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Organizadores Flavio Garca Marcello Pinto Regina Michelli

O Inslito em QuestoV Painel Reflexes sobre o inslito na narrativa ficcional I Encontro Nacional O Inslito como Questo na Narrativa Ficcional Anais Comunicaes Livres Mesas Redondas

2009

Flavio Garca Marcello de Oliveira Pinto Regina Michelli (org.)

O inslito em questoAnais do V PainelReflexes sobre o Inslito na narrativa ficcional

I Encontro NacionalInslito como Questo na Narrativa Ficcional - Mesas Redondas -

2009

FICHA CATALOGRFICAF801c O inslito em questo Anais do V Painel Reflexes sobre o Inslito na narrativa ficcional/ I Encontro Nacional Inslito como Questo na Narrativa Ficcional Mesas Redondas / Flavio Garca; Marcello de Oliveira Pinto. Regina Michelli (org.) Rio de Janeiro: Dialogarts, 2009. Publicaes Dialogarts Bibliografia ISBN 978-85-86837-63-0 1. Inslito. 2. Gneros Literrios. 3. Narrativa Ficcional. 4. Literaturas. I. Garca, Flavio. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. III. Departamento de Extenso. IV. TtuloISBN 978-85-86837-63-0

CDD 801.95 809

Correspondncias para: UERJ/IL/LIPO a/c Darcilia Simes ou Flavio Garca Rua So Francisco Xavier, 524 sala 11.023 B Maracan Rio de Janeiro CEP 20 569-900 [email protected]

Copyrigth @ 2009 Flavio Garca; Marcello de Oliveira Pinto; Regina Silva Michelli Publicaes Dialogarts (http://www.dialogarts.uerj.br) Coordenador do volume: Flavio Garca flavgarc@gmail Coordenadora do projeto: Darcilia Simes [email protected] Co-coordenador do projeto: Flavio Garca [email protected] Coordenador de divulgao: Cludio Cezar Henriques [email protected] Projeto grfico e Diagramao: Flavio Garca Reviso geral: Jordo Pablo Rodrigues de Po (bolsista EIC-UERJ) Thales da Fonte Ferreira (bolsista EXT-UERJ) Logotipo Dialogarts Gisela Abad Parceria LABSEM Laboratrio Multidisciplinar de Semitica

O TEOR DOS TEXTOS PUBLICADOS NESTE VOLUME, QUANTO AO CONTEDO E FORMA, DE INTEIRA E EXCLUSIVA RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES.

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educao e Humanidades Instituto de Letras Departamento de Lngua Portuguesa, Literatura Portuguesa e Filologia Romnica UERJ SR3 DEPEXT Publicaes Dialogarts 2009

NDICE

APRESENTAOFlavio Garca Marcello de Oliveira Pinto Regina Michelli

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A ARTIFICIOSIDADE DO DISCURSO: MARCA DO INSLITO NA POTICA BORGEANAAna Cristina dos Santos

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JULIO LLAMAZARES E ALAN PAULS: O ESQUECIMENTO COMO FONTE DO INSLITO NA NARRATIVA DE LNGUA ESPANHOLARita de Cssia Miranda Diogo

15

A ARQUITETURA DO LEITOR MODELO: A FILOSOFIA DA COMPOSIO DE EDGAR ALLAN POEJulio Frana

20

A ELABORAO FORMAL EM EDGAR ALLAN POE: TEORIA E PRTICA DO INSLITOAccio Luiz Santos

25

A ICONICIDADE E O INESPERADO EM MURILO RUBIO E J. J. VEIGADarcilia Marindir Pinto Simes Eleone Ferraz de Assis

33

SIGNOS EM TENSES E CONFRONTOS EM PERCURSO NARRATIVO MACHADIANOEliana Meneses de Melo

43 50

O INSLITO DA ARTE PLSTICA NA PALAVRAMaria Suzett Biembengut Santade

TANGNCIAS ENTRE O ROMANCE GTICO E O CORTS: CENAS DE UM CASAMENTOMaria Conceio Monteiro

55

DESVENDAMENTOS INSLITOS NA BUSCA DO EUMagda Velloso Fernandes de Tolentino

63

O FANTSTICO EM SEU DEVIR: TEMTICAS DA CONTEMPORANEIDADEMaria Cristina Batalha

70 78

A OPO DE THOPHILE GAUTIER PELO CONTO FANTSTICOSabrina Ribeiro Baltor

FRENESI ROMNTICO E INSLITO NA PROSA DE FICO DE PTRUS BORELFernanda Almeida Lima

85

ETHOS E CONSTRUO DO FANTSTICO EM MAUPASSANT: UMA ABORDAGEM SEMIOLINGSTICAJorge de Azevedo Moreira

93

NA ARENA DA GUERRA: O INSLITO EM BOA TARDE S COISAS AQUI EM BAIXOCludia Amorim

101

ENTRE O INSLITO E A NAO: A ESCRITA LITERRIA DE UNGULANI BA KA KHOSARobson Dutra

105

O PERCURSO EMBLEMTICO DAS PERSONAGENS FEMININAS EM O ALEGRE CANTO DA PERDIZ, DE PAULINA CHIZIANEMaria Geralda de Miranda

111 117 124

O INSLITO PRESENTE NO DESIGN ESPIRITUOSOLucy Niemeyer

O INSLITO O ESTRANHONadi Paulo Ferreira

O inslito em questo Mesas Redondas Publicaes Dialogarts ISBN 978-85-86837-63-0

APRESENTAORefletir sobre o inslito na narrativa ficcional implica, antes de tudo, encarar o inslito como questo que se coloca e recoloca a cada passo dado no percurso reflexivo que se empreende. Pe-se em questo, primeiramente, o prprio termo enquanto signo, lingstico ou semiolgico. Pe-se em questo, ainda, se o nomeado por inslito estaria no nvel dos temas ou das estratgias de construo narrativa. Pe-se em questo o carter prprio do inslito na narrativa ficcional, visto ora como gnero ora como uma de suas categorias constitutivas e, ainda, ora como modo discursivo. Pem-se em questo, mesmo e definitivamente, quando se reflete sobre o inslito na narrativa ficcional, os conceitos de real, realidade; de verdade, verdadeiro; de ficcional, factual; de mimeses; de verossimilhana... Enfim, a manifestao potica e/ou esttica do inslito na narrativa ficcional a questo sobre a qual se pretendeu refletir mais detida e aprofundadamente nesse V Painel Reflexes sobre o Inslito na narrativa ficcional: o inslito em questo, coincidente com a realizao do I Encontro Nacional do Inslito como Questo na Narrativa Ficcional, que se realizou no Instituto de Letras da UERJ de 23 a 25 de maro de 2009. As atividades do evento comportaram variadas Mesas-Redondas Temticas que abordaram literaturas nacionais portuguesa ou luso-africanas , literaturas reunidas pela lngua em que se veiculam em lngua francesa, inglesa ou espanhola , literatura destinada explicitamente a crianas e jovens literatura infantil e juvenil , a construo do signo inslito tanto sob perspectivas lingustico-semiticas quanto sob perspectivas da semiologia literria e sua consequente recepo, chegando a refletir sobre a manifestao do inslito no design. Comportaram, tambm, muitos Simpsios, propostos e coordenados por pesquisadores de diferentes universidades, que, em suas sesses especficas, trataram do inslito segundo a peculiaridade de cada grupo ou subgrupo nelas reunido, iluminando a existncia de estudos orgnicos j existentes em torno da questo. Finalmente, houve espao para as Comunicaes Livres, acolhendo jovens ou novos pesquisadores que decidem se aventurar acerca do tema, na expectativa de que se construam e, consequentemente, se consolidem projetos inovadores. Lanados em janeiro de 2007 na Faculdade de Formao de Professores da UERJ, no campus So Gonalo, como uma realizao do Seminrio Permanente de Estudos Literrios da UERJ SePEL.UERJ , projeto extensionista, veculo de concretizao de atividades sistmicas do Grupo de Pesquisa/ Diretrio CNPq Estudos Literrios: Literatura; outras linguagens; outros discursos, os Painis, realizados semestralmente, encontram-se em sua 5 edio, agora coincidente com a promoo do I Encontro Nacional, e j tm sua 6 edio prevista para novembro de 2009, quando coincidir com a promoo do I Encontro Regional, havendo a perspectiva de, no ano de 2011, coincidir com a realizao do I Congresso Internacional. Aos poucos, as pesquisas orgnicas em torno da questo do inslito na narrativa de fico vm se firmando e ganhando mais e mais espao no cenrio fluminense e, por extenso, no cenrio nacional, com vistas a alargar seus horizontes em direo ao cenrio internacional. O inslito vem se tornando slito.Prof. Dr. Flavio Garca Prof. Dr. Marcello Pinto Prof. Dr. Regina Michelli

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A ARTIFICIOSIDADE DO DISCURSO: MARCA DO INSLITO NA POTICA BORGEANAAna Cristina dos Santos *Menard (acaso sin quererlo) ha enriquecido mediante una tcnica nueva el arte detenido y rudimentario de la lectura: la tcnica del anacronismo deliberado y de las atribuciones errneas. (Borges, 1989: 450)

O escritor argentino Jorge Luis Borges em sua potica extenua a desconstruo/reconstruo da realidade, elaborando a co-extenso entre texto e universo referencial. Para ele, texto e realidade so sinnimos, esto em um mesmo nvel. O nosso mundo no mais real que o universo textual. Esse fato fundamental para que o autor incorpore o que existe no contexto referencial sua produo, nos limites entre o ficcional e o documental. Longe de buscar uma experincia mltipla, ele problematiza a relao entre o texto e o que est fora dele. Marcada pela ambigidade, sua potica construda com elementos retirados da tradio literria misturadas reproduo de outras linguagens (a pintura, o cinema como exemplos), numa intertextualidade com vrios discursos do contexto social, tais como: a cultura clssica, a popular, a filosofia e a religio. No labirinto de significados produzidos pela rede de linguagens em que se transforma o seu texto, sem um centro que lhes d coerncia e consistncia, mostra que o real no significante por si mesmo. O mundo o universo discursivo que nos rodeia, constantemente reescrito com outros significados, em que se diluem as categorias ontolgicas entre realidade e fico, arte e no-arte. Os frgeis limites entre esses universos so questionados. E, ao mesmo tempo, questionam-se os limites que sustentam o ser: o tempo, o espao e a individualidade. Os questionamentos desses limites percorrem a potica borgeana e o fio que a norteia pode ser encontrado no livro oriental As mil e uma noites. Borges, em seus contos, utiliza uma estrutura semelhante a do livro oriental: a de uma fbula por noite, onde o mais importante no est somente na histria de Sherazade e o rei, mas essencialmente nos relatos dentro da narrativa, contados por ela ao rei. O narrador expe a histria do rei e de Sherazade, esta por sua vez conta outras que escutou de outras pessoas ao rei, no sendo a autora original do que relata. Assim, tanto o narrador quanto Sherazade no produzem a histria, mas contam as de outrem. Essa caracterstica contribui para enfraquecer o papel do autor e fortalecer o papel do leitor que ter que reconstruir os vrios fragmentos do relato para formar um todo coerente. Dessa forma, o fazer potico se insere na temporalidade aberta do texto, onde possvel o leitor situar-se temporal e historicamente, para construir, com as suas prprias particularidades, os espaos abertos existentes no texto. A arte de contar histrias e no de produzi-las, segundo Borges, pode ser explicada pela prpria tradio rabe, pois no oriente existem homens que tm como profisso contar histrias noite, so os confabulatores nocturni. Estes homens contam os relatos que tecem outros relatos e assim infinitamente, mas, ao recont-los, por utilizar sempre as poucas e repetidas metforas, transformam-se nas mesmas histrias, construindo assim uma narrativa infinita, tal qual o livro de As mil e uma noites:Ahora, una noticia curiosa que transcribe el barn de Hammer Purgstall, un orientalista citado con admiracin por Lane y por Burton, los dos traductores ingleses ms famosos de Las mil y una noches. Habla de ciertos hombres que l

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Professora Adjunta de Lngua Espanhola e Literaturas Hispnicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora da Mesa Redonda O inslito em questo nas Literaturas de Lngua Espanhola.

O inslito em questo Mesas Redondas Publicaes Dialogarts ISBN 978-85-86837-63-0 llama confabulatores nocturni: hombres de la noche que refieren cuentos, hombres cuya profesin es contar cuentos durante la noche. (Borges, 1997: 236)

Para Borges, qualquer escritor, inclusive ele mesmo, um confabulatores nocturni, pois est sempre repetindo as mesmas histrias ao longo do tempo: un ro que ha repetido los rostros de las generaciones (Borges, 1997: 171). Assim, os escritores tornam-se devedores dos confabulatores nocturni e tambm de Sherazade, pois esto sempre contando histrias que no lhe pertencem. Recontando ou reescrevendo o que outrem j o fez. Borges utiliza ao extremo essa tcnica. Como Sherazade, seus narradores tambm no so os autores de seus relatos. Geralmente, contam os que outros j contaram, esto sempre contando uma histria que ouviram, leram ou releram. A fonte pode ser oral ou escrita, mas sempre alheia. As histrias relatadas so aquelas que se conhecem por outrem atravs do descobrimento de manuscritos, de histrias ocorridas no passado, de citaes de artigos literrios ou cientficos (com data exata de publicao e pginas), de situaes determinantes apresentadas como real, isto , so histrias que os outros lhe contam, no que vivencia, em um processo anlogo ao Era uma vez... dos contos infantis. Essa tcnica contribui para construir um tempo aberto e infinito dentro da narrativa. Em alguns contos o narrador conhece a histria pelo o que um amigo ou outras pessoas lhe contam: As, en aniversarios melanclicos y vanamente erticos receb las graduales confidencias de Carlos Argentino Daneri (Borges, 1989: 618); Unwin, lento en la sombra, oy de boca de su amigo la historia de la muerte de Abenjacn (Borges, 1989: 601); El caso me lo refirieron en Texas, pero haba acontecido en otro estado (Borges, 1989: 989). Em outros, a histria chega ao narrador atravs de uma carta, um manuscrito ou alguma outra forma escrita: Un par de ao har (he perdido la carta), Gannon me escribi de Gualeguaych, anunciando el envo de una versin, acaso la primera espaola... (Borges, 1989: 571); Lappenberg las hall en un manuscrito de la Bodleiana de Oxford [...] mi versin espaola no es literal, pero es digna de fe (Borges, 1997: 48). Destarte, Borges prope em seus textos uma histria e uma estrutura aparentemente tradicional, similar a de As mil e uma noites, com um nvel ficcional externo e um outro interno, onde um eu-narrador ou um ele-narrador atuam como mediadores, assegurando que o narrado realmente aconteceu. Geralmente, o eu-narrador ou o ele-narrador explica ao leitor como tomou conhecimento do fato que vai contar. Algumas vezes o eu-narrador da fico externa volta ao final da narrativa para explicar algum detalhe no resolvido da fico interna ou ento, s aparece ao incio do texto e no d ao final nenhuma explicao porque esta j ocorreu dentro da fico interna. No conto El informe de Brodie do livro homnimo (1970), a fico externa comea quando o eunarrador (annimo, talvez Borges?) e seu amigo Paulino Keins (quem lhe consegue o exemplar do livro oriental) descobrem um manuscrito no primeiro volume do exemplar de Las mil y una noches de Lane: En un ejemplar del primer volumen de Las mil y una noches (Londres, 1840) de Lane, que me consigui mi querido amigo Paulino Kleins, descubrimos el manuscrito que ahora traducir al castellano (Borges, 1989: 1073). O eu-narrador continua a narrativa, explicando como se deu o encontro do manuscrito e que nele falta a primeira pgina (o que permite ao eu-narrador furtar-se de explicaes mais precisas e dos detalhes que complementariam a histria. Acrescenta que a histria nunca chegou ao conhecimento do pblico, porque no chegou a ser publicada. Dentro da fico externa, um fato nos chama a ateno: o manuscrito foi achado dentro de um livro e, especificamente, Las mil y una noches, um livro que encerra uma histria dentro de outra, em um movimento circular e infinito. Para ampliar a noo de infinito dentro da obra, Borges no acrescenta nenhum dado temporal e/ou espacial na fico externa. De central importncia esta observao, pois permite ao leitor vislumbrar que o manuscrito produto de um universo ficcional ( um texto que se encontra dentro de outro texto) e no de um universo referencial, criando, assim, uma dupla ficcionalidade dentro da narrativa. Para que no existam dvidas sobre o contado, o eu-narrador informa ao leitor que procurou dados sobre o autor 3

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e sobre o prprio manuscrito, mas no os encontrou, o que lhe impede de dar qualquer outra explicao sobre o fato, alm das existentes. Entretanto, para manter a credibilidade do narrado, acrescenta o ano e o local de publicao do livro de Lane: Las mil y una noches (Londres, 1840), de Lane (Borges, 1989: 1073) e informa a cidade onde nasceu David Brodie e onde trabalhou como missionrio ainda que sejam informaes vagas: Oriundo de Aberdeen, que predic la fe cristiana en el centro de frica y luego en ciertas regiones selvticas del Brasil (Borges, 1989: 1073). Ao final da fico externa, para que no exista dvida de que a narrativa no lhe pertence, o eu-narrador acrescenta um asterisco separando a sua narrao da narrao de David Brodie encontrada no manuscrito, delimitando o fim da fico externa e o incio da interna, alm de reproduzi-la entre aspas (indicando que o que consta no so palavras suas). Afirma ainda que a fico interna est constituda pelo manuscrito traduzido fielmente pelo eu-narrador. Nela, Borges aporta, geralmente, as idias que deseja levar ao leitor. No conto, ao descrever a sociedade dos Yahoos, utiliza todo o conhecimento que lhe aporta a filosofia idealista sem, entretanto, nome-la ou a qualquer um de seus filsofos. Cria um novo mundo onde a linguagem seja capaz de exprimir a realidade: de la regin que infestan los hombres monos (Apemen) tienen su morada los Mlch, que llamar Yahoos, para que mis lectores no olviden su naturaleza bestial y porque una precisa transliteracin es casi imposible, dada la ausencia de vocales en su spero lenguaje (Borges, 1989:1073). Esses dois nveis de fico podem ser encontrados em grande parte dos contos borgeanos. No entanto, vale ressaltar que elas no tm a funo de explicar o que ser narrado e tampouco a de estabilizar o marco narrativo. Sua funo a de criar um labirinto de histrias em nvel de significantes que enrede o leitor e o obrigue a tomar uma atitude ativa frente ao narrado ao desconstruir uma leitura tradicional do texto e construir a sua prpria narrao. Esta caracterstica contribui para fabricar a extensividade temporal dentro da narrativa. Com essa estratgia o eu-narrador ou o ele-narrador cria a impresso de ser um cronista, cujo objetivo o de contar algo que realmente aconteceu. No algo que imagina, mas algo que soube e deseja compartilhar com o leitor. Essa estrutura narrativa corresponde a uma estrutura maior: a da prpria potica borgeana. A frmula pode variar, a fonte pode ser oral ou escrita, mas o esquema repete a consigna declarada no prlogo da edio de 1954 de Historia universal de la infamia em que Borges declara ser o receptor das histrias alheias 1 : Son el irresponsable juego de un tmido que no se anim a escribir cuentos y que se distrajo en falsear y tergiversar (sin justificacin esttica alguna vez) ajenas historias (Borges, 1989: 291). Em alguns poucos relatos, o escritor argentino se apresenta como o criador de uma histria. Sua funo j no a de criar, mas, como os confabulatores nocturni, de receber a histria de outrem, escut-la ou l-la, como se o primeiro passo para contar uma histria fosse o de ser o seu destinatrio. Para ele, o ato de narrar no implica em uma progenitura, mas em uma espcie de adoo secundria, que se incumbe de uma histria alheia. Entretanto, seus textos no escondem essa adoo. Borges preserva no texto todos os indcios que delatam os emprstimos como alheios: nome do autor e da obra, nacionalidade, data de publicao, local, enfim, todos os traos que possam identificar os seus verdadeiros autores. Ainda que inmeras vezes tais traos sejam construdos por Borges para idealizar uma histria recebida por outrem. Porm, tais traos so to bem elaborados, respeitando todos os modelos institudos

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Acreditamos que o termo receptor das idias alheias advm de ser Borges um leitor incansvel, segundo seu testemunho, sua memria era, sobretudo, literria: Mi memoria se compone, ms que nada, de libros. Recuerdo con dificultad mi propia vida (Revista La nacin. 11/04/1999.). No Eplogo de La rosa profunda (1975) adverte: Como ciertas ciudades, como ciertas personas, una parte muy grande de mi destino fueron los libros (Borges, 1997: 202).

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pelo social (bibliografia correta, lugares e pessoas verdadeiros), que o leitor no chega a identificlos como construo do autor:Desvaro laborioso y empobrecedor el de componer vastos libros; el de explayar en quinientas pginas una idea cuya perfecta exposicin oral cabe en pocos minutos. Mejor procedimiento es el simular que estos libros ya existen y ofrecer un resumen, un comentario. [...]. Ms razonable, ms inepto, ms haragn, he preferido la escritura de notas sobre libros imaginarios. (Borges, 1989: 429)

Essa concepo postulada por Borges assevera que qualquer acontecimento, uma vez transformado em literatura, pode ser lido como texto. Realidade e texto tornam-se indissociveis e tudo o que est escrito pode ser real e vice-versa toda realidade discurso e todo discurso realidade. O escritor argentino constri a sua narrativa sobre o discurso do outro, seja real ou imaginrio. Seu universo referencial o discurso, o texto, em uma profunda rejeio mimese tradicional. Ao construir a narrativa sobre o discurso do outro, pode-se afirmar, em princpio, que o narrador no tem nada prprio: nem experincia, nem capacidade de inventar, nem poder generativo, nenhuma qualidade que freqentemente se atribui ao narrador tradicional. Todos os dados reais que o conformariam so retirados de outrem. Um outrem que no tem relao com qualquer realidade, pois tambm uma construo discursiva interceptada e assenhoreada pelo Borges-leitor:No quise repetir lo que Marcel Schwob haba hecho en sus vidas imaginarias, inventando biografas de hombres reales, sobre quienes ha quedado registrado poco o nada. En lugar de eso, le las vidas de personas conocidas y luego debidamente las modifiqu y deform segn mi capricho. Por ejemplo, tras leer The Gangs of New York, de Hebert Ashbury, escrib mi versin libre sobre Monk Eastman, el pistolero judo, en flagrante contradiccin con la autoridad que eleg. Hice lo mismo para Billy de Kid, para John Murrell (a quien rebautic Lazurus Morell), para el profeta Velado del Jorasn, para el pretendiente de Tichborne y para algunos otros. (Borges Apud Helft; Pauls, 2000: 113)

Suas referncias so outros textos assimilados atravs da leitura, experincia presente na vida de Borges desde cedo. Devemos recordar que ele sempre foi um vido leitor, acreditava que o ato de ler precedia ao de escrever 2 . Assim, o texto estar sempre unido a atemporalidade que advm de sua leitura, ser um espao caracterizado no pela sua identidade ou diferena espacial, mas por sua diferena temporal com relao a si mesmo 3 . Uma atemporalidade que conduz sempre ao momento da leitura e aciona os intertextos (s um decodificador pode acionar os intertextos), num presente eterno, em que no h continuidade temporal: Qu son las palabras acostadas en un libro? Qu son estos smbolos muertos? Nada absolutamente. Qu es un libro si no lo abrimos? Es simplemente un cubo de papel y cuero, con hojas; pero si lo leemos ocurre algo raro, creo que cambia cada vez (Borges, 1996:171). Sob esta perspectiva, desaparece tambm a marca subjetiva do escritor: a autoria. A obra borgeana, como far a ps-moderna algumas dcadas mais tarde, desestabiliza o conceito de autorcriador e o mito de autor como gnio, aquele que inventa histrias, elaborando-as a partir do nada. Agora o autor tambm reescreve e transforma o que j existe: suas histrias so reescrituras de outros textos, pois todo e qualquer texto tem como caracterstica a coletividade e a repetio. Borges rompe com a questo da originalidade, pois, todo escritor antes de tudo um leitor e todo leitor ao mesmo tempo um co-autor do texto lido: Lo tosco, lo bajamente policial, es hablar deQue otros se jacten de las pginas que han escrito, / a m me enorgullecen las que he ledo (Borges, 1989: 1016). Yo he dedicado una parte de mi vida a las letras, y creo que una forma de felicidad es la lectura; otra forma de felicidad menor es la creacin potica, o lo que llamamos creacin, que es una mezcla de olvido y recuerdo de lo que hemos ledo (Borges, 1997: 170). 3 Para Borges Um livro que quer permanecer um livro que podemos ler de diversas maneiras. Em todo caso deve permitir uma leitura varivel, mutativa. Cada gerao l de um modo distinto os grandes livros. (Stortini, 1986:130).2

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plagio (Borges, 1989: 253). A partir desse raciocnio afirma: Un libro es ms que una estructura verbal, o que una serie de estructuras verbales, es el dilogo que entablaron su lector y la entonacin que impone a su voz y las cambiantes y durables imgenes que deja en su mente. Ese dilogo es infinito... (Borges, 1989: 747). Dessa maneira, a pica do artista borgeano no paterna nem demirgica. mais modesta, astuta e infinitamente mais contempornea: a do transmissor, do propagador, do contrabandista; aquele que, em um universo onde no h originalidade, destina-se a trabalhar com o que existe, com o que a tradio lhe oferece, pois no mundo em que habita tudo j est feito, dito ou escrito. A literatura sempre uma continuidade, um poema composto por muitas mos atravs das eras. O que todo escritor faz mesclar e unir palavras de outros escritores. Destarte, o escritor utilizar sempre as mesmas metforas (o que sugere a imagem de um escritor plural redigindo todos os textos. Ideia que confirma em vrias de suas entrevistas 4 e em suas narrativas, como no poema Eclesiasts, I, 9: No puedo ejecutar un acto nuevo / tejo y torno a tejer la misma fbula, / repito un repetido endecaslabo, / digo lo que los otros me dijeron (Borges, 1989: 300) ou de seus contos como La esfera de Pascal: Quiz la historia universal es la historia de unas cuantas metforas. [...] Quiz la historia universal es la historia de la diversa entonacin de algunas metforas. (Borges, 1989: 636/8) e El inmortal em que Cartaphilus, ao recontar sua histria, percebe que esta no original e tampouco nova, pois tudo o que escreve remete ao texto de Homero:Los que siguen son ms curiosos. Una oscura razn elemental me oblig a registrarlos; lo hice porque saba que eran patticos. No lo son, dichos por el romano Flamino Rufo. Lo son, dichos por Homero; es raro que ste copie, en el siglo trece, las aventuras de Simbad, de otro Ulises, y descubra, a la vuelta de muchos siglos, en un reino boreal y un idioma brbaro, las formas de su Ilada. (Borges, 1989: 543)

Essa premissa est presente em Borges desde os seus primeiros escritos. Em 1932, no livro Discusin, em um ensaio intitulado El escritor argentino y la tradicin discute a noo do regionalismo e cosmopolitismo na literatura argentina e defende a idia de que o escritor deve utilizar todas as informaes que lhe fornecem a tradio cultural universal e no estar preso somente quelas que fazem parte de seu universo local. No prlogo do livro El oro de los tigres (1972) corrobora essa ideia: Un idioma es una tradicin, un modo de sentir la realidad, no un arbitrario sistema de smbolos (Borges, 1989: 1081). A potica de Borges desenvolve um dilogo infinito com o j existente. No existem verdades absolutas a revelar. O mundo passou a ser um museu, pois tudo j foi dito. O que faz o escritor dizer de outra maneira. Nesse universo nada pr, tudo ps:Salomo disse: No h nada de novo na terra. E assim, da mesma maneira que Plato imaginou que todo conhecimento no mais que uma recordao, do mesmo modo na realidade esquecido. Somente a releitura, a interpretao, a exegese textual ocasiona, dispara o mecanismo do reconhecimento do esquecido e faz aparecer, com toda a sua luz, a validade da anamnese platnica. Um s texto existe ao longo da Histria da literatura, um s autor: o resto acessrio, anedtico e parcial. Existe o esprito que gera, regera, revive y atualiza as presenas reais da literatura. (Cervera Salinas, 2000: 2-3. Grifos do autor)

Atravs dessa maneira de construir o texto, Borges abriu um novo paradigma na literatura do sculo passado: j no a considera como mimese da realidade, mas como mimese da literatura. Seu discurso se embasa sempre no discurso de outrem. Seus textos so intertextos que remetem a outros4

S, por ejemplo, que el vocabulario del espaol es muy extenso, y que muchas de sus palabras me estn vedadas; hay algunas palabras que puedo emplear sin demasiados riesgos, algunas metforas que yo repito. Han de ser lugares comunes, lo s, pero es mejor atenerse a los lugares comunes, por ejemplo, el tiempo y las flores, las estrellas y los ojos, las mujeres y las flores, la vida y el sueo, la muerte y el acto de dormir; son metforas esenciales, las nicas que son verdaderas (Borges Apud Destiempo de Borges, 1986: 37).

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textos. Dessa maneira, o texto deve ser entendido como uma realidade prpria. Atravs desse universo de significantes elabora uma potica atemporal que desdobra, em um movimento cclico e infinito, a temporalidade efmera que se estende entre o eu ouvi dizer e o vocs vo ouvir. Uma potica na qual Borges introduz uma marca pessoal: a pluralidade discursiva. A pluralidade discursiva nos textos borgeanos explicita-se com a publicao de Historia universal de la infamia (1935). No prlogo primeira edio, Borges declara que os exerccios de prosa narrativa apresentados ao longo do livro so atos de segunda mo e, ao final do livro, apresenta o ndice de las fuentes (Borges, 1989: 345), uma lista de livros que consta como fonte dos textos escritos e que o leitor pode consultar, se assim o desejar. Ambos viriam a confirmar o que se intua, principalmente com os livros de ensaios publicados na dcada anterior: a narrativa borgeana utiliza como mbil o que toma de outros textos pertencentes tradio literria, filosfica ou teolgica:Los ejercicios de prosa narrativa que integran este libro fueron ejecutados de 1933 a 1934. Derivan, creo, de mis relecturas de Stevenson y de Chesterton y aun de los primeros films de von Sternberg y tal vez de cierta biografa de Evaristo Carriego. [...] En cuanto a los ejemplos de magia que cierran el volumen, no tengo otro derecho sobre ellos que los de traductor y lector. (Borges, 1989: 289)

Dessa maneira, Borges explicitava o ncleo bsico de sua produo potica: o uso constante de citaes, aluses e referncias a outros textos, ou seja, o dilogo que os textos podem estabelecer uns com os outros dentro da narrativa, o que chamamos de intertextualidade 5 O uso explcito da intertextualidade possui no texto borgeano uma importncia primordial: ratificar a pouca relevncia que outorga Borges autoria individual. No entanto, o conceito de intertextualidade utilizado por Borges no um simples dilogo com outros textos. Borges no um autor intertextual em stricto sensu. Ele vai mais alm de citar ou parodiar os textos j existentes. Para Gutirrez Girardot (1959:77) a intertextualidade em Borges possui um carter ldico, pois ele desconstri o princpio da intertextualidade tradicional e reelabora um novo conceito, utilizando-a de maneira singular. As citaes no tm a funo que teria para os humanistas (provar e comprovar). Pois Borges no invoca autoridades, nem as citaes significam elogio, nem pretendem dar testemunho de um saber. Antes, pelo contrrio: as citaes em Borges tm a funo esttica, so partes do jogo. O que Borges toma das fontes no o seu contedo, mas a estrutura que conduzida a outro nvel e com isso transformada o que ele prprio chama de continuar a tradio cultural. Os intertextos convertem-se em estruturas motivantes para a sua potica. Servem de base para criar um novo texto com novos significados. O texto final tem pouco ou quase nada a ver com o sentido/idia original do intertexto utilizado. O jogo encontra-se nesse detalhe: do original necessrio contradiz-lo, expandir os pormenores, inverter os papis dos personagens, encontrar outra maneira de contar a mesma histria e, inclusive, ter a liberdade de reinvent-la. (No La casa de Asterin uma releitura do mito do minotauro?):Y me parece que est bien eso; y es indudable que una obra tan compleja como la que incluye a Macbeth y Hamlet, ha sido modificada por... Goethe, por Coleridge, por Bradley, y, bueno, y por otros crticos shakesperianos. Es decir, que cada crtico, de algn modo, renueva la obra que critica, y la contina tambin. Y eso corresponde al concepto que yo tengo de tradicin: una tradicin no tiene que serEntendemos a intertextualidade, segundo o conceito de Alfonso Toro (1992: 149), como o recurso onde o autor utiliza o lexema (nome do autor e/ou da obra), o sintagma ou uma srie deles (as citaes completas ou parciais de uma obra), ou uma estrutura (seqncia de aes, personagens, modos de narrao) de outras obras e que so includas em seu novo texto seja por imitao direta ou indireta pardia ou ento, os dados do texto anterior so complementados, refutados ou distorcidos. Acrescentando que para ser considerado um intertexto a unidade includa deve ter uma funo dentro do novo texto.5

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O inslito em questo Mesas Redondas Publicaes Dialogarts ISBN 978-85-86837-63-0 imitacin de algo, tiene que ser continuacin y la ramificacin sobre todo. (Borges; Ferrari, 1998: 60)

Borges toma emprstimos de um vasto universo cultural que inclui desde os relatos de As mil e uma noites a Joyce e Kafka, desde as teses de Herclito ao mundo de Robert Louis Stevenson, desde a Cabala tradio hindu. um enorme transformador que a partir de um conceito vago ou de umas poucas linhas de outros textos, recria, inventa, descobre e solidifica uma literatura (Salas, 1994: 234). O uso borgeano da intertextualidade aproxima-se ao uso da citao clssica - pardica - com o objetivo de produzir a ruptura das hierarquias clssicas e a desqualificao da hegemonia de umas narrativas e textos sobre outros. Entretanto, em sua potica, a utilizao dos intertextos, em seus mais diversos estilos e gneros, no se d somente em um estilo pardico, mas tambm enquanto pastiche. Mais do que a pardia, o pastiche busca a fala recalcada, o no dito, porm no deseja marcar a diferena (a diferena se reduz semelhana) e escapa lgica dualista que ope o mesmo ao outro como a pardia. Linda Hutcheon (1985: 54-5) define a pardia como a repetio que inclui a diferena; imitao com distncia crtica cuja ironia pode beneficiar e prejudicar ao mesmo tempo e o pastiche que tem que permanecer geralmente dentro do mesmo gnero que o seu modelo como uma imitao no de um nico texto, mas de uma infinidade de textos, [...] onde a diferena se reduz semelhana. Nesse contexto, o uso dos intertextos por Borges pode ser visto como pastiche: meno a uma infinidade de textos, dentro de um mesmo gnero, marcados pela permanente desconstruo autofgica, cujo nico desejo revelar a falcia de uma representao de signos a linguagem linear e sucessiva limitada pelo tempo cronolgico para ordenar e representar o universo referencial, simultneo e infinito. Tanto a pardia quanto o pastiche no se resumem s a imitaes textuais formais, mas a emprstimos confessados. Nesse ponto se estabelece a diferena bvia entre pardia, pastiche e plagiarismo. Os intertextos dentro da potica borgeana so confessados. Entretanto, essa confisso tambm faz parte do jogo, possui o objetivo de gerar uma idia. Por isso, Borges nos revela suas fontes, que aparecem como fico dentro da fico. mais um instrumento para destacar a artificiosidade do discurso. Por intermdio deste artifcio, o autor mostra o discurso e no mais a realidade, como o universo referencial de seus textos. Exclui o referente realidade como elemento constitutivo da literatura. Seu alvo agora sempre outra forma de discurso decodificado que faz seus textos aparecerem como textos referentes a outros. Podemos exemplificar esta afirmao com vrias narrativas borgeanas, mas tomemos como exemplo o ensaio La pesadilla (Cf. Borges, 1997: 221-3) Borges elabora seu texto segundo o processo lgico de apresentao de argumentos que estruturam o ponto de vista do enunciador: a apresentao do problema, a defesa do ponto de vista pessoal, a ampliao do argumento e finalmente a concluso. Desde o incio, seu discurso se constri sobre vrios intertextos que daro credibilidade aos dois temas que pretende discorrer: o sonho e o pesadelo. Entretanto, ao longo da narrativa, percebemos que o seu objetivo vai mais alm de explicitar a diferena entre o sonho e o pesadelo. Apresenta algumas fontes que podem sustentar a tese que pretende mostrar: um livro de Gustav Spiller The mind of man; um texto de Groussac, Entre sueos, que se encontra no livro El viaje intelectual; um livro de Dunne An experiment with time; um livro de Boecio The consolatione philosophiae e um livro de Frazer que no especifica. Continua citando Caldern, Shakespeare, um poeta austraco chamado Walter von der Vogelweid (tudo isso ainda na terceira pgina!) e aos textos da Odissia e Eneida. Passa para um quadro de De Quincey e outro de um autor que afirma no saber se Fussele ou Fssli, pintor suo do sculo XVIII, chamado The nightmare. Retorna ao texto escrito, mencionando um doutor Johnson e seu famoso dicionrio; ao poeta francs Victor Hugo; a Coleridge; Petrnio; Addison e seu artigo publicado na revista The Spectador; a Gongora; Thomas Browne; Dante; Homero; Aristteles; Ovdio; Sneca; Saladino; Averroes; Wordsworth e finalmente, a Cervantes. Percebemos que Borges deseja esclarecer aos seus leitores, pela longa lista que enumeramos, que as idias apresentadas no so suas, mas de outros. Apropria-se das idias 8

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alheias para sustentar o seu discurso. Ou seja: tudo o que est dizendo j foi dito por outrem, no h originalidade no sentido literal da palavra: o de criar uma idia. Resgata de toda a tradio cultural (desde a poca clssica at o momento em que viveu) os intertextos que sero os andaimes que construiro uma nova idia, pois serviram de base para um novo texto: aquele que adverte que o mundo em que vivemos simples aparncia, pois o que acreditamos ser a viglia pode apenas ser um sonho e o pesadelo saber que somos apenas simulacro, o sonho de algum Deus. Borges estabelece um jogo de relaes cruzadas entre estes elementos diferentes, produzindo um descentramento do discurso de modo que o leitor no possa determinar com certeza o ncleo central: mostrar que a vida a que estamos acostumados, linear e sucessiva no condiz com a realidade mltipla que encontramos no universo referencial e tambm no mundo dos sonhos. Atravs de um jogo meta-textual, transmite a seus leitores as suas concepes mais diversas. Todos os intertextos mencionados revelam o poder da linguagem como geradora do universo referencial. A narrativa construda sobre textos j existentes, em uma enumerao que conduz o texto a uma perspectiva infinita e remete o leitor a inmeras referncias, obrigando-o a reconstruir o texto para poder apreender o seu significado final. Alm de utilizar os intertextos, Borges tambm inventa fontes e citaes, apresentado-as ao leitor como real 6 . Essa caracterstica da escritura borgeana conduz os leitores mais atentos, caso a fonte seja desconhecida, a se perguntarem constantemente sobre a sua veracidade. Com isso, desestabiliza o conceito que o leitor possui de intertextualidade, pois o status quo predica que uma citao, principalmente dentro de um ensaio, h de ser sempre uma informao confivel. Dessa forma, o massivo dilvio de intertextualidade por um convincente narrador induz o leitor a abandonar um possvel questionamento sobre a veracidade proposta e provoca o desaparecimento entre os limites do universo referencial e da fico, especialmente quando o leitor no as controla o leitor comum pode carecer de conhecimentos suficientes para verificar todos os dados apresentados. Para o leitor/receptor do texto, as citaes; as simetrias; os nomes; os catlogos das obras; as notas ao p das pginas; as associaes; as aluses; a combinao de personagem; pases; livros podem adquirir um status tanto de reais quanto de ficcionais. O leitor se confronta assim com uma literatura onde predomina uma cota de referncias a autores e obras autnticas intercaladas com aluses simuladas introduzidas de maneira velada pelo autor. Com esta inovao, Borges desde 1935 comea a questionar os conceitos que conformam os limites entre um texto ficcional de outro no-ficcional, tornando inseguro o leitor na sua habitual compreenso racional do discurso e, por conseguinte, do mundo. Os conceitos de real e ficcional autenticam um texto, indicando como o leitor deve l-lo. Com isso, pretende mostrar que tanto um quanto outro so atividades discursivas, construdas pelo sujeito, negando qualquer possibilidade de distino entre fico e no-fico:LAS DOS CATEDRALES. La filosofa y la teologa son, lo sospecho, dos especies de la literatura fantstica. Dos especies esplndidas. En efecto, qu son las noches de Sharazad o el hombre invisible, al lado de la infinita sustancia, dotada de infinitos atributos, de Baruch Spinoza o de los arqutipos platnicos? (Borges, 1997: 340)

A semelhana entre os dois discursos permite-nos encontrar em seus textos referncias literrias, filosficas e teolgicas que convertem sua obra em uma biblioteca universal onde esto contidas as principais metforas literrias. As histrias das narrativas so as da prpria literatura (escritas por Poe, Kafka, Cervantes, Quevedo, Stevenson), assim como as da filosofia e as da teologia. Nos limites entre o ficcional e o ensastico, incorporando inmeros elementos recortadosSegundo Helft e Paul (2000: 113), esse recurso inicia-se com o aparecimento do ndice de las fuentes de Historiauniversal de la infamia (1935). Borges apresenta ao leitor um livro inexistente, portanto, uma citao falsa: Die Vernichtung der Rose. Nach dem arabischen. Urtext uebertragen von Alexander Schulz. Leipzig. 1927 (Borges, 1989: 345).6

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do real, a obra borgeana constitui-se exemplo de uma narrativa que afirma que s podemos ter acesso ao real discursivamente. Sua obra autoconscientemente uma arte dentro do arquivo, construda com elementos retirados da tradio literria, da histria e da filosofia misturados reproduo de outras linguagens numa intertextualidade com vrios discursos do contexto social (o que para ele ser a tradio cultural):Dos tendencias he descubierto, al corregir las pruebas, en los miscelneos trabajos de este volumen. Una, a estimar las ideas religiosas o filosficas por su valor esttico y aun por lo que encierran de singular o de maravilloso. Esto es, quiz, indicio de un escepticismo esencial. Otra, a presuponer (y a verificar) que el nmero de fbulas o de metforas de que es capaz la imaginacin de los hombres es limitado. (Borges, 1989: 775)

Para Borges escrever torna-se muito mais que trabalhar com palavras. trocar as fontes de lugar, cortar e colar, deslocar e recolocar, separar e inserir, extrapolar, enfim, a arte de manipular contextos da qual o grande inovador. Com isso, objetiva que a literatura comente a si mesma desde o seu interior, atravs de sua matria-prima: a linguagem. Acredita que uma das maneiras atravs de reelaboraes da literatura j existente. Assim, comenta a literatura e o universo referencial que a forma. Esse questionamento, iniciado por Borges no incio do sculo XX, revitaliza-se quando no final do sculo XX, os tericos argumentam que o universo referencial no significante por si mesmo e produzem uma esttica da auto-reflexividade do texto, ou seja, uma forma de fico que investiga o prprio processo de produo do sentido. a conscincia semitica de que todos os smbolos mudam de significao ao longo do tempo. Na esttica da auto-reflexividade um texto reconhece a sua condio de discurso, de representao e sua capacidade de autocomentrio. Questiona, como a narrativa borgeana, as categorias de verdade, de tempo e de sujeito que sempre andaram atreladas a pressupostos culturais que condicionaram nossas vises. o momento da literatura sobre a literatura, do texto que expe seu artifcio e renega o ilusionismo, exigindo do leitor uma participao mais ativa. Encontramos essa concepo trabalhada por Borges no conto La rosa de Paracelso. No conto, o eu-narrador o alquimista Paracelso 7 pede a Deus um discpulo. Cai a noite e chega o discpulo. Esse quer aprender a Arte: Quiero que me ensees el Arte. Quiero recorrer a tu lado el camino que conduces a la Piedra (Borges, 1997: 389). A piedra no conto seria o conhecimento original, o arqutipo e, portanto, a Palavra que deve ser lapidada para alcanar uma forma. Paracelso explica ao discpulo que o ponto de partida para poder alcanar o conhecimento a prpria pedra, ou seja, a realidade se constri atravs das palavras que nos do os objetos. Para alcanar a Palavra original h que passar pelas outras palavras o mundo das cpias em que vivemos para poder alcanar a pedra, o mundo dos arqutipos, onde se encontra a idia original: El camino es la Piedra. El punto de partida es la Piedra. Si no entiendes estas palabras, no has empezado a entender. Cada paso que dars es la meta. (Borges, 1997: 389). Acrescenta que sabe da existncia de um caminho para alcanar a Palavra. Aqui se refere o eu-narrador, Paracelso, a idia que cultiva Borges: dentro do mundo aparentemente desordenado e de simulaes em que vivemos, existe uma ordem que possibilitaria ver o nosso verdadeiro rosto e os objetos originais ( a idia do Livro nico que permitiria o homem, ao l-lo, compreender a Verdade). O discpulo pede, ento, uma prova a Paracelso transformar uma rosa j em cinzas em uma rosa verdadeira: Es fama dijo que puedes quemar una rosa y hacerla resurgir de la ceniza, por obra de tu arte. Djame ser el testigo de ese prodigio.(Borges, 1997: 390). Paracelso recusa-se a fazer o que o discpulo lhe pede, explicando-lhe que se queimasse a rosa que tem em mos, ela no morreriaParacelso (Teofrasto Bombastu von Hohenheim, chamado) alquimista e mdico suo (1492-1541), um dos fundadores da medicina experimental (Pelayo y Gross, 1993:1492).7

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porque ela apenas uma cpia da rosa verdadeira a Idia da rosa 8 . Por isso, somente uma palavra que remetesse Idia da rosa, seria suficiente para faz-la renascer. Com isso, Borges ressalta o valor da linguagem para criar realidades. A realidade s existe uma vez nomeada, sendo o signo constituinte tanto da fico quanto da realidade, aproximando-se as fronteiras entre realidade e fico. Dessa maneira, menos que uma destruio, temos a problematizao produtiva da relao linguagem realidade: An queda fuego en la chimenea dijo Paracelso. Si arrojaras esta rosa a las brasas, creeras que ha sido consumida y que la ceniza es verdadera. Te digo que la rosa es eterna y que slo su apariencia puede cambiar. Me bastara una palabra para que la vieras de nuevo (Borges, 1997: 390). O discpulo no compreende as palavras de Paracelso: Una palabra? dijo con extraeza el discpulo . El atanor est apagado y estn llenos de polvo los alambiques. Qu haras para que resurgiera? (Borges, 1997: 390). Paracelso continua explicando que no necessita de alquimia, pois utiliza outros instrumentos para fazer com que a rosa ressurja sempre que desaparea: El tramo est apagado repiti y estn llenos de polvo los alambiques. En este tramo de mi larga jornada uso de otros instrumentos. [...] hablo de la Palabra que nos ensea la ciencia de la Cbala (Borges, 1997: 391). O discpulo continua querendo ver a rosa ressurgir diante de seus olhos e, por fim, acaba acreditando que Paracelso um impostor como todos diziam, mais um ser vazio, uma sombra e, como tal, no poder ser seu mestre. Quando parte o discpulo, Paracelso recolhe as cinzas e faz ressurgir a rosa: Paracelso se qued solo. Antes de apagar la lmpara y de sentarse en el fatigado silln, volc el tenue puado de ceniza en la mano cncava y dijo una palabra en voz baja. La rosa resurgi (Borges, 1997: 392) Nesse conto, a estrutura motivante a figura do alquimista suo Paracelso, entretanto, Borges no recupera essa informao do intertexto. Parte dessa estrutura motivante, deslocando-a e recolocando-a em nova histria, inserindo-a em um novo contexto e com um novo significado. Converte Paracelso em um alquimista de palavras que transforma as letras do alfabeto em uma rede de significados que constitui uma realidade. O simples fato de pronunciar uma palavra, como faz Paracelso ao final do conto, j suficiente para construir uma realidade. Nesse novo contexto, a linguagem funciona como mediao total da experincia com o universo referencial. Um universo de cpias onde se perdeu o sentido original, mas que o escritor continua procurando na tentativa de no se arriscar, como Johannes Grisebach, a no encontrar nenhum rosto por detrs da mscara. Nesta esttica da auto-reflexividade o conto adquire um novo significado: se a palavra constri a realidade, ento no h diferena entre discurso ficcional e no-ficcional. No poema Sherlock Holmes do livro Los conjurados (1985) encontramos o mesmo tema: o discurso que edifica a realidade. Nele, a estrutura motivante a personagem de Conan Doyle, Sherlock Holmes, modelo de detetive. Na primeira estrofe do poema, Borges compara a figura do detetive com as outras duas figuras criadas tambm pela discursividade: Ado e Quijano. Esta comparao serve para aumentar a relao que encontra Borges entre o discurso ficcional e noficcional: Quijano Alonso Quijano nome de Don Quijote, personagem de fico de Cervantes do livro El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha, mas Ado o primeiro homem, figura da Bblia, cujo relato se considera como pertencente Histria do homem. Ao equiparar os dois a Sherlock Holmes, afirmando que ambos so criao da textualidade, Borges elimina a diferena entre os dois discursos: No sali de una madre ni supo de mayores./ Idntico es el caso de Adn y Quijano. (BORGES, 1997: 474). Fico e histria se equivalem enquanto construtos narrativos.Essa idia da rosa do universo referencial como cpia do Arqutipo rosa, segundo o pensamento idealista tambm est presente em Borges em vrios textos, tais como: Blake de La cifra; Una rosa y Milton, de El otro, el mismo... Destacamos a primeira vez que aparece em seu primeiro livro Fervor de Buenos Aires (1923), no poema La rosa: La rosa/ la inmarcesible rosa que no canto, / la que es peso y fragancia, / la del negro jardn de la alta noche, / la de cualquier jardn y cualquier tarde, / la rosa que resurge de la tenue / ceniza por el arte de la alquimia, la rosa de los persas y de Ariosto, / la que siempre est sola, la que siempre es la rosa de las rosas, / la joven flor platnica, / la ardiente y ciega rosa que no canto, / la rosa inalcanzable (Borges, 1989: 25).8

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Como Sherlock Holmes uma construo do discurso no possui um eu, uma individualidade que o obrigue permanentemente a estar preso memria, j que a identidade pessoal se baseia na memria (BORGES, 1997: 398), a jamais esquecer-se de quem e do tempo e espao em que se encontra um aqui e agora: Vive de un modo cmodo: en tercera persona (Borges, 1997: 474). Da mesma maneira que est livre da memria, tambm lhe est vedado o esquecimento que uma arma humana contra o tempo: Le es ajeno tambin este otro arte, el olvido (Borges, 1997: 474). Como o processo de criao depende do autor para a sua existncia e, por conseguinte do leitor co-autor do texto sempre que o livro estiver fechado a personagem morre, pois no h ningum para l-lo e interagir com o escrito. Isso ocorre tambm se o livro cair no esquecimento porque um objeto somente existe enquanto percebido. Ser um objeto da conscincia existir na realidade; ser esquecido confere um esquecimento absoluto e ontolgico, algo semelhante morte. A memria, sob este ponto de vista, a conservao do vivido, o antdoto contra a morte: No es un error pensar que nace en el momento / en que lo ve aquel otro que narrar su historia / y que muere en cada eclipse de la memoria / de quienes lo soamos. Es ms hueco que el viento. (Borges, 1997: 474). Porm, a personagem renasce cada vez que um leitor abre o livro e a traz ao seu momento presente, provando que o seu dono e no mais quem o engendrou: Lo so un irlands, que no lo quiso nunca/ y que trat, nos dicen, de matarlo. Fue en vano. / El hombre solitario prosigue, lupa en mano, / su rara suerte discontinua de cosa trunca (Borges, 1997: 474). A personagem etern, ao contrrio do homem que no logra ultrapassar o seu limite temporal: Ese alto caballero no sabe que es eterno. / Resuelve naderas y repite epigramas (Borges, 1997: 474). Nas duas ltimas estrofes do poema, Borges, num movimento circular, retorna idia da primeira estrofe: realidade e fico no se separam. Se a personagem de Conan Doyle um eco do que seria o ser humano, o homem tambm uma sombra do arqutipo Homem, preso a um universo linear e temporal, preso memria de saber-se mortal: No nos maravillemos. Despus de la agona, el hado o el azar (que son la misma cosa) / depara a cada cual esa muerte curiosa / de ser ecos o formas que mueren cada da (Borges, 1997: 475). A nica chance do ser humano de fugir da realidade que o prende aos seus limites temporais e espaciais quando chega a noite, dorme e sonha. Somente no mundo dos sonhos se pode esquecer da realidade sucessiva em que est inserido: Dormir es distraerse del mundo (Borges, 1989: 49) 9 . libertar-se da realidade temporal que esmaga o homem. Dormir equivale a ser capaz de esquecer e o rito dirio do esquecimento, conhecemos com o nome de sonho. Atravs dos sonhos, ultrapassamos a realidade e nos libertamos das falsas dimenses que a orbe diurna nos imprime. Sonhar o instrumento que o homem dispe para ver o invisvel, para revelar a face oculta da outra realidade: a eterna. a faculdade que torna perceptvel mente consciente a nossa realidade paralela, onde se encontra o verdadeiro eu. O ato de dormir torna-se o nico momento em que o homem perde a identidade que o transforma em um indivduo. Assim, pode-se comparar o dormir com o morrer. Cada noite de sono equivale morte do ser. Entre o sonho e a morte no existe diferena radical. O sonho a morte, a cada dia, da slida existncia do ser individual. Quando dorme, o homem esquece e, de repente, ao acordar, lembra-se de quem e de onde est. novamente um indivduo com passado e presente, ou seja, um indivduo preso ao tempo: Que mueren hasta un da final en que el olvido,/ que es la meta comn, nos olvide de todo. Antes que nos alcance juguemos con el lodo/ de ser durante un tiempo, de ser y de haber sido (Borges, 1997: 475). O poema mostra homem preso aos limites impostos pelo tempo, restando-lhe somente algumas poucas esperanas, pois o real no passa de representaes, de discursos. O poema assinala9

No conto Abenjacn El Bojar, muerto en su laberinto do livro El Aleph (1949), j est presente esta afirmao de Borges: Dormir es distraerse del universo (Borges, 1989: 645).

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que no existe nenhum privilgio do universo referencial sobre o texto, mas uma co-existncia. Assim, no h diferena entre o homem do mundo referencial - Ado - e Sherlock Holmes, ambos so cpias, criao de outrem. Porm, resta ao homem o consolo do sonho e da morte, onde poder vislumbrar o seu verdadeiro rosto, a sua individualidade: Pensar de tarde en tarde en Sherlock Holmes es una / de las buenas costumbres que nos quedan. La muerte / y la siesta son otras. Tambin es nuestra suerte / convalecer en un jardn o mirar la luna (Borges, 1997: 475). Ao manipular contextos, Borges pretende mostrar aos seus leitores que o real no significante por si mesmo. Produzir uma trama, urdir uma personagem , antes de tudo, uma questo de produo de intertextos. No existem mundos paralelos: ficcional e no ficcional. Nosso mundo este universo discursivo que nos rodeia, constantemente reescrito com outros significados. Dessa maneira, predica uma realidade conformada atravs da discursividade. Para corroborar esse processo de desconstruo, seus textos no representam uma realidade exterior, mas outros sistemas de linguagens. O universo apresentado como um composto de imagens e smbolos produzidos pelo prprio homem. Se o real discurso, ele dctil. Tal constatao permite a Borges criar uma realidade atemporal e buscar os elementos que dentro da realidade em que vive, permitam uma desconstruo coerente e verossmil. Alia o prprio discurso aos discursos no ficcionais da filosofia e da teologia. Dessa maneira, entrelaa os fios da intertextualidade que se enovelam, se articulam e se amealham ao longo da escritura, diluindo as fronteiras entre realidade e fico, verdade e mentira, culto e popular, centro e periferia. Descentraliza as linhas demarcatrias entre umas e outras. Essa desintegrao dos limites faz com que os personagens se movam em um espao que oscila entre um plo e outro, num esforo enorme para encontrar a revelao do prprio ser. Esse tipo de escritura d a Borges os elementos necessrios para que ele possa desconstruir uma realidade regulada por um tempo linear e cronolgico que se realiza em um regime de completa simulao (uma realidade que pode ser reflexo imperfeito da realidade dos arqutipos ou o sonho de algum deus) e construir, em sua potica, uma realidade atemporal onde o homem possa ser o dono do prprio destino.

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JULIO LLAMAZARES E ALAN PAULS: O ESQUECIMENTO COMO FONTE DO INSLITO NA NARRATIVA DE LNGUA ESPANHOLA 1Rita de Cssia Miranda Diogo *

Ainda que guardando as especificidades de cada literatura, sabemos que algumas caractersticas do contexto atual, entre elas: a ausncia de grandes projetos coletivos, bem como dos iderios utpicos que lhes serviam de sustentao, a falncia enfim da crena na possibilidade de transformao do mundo pela arte, condiciona determinados comportamentos diante da criao, que acabaro por refletir-se nas narrativas dos escritores contemporneos. Refiro-me aqui especialmente aos escritores de lngua espanhola, cujas obras passam a destacar-se no cenrio literrio a partir dos anos 80, entre os quais figuram o autor espanhol Julio Llamazares e o argentino Alan Pauls. S para comear, poderamos dizer que em ambos a morte do narrador, to exaustivamente estudada por Walter Benjamin (1985: 197-221) em alguns de seus textos, uma presena impressa no s na temtica, mas tambm na construo de suas personagens e de sua narrativa. A vigncia do narrador implica na noo benjaminiana de experincia (Erfahrung) (Benjamin, 1985: 197-221) que, por sua vez, inscreve-se numa temporalidade especfica, na qual uma dada tradio compartilhada por vrias geraes, cuja palavra transmitida de pai para filho. Trata-se, pois, de uma continuidade e de uma temporalidade prpria s sociedades artesanais em oposio ao tempo deslocado e entrecortado do trabalho no capitalismo moderno. As histrias do narrador resultam numa prtica comum, contribuindo para a formao (Bildung) dos membros de uma coletividade, os quais devem segui-la como um conselho, uma experincia que servir de orientao para toda uma vida. Em Experincia e pobreza, Benjamin (1985: 114-5) relaciona a morte do narrador com a Primeira Guerra Mundial, quando afirma que aqueles soldados que conseguiam voltar dos campos de batalha no encontravam palavras para descrever a situao-limite que haviam experimentado, preferindo manter o silncio. A submisso do homem s foras impessoais da tcnica transforma-o num simples objeto do jogo do poder, levando-o a assumir uma atitude impotente que se reflete na ausncia da palavra e no esfacelamento das narrativas. A realidade do sofrimento que a Primeira Guerra coloca em cena, e que culminar no horror dos campos de concetrao da Segunda Grande Guerra, convertem a experincia em algo incomunicvel. No entanto, deve-se destacar que em Benjamin, a reivindicao da tradio no sinnimo de nostalgia de um tempo anterior: consciente de que o avano da modernidade algo irreversvel, o autor afirma que o romance autenticamente moderno aquele que relembra uma origem, uma temporalidade de experincias compartilhadas, sem contudo, ceder tentao de preencher as suas lacunas e de sufocar o silncio. A narrao moderna ser aquela enfim, que saber refletir a ausncia do narrador e a caracterstica desorientao em que vivemos. Assim, na tecedura da narrativa moderna, se a memria corresponde aos fios da trama, o esquecimento est impresso em sua urdidura, no seu avesso zigue-zagueante e impreciso. pois, este ltimo, o seu avesso, que deve transparecer para o leitor, que por sua vez, dever seguir suas1

Este trabalho parte dos estudos que vimos realizando em torno do projeto de pesquisa O discurso ibero-americano e a dinmica do lembrar: a literatura e o cinema a partir dos anos 80. * Professora Doutora em Literaturas Hispnicas (UERJ). Integrante da Mesa Redonda O inslito em questo nas Literaturas de Lngua Espanhola.

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pistas, realizando um trabalho de reconstruo, ao mesmo tempo que vai recompondo as peas de uma memria perdida. Reconstitui-la significa tambm resgatar uma identidade, da a importncia da rememorao em Benjamin, da retomada salvadora pela palavra de um passado, sem a qual, este desapareceria no silncio (Cf. Gagnebin, 2007: 5). Neste sentido, memria e presente, esquecimento e passado, fazem parte de uma mesma dinmica, que paradoxalmente se opem e se complementam no tecer de toda narrativa, seja ela histrica ou no. Quanto primeira, sabemos que ao traar a trama dos vencedores, a histria oficial relegou a histria dos vencidos urdidura, tornando ainda mais urgente o trabalho de rememorao. Por meio deste, o materialista histrico fixa uma imagem do passado em seu momento nico, que enquanto mnada (Cf. Benjamin, 1985: 231), aparecer como a confluncia de tenses, conflitos e contradies, estilhaos da histria, que a trama oficial reprimiu por trs da aparente homogeneidade de sua tecitura. Segundo nossa hiptese, o inslito em algumas das narrativas de lngua espanhola escritas a partir dos anos 80 nasce deste esforo de rememorao, deste espao de frices entre a memria e o esquecimento, o real e o imaginrio, o documentrio e a fico, impresso na temtica, na construo das personagens e da narrativa.

O inslito na narrativa hispano-americana: Histria do pranto, de Allan Pauls Em Histria do pranto (Historia del llanto), Allan Pauls (2008) apresenta ao leitor as memrias de uma personagem, que tem na infncia e na adolescncia, momentos catalisadores de todas as demais lembranas, que vo surgindo, na terminologia de Benjamin, como mnadas, imagens que paralizam o continuum da histria, que rompem sua linearidade, contribuindo na construo de uma narrativa fragmentada, repleta de lacunas e silncios. Em uma de suas entrevistas, apesar de no usar a terminologia benjaminiana, podemos perceber que o escritor argentino traduz o conceito de mnada, ao definir suas lembranas como configuraes artsticas, ou seja, recordaes que condensam tenses, que estilhaam o desenrolar homogneo da trama narrativa: Hay algunos ncleos que son autobiogrficos en esta novelita. Yo los llamara fantasmas, o sea pequeos elementos de la experiencia personal que ya estn elaborados en mi recuerdo y son algo ms que episodios; se podra decir que son como configuraciones artsticas (Pauls, 2009). Como em Benjamin na Infncia em Berlim por volta de 1900 (1987: 71-142), Pauls afasta-se da forma autobiogrfica clssica, quando, por exemplo, renuncia autoridade do autor, do eu, privilegiando o sujeito coletivo, cuja histria se entrecruza com a histria dos outros, do Outro. Uma renncia que, entre outras formas, se d pela ausncia do nome do protagonista, bem como pelo distanciamento do eu, ao privilegiar uma narrao indireta, ou seja, ao construir uma autobiografia mediada por um narrador em terceira pessoa do singular, como podemos perceber no seguinte fragmento: Numa idade em que as crianas ficam desesperadas para falar, ele pode passar horas s ouvindo. Tem quatro anos, ou foi o que lhe disseram (Pauls, 2008: 5). Quando falamos em autobiografia e no em biografia, nos apoiamos na declarao do autor acima referida, quando nos esclarece que em sua histria h ncleos que so autobiogrficos, ou quando afirma em outra entrevista, que Histria do pranto trata-se de uma autobiografia falsa (Pauls, 2009). Assim, apesar de estar construda em terceira pessoa, as informaes que o narrador nos transmite sobre o protagonista surgem como imagens do inconsciente, ou ainda, como memrias involuntrias, que a princpio s poderiam nos ser transmitidas por um narrador em primeira pessoa. Memrias que surgem num fluxo contnuo, que exige do leitor uma concentro constante, como se uma lembrana ensejasse outra, e assim sucessivamente:

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O inslito em questo Mesas Redondas Publicaes Dialogarts ISBN 978-85-86837-63-0 Em face do espanto de seus avs e de sua me, reunidos na sala de estar da rua Ortega y Gasset, o apartamento de trs cmodos do qual seu pai, que ele se lembre, sem nenhuma explicao, desaparece uns oito meses antes levando consigo seu cheiro de tabaco, seu relgio de bolso e sua coleo de camisas com o monograma da camisaria Castilln, e ao qual agora volta quase todos os sbados de manh, sem dvida no com a pontualidade que sua me desejaria, para apertar o boto do interfone e pedir, no importa quem o atenda, com aquele tom crispado que mais tarde aprende a reconhecer como o emblema do estado em que fica a sua relao com as mulheres depois de ter filhos com elas, que desa de uma vez!... (Pauls, 2008: 5-6)

Como vemos, este tipo de registro parece refletir a angstia de quem no quer esquecer, j que um fato remete imediatamente a outro, e qualquer ponto, seja ele final ou pargrafo, pode representar uma ameaa para este narrador sedento de lembranas, sejam elas verdadeiras ou no. Por outro lado, esta urgncia em rememorar o passado expressa a necessidade de resgatar uma identidade, que mais que pessoal tambm coletiva. Neste sentido, tambm como o Benjamin da Infncia em Berlim por volta de 1900 (1987: 71-142), a fora das imagens da infncia est no fato de que so imagens polticas. Os momentos da infncia que passa com o seu pai na piscina, leva-o a lembrar-se de sua relao adulta com o mesmo, marcada pela incompreenso e o desencontro mtuos. Num desses desencontros, o narrador nos relata o momento em que pai e filho vo assistir a uma apresentao de um cantor exilado, em cujas letras das msicas, o protagonista no conseguia ver nenhum tipo de ameaa sociedade, tal como o haviam acusado na poca. Assim, a figura deste cantor, mais uma figura do esquecido entre tantas que passeiam por esta narrativa, traz-lhe uma experincia histrica mais ampla, a poca das ditaduras latino-americanas, mais especificamente, o golpe e a consequente ditadura de Pinochet, com todas as cenas de represso, censura e tortura, que surgiro quase que de forma inconsciente na vida desta personagem. Por isso, critica a memria poderosa da histria, que ao ater-se a detalhes, esquece o principal: o sofrimento humano, tal como vemos neste fragmento, atravs do qual relembra a namorada chilenae muitos anos depois, quando o episdio Allende j ocupa seu lugar no nicho, exguo, mas influente, destinado s tragdias histricas das quais sempre se lembra de tudo com exatido, em particular datas, nomes, sequncia de fatos, cifras, tudo o que sistematicamente esquece das tragdias pessoais... (Pauls, 2008: 67)

, pois, na contra corrente da histria oficial, como diz Benjamin, ao escov-la a contra pelo, que Pauls coloca em prtica uma narrativa moderna, hesitante, formada por distintas vozes, mas tambm atravessada por silncios, especialmente visveis na presena das inmeras reticncias que vm entre colchetes: [...] sexta-feira. Rompendo inesperadamente um silncio de meses, seu pai ligou para ele no ltimo instante, quase na hora do show. Ele hesitou (Pauls, 2008: 27). Uma narrativa que reflete em suas personagens a desorientao, fruto da perda da experincia, qual estamos destinados, ns, seres inslitos, vivendo num mundo no menos inslito.

O inslito na narrativa espanhola: A chuva amarela, de Julio Llamazares Podemos dizer que em A chuva amarela (La lluvia amarilla), o inslito se manifesta na figura do protagonista, a partir da qual se irradia por toda a narrativa. ltimo habitante de um povoado abandonado do Pireneu Aragons, Ainielle, o narrador-personagem nos apresenta as lembranas, em geral confusas e j precrias, daqueles que se foram do povoado ou que ali morreram. Fruto da chegada da modernidade, ou ainda da civilizao, o que restar desta regio so runas, as quais transparecem neste monlogo como estilhaos da memria.

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Assim, ao criar o que poderamos qualificar como figuras do esquecimento e do esquecido (GAGNEBIN, 2007: 68), o escritor espanhol submerge o leitor num cenrio oposto s luzes de nen da vida urbana, e especialmente, ao mapa sem fronteiras anunciado pela globalizao. Tal como Benjamin, Llamazares (1997) no nos remete ao mundo rural por nostalgia, mas pela necessidade de rememorar um passado, ou seja, de reivindicar uma identidade, que alm de pessoal tambm coletiva: uma Espanha que foi relegada ao olvido, reprimida pelos ventos do progresso e da modernizao, tal como reflete o autor quando afirma:y en este siglo y sobre todo en Espaa, ms tarde que en el resto de Europa, se produjo el gran cambio cultural, que fue el cambio de la cultura rural a una cultura urbana [] Ese salto de una cultura a otra, esa sensacin de escribir y de prdida, aunque s que no se puede volver atrs ni yo querra volver atrs , creo que forma parte de m y por eso hablo de ello... (Llamazares, 2009)

A figura do inslito e do esquecido se fundem na imagem do protagonista, medida que este reproduz a perda de uma temporalidade imersa na tradio e na experincia compartilhada, uma poca na qual o sentar-se ao redor da fogueira para contar e ouvir histrias faz parte de um passado sem retorno, como podemos observar quando o narrador recorda os momentos em que viveu com sua esposa: O fogo, ento, nos unia mais do que a amizade e do que o sangue. As palavras serviam, como sempre, para afugentar o frio e a tristeza do inverno (Llamazares, 1997: 14). No entanto, pouco a pouco, a palavras vo dando lugar ao silncio, fato que ocorre paralelamente loucura gradual da esposa, at culminar em sua morte e na solido irreversvel do narrador. pois, desta forma, que o autor vai marcando textualmente a morte da narrao, e em consequncia, a falta de uma orientao, especialmente encarnada no suicdio da esposa e na determinao do protagonista de continuar vivendo num povoado abandonado, uma atitude tambm suicida: Era como se as palavras tivessem perdido de repente todo seu significado e seu sentido, como se a fumaa do lume levantasse entre ns uma cortina impenetrvel que transformasse nossos rostos nos de dois desconhecidos (Llamazares, 1997: 18). Neste sentido, ser a voz do moribundo quem dar ao narrador a autoridade requerida para seguir adiante em sua rememorao, j que como vimos em Benjamin, o limiar da morte, esta travessia entre o conhecido e o mundo desconhecido, confere-lhe uma aura, hoje desaparecida. Assim, ao referir-se ao estado no qual vo encontr-lo os que estiverem sua procura, o narrador afirma:Porque quando o primeiro comear a subir as escadas, todos j sabero com certeza o que, aqui, os esperava havia muito tempo [...] Um rudo de asas negras bater nas paredes, advertindo [...] quando, atrs dessa porta, as lanternas afinal me descobrirem sobre a cama, ainda vestido, olhando-os de frente, devorado pelo musgo e pelos pssaros. (Llamazares, 1997: 09)

Assim como no escritor argentino Alan Pauls, aqui tambm as lembranas surgem enquanto mnadas, que estilhaam o continuun da histria. A rememorao nasce da seleo de determinadas imagens, cujas sensaes remetem a cenas, que por sua vez, remetem a outras experincias vividas, que vo sendo resgatadas do esquecimento, a cuja solido o protagonista se entrega at chegada da morte. Segundo Benjamin, as mnadas so como imagens privilegiadas que retm a extenso do tempo na intensidade de uma vibrao, de um relmpago (Cf. Gagnebin, 2007: 80). Corroborando com este conceito, o narrador afirma: s vezes, pensamos que esquecemos tudo [...] Mas basta um som, um cheiro, um toque repentino e inesperado para que, de repente, o aluvio do tempo caia sem compaixo sobre ns e a memria se ilumine com o brilho e a fria de um relmpago (Llamazares, 1997: 24). Uma memria, que tambm como em Pauls, desconfia de si mesma, hesitando entre o silncio e a palavra, a verdade e a mentira, a viglia e o sonho. Deste espao intersticial nascem personagens do esquecido, do inslito, testemunhas de um mundo pr-histrico que a civilizao 18

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no conseguiu integrar. Figuras deformadas, ameaadoras, dado que quando surgem, nos recordam a violncia com a qual foram recalcadas, ou como nos aponta Benjamin, de que nunca houve um monumento da cultura que no fosse tambm um monumento da barbrie (Benjamin, 1995: 225).

Referncias BENJAMIN, W. Obras Escolhidas. vol 1. 4ed. So Paulo: Brasiliense, 1985. ______. Obras Escolhidas. vol 2. So Paulo: Brasiliense, 1987. GAGNEBIN, J M. Histria e narrao em Walter Benjamin. So Paulo: Perspectiva, 2007. LLAMAZARES, J. A chuva amarela. So Paulo: Martins Fontes, 1997. ______. Mi visin de la realidad es potica. Entrevista a Yolanda Delgado Batista. Disponvel em: http://www.ucm.es/info/especulo/numero12/llamazar.html. Acesso em 2009. PAULS, A. Histria do pranto. So Paulo: Cosac Naify, 2008. ______. El llanto segn Pauls. Entrevista a Patricio de La Paz. Revista Qu pasa. Disponvel em: http://www.icarito.cl/medio/articulo/0,0,38039290_101111578_310766814,00.html. Acesso em 2009.

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A ARQUITETURA DO LEITOR MODELO: A FILOSOFIA DA COMPOSIO DE EDGAR ALLAN POEJulio Frana *

Introduo A leitura que aqui propomos do ensaio A Filosofia da Composio, de Edgar Allan Poe, parte de um trabalho de pesquisa em curso sobre os fundamentos estticos da narrativa literria de horror, a partir das obras de quatro ficcionistas-crticos: o prprio Poe, Horace Walpole, H. P. Lovecraft e Stephen King quatro geraes de escritores que nos legaram, alm de algumas das mais significativas obras ficcionais do gnero, uma reflexo crtica sobre suas prticas. As primeiras concluses dessa pesquisa apontam para como a reflexo crtica sobre a narrativa ficcional de horror possui orientao aristotlica. A criao literria pensada por uma perspectiva que considera em primeiro plano os efeitos de recepo, isto , a obra literria de horror encarada como um artefato produtor de uma emoo especfica: o medo e suas variaes. O presente trabalho d continuidade a essa investigao, ao avaliar, a partir do ensaio de Poe, a pertinncia de se propor reflexes crticas sobre o horror fundadas na recepo das obras. Afinal, situar em certa predisposio psquica do leitor portanto, fora da obra tanto o trao fundamental do gnero quanto o seu valor, pode gerar certo desconforto metodolgico. Ao se adotar uma perspectiva de anlise centrada na recepo, aproximar-se-ia a descrio da literatura de horror perigosamente de uma zona de indeterminao em que a subjetividade e as idiossincrasias do leitor poderiam ser soberanas e inviabilizariam uma abordagem estritamente literria do tema. Por essa razo, a considerao do horror como um efeito no poder jamais estar dissociada da compreenso dos mecanismos responsveis por sua constituio. Mais do que uma questo de subjetivismos e idiossincrasias, o efeito esttico deveria ser o resultado de um planejamento, isto , o fruto de processos construtivos relacionados criao da obra literria. A considerao da composio artstica fazendo uso de uma metfora poeana como uma maquinaria da produo de efeitos permite-nos considerar o inslito tanto em sua dimenso textual como elaborao artesanal quanto em sua dimenso ligada recepo. Alm disso, abre espao para a integrao do autor neste processo, como algum capaz de manipular elementos constitutivos da produo de sentidos e dar forma, nos termos de Umberto Eco, a um leitor-modelo.

Allan Poe e a Fico de Horror Dos quatro autores com os quais trabalhamos, Edgar Allan Poe o que possui maior reconhecimento, por parte da tradio dos Estudos Literrios, de suas qualidades como crtico. No nos legou, porm, uma reflexo especfica sobre a narrativa ficcional de horror gnero que Poe ajudou a consolidar e que viria a lhe consagrar. Seus ensaios, de modo geral, tratam muito mais da literatura como um todo e, mais especialmente, da poesia. A importncia de um texto como A Filosofia da Composio para um estudo da narrativa de horror , portanto, indireta: necessrio*

Doutor em Literatura Comparada (UFF), Professor Adjunto de Teoria da Literatura (UERJ). Coordenador da Mesa Redonda O inslito em questo na recepo do signo literrio.

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compreender a idia mais geral de Poe sobre a literatura como um todo para se chegar especificidade de sua compreenso da literatura de horror. Como Poe se encaixaria na tradio dos ficcionistas-crticos de horror? Os trs outros autores por ns estudados Walpole, Lovecraft e King pensam a criao literria por uma perspectiva que privilegia francamente os efeitos de recepo e concebem a obra literria de horror como um artefato produtor de uma emoo especfica o medo e suas variaes (horror, terror, repulsa etc.). Ora, no difcil perceber que, ao falarmos em produo de efeitos, estamos diante de uma clave aristotlica. A Potica, de Aristteles, o marco inicial da reflexo sobre a literatura direcionada aos efeitos produzidos pela obra. Os elementos constitutivos da tragdia principal espcie literria estudada pelo filsofo so pensados em funo da resposta emocional que o gnero capaz de provocar. Em uma obra que reputamos fundamental para o estudo da esttica da narrativa de horror, A Filosofia do Horror ou Paradoxos do Corao, o filsofo norte-americano Noel Carroll admite ter pretendido estudar a literatura de horror a partir do paradigma aristotlico:Tomando Aristteles para propor um paradigma do que a filosofia de um gnero artstico possa ser, oferecerei uma explicao do horror em razo dos efeitos emocionais que ele destinado a causar no pblico. Isso implicar tanto a caracterizao da natureza desse efeito emocional quanto um exame e uma anlise das figuras recorrentes e das estruturas de enredo usadas pelo gnero para suscitar os efeitos emocionais que lhe so apropriados. Ou seja, no esprito de Aristteles, presumirei que o gnero destinado a produzir um efeito emocional; tentarei isolar esse efeito; e tentarei mostrar como as estruturas caractersticas, as imagens e as figuras do gnero so arranjadas para causar a emoo que chamarei de horrorartstico (art-horror). Embora no espere ter tanta autoridade quanto Aristteles, minha inteno tentar fazer com o gnero do horror o que Aristteles fez com a tragdia. (Carroll, 1999:21)

Carrol adota a Potica, de Aristteles, como um paradigma para o estudo filosfico analtico do horror artstico. Em nossa pesquisa, chegamos ao filsofo de Estagira por outro caminho: em nosso esforo de compreender as poticas da narrativa ficcional de Horror isto , como os autores do gnero descrevem, auto-avaliam e justificam suas prticas identificamos o pensamento aristotlico como o fundamento comum s reflexes crticas dos autores estudados. No caso especfico de nosso presente ensaio, a associao entre A filosofia da composio e o paradigma aristotlico j havia sido feita por Umberto Eco, em um congresso na Sorbonne, em 1990, quando confessou ter sofrido sua experincia aristotlica decisiva ao ler a Philosophy of Composition, de Edgar Allan Poe (Eco, 2003: 221). Como Eco bem observa, apesar de jamais nomeado no ensaio, Aristteles o modelo mudo que sustenta o pensamento de Poe. A polmica rejeio da inspirao como origem da criao potica e a escandalosa ousadia de declarar a suposta espontaneidade do fazer potico como uma construo orientada por clculos rgidos nada mais so do que desdobramentos de lies aristotlicas. Edgar Allan Poe talvez seja o articulador do modelo mais bem acabado do que chamaremos aqui, sem pretenses conceituais, de construtivismo potico. Em A filosofia da composio, o poeta, ficcionista e ensasta norte-americano descreve os princpios da construo literria, explicitando que a primeira considerao a ser feita antes da elaborao de uma obra refere-se ao efeito que se deseja produzir no leitor:Eu prefiro comear com a considerao de um efeito. Mantendo sempre a originalidade em vista, pois falso a si mesmo quem se arrisca a dispensar uma fonte de interesse to evidente e to facilmente alcanvel, digo-me, em primeiro lugar: Dentre os inmeros efeitos, ou impresses a que so suscetveis o corao,

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O inslito em questo Mesas Redondas Publicaes Dialogarts ISBN 978-85-86837-63-0 a inteligncia ou, mais geralmente, a alma, qual irei eu, na ocasio atual, escolher? (Poe, 1987:110)

A apologia do controle total do fazer potico envolve at mesmo uma idia dominante da esttica romntica, a originalidade, que surge aqui como mais um recurso a ser trabalhado em favor daquilo que deve nortear a criao literria: o leitor ou, melhor dizendo, o efeito que se busca produzir no leitor. Configura-se, em Allan Poe, a melhor definio de um dos plos do espectro da criao: se nas doutrinas da inspirao tem-se as fontes criativas do poeta em algum tipo de exterioridade, o processo criativo gerido pela tcnica responde pela internalizao radical. Se a imagem platnica da criao inspirada a da cadeia magntica dos elos, a metfora poeana da composio a da maquinaria teatral da produo de efeitos. Seguindo em sua demonstrao, Allan Poe declara jamais ter tido a menor dificuldade em relembrar os passos progressivos de qualquer de suas composies (Poe, 1987: 111). Para exemplificar, ele toma aquela que era considerada sua obra-prima, o poema O corvo, sobre a qual declara, antes de esmiuar-lhe o processo de realizao: nenhum ponto de sua composio se refere ao acaso, ou intuio, [...] o trabalho caminhou, passo, at completar-se, com a preciso e a seqncia rgida de um problema matemtico (Poe, 1987: 111). O modo categrico como Poe apresenta a sua defesa construtivista da criao potica tem importantes seguidores entre eles, poetas como Paul Valery e T.S.Eliot , uma linhagem de poetas que acreditava na poesia como um trabalho de linguagem e como um ato de comunicao. Ao mesmo tempo, ele tambm foi capaz de desnortear alguns adeptos da inspirao. Emile Cioran, em um artigo demolidor sobre Valry, indignava-se contra a defesa da lucidez e da tcnica do poeta francs, e proclamava que toda a obra valeryana se baseara em uma leitura ingnua da Filosofia da composio de Poe, um texto onde um poeta zombava de seus leitores crdulos (Cioran, 2000: 22). Para o filsofo romeno poca um admirador confesso do lirismo desenfreado de Shelley o depoimento de Poe s podia ser a hoax: uma mistificao, um logro. Para um adepto do entusiasmo, reduzir o fazer potico maquinaria e matemtica s poderia ser uma tentativa de fraude. Poe realmente estaria, com a Filosofia da composio, pregando uma pea em seus leitores? Seria o ensaio algo semelhante ao conto Como escrever um artigo moda Blackwood, de 1838, em que Poe satiriza as frmulas das histrias de horror e de mistrio da revista escocesa Blackwoods Magazine (Poe, 2001:480-8)? Acreditamos que no. Poe ataca em A Filosofia da Composio alvos similares aos que atinge em Como escrever um artigo moda da Blackwood, No primeiro caso, a vtima a inspirao, apresentada como uma mistificao de artistas que no admitiriam revelar o carter artesanal e planejado de suas prticas. No segundo caso, o objetivo satirizar a crena de que a experincia seja a matria-prima do artista. As sensaes, os sentimentos e as emoes deveriam ser produzidos no leitor. Representados no autor, no passariam de farsa e de histrionismo. Como um escritor no auge do Romantismo poderia ter semelhantes idias a respeito da literatura? O romantismo de Poe difere muito do de Shelley poeta que representa, para Poe, uma espcie de nmesis. Repugnava-o a idia de que o poema pudesse ser a realizao precria de algo que no se pode exprimir adequadamente. Qualquer pensamento poderia ser exposto em linguagem. A dificuldade em express-lo seria um ndice apenas de falta de mtodo ou de reflexo (Poe, 1977: 312). Sob a perspectiva de Poe, Shelley era o gnio sem habilidade construtiva, o poeta sem o clculo do efeito, o artista que no considera o seu pblico. Sendo apenas instinto sem arte, Shelley estava aqum das exigncias do construtivismo potico, que se constitui fundamentalmente como um sistema de produo e percepo de efeitos. A Filosofia da Composio parece-nos, portanto, absolutamente coerente com a perspectiva construtivista de Allan Poe e tributria de uma compreenso aristotlica da literatura. Entretanto, mesmo que recusemos a entend-lo como uma pea satrica, o ensaio apresenta-nos 22

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outras dificuldades. Como, afinal, ele deve ser lido? Como prescries para outros poetas ou uma teoria implcita da arte em geral, extrapolada de uma experincia pessoal de escritura, por parte de um escritor que se coloca como leitor crtico da prpria obra? (Eco, 2003: 222) pergunta-se Umberto Eco. Ou, colocando a questo em outros termos: para quem Poe escreveu a Filosofia da Composio? Para os leitores de O Corvo? Para seus crticos? Para os artistas? Com quem Poe dialoga neste ensaio?

Umberto Eco e a arquitetura do leitor-modelo Voltemos a Umberto Eco, que talvez nos ajude a entender o ensaio. Para Eco, Poe pode no ter sido to sincero em A Filosofia da Composio. Ao contrrio do que alardeia no ensaio, talvez no tivesse conscincia plena de cada passo construtivo de O Corvo enquanto o escrevia, mas somente aps a obra pronta teria agido como um leitor-crtico de si mesmo e desmontado, analiticamente, o poema. Ao proceder assim, obteve uma prtica de escritura da qual o seu pequeno poema era um exemplo e identificou estratgias que caracterizam o procedimento artstico em geral (Eco, 2003: 222). Umberto Eco retornou Filosofia da Composio na segunda conferncia de Seis passeios pelos bosques da fico, quando procurou entender o ensaio de Poe como um conjunto de instrues do autor-emprico ao leitor-modelo. Acho que Poe s quis expor o que esperava que o leitor do primeiro nvel [o emprico] sentisse e o leitor do segundo nvel [o modelo] descobrisse em seu poema (Eco, 1994: 50). A Filosofia da Composio no seria, portanto, um manual de instrues sobre como o leitor deve-se comportar diante de O Corvo:Poe no est nos dizendo como parece a princpio que efeitos deseja criar na alma de seus leitores empricos; se fosse assim, teria mantido seu segredo e considerado a frmula do poema to secreta quanto a da Coca-Cola. Quando muito, ele nos revela como produziu o efeito que deve impressionar e seduzir seu leitor do primeiro nvel [...]. Talvez tenha decidido revelar seu mtodo porque at ento no havia encontrado seu leitor ideal e queria agir como o melhor leitor de seu prprio poema. Sendo assim, seu gesto foi um ato pattico de terna arrogncia e orgulho humilde; ele nunca devia ter escrito A filosofia da composio e devia ter deixado para ns a tarefa de entender seu segredo (Eco, 1994: 52-3)

Allan Poe, na provocativa explicitao das intencionalidades autorais, teria pretendido realizar aquele seria o inconfessvel desejo de qualquer autor? Ser completamente compreendido (nos seus prprios termos) e garantir que todos os gatilhos produtores de emoes que plantou em sua obra fossem encontrados e disparados? A hiptese do desejo pelo controle total via revelao das intenes autorais, suas concretizaes textuais e o tipo de recepo esperada coaduna-se com a inteno de Poe em agr