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Meu pai me contava isso...Considerações a cerca da narrativa sobre a história de vida do Marechal João Baptista de Mattos ALESSA PASSOS FRANCISCO* Este artigo tem como principal objetivo evidenciar os primeiros resultados da pesquisa que tem como objeto os aspectos relacionados à história de vida do Marechal João Baptista de Mattos 1 . Trata-se de uma discussão metodológica sobre história oral, perpassando questões que vão desde os conflitos da memória até questões mais simples. Este é um estudo mais amplo do pós-abolição e o negro neste contexto, que toma um caso específico como matéria de análise, através do estudo da trajetória do Marechal. De acordo com Bourdieu em seu texto organizado no livro “Usos e abusos da história oral” por Marieta Ferreira e Janaína Amado, para a compreensão de uma trajetória de vida seria necessários a reconstrução dos espaços sociais sucessivos em que o indivíduo atua e o conjunto das suas relações objetivas. Este artigo trata de um estudo qualitativo do pós-abolição através de um estudo de caso, que de acordo com Michel Vovelle, “responde a um movimento dialético no campo da história das mentalidades” (apud Ferreira; 1996: 177). Mais especificamente, será evidenciada uma discussão sobre a experiência e os resultados obtidos através da utilização da história oral como uma importante metodologia de análise para o desenvolvimento da pesquisa do pós- abolição. O estudo do pós-abolição é hoje um importante foco dos estudos historiográficos. Até alguns anos atrás, pouco se havia estudado pois os historiadores se recusavam a ver importantes ferramentas que estavam a sua disposição. Com os documentos oficiais o que se conseguia ter era uma história contada pela elite e sobre a elite, motivo que manteve o negro no pós-abolição fora da cena histórica até pouco tempo. Novos movimentos para o estudo do pós-abolição foi dado por historiadores que *Bacharel e licenciada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Mestranda do programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense. 1 Pesquisa em andamento.

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“Meu pai me contava isso...”

Considerações a cerca da narrativa sobre a história de vida do Marechal João

Baptista de Mattos

ALESSA PASSOS FRANCISCO*

Este artigo tem como principal objetivo evidenciar os primeiros resultados da

pesquisa que tem como objeto os aspectos relacionados à história de vida do Marechal

João Baptista de Mattos1. Trata-se de uma discussão metodológica sobre história oral,

perpassando questões que vão desde os conflitos da memória até questões mais simples.

Este é um estudo mais amplo do pós-abolição e o negro neste contexto, que toma um

caso específico como matéria de análise, através do estudo da trajetória do Marechal.

De acordo com Bourdieu em seu texto organizado no livro “Usos e abusos da

história oral” por Marieta Ferreira e Janaína Amado, para a compreensão de uma

trajetória de vida seria necessários a reconstrução dos espaços sociais sucessivos em que

o indivíduo atua e o conjunto das suas relações objetivas. Este artigo trata de um estudo

qualitativo do pós-abolição através de um estudo de caso, que de acordo com Michel

Vovelle, “responde a um movimento dialético no campo da história das mentalidades”

(apud Ferreira; 1996: 177). Mais especificamente, será evidenciada uma discussão

sobre a experiência e os resultados obtidos através da utilização da história oral como

uma importante metodologia de análise para o desenvolvimento da pesquisa do pós-

abolição.

O estudo do pós-abolição é hoje um importante foco dos estudos

historiográficos. Até alguns anos atrás, pouco se havia estudado pois os historiadores se

recusavam a ver importantes ferramentas que estavam a sua disposição. Com os

documentos oficiais o que se conseguia ter era uma história contada pela elite e sobre a

elite, motivo que manteve o negro no pós-abolição fora da cena histórica até pouco

tempo. Novos movimentos para o estudo do pós-abolição foi dado por historiadores que

*Bacharel e licenciada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Mestranda do programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense. 1 Pesquisa em andamento.

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trouxeram novos instrumentos de pesquisa para esse campo. Sidney Chalhoub passou a

considerar inquéritos policiais como fonte de pesquisa para o negro no final da

escravidão e Hebe Mattos trouxe através da história oral o resgate das memórias do

cativeiro. Este estudo que aqui se apresenta, seguindo a metodologia de história oral,

aponta as contribuições da história oral para a reconstrução da trajetória do negro no

pós-abolição.

Após os primeiros levantamentos feitos no NUDOM (Núcleo de Documentação

e Memória do Colégio Pedro II) e nos arquivos do Exército nos documentos referentes a

vida do Marechal João Baptista de Mattos, a entrevista para o registro da história oral

teve início. A entrevista foi realizada em janeiro de 2013 com d. Umbelina Sant’Anna,

filha do Marechal Mattos, hoje com 84 anos de idade. O trabalho foi dividido em três

sessões, ocorridas em sua residência, no Rio de Janeiro. Foram registradas através de

vídeo, com uma câmera filmadora, com gravações de que resultaram em

aproximadamente 4 horas de entrevista. Estas foram registradas com gravadores digitais

e processadas seguindo as seguintes etapas: transcrição do áudio, copidesque (adaptação

para a leitura), pesquisa, conferência pela entrevistada do documento produzido e

assinatura da carta de cessão para uso e divulgação do depoimento. Estas etapas estão

descritas no Manual do projeto e parte de orientações do Centro de Pesquisa e

Documentação da História Contemporânea (CPDOC)2 .

O gênero da pesquisa foi pautado na história de vida, conforme os moldes do

“Manual de História Oral”, escrito por José Carlos Meihy. Porém, a história de vida

aqui tratada não se refere à história de vida da depoente e sim de seu pai. Apesar disso

as histórias aqui narradas também são referentes à experiência de vida de d. Umbelina,

que por um lado teve a oportunidade de escutar muitas histórias da infância e

adolescência de seu pai e por outro foi testemunha de uma parte dessa história de vida,

através da convivência familiar. D. Umbelina Sant’Anna, como depoente autorizada,

retratou o Marechal João Baptista de Mattos segundo o seu ponto de vista. Como

mediadores dessa visão estão uma série de influenciadores que a ajudaram a construir

2 Para mais informações sobre o CPDOC ver: www.cpdoc.fgv.br .

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sua imagem como homem, pai, marido de sua mãe, filho, militar e tantos outros papéis

que exerceu ao longo de sua vida.

Por isso, dentro do campo da história de vida, a entrevista aqui tratada

organizou-se como uma “narrativa biográfica” 3. Que dá ao entrevistado liberdade para

narrar a história de vida de outro, de acordo com o seu ponto de vista e sua experiência.

Enquanto projeto, foi organizada segundo os marcos de vida do Marechal Mattos:

nascimento, escola primária e secundária, escola militar, casamento, nascimento de

filhos e etc. Esses e outros marcos formaram um roteiro cronológico que foram

mediados pela entrevistadora.

A história oral se apresentou inicialmente como uma importante possibilidade de

responder a questões mais específicas das quais os documentos impressos não estavam

aptos a satisfazer. Tão logo que as entrevistas tiveram início, os testemunhos orais se

tornaram o principal fio condutor da pesquisa. Em primeiro lugar a entrevista ampliou o

campo e as possibilidades de análise, colocando em pauta novas questões que até então

estavam omitidas no desenvolvimento da pesquisa. Em segundo lugar, apresentou fatos

novos que fazem parte da vida não-burocrática do Marechal, que são fundamentais para

o desenvolvimento da pesquisa. Por último, mas não menos importante, a história oral

possibilitou um maior alcance dos tempos de análise, incluindo na cena de pesquisa

também as histórias de família. Contribuições relatadas por Thompson que aponta o

caráter inclusivo da história oral, apontando como uma metodologia capaz de estudar a

história de vida de uma gama muito maior de pessoas, além de apontar a possibilidade

do deslocamento das linguagens da vida pública para a vida familiar e experiências

comuns de trabalho. (Thompson; 2002: 111).

O principal esteio do método esteve pautado no vínculo de amizade e confiança

que se construiu. Logo na primeira reunião, D. Umbelina se mostrou aberta e receptiva,

com interesses na instrumentalização da pesquisa. Eu, enquanto pesquisadora, meus

ouvidos estiveram atentos a cada palavra, pois cada uma delas se transformavam em

uma fonte de pesquisa e D. Umbelina tornou-se um instrumento de exposição dessa

3 MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: Loyola, 1996.

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narrativa. Porém, para ela, eu não era apenas uma pesquisadora, pois ficou claro durante

as entrevistas o seu interesse na construção da pesquisa sobre seu pai, o que me colocou

como uma espécie de objeto de transmissão das histórias de vida de seu pai, apontando

um desejo mútuo da construção do trabalho.

O seu interesse pela história de vida do Marechal João Baptista de Mattos ficou

claro desde a chegada para a primeira reunião. Porém, esse interesse foi expresso em

primeiro momento pelo ambiente, pela disposição e composição da sala-de-estar, onde

fui recebida. Logo na entrada principal está estabelecido um móvel de madeira, com

laterais e tampas de vidro (uma espécie de vitrine), onde se expõe objetos que

pertenceram a seu pai durante sua vida. Objetos que fizeram parte de sua vida militar:

espada, inúmeras condecorações e medalhas militares. O que me pareceu uma espécie

de tributo, em um museu particular, que tornava presente e sempre viva a memória de

seu pai.

Os objetos aparecem nos estudos de Ecléa Bosi em seu livro “Memória e

sociedade: Lembranças de velhos” como importantes baluartes da memória, como

autênticos representantes biográficos, que falam muito sobre as pessoas que ali vivem.

Neste caso, pude perceber a importância dispensada por d. Umbelina à história de vida

de seu pai, que ocupa lugar importante dentro do seu universo. Objetos que também

revelam a importância da história de vida de seu pai para a construção de sua identidade

como pessoa. Além disto, aponta um orgulho sobre a biografia testemunhada por

aqueles objetos, como um status recebido, como um legado de seu pai.

Outrossim, ao longo das entrevistas e reuniões pude conhecer os esforços

dispensados pela família para a construção de uma memória do Marechal em caráter

público. Atuações que incluem construções de monumentos e a organizações de vários

eventos lembrando o centenário de nascimento de Mattos, no ano 2000. Com convite

publicado em jornal e aberto à população, foi realizada uma missa na Igreja da Santa

Cruz dos Militares, no dia 26 de junho de 2000. Também foram realizados outros

eventos, como entrega de pertences do Marechal ao Colégio Pedro II, um espadim para

exposição e uma fotografia a qual serviu de ponto de partida para este estudo. Também

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foi inaugurado um busto do Marechal no colégio estadual de onde é patrono. Na placa

afixada no monumento doado pela família está escrito: “Baptista de Mattos: Um

estímulo à juventude pobre e estudiosa”. Foi possível identificar também a ocorrência

de homenagem na Câmara dos vereadores e outro evento maior ocorrido na Delegacia

da Academia de História Militar Terrestre do Brasil.

Estes acontecimentos, apesar de não terem sido expostos de forma oral, também

compõe um conjunto muito importante das pesquisas e também nos depoimentos. Pois

eles ajudam a entender o lugar que essa história ocupa na vida da depoente e a

importância da narrativa para d. Umbelina. Fica clara a necessidade da família de

oferecer para a posteridade o que considera um “exemplo nobre”, mas que além disso,

representa também um orgulho pessoal.

A entrevista foi realizada com perguntas curtas, direcionadas às várias histórias

de vida do Marechal João Baptista de Mattos, tema que foi previamente combinado.

Logo no início da entrevista é possível identificar histórias que ultrapassam as

possibilidades de testemunho da entrevistada, pois remontam momentos que ocorreram

muito antes de seu nascimento, antes mesmo do nascimento de João Baptista de Mattos.

D. Umbelina retrata a vida familiar de sua avó, d. Umbelina da Glória (que foi

homenageada através do nome de sua neta, aqui entrevistada), que viveu junto com d.

Cecília, sua bisavó, em uma senzala da fazenda do Visconde de Taunay4.

O nascimento de sua avó é localizado anos após a lei do ventre livre5, o que

aparece como um ganho muito importante, apesar dela ter vivido na senzala até sair

com sua avó, que catorze anos depois foi liberta pela lei do sexagenário. Com isso d.

Cecília, mãe de d. Umbelina da Glória, permaneceu sozinha em serviço na fazenda,

obtendo a liberdade apenas com a abolição da escravidão, em 1888. A cronologia da

4 Alfredo Maria Adriano d'Escragnolle Taunay, conhecido com o título de Visconde. O Visconde de Taunay, nascido em 1843, foi um homem pertencente à alta sociedade brasileira, apontado por um exemplar de jornal guardado pela família com autoria remetida a Theophilo de Andrade, como “um dos troncos ilustres do Brasil-império”. Neste documento não se encontram disponíveis nem data nem local da publicação. 5 Em 1871 foi promulgada a lei do ventre livre, que dava liberdade aos filhos de escravos nascidos após esta lei. Seria uma forma de fazer com que a libertação dos escravos ocorresse de forma gradual, por ela em algumas gerações a escravidão acabaria.

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narrativa da história de família está organizada de acordo com os fatos que marcaram a

desagregação do sistema escravista, e representa um eco do passado, histórias que d.

Umbelina Sant’Anna ouviu de seus ascendentes, seu pai ou mesmo de sua avó, e que

aparecem em forma de narrativa nesta entrevista. Trata-se de uma história familiar

passada entre as gerações.

Dentro deste cenário é relevante notar que as recordações são construídas a

partir do interesse de quem recorda, conforme Ecléa Bosi retrata em seu livro (BOSI,

1994: 65). As memórias do cativeiro se apresentam como uma recordação primeira,

como emblema de luta e conquistas, que marcam o início de uma família escrava, o que

parece acentuar para a narradora as conquistas alcançadas pelo Marechal. Como na foto

doada pela família ao NUDOM no contexto das comemorações do centenário do

Marechal, que as carregam como referência além do nome e do título de Marechal, a

sua ascendência escrava6 (Figura 1).

Figura 1. João Baptista de Mattos

6 Fonte: Núcleo de Documentação e História do Colégio Pedro II.

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A descrição detalhada de acontecimentos e características dessa época dão forma

à memória dos tempos de cativeiro trazida através dos tempos pela família. D. Cecília,

sua bisavó, aparece nas suas memórias como uma excelente cozinheira, que apesar de

escrava, jamais tinha sido levada ao tronco por seus senhores. Depois da abolição d.

Cecília carrega, segundo a entrevistada, o desapego ao conforto, caracterizado por não

conseguir usar calçados. Sabemos que essa era uma das principais características de

vestuários carregadas pelos escravos, que por muitas vezes foi representada nos quadros

de Jean Baptiste Debret7. O reconhecimento de uma vida escrava tranquila é muito

latente, e após esse período, a continuação da servidão aparece como outra evidência do

trabalho com bons patrões, para a narradora.

Adiante, d. Umbelina Sant’Anna descreve toda a infância, de Mattos momento

em que dá voz à fonte de sua narrativa, afirmando que “meu pai me contava isso...”.

Expressão que deu título à este trabalho e aponta para uma tradição familiar. Com as

informações que possuía foi possível almejar em sua narrativa toda a infância do

Marechal Mattos: onde nasceu, morou, histórias da vizinhança, onde cresceu, com quem

brincou, incluindo grandes afetos de sua infância e até mesmo algumas rixas. Uma rica

narrativa que nos leva direto ao cenário das experiências de seu pai quando criança.

É importante ressaltar que a imagem construída de seu pai vai além do que tenha

ouvido ao longo de sua vida, junta-se com suas experiências enquanto filha, mas

também abarca suas experiências de vida enquanto pessoa. A memória está construída

de acordo com o sentido dado pela entrevistada, não por quem a vivenciou. Ecléa Bosi,

em seu livro “Memória e Sociedade: lembranças de velhos”, dentre os vários aspectos

da memória trata também sobre as memórias que carregamos dos nossos pais.

A imagem de nosso pai caminha conosco através da vida. Podemos

escolher dele uma fisionomia e conservá-la no decurso do tempo. Ela empalidece se

não for revividas por conversas, fotos, leituras de cartas, depoimentos de tios e avós,

dos livros que lia, dos amigos que freqüentava, de seu meio profissional, dos fatos

históricos que viveu... Tudo isso nos ajuda a construir sua figura. Meu pai me

7 É comum identificarmos em pinturas do tempo da escravidão, como a de Debret “O regresso de um proprietário”, a aparição de negros escravos com os pés descalços. Jean Baptiste Debret, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1834 – 1839).

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ofereceu de si muitas imagens até a sua morte. Guardei apenas as últimas, de suas

horas derradeiras? Ou recuarei no tempo em busca de imagem mais juvenil? Vejo

que sua figura não cessa de evoluir: ela caminha ao meu lado e se transforma

comigo. Traços novos se afloram, outros se apagam conforme as condições da vida

presente, dos julgamentos que somos capazes de fazer sobre seu tempo. Nos velhos

retratos, o impacto da figura viva vai-se apagando, ou vai sendo avivada, retocada.8

Com d. Umbelina não foi diferente. Em toda a sua narrativa sobre seu

pai, desde os tempos de criança Mattos parece com características que talvez possam ter

sido construídas ao longo de sua vida e através de sua experiência militar. D. Umbelina

sempre aponta, em vários momentos a pontualidade, o esforço e a aplicação de Mattos

nos estudos e em seus compromissos. Estes predicados podem representar um conjunto

sintetizador da visão que a entrevistada tem sobre João Baptista de Mattos. É até mesmo

possível que alguns destes João tenha adquirido ao longo de sua vida militar, ou mesmo

como pai de família, mas que no geral retratam o modo como sua filha o representa.

Esta imagem apresentada por Umbelina Sant’Anna pode se verificar também, por outro

lado, com maneiras de se portar reconhecida no pai ao longo da vida. Pontualidade,

esforço e determinação são características emblemáticas de um militar, que dificilmente

são encontradas em uma criança.

É importante ressaltar também que a imagem do pai de Umbelina Sant’Anna

esteve sempre viva em sua mente e em sua vida. Essa constatação fica latente com a

exposição feita acima: do móvel da sala, da realização do centenário que contou com

uma série de pessoas do convívio do Marechal, principalmente com a construção de

monumentos e homenagens. Isso explica a extensão, a riqueza em detalhes e a profusão

de memórias carregadas de seu pai e de sua família.

Sua avó, d. Umbelina da Glória, também aparece com uma grande importância

na narrativa. Após a saída da senzala, sua avó sempre é representada como uma mulher

trabalhadora e muito empenhada na criação dos filhos. Em primeiro momento d.

Umbelina aparece como uma importante mantenedora dos estudos de Mattos e como a

principal incentivadora. Para a entrevistada, D. Umbelina da Glória apresentava uma

8 (Bosi, Eclea; 1994: 426)

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grande convicção: João Baptista deveria estudar. Cabe salientar que a entrevistada, D.

Umbelina Sant’Anna, é uma mulher com extenso currículo de formação, domina várias

línguas e sempre esteve envolvida com a escola. Em muitos momentos como aluna,

outros como professora e outros como diretora. Atualmente mantém o que chama de

“obra social”, que é uma espécie de escola para crianças mais pobres, no bairro do

Grajaú. É uma possibilidade que esta preocupação exacerbada com a educação seja

predicados entendidos e emprestados pela entrevistada à sua avó. Pois de fato sua avó

era analfabeta e talvez não soubesse como a entrevistada a importância de se freqüentar

a escola. Na verdade esta é apenas uma hipótese que não afasta outras possibilidades.

Outro importante momento da narrativa sobre d. Umbelina da Glória foi uma

contradição entre depoimento e um dos documentos encontrados durante a pesquisa,

que revela todo esse imaginário que está por trás da figura de sua avó. Segundo os

documentos do Colégio Pedro II, o que consta no livro de matrícula de João Baptista de

Mattos é sua filiação de Quintilhiano de Mattos, estando o espaço para o preenchimento

do nome da mãe vazio9. Este fato vai de encontro ao que Umbelina Sant’Anna pensa de

sua avó. Como principal mantenedora ela aponta o mérito de incentivo e condução de

Mattos à escola à memória de sua avó. Duvida da veracidade do documento apresentado

por mim para ajudar em suas memórias. Ela afirma:

“...Uma negra analfabeta, conduzida pelo filho, mostrou o caminho da secretaria.

Quem assinou lá, quer dizer, disseram, não é, Quintilhiano. Mas eu nem sei se

Quintilhiano foi lá! Não creio que tenha ido... Não creio que tenha ido... Ele pode

ter dado que era responsável...”10

Segundo Paul Thompson, em seu livro “A voz do passado”, em momentos que o

testemunho oral e a evidência documental entram em conflito não cabe hierarquizar a

fidedignidade de uma das fontes ou até mesmo desqualificar uma das duas. A entrevista

tem o poder de revelar o que se apresenta por trás do registro oficial, apresenta o

subjetivo, para além das letras. Essa divergência poderá revelar dois pontos de vista

válidos e diferentes que proporcionam importantes pistas para a interpretação verdadeira

9 COLÉGIO PEDROII. Livro de registro de matrículas dos alunos do Externato. 1896-1914. 300p. 10 Entrevista com D. Umbelina, realizada em janeiro de 2013.

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(Thompson, Paul. 2002: 307). Isto deixa clara a importância da figura de d. Umbelina

da Glória, que não está reconhecida nos registros de matrículas oficiais, que esconde

esta participação.

Após os tempos de escola, Umbelina Sant’Anna relata muitos detalhes sobre o

ingresso na carreira militar, no Colégio Militar em 1917. Na narrativa sobre esse

período aparecem algumas figuras que mais tarde estarão em evidência no cenário

político do Brasil. Em sua turma estava Castelo Branco e Costa e Silva (futuros

presidentes da ditadura militar), mas segundo Umbelina não construíram com Mattos

grandes laços de amizade, Costa e Silva aparece mais próximo de Mattos do que

Castelo Branco. Este último é apresentado como alguém que não tem afinidades com

pessoas de cor, o que fez com que não tornasse amigo de Mattos.

D. Umbelina apresenta uma imensa gratidão ao Exército brasileiro e o

reconhecimento de um papel importante na vida de seu pai. Foi possível observar tanto

nas entrevistas quanto nos documentos a ascensão vivenciada por Mattos. Em 1917

entra no Colégio Militar como praça e, segundo seus “Dados Biográficos” 11, em 25 de

junho de 1964 Mattos é promovido ao posto de General de Divisas, e apenas um mês

depois, no dia 28 de julho, é promovido a Marechal. No mesmo dia da última promoção

o Marechal Mattos vai para a reserva. D. Umbelina sempre retrata João Baptista de

Mattos como o primeiro negro a ganhar o título de Marechal no Brasil, o que a

entrevistada confere à essa trajetória uma singularidade e excepcionalidade, o que é

sempre acentuado por sua ascendência escrava.

João Baptista de Mattos nasceu doze anos após o emblemático 13 de maio da

libertação dos escravos. Foi alfabetizado cedo e freqüentou espaços que não foram de

fácil acesso para outros descendentes de escravos. Conforme afirmado por Beatriz

Boclin, o Colégio Pedro II foi a primeira escola de ensino secundário no Brasil e desde

os tempos em que João a frequentava já vinha com uma tradição de educação de

excelência. “Foi através do Colégio Pedro II, fundado para formar uma elite pensante

no Brasil que ocuparia os principais cargos da administração pública e do governo, 11 AQUIVO HISTÓRICO DO EXÉRCITO. Setor Pessoal. Dados Biográficos de João Baptista de Mattos.

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que se iniciou o processo de consolidação dos programas curriculares e manuais

didáticos.”.12

Ao longo de sua vida João Baptista de Mattos esteve sempre envolvido com a

educação. Sua formação inclui um diploma de Bacharel em direito13, concluído em

1937 pela Faculdade de Direito de Niterói. Além disto, participou da especialização de

alto comando no Exército no Curso de Estado Maior, participação na Escola Valenciana

de Letras. Escreveu 16 livros sobre os “Monumentos Nacionais” brasileiros14, em cada

volume dedicou-se a observar os monumentos e a história de cada um deles no âmbito

de vários estados do Brasil. De suas observações pessoais, sua filha conta que ele

sempre exclamava: “aqui no Brasil não se faz nenhum monumento ao disciplinado”.

Talvez essa observação venha em forma de ressentimentos por não identificar

monumentos em favor de pessoas que procuraram levar a vida assim como ele, sob a

disciplina e, ao que parece, sob a legalidade.

Outro marco importante na narrativa está firmada na atuação de João Baptista de

Mattos em um importante embate entre a população de São Paulo, rebelada, e as tropas

Federais, durante os primeiros anos do governo de Getúlio Vargas. Na conhecida

revolta Constitucionalista15, ocorrida em São Paulo em 1932, onde a luta abrigava

reivindicações dos que almejavam a permanência da velha ordem quanto aqueles que

defendiam a implementação de uma república democrática liberal. Em repressão foram

enviadas tropas do governo, dentre as quais esteve a tropa comandada por Mattos. O

respeito para com os seus soldados e a solidariedade para com os mortos são os

principais predicados expostos pela narrativa. 12 Op. cit. SANTOS, Beatriz; 2012. 13 ACERVO FAMILIAR. Diploma de bacharelado em direito da faculdade de direito de Niterói. Niterói, 9 de dezembro de 1937. 14 Dos dezesseis livros apontados por d. Umbelina de Sant’ Anna como produzidos por seu pai, apenas onze foram localizados até o presente momento. 15 As elites paulistas não se conformavam com o rumo que a política brasileira tomava. Defendiam a constitucionalização brasileira a partir de princípios liberais e exigiam um interventor civil e paulista. Em fevereiro de 1932 formava-se a Frente Única Paulista. A Frente Gaúcha também não estava muito satisfeita com os acontecimentos e romperam com o governo em março. Conspiradores se reuniram para elaborar um golpe revolucionário contra o governo. No dia 9 de julho iniciou-se em São Paulo a revolução contra o governo Federal, entretanto sem o apoio esperado do Rio Grande do Sul. Boris Fausto explica que o interventor gaúcho apoiou o governo Vargas e posicionou suas tropas contra os revoltosos.

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Muitos anos depois, em fevereiro de 1954 Getúlio Vargas faz uma renovação

ministerial, onde indica Zenóbio da Costa para o Ministério da Guerra. Neste mesmo

momento Mattos é indicado, segundo sua filha pelo próprio Vargas, para trabalhar no

Gabinete do Ministério da Guerra, como secretário. Ao que tudo indica essa ação de

Vargas teve o intuito de minorar as dissidências e insatisfações no meio militar.

Zenóbio era considerado legalista e dificilmente indicaria para trabalhar em seu

gabinete um militar que apresentasse opinião política diferente. Assim sendo, Mattos

esteve ligado ao governo Vargas nos seus momentos finais, atuando diretamente através

do trabalho no gabinete do Ministério da Guerra.

Mais tarde, ainda como secretário da Guerra, presenciou a deflagração do

contragolpe pelo General Lott. De fato não foi identificado o nome de Mattos

claramente como um dos autores da deflagração do contragolpe de 195416, o que

corrobora com os depoimentos de Umbelina que sempre aponta para o não

envolvimento de seu pai em qualquer movimento de rebelião. Mas o trabalho com Lott

no Ministério da Guerra indica uma possível parceria em termos de posicionamento

político. Somando-se a isso, no momento posterior à Novembrada, o Brasil entrou em

estado de Sítio, onde Mattos foi diretamente atuante. Mattos foi delegado do Executor

do estado de Sítio de Mato Grosso e por lá esteve para verificar a situação do estado

durante o período. Atuação que marca uma posição política apontada por Umbelina, sua

filha, ao afirmar a posição de Mattos como “eminentemente legalista”. Pois o

contragolpe é realizado em defesa da legalidade constitucional, para garantir a posse do

presidente democraticamente eleito, Juscelino Kubitschek.

Com o exposto nas últimas páginas foi possível retomar através do depoimento

oral memórias que vão além dos testemunhos prestados pela depoente. Sua narrativa

remonta as memórias do cativeiro carregadas por sua família, histórias que permanecem

vívidas em suas lembranças, apesar de não tê-las testemunhado. O estudo da história da

16 Lott chegou à conclusão de que a posse do novo presidente eeito após a morte de Getúlio Vargas corria sérios riscos e começou a articular um golpe preventivo, com a intenção de garantir a posse de Juscelino Kubstcheck. Lott mobilizou as tropas no Rio de Janeiro em uma ofensiva contra o governo. A intenção era garantir o cumprimento da Constituição com uma medida preventiva, chamada de contragolpe. Tropas dos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santos, Minas Gerais e São Paulo se posicionaram para o cumprimento da legalidade.

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escravidão através da história oral tem se mostrado uma importante ferramenta de

abordagem da história de vida, da história familiar dos escravos e seus descendentes,

estudo que fica impossibilitado de se desenvolver apenas através dos documentos

escritos. Este trabalho tem como grande fonte de inspiração as pesquisas desenvolvidas

por Hebe Mattos e Ana Lugão Rios, expostas no livro “Memórias do Cativeiro Família,

Trabalho e Cidadania no Pós- Abolição.”.

Além disto, a pesquisa através da história oral possibilitou a narrativa sobre a

história de vida do Marechal João Baptista de Mattos, que apesar da narradora não ter

acompanhado todos os momentos de sua vida, visto que é sua filha. Umbelina

Sant’Anna pôde ouvir muitas histórias do seu pai que possibilitaram a criação de uma

memória e um imaginário a cerca da história de vida de seu pai, que trata desde o seu

nascimento até os últimos dias de vida. Narrativa que dá conta de uma série de questões

que não estão contempladas nos documentos escritos e que nos oferecem novas

questões e significados, que não podem ser expressos através dos documentos escritos.

Sentimentos, histórias de família, afetividade e amizades que podem dizer muito sobre

uma trajetória e que só um depoimento oral tem o poder de dar conta dessas histórias

por trás dos documentos formais.

Referências Bibliográficas

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