quando Salles
aponta a relevncia dos documentos de processo para compreender o momento da criao,
entre outras formas de registro, guardando suas especificidades. Apresenta, a meu ver, uma
possibilidade, assim como uma aproximao com as inquietaes antropolgicas quanto aos
registros nos cadernos de campo, ao dizer que
Entrevistas, depoimentos e ensaios reflexivos oferecem tambm dadosimportantes para os estudiosos do processo criador; tm, no entanto, carterretrospectivo que os colocam fora do momento de criao. (op.cit., p.89)
E indago: possvel uma antroploga revisitar seus dirios de campo, no intuito de
reintegr-los no processo de construo das idias que a levou a formatar as pesquisasrealizadas em dissertao, tese e artigos cientficos, abrindo outras possibilidades de leitura do
mesmo material? Respondo: com certeza e isto tem sido bastante explorado nas pesquisas
antropolgicas. Ainda pergunto: E como registrar, guardar, manusear e demonstrar estes
processos no design de nossas produes acadmicas e nos processos criativos no design
e na moda? Respondo: acredito que estamos em processo de desenvolvimento destas
linguagens e metodologias. E ainda: O design das teses acadmicas amplia o universo da
criao do cientista ou o restringe? Em outras palavras, onde colocar as formas, as cores,
os sons apresentados no ato da pesquisa na escritura da tese? Falamos em processos para
quais fins? Respondo: so fontes inesgotveis de novas pesquisas e reflexes.
Em suma, o que objetivo uma releitura e um repensar trajetrias e perspectivas que
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porventura e desventuras no fazer antropolgico perpassam questes do que est guardado,
do que e como o material etnogrfico foi recolhido e registrado, enfim, no processo de coleta
de dados que inclui, alm da observao participante, a gravao de depoimentos, histrias
orais, histrias de vida e o registro de imagens. Guardadas as devidas propores, percebo nosprocessos projetuais nas reas do Design e da Moda ainda questes bastante semelhantes,
sobretudo quando o processo de construo cede lugar ao produto final e este se silencia, na
maioria das vezes, ao consumidor/usurio final, caindo no esquecimento de quase todos os
envolvidos neste saber/fazer. Tambm as percepes do uso e descarte dos objetos ficam,
muitas vezes, distantes dos criadores e nem sempre geram reflexo para os seus usurios.
Algo que interessa ao pesquisador que pretende abarcar no s o produto, mas a produo
dos sentidos por meio dele.
Parto, ento, do seguinte pressuposto colocado por Ceclia A. Salles,
que discutir a morfologia da criao tem como pretenso oferecer mais doque um simples registro de um estudo, um modo de ao: tirar objetos doisolamento de anlises e reintegr-los em seu movimento natural. Apontaa relevncia de observar fatos e fenmenos inseridos em seus processos.(Manuscrtica 8, p.64)
Parece-me, neste caso, bastante salutar colocarmos disposio de pesquisas desta
natureza e com esta pretenso, o arcabouo terico-metodolgico da Antropologia e os
tericos da Memria, no sentido de apoiar reflexes, assim como proporcionar uma mediaopara a anlise dos processos embutidos em seu desenrolar cientfico. Desta forma, prope-se
conhecer alguns caminhos traados em uma pesquisa qualitativa utilizando-se de recursos do
mtodo etnogrfico.
Sobre mtodos e tcnicas de pesquisa:Uma vez traado o caminho a partir da teoria da memria, o recurso tcnico o da
histria oral. As tcnicas, portanto, so qualitativas. No caso desta pesquisa, a coleta de
histrias de vida pode significar um recurso estratgico, pois nos interessa tanto conhecer
o cotidiano do trabalho e os modos de viver, pensar, sentir e fazer dos pesquisados; quanto
compreender a metodologia utilizada na produo dos artefatos e/ou produtos que realizam.
Isto porque:
A histria de vida permite a valorizao de contatos informais baseados naidentificao e empatia entre o pesquisador e o pesquisado, o que explora emprofundidade a contextualizao das entrevistas, extraindo delas um mximode veracidade. Mais do que isso, a histria de vida insere o ator, atravs de
processos sincrnicos e diacrnicos, na rede real das relaes sociais que olocaliza dentro do grupo. (CAMARGO, 1981, p. 29).
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O recurso metodolgico da histria oral possibilita ao pesquisado narrar as experincias
vividas. O movimento da memria no linear, no segue uma ordem cronolgica, um ir-
e-vir constantes, em que associaes so feitas, iluminando, at mesmo, situaes que se
encontravam encobertas. O que se estabelece aqui a relao aberta entre pesquisadore pesquisado. Ao pesquisador, cabe esclarecer os objetivos de sua pesquisa, deixando o
pesquisado totalmente livre para contar/revelar o que se quer registrado. Em alguns momentos,
no entanto, o pesquisador interfere para solicitar mais informaes sobre passagens da
narrao que precisam ser mais aprofundadas ou ficar mais claras. Quando o objeto em
questo o artefato, procuramos relacionar os processos de sua criao por meio de seu
criador, ou podemos apoiar tal anlise em outras fontes que nos propicie contextualizar o
artefato em si, assim como o momento circunstncias e condies de sua criao, se
possvel.
Em outras palavras, o levantamento de histrias orais pressupe a busca, no anonimato
muitas vezes, de uma viso e vivncia de mundo a partir de experincias cotidianas e
inovadoras para uma anlise sociocultural mais abrangente. , portanto, necessrio livrar-se
de preconceitos e ampliar os horizontes, no sentido de uma credibilidade e colaborao entre
pesquisador e interlocutor. Como diz Paul Thompson:
O historiador oral tem que ser um bom ouvinte, e o informante, um auxiliarativo. (THOMPSON, 1992, p. 43).
Quanto ao historiador oral ter de ser um bom ouvinte, claro, mas o informante torna-se
mais do que um auxiliar ativo, pois ele torna-se um interlocutor, j que visto como produtor
cultural, como foi dito anteriormente. Essa concepo do fazer histrico encontra morada
na literatura, e em Jos Saramago h uma passagem que demonstra como tudo passa pela
interpretao, at mesmo o no-dito, como afirma Pollak. O literato diz:
O historiador no deve se contentar em repetir o que j foi escrito. Deveinvestigar o no-dito e, sobretudo, o oculto. essa perspectiva da histria,
como investigao do oculto, que me interessa. (...) O principal para mim,como j disse, no a histria, mas a maneira de contar a histria. Os fatos quemanipulo no so falsos, apenas podem ser interpretados de outra maneira.(SARAMAGO, 21/9/96, em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo).
Sendo assim, parece que cabe ao designer tornar-se um observador atento, um bom
ouvinte e, portanto, propor-se vir a ser um pesquisador qualificado.
Nesse processo de trocas encontra-se o dinamismo do fazer histrico e compreende-
se a importncia da lembrana e do apreendido pelo dito, no-dito, feito e observado, como
uma recriao do vivido:
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(...) um acontecimento vivido finito, ao passo que o acontecimento lembrado sem limites, porque apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.Num outro sentido, a reminiscncia que prescreve, com rigor, o modo datextura. Ou seja, a unidade do texto est apenas no actus purusda prpria
recordao, e no na pessoa do autor, e muito menos na ao (BENJAMIN,1985, p. 37).
esse o sentido de se trabalhar com as tcnicas qualitativas em uma pesquisa que
prioriza a memria. A busca no da verdade ou das certezas, conforme o objetivado na
formulao de leis gerais, mas a das lembranas, do vivido, do interpenetrado durante toda
uma existncia e que mostra na riqueza simblica o sentido real e o imaginado do sujeito, que
o faz autor de sua prpria trajetria de vida.
Notasi importante frisar que ao se colocar origem, no h nenhuma inteno purista na anlise, pois
desacreditamos dessa existncia, mas o que se quer dizer aqui como cada um dos interlocutores de
uma pesquisa onde o mote a lembrana pensa a sua histria em relao ao seu meio social. O que
em sua memria ficou interpenetrado da histria do seu lugar e do que lhe foi transmitido por geraes
passadas, ou ainda, o que interpenetrou em sua conscincia da memria histrica, do ponto de vista
mais oficial e, sobretudo, do como interpreta sua vida e o seu lugar.
iiAqui se entende lugar de forma amplo. Pode ser a moradia, assim como o lugar profissional e social,
por exemplo. O lugar antropolgico aquele que o sujeito circunscreve sua atuao/ autuao em
mltiplos sentidos.
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O que fao com os meus dirios de campo? Inquietaes de uma antroploga no Design e na Moda.
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