Mesa redonda ética e cidadania

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ÉTICA E CIDADANIA 1 PRA COMEÇO DE CONVERSA "Que devo fazer?" "Será que é correto fazer isso?" "O mundo não deveria ser assim" ou "Por que mundo é assim?" Quem nunca fez este tipo de pergunta? Constantemente nos vemos diante de situações ou problemas que nos levam a fazê-Ias. Isso é tão "normal" que nunca, ou dificilmente, nós paramos para pensar sobre o ato mesmo de fazer estas perguntas. Simplesmente perguntamos, sem nos questionarmos por que as fazemos; elas fazem parte do nosso cotidiano, da nossa "normalidade". Uma das coisas importantes na vida em sociedade é exatamente saber responder bem este tipo de pergunta. Diante de um amigo em perigo devo ajudá-lo, mesmo correndo riscos? Ou então, quando um amigo está se "afundando" em drogas, posso e devo "me intrometer" em sua vida, ou cada um "sabe o que faz", e devo me manter indiferente? Haveria algum caso em que seria certo atravessar um sinal vermelho? Em que casos isto seria abso- lutamente incorreto? Frente ao problema dos menores abandonados ou da corrupção no mundo político e econômico, devo tomar alguma atitude ou simplesmente manter-me alheio a estas coisas e cuidar dos meus interesses? Respostas a este tipo de questões vão determinando o rumo e os passos concretos das nossas vidas. O problema é que não estamos muito acostumados a refletir sobre estas questões. Na maioria das vezes respondemos de uma forma quase que instintiva, automática, reproduzindo alguma fórmula ou 1 Palestra proferida na Mesa Redonda (Comunicação, Política e Cidadania) durante a Jornada Científica de Comunicação & Pedagogia, na Fundação Novo Milênio, dia 26/10/006.

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ÉTICA E CIDADANIA 1

PRA COMEÇO DE CONVERSA

"Que devo fazer?" "Será que é correto fazer isso?" "O mundo não deveria ser assim"

ou "Por que mundo é assim?" Quem nunca fez este tipo de pergunta? Constantemente

nos vemos diante de situações ou problemas que nos levam a fazê-Ias. Isso é tão

"normal" que nunca, ou dificilmente, nós paramos para pensar sobre o ato mesmo de

fazer estas perguntas. Simplesmente perguntamos, sem nos questionarmos por que as

fazemos; elas fazem parte do nosso cotidiano, da nossa "normalidade".

Uma das coisas importantes na vida em sociedade é exatamente saber responder bem

este tipo de pergunta. Diante de um amigo em perigo devo ajudá-lo, mesmo correndo

riscos? Ou então, quando um amigo está se "afundando" em drogas, posso e devo "me

intrometer" em sua vida, ou cada um "sabe o que faz", e devo me manter indiferente?

Haveria algum caso em que seria certo atravessar um sinal vermelho? Em que casos

isto seria absolutamente incorreto?

Frente ao problema dos menores abandonados ou da corrupção no mundo político e

econômico, devo tomar alguma atitude ou simplesmente manter-me alheio a estas

coisas e cuidar dos meus interesses? Respostas a este tipo de questões vão

determinando o rumo e os passos concretos das nossas vidas.

O problema é que não estamos muito acostumados a refletir sobre estas questões. Na

maioria das vezes respondemos de uma forma quase que instintiva, automática,

reproduzindo alguma fórmula ou "receita" presente no nosso meio social. Geralmente

seguimos as normas da sociedade ou do nosso grupo social, e, assim, nos sentimos

dentro da normalidade. E isso nos dá a segurança e o alívio de não termos que nos

responsabilizar por alguma atitude ou ações diferentes das tomadas por outros.

Reclamamos, nos indignamos com a falta de ética na política, mas...

Afinal, o que é ética?

1 Palestra proferida na Mesa Redonda (Comunicação, Política e Cidadania) durante a Jornada Científica de Comunicação & Pedagogia, na Fundação Novo Milênio, dia 26/10/006.

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Em tom quase jocoso ou irônico, podemos dizer que é algo que todos precisam ter,

alguns até dizem que têm. Poucos, muito poucos no dias atuais, levam a sério e quase

ninguém cumpre à risca.

Ética, palavra originada do latim “éthica” e indiretamente do grego “ethiké” que por

sua vez deriva de “ethos”, e significa modo de ser, caráter (“ethos” por sua vez, vem de

“oikos”, que quer dizer casa, morada ou espaço comum). É um ramo da Filosofia, e

sub-ramo da axiologia, que estuda a natureza do que consideramos adequado e

moralmente correto na convivência social.

Pode se afirmar também que ética é uma doutrina filosófica que tem por objeto a moral

no tempo e no espaço, sendo o estudo dos juízos de apreciação referentes à conduta

humana.

A ética pode ser interpretada também como um termo genérico que designa aquilo que

normalmente é descrito como “a ciência da moralidade”, isto é, suscetível de

qualificação do ponto e vista do bem e do mal, seja em relação a determinada

sociedade, seja de modo absoluto.

Em filosofia, o comportamento ético é aquele que é considerado bom. Mas o que é

bom?

Para Olinto A. Pegoraro, a Justiça está no centro de qualquer discussão ética. Viver

eticamente é viver conforme a justiça. A justiça ilumina, ao mesmo tempo, a

subjetividade humana (virtude de justiça) e a ordem jurídico-social (justiça como

princípio ordenador da sociedade).

Comecemos por uma noção aproximativa da ética contida na proposição: somente o

ser humano é ético ou a-ético. Um dos sentidos desta afirmação é que o ser humano

tem em suas mãos o seu destino: pode construir-se ou perder-se, dependendo do rumo

que ele imprime às suas decisões e ações ao longo da vida. Aqui intervém a ética como

direcionamento da vida, dos comportamentos pessoais e das ações coletivas. Em

outras palavras, a ética propõe um estilo de vida visando a realização de si juntamente

com os outros no âmbito da história de uma comunidade sociopolítica e de uma

civilização. Mal comparando, a ética é uma bússola que aponta o rumo de nossa

navegação no mar da história.

Mas nós podemos fazer exatamente o contrário: rejeitar o rumo que leva à realização e

entrar por atalhos desviantes, declinantes e destrutivos da vida. Sendo livres, está ao

nosso alcance também a perdição. De fato, há pessoas que se destroem entregando-

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se às paixões explosivas, tomando decisões equivocadas; ao longo da história, o ódio,

as lutas e guerras levaram a humanidade à beira do desaparecimento.

Portanto, a ética administra exatamente as encruzilhadas da vida e os conflitos da

liberdade: por um lado, aponta os caminhos da construção pessoal e coletiva e, por

outro, adverte contra as ameaças da autodestruição.

Visitando alguns pensadores

Este enfoque está na base dos maiores tratados de ética na história do pensamento.

Aristóteles propõe a superação do conflito pela prática das virtudes morais que, aos

poucos, subordinam a paixão à razão. Quando isso acontece, o homem torna-se

senhor de si mesmo, torna-se virtuoso. O homem virtuoso é um homem ético.

A moral cristã também se depara com o conflito introduzido pelo pecado original que

debilitou intrinsecamente a natureza humana desde a origem. Pela prática das virtudes

morais e pelas luzes da fé o homem pode construir uma vida digna, conferindo-lhe até

um sentido transcendente.

Nos tempos modernos, a ética kantiana inclui em suas premissas básicas "o mal

radical" e irredutível que é a finitude. Sendo radicalmente finito, o ser humano está

sujeito à variedade e à mutabilidade das inclinações e paixões de sua própria natureza.

Então o ser humano não é naturalmente e espontaneamente ético; por isso ele tem

necessidade de imperativos morais para cercar as resistências da sensibilidade.

Em nossos dias, J. Rawls pensa a ética como um esforço de superação de conflitos

sociais produzidos pela disputa dos bens materiais e culturais. Como os bens são

quantitativamente limitados, e sem limites o apetite de cada cidadão, torna-se

necessária a intervenção de um princípio mediador. Este papel é exercido pelo

princípio objetivo da justiça.

Assim podemos afirmar que a ética visa duas metas principais: a) superar os conflitos

inerentes ao ser humano e à sociedade; b) dimensionar os comportamentos pessoais e

coletivos no sentido da construção da vida feliz numa sociedade justa.

Portanto, estas quatro teorias éticas mais importantes da cultura ocidental, apesar das

divergências entre si, convergem no enunciado central: a ética é a busca constante do

bem humano. Por exemplo, o imperativo ético kantiano, que manda tratar o ser

humano sempre como fim em si mesmo e nunca como instrumento, coincide com a

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"Regra de Ouro" do Novo Testamento que diz: "não faça aos outros o que não queres

que façam a ti". Dito negativamente, sem a busca do bem humano, a vida (e o projeto

ético) não faz sentido.

Como alcançar o bem humano? O bem humano não é subjetivo e dependente das

inclinações e exigências de cada sujeito? Seria possível imaginar um bem universal,

extensivo a todos os seres humanos? Estas perguntas subentendem muitas

interpretações divergentes a até conflitantes. Apesar disto, as teorias éticas mais

importantes sustentam uma resposta comum nos seguintes termos: alcança-se o bem

humano pela prática da justiça. Neste sentido, ética é a prática da justiça, ou,

comportamento ético é, antes de tudo, comportamento segundo a justiça.

É por isso que as grandes teorias éticas colocam a justiça no centro do sistema.

Segundo Aristóteles, a justiça é a virtude moral aglutinadora de todas as outras,

conferindo-lhes um novo alcance e profundidade. É sabido que as virtudes morais da

coragem, temperança, veracidade e modéstia aperfeiçoam a subjetividade, a

individualidade. Somente a justiça é a virtude que relaciona o indivíduo com os outros.

Somente a justiça abre a pessoa à comunidade; ninguém é justo para si, mas em

relação aos outros a justiça é a virtude da cidadania que regula toda a convivência

política. Por isso, para Aristóteles, a justiça é a estrela de maior brilho na constelação

das virtudes morais.

Exatamente esta é a posição de S. Tomás de Aquino. Ele concentra a moral dos 10

mandamentos da lei de Deus na prática da justiça em relação às criaturas, em relação

ao próximo e em relação a Deus. Sendo as criaturas realidades inferiores ao homem,

é justo que ele as possua e delas se sirva para seu bem-estar. Deus mandou o

homem "dominar a terra". É evidente que hoje entendemos que este domínio nunca

pode ser predador e exterminador. A ecologia exige que usemos as criaturas com

carinho, ajudando-as a se reproduzirem constantemente. São nossas companheiras

na viagem do tempo.

Em segundo lugar, justiça em relação ao próximo. Aqui a justiça manda reconhecer o

outro como igual a mim, portador da mesma dignidade e direitos. Aqui a justiça, a justa

medida, está na Regra de Ouro: não faças aos outros o que não queres que façam a

ti.

Em terceiro lugar, justiça em relação a Deus, Autor e Senhor de nossas vidas. Neste

ponto a justiça prescreve a reverência e o culto ao Senhor.

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Para S. Tomás de Aquino, a justiça sintetiza toda ética que prescreve três atitudes

fundamentais: a) posse respeitosa das realidades terrestres; b) reconhecimento

incondicional dos seres humanos sem nenhum tipo de distinção; c) temor a Deus,

Criador do mundo e dos homens.

Já Kant rompe com o esquema da ética das virtudes e consagra a ética das normas, a

ética do cumprimento da lei moral, dos deveres pessoais e sociais. Na ética kantiana,

a vida política não é regulada pela virtude da justiça mas pelo direito. Cabe ao direito

compatibilizar o exercício externo da liberdade dos cidadãos. A lei universal do direito

é: "age exteriormente (socialmente) de tal modo que o exercício de teu livre-arbítrio

possa coexistir com a liberdade dos outros".

Deduzimos daí que a vida ética não está no exercício das virtudes, mas no

cumprimento da lei moral. Esta posição kantiana marcou todos os estudos posteriores.

Por exemplo, em nossos dias, J. Rawls organiza o discurso ético em torno da justiça

como norma ou princípio ordenador da sociedade. Este princípio objetivo,

democraticamente elaborado pela sociedade, abrange dois aspectos mais gerais do

convívio humano: a) o respeito incondicional às pessoas; b) a distribuição eqüitativa

dos bens materiais. Sobre estes dois pilares J. Rawls levanta o edifício da sociedade

bem ordenada. Para ele a justiça é a virtude da ordem jurídica que visa realizar uma

sociedade como sistema eqüitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais.

Voltemos à nossa afirmação inicial: a ética consiste no cumprimento da justiça.

O retrospecto histórico acima esboçado mostra que a justiça tem um aspecto subjetivo

(virtude moral do sujeito) e um aspecto objetivo (princípio da ordem social). Estes dois

conceitos incluem-se mutuamente. O princípio da justiça precisa do apoio da virtude da

justiça e vice-versa. Os cidadãos que subjetivamente cultivam o senso de justiça

procuram transpô-lo numa ordem jurídica eqüitativa para todos. Numa palavra, a

virtude e o princípio de justiça convivem e se fortificam mutuamente. Será quase

impossível uma ordem jurídica justa se os cidadãos não amam e não cultivam a virtude

de justiça.

Sobre este ponto convém insistir mais um pouco. O convívio justiça-virtude-princípio

confere sentido ao sonho humano de todas as civilizações: Viver feliz numa ordem

social justa. Todos os impérios, monarquias e repúblicas prometeram a realização

desta meta. Mesmo as ditaduras deste século, européias e latino-americanas, se

camuflaram debaixo desta tese. Meta e tese que nunca foram realizadas. Isto é, a

macroestrutura jurídica nunca realizou o ideal da justiça.

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Hoje este problema ampliou-se com intervenção irresistível das macroestruturas

econômicas, tecnocientíficas e industriais. Estes grupos subordinaram às suas

decisões até a em primeiro lugar, o bem humano, mas o resultado empresarial; a meta

da ética é sacrificada pela norma do lucro. É a política do lucro, ainda que isto gere

desemprego, fome e favelização dos cidadãos. A ética perde seu centro constitutivo: a

justiça. A ordem jurídica é sacrificada pelas macroestruturas empresariais que geram a

opressão e a exclusão de pessoas e grupos.

Para combater esta aberração, nossa tese conjuga a justiça como virtude pessoal e

princípio social. Em outras palavras, a justiça reúne numa única perspectiva a micro e

a macroética. A microética das pessoas que praticam a virtude da justiça alcança sua

eficácia na macroética das estruturas sociais justas. Em síntese, as pessoas que

praticam a justiça querem viver em estruturas sociais justas.

Portanto, acima das macroestruturas econômicas e tecnológicas deve pairar o

princípio da ordem política que determina, legal e democraticamente, a eqüitativa dis-

tribuição dos bens e do uso correto dos produtos tecnocientíficos. Isto significa que a

ordem política justa é a suprema instância ética da sociedade, cabendo-lhe o dever de

harmonizar todas as estruturas com o princípio central: a sociedade justa para todos

os cidadãos.

Esta tese é tão antiga quanto Aristóteles que ensinava que a política rege todas as

artes e ciências porque ela detém a visão global daquilo que convém produzir para o

bem de todos os cidadãos.

A crise de valores

Nos tempos modernos, experimentamos uma inversão dos valores morais que são

o fundamento da ética. O desenvolvimento da ciência e da tecnologia foi tão

grande, rápido e intenso que assumiu dimensões inimagináveis. Diante desse

espantoso e vertiginoso desenvolvimento, o homem foi empalidecendo, perdendo

sua posição central.

O trabalho alienado transforma o trabalhador em mais uma mercadoria, faz com

que o homem perca sua capacidade de ser sujeito das situações. Manipulado no

universo do trabalho, manipulado no mundo do consumo, o homem vai perdendo

sua "humanidade".

Na sociedade capitalista, o dinheiro é que ocupa o centro das atenções.

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Uma pessoa vale pelo dinheiro que possui ou que pode produzir. Você mesmo já

deve ter se referido a um colega como: "É aquele que tem uma moto preta" ou

"aquele do Astra cinza", por exemplo.

O psicanalista Erich Fromm caracterizou nossa sociedade como aquela que dá

muito mais importância ao ter do que ao ser: é por isso que uma pessoa vale, e até

mesmo é identificada, pelo carro que possui e não por aquilo que ela de fato é: um

bom amigo, um cara simpático etc.

Isso tudo mostra que, nos dias de hoje, as pessoas já não têm o ser humano como

valor fundamental, mas, sim, o dinheiro, o lucro. A pergunta básica que se faz ao

planejar uma ação é: "O que eu vou ganhar com isso?" Podemos compreender,

assim, alguns fatos aparentemente incompreensíveis: acidentes que acontecem

em edifícios e matam e ferem dezenas de pessoas porque houve algum tipo de

"economia" na construção; pessoas que morrem em hospitais porque a verba

repassada pelo governo já não atende à ganância de seus donos; o investimento

de fortunas em projetos mirabolantes, ao passo que parcela enorme da

população passa fome, vive nas ruas sem casa, escola, sistema de saúde, sem

o mínimo necessário para uma sobrevivência com dignidade.

Os valores que regem nossa sociedade e são levados em conta para as ações,

seja das pessoas que ocupam altos cargos administrativos, seja pela criança

que pede dinheiro no semáforo da esquina, já não têm o homem como objetivo

central. O que importa é garantir o próprio lucro, venha ele na forma de milhões

de dólares ou de uma moedinha de dez centavos.

Quando nos voltamos para o âmbito da ciência, a realidade não é diferente. A

ciência, como se fosse um ser vivo, rege-se por uma lei interna que a impele a

um crescimento cada vez maior. Com o crescimento da velocidade da produção

de conhecimentos científicos, ela acaba por "atropelar" o ser humano. Se, no

princípio, a ciência desenvolvia-se para buscar respostas para os problemas de

sobrevivência do homem num mundo adverso, com o tempo, ela passa a se

desenvolver por si mesma, porque o próprio conhecimento se torna um valor a

ser perseguido. Em outras palavras: uma coisa é você precisar dominar

determinados conhecimentos para resolver certos problemas (por exemplo: se

precisamos encontrar a cura de uma doença, precisamos dominar

conhecimentos de biologia, fisiologia humana, farmacologia etc.), outra, muito

diferente, é correr atrás de mais conhecimentos simplesmente para ter mais

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conhecimentos.

No processo histórico do desenvolvimento científico-tecnológico, muita coisa foi

produzida visando a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Mas muita

coisa também foi produzida segundo outros interesses. A bomba atômica é um

lamentável exemplo: longe de melhorar a vida, acaba com a vida de milhões de

seres humanos. Podemos então perguntar:

O que levou os homens a produzi-Ia? Se examinamos os homens de governo, a

resposta é clara: a bomba atômica serve corno um instrumento de poder, de

intimidação, uma forma de dominar os demais. Mas e os cientistas que se

envolveram no projeto, também eles buscavam poder? Alguns provavelmente

sim, mas a maioria não; estavam tão envolvidos com o desenvolvimento do

conhecimento científico que simplesmente não tinham tempo para se preocupar

com as suas conseqüências. Podemos mesmo dizer que eles foram "usados"

pelos homens de governo, que sabiam muito bem o que queriam.

Isso só foi possível porque, no centro dos valores, já não estava a promoção da

vida humana, mas o lucro e o desenvolvimento do conhecimento (que, por sua

vez, pode ser urna ótima forma de gerar dinheiro).

Sabemos que os valores são criações humanas e não entidades abstratas e

universais, válidas em qualquer tempo e lugar. E que a ética pode ser

compreendida como uma estética de si, isto é, como a atividade de construir

nossas próprias vidas como um artista pinta seu quadro. Isso significa que

construímos nossos próprios valores, colocando nós mesmos como valor

fundamental.

Podemos afirmar com os filósofos existecialistas que “somos o que escolhemos”,

ou somos o resultado de nossas escolhas. Neste sentido, é razoável afirmar que

cada um de nós constrói a sua vida.

O fato de afirmarmos que devemos, cada um de nós, construir a própria vida não

deve ser entendido, porém, como um apelo ao individualismo. A afirmação da

individualidade, da singularidade de cada pessoa, que deve ser respeitada em

suas opções e ações, não significa que cada um deva viver isolado dos demais. A

singularidade e a criatividade podem e devem ser preservadas em meio à

coletividade. Mas o indivíduo pode ser solidário com seus semelhantes: o filósofo

Jean-Paul Sartre dizia que, quando elejo a mim mesmo, estou escolhendo toda a

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humanidade.

Vamos refletir um pouco sobre essa afirmação. Se escolho a mim mesmo como

valor, isto é, como fundamento de minhas escolhas e de meus atos, resolvendo

construir minha vida como singularidade, como uma obra de arte, estou, ao mesmo

tempo, assumindo que essa condição é possível para todo e qualquer ser humano.

Não posso escolher a mim mesmo negando os outros, afirmando que a condição

de minha criatividade, de minha diferença, seja a de que todos os outros sejam

uma "massa" uniforme. Minha singularidade não pode ser construída sobre a

"mesmice" dos outros. Se escolho a mim mesmo, escolho todos os outros que são

tão humanos quanto eu, o que faz com que eu deva aceitar que a singularidade

seja possível para todos, e a sociedade torne-se uma multiplicidade de diferentes

indivíduos criativos.

O que estamos afirmando é que compreender a ética como uma estética da

existência não deve ser visto como uma atitude solitária, particular, mas, sim, como

um empreendimento coletivo, solidário: buscar o meu prazer, minha realização,

mas também o prazer e a realização do outro.

A sociedade tecnológica, se foi capaz de causar tantos problemas para o homem

é, por outro lado, a possibilidade de realização da singularidade.

Até aqui, vivemos a massificação. A criação e o desenvolvimento de meios de

comunicação cada vez mais potentes e abrangentes e o desenvolvimento da

informática têm contribuído para que a alienação e a falta de criatividade e,

conseqüentemente, a dominação sejam cada vez mais intensas.

A ficção científica é pródiga em exemplos: o romance 1984, de George Orwell,

mostra uma sociedade massificada, em que as pessoas são vigiadas por telas de

televisão (que ao mesmo tempo são câmeras: servem tanto para captar nossa

imagem quanto para trazer imagens até nós) que estão por toda parte: nos locais

de trabalho, nas casas, nas ruas ... E aqueles que ousam pensar de forma

diferente são logo descobertos e levados para o Ministério do Amor, um imenso

prédio destinado à tortura, que promove uma lavagem cerebral no indivíduo,

tornando-o apático aos apelos da realidade e apenas mais uma "peça da

máquina", sem vontade própria. O curioso é que nesse processo de dominação a

linguagem ocupa um lugar de destaque: criam a novilíngua, uma nova língua que

resulta da junção de palavras e da conseqüente diminuição do vocabulário. A

cada semana é lançado um novo dicionário, cada vez menor, e as pessoas ficam

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proibidas de usar as palavras que já não têm existência oficial. Isso mostra muito

bem que nosso pensamento depende de nossa linguagem: quanto mais rica a

linguagem mais produtivo o pensamento. Quanto mais pobre a linguagem...

Mas a realidade não precisa ser essa. Depende de nossas escolhas e de nossas

ações o que faremos de nossas vidas e do mundo em que vivemos. Se vivermos

como marginais da política, não assumindo nossas responsabilidades pelas

decisões de cunho mais amplo, acabaremos por viver um mundo que não

queremos e uma vida que não escolhemos. Mas, se resolvermos agir como

sujeitos de nossa vida e de nosso mundo, podemos pintar os quadros que nossa

criatividade permitir.

Se recolocarmos o ser humano como valor fundamental, a ciência e a tecnologia

podem nos permitir ações antes impossíveis. Com as redes de computadores,

podemos hoje nos comunicar com qualquer parte do mundo de forma

praticamente instantânea. Se tivermos terminais de computador de fácil acesso a

toda a população, teremos uma infinidade de informações disponíveis para todos

e para qualquer um, o que certamente revolucionará as possibilidades de

educação.

A tencnologia/informática possibilita hoje uma prática democrática que nunca

antes na história foi possível. A democracia hoje ainda está restrita a uma

representatividade pelo voto: não há como garantir a participação direta de todos.

As redes de computadores, por outro lado, permitirão uma ação direta de toda a

população, uma efetiva participação na tomada de decisões e também em sua

implementação.

No fundo, aquilo que estamos chamando de singularidade é condição básica para

a cidadania, e vice-versa. Só podemos ser indivíduo de fato como participação de

todos, assim como só pode haver efetiva cidadania se os indivíduos são livres,

singulares e participativos na comunidade.

O futuro está aberto. Se ficarmos na defensiva, esperando que os outros (os "políticos",

os cientistas, os filósofos etc.) resolvam as coisas por nós, talvez mais cedo ou mais

tarde acabemos por viver numa sociedade muito parecida com aquela descrita por

George Orwell em 1984. Mas, se resolvermos tomar as rédeas de nossas vidas

particulares e da vida política em geral, ou, para falar em termos filosóficos, se

assumirmos com consciência e responsabilidade tanto nossas escolhas éticas quanto

nossos atos políticos, estaremos nos constituindo como verdadeiros cidadãos.

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É urgente que o ser humano seja recolocado no centro da problemática dos valores.

Se formos capazes de fazer isso, a ciência e a informática podem ser instrumentos

poderosos tanto para possibilitar uma ação cidadã efetiva quanto para minimizar os

problemas da miséria, material e espiritual, que nos assola nesta neste início do

terceiro milênio. Acreditamos que a filosofia pode nos guiar por esse caminho tortuoso.

Ajudar a retomar sempre de novo os fundamentos do ethos.

REFERÊNCIAS

BOFF, Leonardo. Ethos mundial. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.

GALLO, Sílvio (Coord). Ética e cidadania: caminhos da filosofia: elementos para o ensino de filosofia. 11. ed. rev. e atual. Campinas, SP: Papirus, 2003.

PEGORARO, Olinto Antonio. Ética é justiça. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

SUNG, Jung; SILVA, Josué Cândido. Conversando sobre ética e sociedade. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.