Meu pai me contava isso Considerações a cerca da narrativa ... · De acordo com Bourdieu em seu...
Transcript of Meu pai me contava isso Considerações a cerca da narrativa ... · De acordo com Bourdieu em seu...
“Meu pai me contava isso...”
Considerações a cerca da narrativa sobre a história de vida do Marechal João
Baptista de Mattos
ALESSA PASSOS FRANCISCO*
Este artigo tem como principal objetivo evidenciar os primeiros resultados da
pesquisa que tem como objeto os aspectos relacionados à história de vida do Marechal
João Baptista de Mattos1. Trata-se de uma discussão metodológica sobre história oral,
perpassando questões que vão desde os conflitos da memória até questões mais simples.
Este é um estudo mais amplo do pós-abolição e o negro neste contexto, que toma um
caso específico como matéria de análise, através do estudo da trajetória do Marechal.
De acordo com Bourdieu em seu texto organizado no livro “Usos e abusos da
história oral” por Marieta Ferreira e Janaína Amado, para a compreensão de uma
trajetória de vida seria necessários a reconstrução dos espaços sociais sucessivos em que
o indivíduo atua e o conjunto das suas relações objetivas. Este artigo trata de um estudo
qualitativo do pós-abolição através de um estudo de caso, que de acordo com Michel
Vovelle, “responde a um movimento dialético no campo da história das mentalidades”
(apud Ferreira; 1996: 177). Mais especificamente, será evidenciada uma discussão
sobre a experiência e os resultados obtidos através da utilização da história oral como
uma importante metodologia de análise para o desenvolvimento da pesquisa do pós-
abolição.
O estudo do pós-abolição é hoje um importante foco dos estudos
historiográficos. Até alguns anos atrás, pouco se havia estudado pois os historiadores se
recusavam a ver importantes ferramentas que estavam a sua disposição. Com os
documentos oficiais o que se conseguia ter era uma história contada pela elite e sobre a
elite, motivo que manteve o negro no pós-abolição fora da cena histórica até pouco
tempo. Novos movimentos para o estudo do pós-abolição foi dado por historiadores que
*Bacharel e licenciada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Mestranda do programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense. 1 Pesquisa em andamento.
trouxeram novos instrumentos de pesquisa para esse campo. Sidney Chalhoub passou a
considerar inquéritos policiais como fonte de pesquisa para o negro no final da
escravidão e Hebe Mattos trouxe através da história oral o resgate das memórias do
cativeiro. Este estudo que aqui se apresenta, seguindo a metodologia de história oral,
aponta as contribuições da história oral para a reconstrução da trajetória do negro no
pós-abolição.
Após os primeiros levantamentos feitos no NUDOM (Núcleo de Documentação
e Memória do Colégio Pedro II) e nos arquivos do Exército nos documentos referentes a
vida do Marechal João Baptista de Mattos, a entrevista para o registro da história oral
teve início. A entrevista foi realizada em janeiro de 2013 com d. Umbelina Sant’Anna,
filha do Marechal Mattos, hoje com 84 anos de idade. O trabalho foi dividido em três
sessões, ocorridas em sua residência, no Rio de Janeiro. Foram registradas através de
vídeo, com uma câmera filmadora, com gravações de que resultaram em
aproximadamente 4 horas de entrevista. Estas foram registradas com gravadores digitais
e processadas seguindo as seguintes etapas: transcrição do áudio, copidesque (adaptação
para a leitura), pesquisa, conferência pela entrevistada do documento produzido e
assinatura da carta de cessão para uso e divulgação do depoimento. Estas etapas estão
descritas no Manual do projeto e parte de orientações do Centro de Pesquisa e
Documentação da História Contemporânea (CPDOC)2 .
O gênero da pesquisa foi pautado na história de vida, conforme os moldes do
“Manual de História Oral”, escrito por José Carlos Meihy. Porém, a história de vida
aqui tratada não se refere à história de vida da depoente e sim de seu pai. Apesar disso
as histórias aqui narradas também são referentes à experiência de vida de d. Umbelina,
que por um lado teve a oportunidade de escutar muitas histórias da infância e
adolescência de seu pai e por outro foi testemunha de uma parte dessa história de vida,
através da convivência familiar. D. Umbelina Sant’Anna, como depoente autorizada,
retratou o Marechal João Baptista de Mattos segundo o seu ponto de vista. Como
mediadores dessa visão estão uma série de influenciadores que a ajudaram a construir
2 Para mais informações sobre o CPDOC ver: www.cpdoc.fgv.br .
sua imagem como homem, pai, marido de sua mãe, filho, militar e tantos outros papéis
que exerceu ao longo de sua vida.
Por isso, dentro do campo da história de vida, a entrevista aqui tratada
organizou-se como uma “narrativa biográfica” 3. Que dá ao entrevistado liberdade para
narrar a história de vida de outro, de acordo com o seu ponto de vista e sua experiência.
Enquanto projeto, foi organizada segundo os marcos de vida do Marechal Mattos:
nascimento, escola primária e secundária, escola militar, casamento, nascimento de
filhos e etc. Esses e outros marcos formaram um roteiro cronológico que foram
mediados pela entrevistadora.
A história oral se apresentou inicialmente como uma importante possibilidade de
responder a questões mais específicas das quais os documentos impressos não estavam
aptos a satisfazer. Tão logo que as entrevistas tiveram início, os testemunhos orais se
tornaram o principal fio condutor da pesquisa. Em primeiro lugar a entrevista ampliou o
campo e as possibilidades de análise, colocando em pauta novas questões que até então
estavam omitidas no desenvolvimento da pesquisa. Em segundo lugar, apresentou fatos
novos que fazem parte da vida não-burocrática do Marechal, que são fundamentais para
o desenvolvimento da pesquisa. Por último, mas não menos importante, a história oral
possibilitou um maior alcance dos tempos de análise, incluindo na cena de pesquisa
também as histórias de família. Contribuições relatadas por Thompson que aponta o
caráter inclusivo da história oral, apontando como uma metodologia capaz de estudar a
história de vida de uma gama muito maior de pessoas, além de apontar a possibilidade
do deslocamento das linguagens da vida pública para a vida familiar e experiências
comuns de trabalho. (Thompson; 2002: 111).
O principal esteio do método esteve pautado no vínculo de amizade e confiança
que se construiu. Logo na primeira reunião, D. Umbelina se mostrou aberta e receptiva,
com interesses na instrumentalização da pesquisa. Eu, enquanto pesquisadora, meus
ouvidos estiveram atentos a cada palavra, pois cada uma delas se transformavam em
uma fonte de pesquisa e D. Umbelina tornou-se um instrumento de exposição dessa
3 MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: Loyola, 1996.
narrativa. Porém, para ela, eu não era apenas uma pesquisadora, pois ficou claro durante
as entrevistas o seu interesse na construção da pesquisa sobre seu pai, o que me colocou
como uma espécie de objeto de transmissão das histórias de vida de seu pai, apontando
um desejo mútuo da construção do trabalho.
O seu interesse pela história de vida do Marechal João Baptista de Mattos ficou
claro desde a chegada para a primeira reunião. Porém, esse interesse foi expresso em
primeiro momento pelo ambiente, pela disposição e composição da sala-de-estar, onde
fui recebida. Logo na entrada principal está estabelecido um móvel de madeira, com
laterais e tampas de vidro (uma espécie de vitrine), onde se expõe objetos que
pertenceram a seu pai durante sua vida. Objetos que fizeram parte de sua vida militar:
espada, inúmeras condecorações e medalhas militares. O que me pareceu uma espécie
de tributo, em um museu particular, que tornava presente e sempre viva a memória de
seu pai.
Os objetos aparecem nos estudos de Ecléa Bosi em seu livro “Memória e
sociedade: Lembranças de velhos” como importantes baluartes da memória, como
autênticos representantes biográficos, que falam muito sobre as pessoas que ali vivem.
Neste caso, pude perceber a importância dispensada por d. Umbelina à história de vida
de seu pai, que ocupa lugar importante dentro do seu universo. Objetos que também
revelam a importância da história de vida de seu pai para a construção de sua identidade
como pessoa. Além disto, aponta um orgulho sobre a biografia testemunhada por
aqueles objetos, como um status recebido, como um legado de seu pai.
Outrossim, ao longo das entrevistas e reuniões pude conhecer os esforços
dispensados pela família para a construção de uma memória do Marechal em caráter
público. Atuações que incluem construções de monumentos e a organizações de vários
eventos lembrando o centenário de nascimento de Mattos, no ano 2000. Com convite
publicado em jornal e aberto à população, foi realizada uma missa na Igreja da Santa
Cruz dos Militares, no dia 26 de junho de 2000. Também foram realizados outros
eventos, como entrega de pertences do Marechal ao Colégio Pedro II, um espadim para
exposição e uma fotografia a qual serviu de ponto de partida para este estudo. Também
foi inaugurado um busto do Marechal no colégio estadual de onde é patrono. Na placa
afixada no monumento doado pela família está escrito: “Baptista de Mattos: Um
estímulo à juventude pobre e estudiosa”. Foi possível identificar também a ocorrência
de homenagem na Câmara dos vereadores e outro evento maior ocorrido na Delegacia
da Academia de História Militar Terrestre do Brasil.
Estes acontecimentos, apesar de não terem sido expostos de forma oral, também
compõe um conjunto muito importante das pesquisas e também nos depoimentos. Pois
eles ajudam a entender o lugar que essa história ocupa na vida da depoente e a
importância da narrativa para d. Umbelina. Fica clara a necessidade da família de
oferecer para a posteridade o que considera um “exemplo nobre”, mas que além disso,
representa também um orgulho pessoal.
A entrevista foi realizada com perguntas curtas, direcionadas às várias histórias
de vida do Marechal João Baptista de Mattos, tema que foi previamente combinado.
Logo no início da entrevista é possível identificar histórias que ultrapassam as
possibilidades de testemunho da entrevistada, pois remontam momentos que ocorreram
muito antes de seu nascimento, antes mesmo do nascimento de João Baptista de Mattos.
D. Umbelina retrata a vida familiar de sua avó, d. Umbelina da Glória (que foi
homenageada através do nome de sua neta, aqui entrevistada), que viveu junto com d.
Cecília, sua bisavó, em uma senzala da fazenda do Visconde de Taunay4.
O nascimento de sua avó é localizado anos após a lei do ventre livre5, o que
aparece como um ganho muito importante, apesar dela ter vivido na senzala até sair
com sua avó, que catorze anos depois foi liberta pela lei do sexagenário. Com isso d.
Cecília, mãe de d. Umbelina da Glória, permaneceu sozinha em serviço na fazenda,
obtendo a liberdade apenas com a abolição da escravidão, em 1888. A cronologia da
4 Alfredo Maria Adriano d'Escragnolle Taunay, conhecido com o título de Visconde. O Visconde de Taunay, nascido em 1843, foi um homem pertencente à alta sociedade brasileira, apontado por um exemplar de jornal guardado pela família com autoria remetida a Theophilo de Andrade, como “um dos troncos ilustres do Brasil-império”. Neste documento não se encontram disponíveis nem data nem local da publicação. 5 Em 1871 foi promulgada a lei do ventre livre, que dava liberdade aos filhos de escravos nascidos após esta lei. Seria uma forma de fazer com que a libertação dos escravos ocorresse de forma gradual, por ela em algumas gerações a escravidão acabaria.
narrativa da história de família está organizada de acordo com os fatos que marcaram a
desagregação do sistema escravista, e representa um eco do passado, histórias que d.
Umbelina Sant’Anna ouviu de seus ascendentes, seu pai ou mesmo de sua avó, e que
aparecem em forma de narrativa nesta entrevista. Trata-se de uma história familiar
passada entre as gerações.
Dentro deste cenário é relevante notar que as recordações são construídas a
partir do interesse de quem recorda, conforme Ecléa Bosi retrata em seu livro (BOSI,
1994: 65). As memórias do cativeiro se apresentam como uma recordação primeira,
como emblema de luta e conquistas, que marcam o início de uma família escrava, o que
parece acentuar para a narradora as conquistas alcançadas pelo Marechal. Como na foto
doada pela família ao NUDOM no contexto das comemorações do centenário do
Marechal, que as carregam como referência além do nome e do título de Marechal, a
sua ascendência escrava6 (Figura 1).
Figura 1. João Baptista de Mattos
6 Fonte: Núcleo de Documentação e História do Colégio Pedro II.
A descrição detalhada de acontecimentos e características dessa época dão forma
à memória dos tempos de cativeiro trazida através dos tempos pela família. D. Cecília,
sua bisavó, aparece nas suas memórias como uma excelente cozinheira, que apesar de
escrava, jamais tinha sido levada ao tronco por seus senhores. Depois da abolição d.
Cecília carrega, segundo a entrevistada, o desapego ao conforto, caracterizado por não
conseguir usar calçados. Sabemos que essa era uma das principais características de
vestuários carregadas pelos escravos, que por muitas vezes foi representada nos quadros
de Jean Baptiste Debret7. O reconhecimento de uma vida escrava tranquila é muito
latente, e após esse período, a continuação da servidão aparece como outra evidência do
trabalho com bons patrões, para a narradora.
Adiante, d. Umbelina Sant’Anna descreve toda a infância, de Mattos momento
em que dá voz à fonte de sua narrativa, afirmando que “meu pai me contava isso...”.
Expressão que deu título à este trabalho e aponta para uma tradição familiar. Com as
informações que possuía foi possível almejar em sua narrativa toda a infância do
Marechal Mattos: onde nasceu, morou, histórias da vizinhança, onde cresceu, com quem
brincou, incluindo grandes afetos de sua infância e até mesmo algumas rixas. Uma rica
narrativa que nos leva direto ao cenário das experiências de seu pai quando criança.
É importante ressaltar que a imagem construída de seu pai vai além do que tenha
ouvido ao longo de sua vida, junta-se com suas experiências enquanto filha, mas
também abarca suas experiências de vida enquanto pessoa. A memória está construída
de acordo com o sentido dado pela entrevistada, não por quem a vivenciou. Ecléa Bosi,
em seu livro “Memória e Sociedade: lembranças de velhos”, dentre os vários aspectos
da memória trata também sobre as memórias que carregamos dos nossos pais.
A imagem de nosso pai caminha conosco através da vida. Podemos
escolher dele uma fisionomia e conservá-la no decurso do tempo. Ela empalidece se
não for revividas por conversas, fotos, leituras de cartas, depoimentos de tios e avós,
dos livros que lia, dos amigos que freqüentava, de seu meio profissional, dos fatos
históricos que viveu... Tudo isso nos ajuda a construir sua figura. Meu pai me
7 É comum identificarmos em pinturas do tempo da escravidão, como a de Debret “O regresso de um proprietário”, a aparição de negros escravos com os pés descalços. Jean Baptiste Debret, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1834 – 1839).
ofereceu de si muitas imagens até a sua morte. Guardei apenas as últimas, de suas
horas derradeiras? Ou recuarei no tempo em busca de imagem mais juvenil? Vejo
que sua figura não cessa de evoluir: ela caminha ao meu lado e se transforma
comigo. Traços novos se afloram, outros se apagam conforme as condições da vida
presente, dos julgamentos que somos capazes de fazer sobre seu tempo. Nos velhos
retratos, o impacto da figura viva vai-se apagando, ou vai sendo avivada, retocada.8
Com d. Umbelina não foi diferente. Em toda a sua narrativa sobre seu
pai, desde os tempos de criança Mattos parece com características que talvez possam ter
sido construídas ao longo de sua vida e através de sua experiência militar. D. Umbelina
sempre aponta, em vários momentos a pontualidade, o esforço e a aplicação de Mattos
nos estudos e em seus compromissos. Estes predicados podem representar um conjunto
sintetizador da visão que a entrevistada tem sobre João Baptista de Mattos. É até mesmo
possível que alguns destes João tenha adquirido ao longo de sua vida militar, ou mesmo
como pai de família, mas que no geral retratam o modo como sua filha o representa.
Esta imagem apresentada por Umbelina Sant’Anna pode se verificar também, por outro
lado, com maneiras de se portar reconhecida no pai ao longo da vida. Pontualidade,
esforço e determinação são características emblemáticas de um militar, que dificilmente
são encontradas em uma criança.
É importante ressaltar também que a imagem do pai de Umbelina Sant’Anna
esteve sempre viva em sua mente e em sua vida. Essa constatação fica latente com a
exposição feita acima: do móvel da sala, da realização do centenário que contou com
uma série de pessoas do convívio do Marechal, principalmente com a construção de
monumentos e homenagens. Isso explica a extensão, a riqueza em detalhes e a profusão
de memórias carregadas de seu pai e de sua família.
Sua avó, d. Umbelina da Glória, também aparece com uma grande importância
na narrativa. Após a saída da senzala, sua avó sempre é representada como uma mulher
trabalhadora e muito empenhada na criação dos filhos. Em primeiro momento d.
Umbelina aparece como uma importante mantenedora dos estudos de Mattos e como a
principal incentivadora. Para a entrevistada, D. Umbelina da Glória apresentava uma
8 (Bosi, Eclea; 1994: 426)
grande convicção: João Baptista deveria estudar. Cabe salientar que a entrevistada, D.
Umbelina Sant’Anna, é uma mulher com extenso currículo de formação, domina várias
línguas e sempre esteve envolvida com a escola. Em muitos momentos como aluna,
outros como professora e outros como diretora. Atualmente mantém o que chama de
“obra social”, que é uma espécie de escola para crianças mais pobres, no bairro do
Grajaú. É uma possibilidade que esta preocupação exacerbada com a educação seja
predicados entendidos e emprestados pela entrevistada à sua avó. Pois de fato sua avó
era analfabeta e talvez não soubesse como a entrevistada a importância de se freqüentar
a escola. Na verdade esta é apenas uma hipótese que não afasta outras possibilidades.
Outro importante momento da narrativa sobre d. Umbelina da Glória foi uma
contradição entre depoimento e um dos documentos encontrados durante a pesquisa,
que revela todo esse imaginário que está por trás da figura de sua avó. Segundo os
documentos do Colégio Pedro II, o que consta no livro de matrícula de João Baptista de
Mattos é sua filiação de Quintilhiano de Mattos, estando o espaço para o preenchimento
do nome da mãe vazio9. Este fato vai de encontro ao que Umbelina Sant’Anna pensa de
sua avó. Como principal mantenedora ela aponta o mérito de incentivo e condução de
Mattos à escola à memória de sua avó. Duvida da veracidade do documento apresentado
por mim para ajudar em suas memórias. Ela afirma:
“...Uma negra analfabeta, conduzida pelo filho, mostrou o caminho da secretaria.
Quem assinou lá, quer dizer, disseram, não é, Quintilhiano. Mas eu nem sei se
Quintilhiano foi lá! Não creio que tenha ido... Não creio que tenha ido... Ele pode
ter dado que era responsável...”10
Segundo Paul Thompson, em seu livro “A voz do passado”, em momentos que o
testemunho oral e a evidência documental entram em conflito não cabe hierarquizar a
fidedignidade de uma das fontes ou até mesmo desqualificar uma das duas. A entrevista
tem o poder de revelar o que se apresenta por trás do registro oficial, apresenta o
subjetivo, para além das letras. Essa divergência poderá revelar dois pontos de vista
válidos e diferentes que proporcionam importantes pistas para a interpretação verdadeira
9 COLÉGIO PEDROII. Livro de registro de matrículas dos alunos do Externato. 1896-1914. 300p. 10 Entrevista com D. Umbelina, realizada em janeiro de 2013.
(Thompson, Paul. 2002: 307). Isto deixa clara a importância da figura de d. Umbelina
da Glória, que não está reconhecida nos registros de matrículas oficiais, que esconde
esta participação.
Após os tempos de escola, Umbelina Sant’Anna relata muitos detalhes sobre o
ingresso na carreira militar, no Colégio Militar em 1917. Na narrativa sobre esse
período aparecem algumas figuras que mais tarde estarão em evidência no cenário
político do Brasil. Em sua turma estava Castelo Branco e Costa e Silva (futuros
presidentes da ditadura militar), mas segundo Umbelina não construíram com Mattos
grandes laços de amizade, Costa e Silva aparece mais próximo de Mattos do que
Castelo Branco. Este último é apresentado como alguém que não tem afinidades com
pessoas de cor, o que fez com que não tornasse amigo de Mattos.
D. Umbelina apresenta uma imensa gratidão ao Exército brasileiro e o
reconhecimento de um papel importante na vida de seu pai. Foi possível observar tanto
nas entrevistas quanto nos documentos a ascensão vivenciada por Mattos. Em 1917
entra no Colégio Militar como praça e, segundo seus “Dados Biográficos” 11, em 25 de
junho de 1964 Mattos é promovido ao posto de General de Divisas, e apenas um mês
depois, no dia 28 de julho, é promovido a Marechal. No mesmo dia da última promoção
o Marechal Mattos vai para a reserva. D. Umbelina sempre retrata João Baptista de
Mattos como o primeiro negro a ganhar o título de Marechal no Brasil, o que a
entrevistada confere à essa trajetória uma singularidade e excepcionalidade, o que é
sempre acentuado por sua ascendência escrava.
João Baptista de Mattos nasceu doze anos após o emblemático 13 de maio da
libertação dos escravos. Foi alfabetizado cedo e freqüentou espaços que não foram de
fácil acesso para outros descendentes de escravos. Conforme afirmado por Beatriz
Boclin, o Colégio Pedro II foi a primeira escola de ensino secundário no Brasil e desde
os tempos em que João a frequentava já vinha com uma tradição de educação de
excelência. “Foi através do Colégio Pedro II, fundado para formar uma elite pensante
no Brasil que ocuparia os principais cargos da administração pública e do governo, 11 AQUIVO HISTÓRICO DO EXÉRCITO. Setor Pessoal. Dados Biográficos de João Baptista de Mattos.
que se iniciou o processo de consolidação dos programas curriculares e manuais
didáticos.”.12
Ao longo de sua vida João Baptista de Mattos esteve sempre envolvido com a
educação. Sua formação inclui um diploma de Bacharel em direito13, concluído em
1937 pela Faculdade de Direito de Niterói. Além disto, participou da especialização de
alto comando no Exército no Curso de Estado Maior, participação na Escola Valenciana
de Letras. Escreveu 16 livros sobre os “Monumentos Nacionais” brasileiros14, em cada
volume dedicou-se a observar os monumentos e a história de cada um deles no âmbito
de vários estados do Brasil. De suas observações pessoais, sua filha conta que ele
sempre exclamava: “aqui no Brasil não se faz nenhum monumento ao disciplinado”.
Talvez essa observação venha em forma de ressentimentos por não identificar
monumentos em favor de pessoas que procuraram levar a vida assim como ele, sob a
disciplina e, ao que parece, sob a legalidade.
Outro marco importante na narrativa está firmada na atuação de João Baptista de
Mattos em um importante embate entre a população de São Paulo, rebelada, e as tropas
Federais, durante os primeiros anos do governo de Getúlio Vargas. Na conhecida
revolta Constitucionalista15, ocorrida em São Paulo em 1932, onde a luta abrigava
reivindicações dos que almejavam a permanência da velha ordem quanto aqueles que
defendiam a implementação de uma república democrática liberal. Em repressão foram
enviadas tropas do governo, dentre as quais esteve a tropa comandada por Mattos. O
respeito para com os seus soldados e a solidariedade para com os mortos são os
principais predicados expostos pela narrativa. 12 Op. cit. SANTOS, Beatriz; 2012. 13 ACERVO FAMILIAR. Diploma de bacharelado em direito da faculdade de direito de Niterói. Niterói, 9 de dezembro de 1937. 14 Dos dezesseis livros apontados por d. Umbelina de Sant’ Anna como produzidos por seu pai, apenas onze foram localizados até o presente momento. 15 As elites paulistas não se conformavam com o rumo que a política brasileira tomava. Defendiam a constitucionalização brasileira a partir de princípios liberais e exigiam um interventor civil e paulista. Em fevereiro de 1932 formava-se a Frente Única Paulista. A Frente Gaúcha também não estava muito satisfeita com os acontecimentos e romperam com o governo em março. Conspiradores se reuniram para elaborar um golpe revolucionário contra o governo. No dia 9 de julho iniciou-se em São Paulo a revolução contra o governo Federal, entretanto sem o apoio esperado do Rio Grande do Sul. Boris Fausto explica que o interventor gaúcho apoiou o governo Vargas e posicionou suas tropas contra os revoltosos.
Muitos anos depois, em fevereiro de 1954 Getúlio Vargas faz uma renovação
ministerial, onde indica Zenóbio da Costa para o Ministério da Guerra. Neste mesmo
momento Mattos é indicado, segundo sua filha pelo próprio Vargas, para trabalhar no
Gabinete do Ministério da Guerra, como secretário. Ao que tudo indica essa ação de
Vargas teve o intuito de minorar as dissidências e insatisfações no meio militar.
Zenóbio era considerado legalista e dificilmente indicaria para trabalhar em seu
gabinete um militar que apresentasse opinião política diferente. Assim sendo, Mattos
esteve ligado ao governo Vargas nos seus momentos finais, atuando diretamente através
do trabalho no gabinete do Ministério da Guerra.
Mais tarde, ainda como secretário da Guerra, presenciou a deflagração do
contragolpe pelo General Lott. De fato não foi identificado o nome de Mattos
claramente como um dos autores da deflagração do contragolpe de 195416, o que
corrobora com os depoimentos de Umbelina que sempre aponta para o não
envolvimento de seu pai em qualquer movimento de rebelião. Mas o trabalho com Lott
no Ministério da Guerra indica uma possível parceria em termos de posicionamento
político. Somando-se a isso, no momento posterior à Novembrada, o Brasil entrou em
estado de Sítio, onde Mattos foi diretamente atuante. Mattos foi delegado do Executor
do estado de Sítio de Mato Grosso e por lá esteve para verificar a situação do estado
durante o período. Atuação que marca uma posição política apontada por Umbelina, sua
filha, ao afirmar a posição de Mattos como “eminentemente legalista”. Pois o
contragolpe é realizado em defesa da legalidade constitucional, para garantir a posse do
presidente democraticamente eleito, Juscelino Kubitschek.
Com o exposto nas últimas páginas foi possível retomar através do depoimento
oral memórias que vão além dos testemunhos prestados pela depoente. Sua narrativa
remonta as memórias do cativeiro carregadas por sua família, histórias que permanecem
vívidas em suas lembranças, apesar de não tê-las testemunhado. O estudo da história da
16 Lott chegou à conclusão de que a posse do novo presidente eeito após a morte de Getúlio Vargas corria sérios riscos e começou a articular um golpe preventivo, com a intenção de garantir a posse de Juscelino Kubstcheck. Lott mobilizou as tropas no Rio de Janeiro em uma ofensiva contra o governo. A intenção era garantir o cumprimento da Constituição com uma medida preventiva, chamada de contragolpe. Tropas dos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santos, Minas Gerais e São Paulo se posicionaram para o cumprimento da legalidade.
escravidão através da história oral tem se mostrado uma importante ferramenta de
abordagem da história de vida, da história familiar dos escravos e seus descendentes,
estudo que fica impossibilitado de se desenvolver apenas através dos documentos
escritos. Este trabalho tem como grande fonte de inspiração as pesquisas desenvolvidas
por Hebe Mattos e Ana Lugão Rios, expostas no livro “Memórias do Cativeiro Família,
Trabalho e Cidadania no Pós- Abolição.”.
Além disto, a pesquisa através da história oral possibilitou a narrativa sobre a
história de vida do Marechal João Baptista de Mattos, que apesar da narradora não ter
acompanhado todos os momentos de sua vida, visto que é sua filha. Umbelina
Sant’Anna pôde ouvir muitas histórias do seu pai que possibilitaram a criação de uma
memória e um imaginário a cerca da história de vida de seu pai, que trata desde o seu
nascimento até os últimos dias de vida. Narrativa que dá conta de uma série de questões
que não estão contempladas nos documentos escritos e que nos oferecem novas
questões e significados, que não podem ser expressos através dos documentos escritos.
Sentimentos, histórias de família, afetividade e amizades que podem dizer muito sobre
uma trajetória e que só um depoimento oral tem o poder de dar conta dessas histórias
por trás dos documentos formais.
Referências Bibliográficas
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembranças de Velhos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
FERREIRA, Marieta de Moraes & Janaína Amado (coord.) Usos & abusos da história
oral. Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996.
SANTOS, Beatriz Boclin Marques dos. O Colégio Pedro II: Origens e formação do
currículo das escolas secundárias brasileiras. Anais do X colóquio sobre Questões
Curriculares & VI Colóquio Luso-brasileiro de currículo. Belo Horizonte – MG.
Setembro de 2012.
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
RIOS, Ana Lugão MATTOS, Hebe Maria. &. Memórias do Cativeiro: Família,
Trabalho e Cidadania no Pós- Abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
CASTRO, Celso. A invenção do Exército brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2002.
CUNHA, Olivia Maria Gomes da e GOMES, Flavio dos Santos (Orgs.). Quasecidadão:
Histórias e antropologia da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro, Editora: FGV,
2007.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: Loyola, 1996.