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M ichael G ran t F ome Tradução Victor Antunes

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Michael Grant

Fome

TraduçãoVictor Antunes

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Planeta ManuscritoRua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito

1200 -242 Lisboa • Portugal

Reservados todos os direitosde acordo com a legislação em vigor

© 2009, Michael GrantPublicado com autorização de HarperCollins Children's Book,

a division of HarperCollins Publishers© 2009, Planeta Manuscrito

Título original: Hunger: A Gone Novel

Revisão: Fernanda Fonseca

Paginação: Guidesign

1.ª edição: Maio de 2011

Depósito legal n.º 328 516/11

Impressão e acabamento: Guide – Artes Gráfi cas

ISBN: 978-989-657-189-4

www.planeta.pt

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Para Katherine, Jake e Julia

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Diâmetro: 30 quilómetros (20 milhas)

com centro na Central Nuclear

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ZRJ

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Alameda

Estrada de acesso

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Avenue

Perdido BeachC A L I F Ó R N I A , E U A

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C A P Í T U L O 1

106 horas, 29 minutos

Sam Temple estava na prancha. E havia ondas. Ondas a sério, que subiam,desciam, sacudiam, cheiravam a sal e se coroavam de espuma branca.

Estava a uns sessenta metros da praia, o sítio ideal para apanhar umaonda, estendido sobre a prancha, com as mãos e os pés dentro de água,entorpecidos pelo frio, enquanto das costas, aquecidas pelo sol e protegidaspelo fato de mergulho impermeável, se elevava uma ténue coluna de vapor.

Quinn também lá estava, a balançar -se na ondulação, à espera de umaonda boa para cavalgar que os levasse até à praia.

Acordou repentinamente, engasgado pela poeira.Piscou os olhos e olhou em redor, para a paisagem árida. Num gesto

instintivo, os seus olhos dirigiram -se para sudoeste, para o oceano. Dali nãose podia ver. E há muito tempo que não havia uma onda.

Era capaz de vender a alma só para cavalgar uma onda, das verdadeiras.Com as costas da mão limpou o suor que lhe escorria pela testa. O Sol

queimava como um maçarico, demasiado quente para aquela hora matu-tina. Tinha dormido pouco. Havia muitas coisas para tratar. Coisas. Sem-pre mais coisas.

O sol, o ronronar do motor e o sacolejar ritmado do jipe a descer aestrada poeirenta conjugaram -se para que fechasse de novo as pálpebras.Apertou -as com força e depois arregalou os olhos, decidido a manter -seacordado.

O sonho não o largava. As recordações atormentavam -no. Disse paraconsigo que conseguiria suportar aquilo muito melhor, o medo constante,

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e até o fardo contínuo das trivialidades e das responsabilidades, se conti-nuasse a haver ondas. Mas há três meses que não havia ondas. Nada. Ape-nas uma crispação minúscula.

Já se tinham passado três meses desde a chegada da ZRJ e Sam ainda não aprendera a conduzir um automóvel. Aprender a conduzir teria sido mais uma coisa, mais um embaraço, mais um estorvo. Era por isso que ao volante do jipe ia Edilio Escobar, com Sam a seu lado. No banco traseiro sentava -se Albert Hillsborough, muito direito e em silêncio. Ao lado de Albert estava um rapaz a quem chamavam E. Z., que cantarolava ao som do iPod.

Com os dedos abertos, Sam puxou para trás os cabelos, bastante com-pridos. Havia mais de três meses que não cortava o cabelo. A mão fi cou suja, empastada da poeira. Felizmente continuava a haver electricidade em Perdido Beach, o que signifi cava que tinham luz e, mais importante ainda, água quente. Já que não podia dar um mergulho fresco nas ondas, podia ao menos contar com um duche quente e prolongado quando regressassem.

Um duche. E talvez uns minutos a sós com Astrid. Uma refeição. Bem, não propriamente uma refeição. Não se pode chamar refeição a uma lata de uma coisa esponjosa. O pequeno -almoço ingerido à pressa tinha sido uma lata de couves de conserva.

Parecia impossível o que uma pessoa era capaz de engolir quando tinha fome. E Sam tinha fome, como de resto acontecia a todos os que viviam na ZRJ.

Fechou os olhos, agora sem sono, apenas para tentar ver nitidamente o rosto de Astrid.

Era a única coisa boa. Tinha perdido a mãe, já não podia recorrer ao seu passatempo preferido, já não tinha direito à privacidade, à liberdade, ao mundo que dantes fora o seu… mas tinha ganho Astrid.

Antes da ZRJ sempre a considerara inabordável. Agora, como um casal, parecia uma inevitabilidade. Mas continuava a interrogar -se. Se a ZRJ não tivesse aparecido, alguma vez teria sido capaz de mais qualquer coisa do que olhá -la de longe?

Edilio deu um breve toque no travão. Mais à frente, o carreiro estava revolvido. Alguém tinha escavado a terra e traçado linhas angulosas no trilho poeirento.

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Com o dedo, Edilio apontou um tractor com uma charrua montada.O tractor estava virado, no meio de um campo. No dia em que a ZRJocorrera, o condutor do tractor tinha desaparecido, como acontecera comtodos os adultos, mas o tractor continuara a rasgar o solo e só parara aotombar numa vala de irrigação.

Edilio atravessou muito lentamente os rasgos do caminho e readquiriuvelocidade quando chegou ao outro lado.

De um lado e do outro da vereda pouco havia que ver, só terra seca,terrenos baldios e manchas de ervas descoloridas, ocasionalmente entre-cortadas por pequenos tufos de árvores. Mas mais para diante, tudo o quese podia ver era verde. Sam voltou -se para trás, para falar com Albert.

– O que é aquilo ali?– São couves – respondeu Albert.Albert era um rapaz do oitavo ano, de ombros estreitos e muito reser-

vado; vestia umas calças de caqui bem vincadas, um pólo azul -claro emocassins castanhos – um traje que uma pessoa mais velha apodaria de«informal». Antes da ZRJ ninguém lhe prestava muita atenção, era apenasum entre os vários alunos afro -americanos da escola de Perdido Beach.Mas agora já ninguém o ignorava, pois havia reaberto e posto a funcionaro McDonald’s da pequena cidade. Pelo menos enquanto tinham durado oshambúrgueres, as batatas fritas e os pedaços de frango armazenados.

Até o ketchup se esgotara.A simples lembrança dos hambúrgueres fez roncar o estômago de Sam.– Couves? – repetiu.Com um movimento do queixo, Albert indicou Edilio.– Pelo menos é que o diz o Edilio. Foi ele quem as encontrou, ontem.– Couves? – insistiu Sam, desta vez a dirigir -se a Edilio.– Fazem -te dar peidos, mas não podemos ser muito exigentes – res-

pondeu este com uma piscadela de olho.– Não seria mau se tivéssemos uma salada. Para ser sincero estava

capaz de comer uma couve agora mesmo.– Sabes o que comi ao pequeno -almoço? – perguntou Edilio. – Uma

lata de succotash.– O que é isso? – perguntou Sam.

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– Milho com favas. Misturados.Edilio travou na orla do campo cultivado.– Não é propriamente a mesma coisa que ovos mexidos com chouriço.– É o pequeno -almoço ofi cial das Honduras? – perguntou Sam, tro-

cista.– Nas Honduras, os pobres comem tortilha de milho, umas sobras de

feijão e nos dias bons uma banana. Nos dias maus é só a tortilha – retor-quiu Edilio, com um suspiro.

Desligou o motor e puxou o travão de mão.– Não é a primeira vez que passo fome.Sam pôs -se de pé e espreguiçou -se antes de saltar do jipe. Era um rapaz

bem constituído, mas nada de impressionante. Os cabelos eram castanhos, com madeixas alouradas, os olhos azuis e a pele de um bronzeado intenso. Talvez fosse um pouco mais alto e musculoso do que a média, mas nin-guém lhe poderia augurar um futuro auspicioso no futebol americano.

Sam Temple era uma das duas pessoas mais velhas da ZRJ. Tinha quinze anos.

– Eh, pá, aquilo parecem -me alfaces – disse E. Z., a enrolar cuidadosa-mente os auriculares em volta do iPod.

– Se ao menos fossem – observou Sam, pessimista. – Para já temos abacates, o que é bom, e meloas, o que é excelente. Mas o que não faltam são brócolos e alcachofras. Montes de alcachofras. E agora couves.

– Um dia vamos poder levar as laranjas – disse Edilio. – As árvores têm bom aspecto. Só que os frutos não foram apanhados, apodreceram e caíram.

– A Astrid diz que as coisas estão a amadurecer fora do tempo – disse Sam. – Não é normal.

– Como o Quinn costuma dizer, «Estamos muito longe da normali-dade» – acrescentou Edilio.

– Quem vai apanhar isto tudo? – pensou Sam em voz alta.Se Astrid estivesse presente diria que se tratava de uma pergunta retó-

rica.Albert ia a dizer qualquer coisa mas calou -se quando E. Z. exclamou:– Vou já apanhar uma daquelas couves. Estou a morrer de fome.

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Voltou a desenrolar o fi o dos auscultadores e meteu -os nos ouvidos.As couves estavam plantadas a vinte centímetros umas das outras, em

fi leiras separadas por uns cinquenta centímetros. A terra estava seca e gra-nulosa e as couves mais pareciam plantas decorativas de folhas espessas doque vegetais destinados à alimentação.

Não muito diferentes da dezena de outros campos que Sam tinha vistodurante aquela digressão hortícola.

Mas não, raciocinou Sam. Ali havia qualquer coisa diferente. Não con-seguia perceber o que era, mas havia ali uma diferença qualquer. Franziu atesta, a tentar perceber o que sentia. Tinha a sensação de que ali… faltavaqualquer coisa.

Talvez houvesse mais silêncio.Bebeu um gole de água da garrafa que trazia consigo. Ouviu Albert

contar em voz sumida, a fazer sombra nos olhos com a mão aberta e amultiplicar.

– Isto é um cálculo por alto, cada couve deve pesar para aí uns setecen-tos gramas, não? Talvez haja aqui umas quinze toneladas de couves.

– Nem quero pensar em quantos peidos isso dá – gritou E. Z. por cimado ombro, a avançar resolutamente para o terreno plantado.

E. Z. andava no sexto ano, mas parecia mais velho. Era alto para a idadee um tanto gordalhufo. Os cabelos fi nos e escorridos caíam -lhe sobre osombros. Vestia uma T -shirt Hard Rock Café. E. Z.t 1 era um nome que lhefi cava bem, pois era um rapaz de trato fácil sempre disposto a uma piadae a uma gargalhada. Deteve -se depois de ter percorrido duas dúzias defi leiras e disse:

– Parece que esta é a minha couve.– Como sabes? – gritou Edilio.E. Z. tirou um dos auriculares e Edilio repetiu a pergunta.– Já estou farto de andar. Tem de ser esta. Como é que a apanho?– Deves precisar de uma faca – respondeu Edilio, a encolher os ombros.– Não me parece.

1 Pronuncia -se como easy – simples, agradável.

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E. Z. recolocou o auricular, dobrou -se e deu um puxão na planta, mas só conseguiu arrancar algumas folhas.

– Já percebeste o que eu queria dizer – gritou -lhe Edilio.– Onde estão os pássaros? – perguntou Sam, dando -se fi nalmente

conta daquilo que faltava.– Quais pássaros? – perguntou Edilio, que depressa se apercebeu e

concordou com um aceno da cabeça. – Tens razão. Nos outros campos havia imensas gaivotas. Especialmente de manhã.

Perdido Beach tinha uma numerosa população de gaivotas. Noutros tempos alimentavam -se dos pedaços de isco deixados pelos pescadores e dos restos que encontravam nos contentores de lixo. Mas na ZRJ já não havia restos de comida, de modo que as gaivotas empreendedoras se tinham mudado para os campos, onde entravam em competição com os corvos e os pombos. Era uma das razões da destruição que tinham encon-trado nas colheitas.

– Não devem gostar de couves – observou Albert, que soltou um sus-piro. – Na verdade não conheço ninguém que goste.

E. Z. acocorou -se diante da couve, esfregou as mãos e meteu -as por debaixo dela, como se a abraçasse. De repente caiu de costas e gritou:

– Ai!– Não é fácil, pois não? – troçou Edilio.– Ah! Ah! – gritou novamente E. Z., que se levantou de um salto,

a olhar para a mão direita, que segurava com a esquerda.– Não, não, não.Sam não tinha estado a prestar grande atenção ao que se passava. Dava

voltas à cabeça, a pensar nas aves que faltavam, mas o terror que transpare-cia na voz de E. Z. obrigou -o a voltar -se.

– O que foi?– Fui mordido por uma coisa! – gritou E. Z. – Isto dói, dói muito.

Isto…E. Z. soltou um novo grito de dor, um urro violento que começou num

tom cavo para terminar num agudo histérico.Sam reparou naquilo que parecia um ponto negro de interrogação

numa das pernas das calças de E. Z.

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– Cobra! – gritou para Edilio.O braço de E. Z. sacudia -se em espasmos. Era como se um gigante

invisível o puxasse em movimentos bruscos e violentos.E. Z. gritava agora sem parar e dava início ao que parecia uma dança

de doido.– Estão nos meus pés! Estão nos meus pés!Por uns instantes Sam fi cou paralisado. Foram apenas uns segundos,

que mais tarde viriam a parecer uma imensidão. Muito tempo.Deu um salto na direcção de E. Z., mas Edilio derrubou -o com uma

placagem em voo.– Olha, pá! Olha! – segredou -lhe o amigo.A cara de Sam estava a pouco mais de meio metro da primeira fi leira de

couves. O terreno parecia vivo. Vermes. Vermes tão grandes como cobraslistradas, a saírem dos buracos da terra. Dezenas delas. Talvez centenas.Todas se contorciam em direcção a E. Z., que continuava a gritar de dor ede medo.

Sam pôs -se de pé, mas não se aproximou mais do couval. Os vermesnão se aventuravam para fora do terreno remexido. Era como se houvesseuma parede e os vermes estivessem do outro lado.

E. Z. cambaleou na direcção de Sam, a andar como se tivesse sido elec-trocutado, aos pulos como uma marioneta descontrolada que tivesse per-dido metade dos fi os.

A um metro de distância Sam viu uma lagarta emergir da pele do pes-coço de E. Z. Depois foi outra no maxilar, mesmo junto à orelha.

Já incapaz de gritar, E. Z. deixou -se cair, sentado, de pernas cruzadas.– Ajuda -me – murmurou. – Sam…Tinha os olhos postos em Sam. Olhos que imploravam e iam perdendo

fulgor, até que fi caram estáticos, sem vida.Agora os únicos ruídos que se ouviam provinham dos vermes. As cen-

tenas de bocas pareciam emitir um som único, como a de uma mandíbulaenorme que mastigasse uma pasta húmida.

Sam ergueu as mãos, com as palmas voltadas para a frente.– Não, Sam! – gritou Albert. E acrescentou, em voz mais contida:

– Já está morto, Sam. Já está.

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– O Albert tem razão, meu. Não faças isso, não as queimes. Elas não saem do terreno, não lhes dês motivo para virem atrás de nós – disse Edilio entredentes.

As suas mãos poderosas ainda prendiam os ombros de Sam, embora este não fi zesse qualquer esforço para se libertar.

– E não lhe toques – prosseguiu Edilio, entre soluços – Perdóneme Dios. Deus me perdoe, mas não lhe toques.

Os vermes negros cobriam agora o corpo de E. Z. Pareciam formigas em cima de um moscardo morto.

Pareceu decorrer uma eternidade até que os vermes se esgueirassem novamente pelos buracos do terreno.

O que deixaram para trás era impossível de reconhecer como um ser humano.

– Está ali uma corda – disse Albert, que fi nalmente se resolveu a saltar do jipe.

Tentou fazer um laço, mas as mãos tremiam -lhe tanto que não conse-guiu. Entregou a corda a Edilio. Este fez o laço e ao cabo de seis tentativas falhadas conseguiu fi nalmente prender o que restava do pé direito de E. Z. Puxaram os restos mortais para fora do terreno cultivado.

Uma lagarta atrasada arrastou -se apressadamente da carcaça humana para regressar ao couval. Sam pegou numa pedra e deixou -a cair sobre o verme, que não se mexeu mais.

– Depois volto cá com a escavadora – disse Edilio. – Não podemos levar o E. Z. neste estado. Tem dois irmãos, que não têm necessidade de ver isto. Vamos enterrá -lo aqui.

– Se estas coisas alastrarem…– Se chegarem aos outros terrenos cultivados vamos morrer de fome –

concluiu Albert.Sam sentiu uma tremenda volta no estômago, uma vontade de vomitar.

E. Z. não passava de um montão de ossos mal limpos. Já vira muitas coisas horríveis desde o princípio da ZRJ, mas nada que se comparasse com aquilo.

Esfregou as mãos nas calças de ganga, desejoso de retaliar, de queimar tanto quanto pudesse do terreno das couves, até que todos os vermes fi cas-sem esturricados.

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Mas havia ali comida.Ajoelhou -se ao lado da carcaça humana.– Eras um tipo porreiro, E. Z. Tenho muita pena.O iPod de E. Z. continuava a emitir uns débeis acordes musicais.Sam pegou no aparelho e premiu o botão para desligar.Levantou -se, deu um pontapé na lagarta morta e ergueu as mãos, como

se fosse um sacerdote a encomendar a Deus o cadáver.Mas Albert e Edilio sabiam que não era isso e recuaram alguns passos.Das mãos levantadas de Sam brotaram fulgurantes raios de luz. O que

restava do corpo retorceu -se, queimado, enegrecido. Ouviram -se os estalosdos ossos sob a acção do calor. Ao cabo de uns instantes, Sam parou. O quefi cou para trás foi um monte de cinzas que poderia ter sido o resíduo deum churrasco ao ar livre.

– Não podias ter feito nada, Sam – disse Edilio, que reconheceu o sen-timento de culpa no olhar do amigo. – É a ZRJ, meu. É a ZRJ.

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C A P Í T U L O 2

106 horas, 16 minutos

Um raio de Sol penetrou por uma frincha do telhado esburacado e incidiu sobre os olhos de Caine.

Caine estava deitado de costas, a suar, com a cabeça apoiada numa almofada sem fronha. Um lençol húmido cobria -lhe as pernas, repuxado para lhe tapar o tronco despido. Estava outra vez desperto, ou pelo menos pensava que estava.

Tinha essa esperança.Aquela cama não era a sua. Era a cama de um velho chamado Mose,

o vigilante da Coates Academy.Mose tinha desaparecido, é claro. Como todos os outros adultos.

E os rapazes mais velhos. Todos… quase todos… os que tinham mais decatorze anos. Desaparecidos.

Para onde tinham ido?Ninguém sabia.Tinham desaparecido, e era tudo. Para lá da barreira. Para fora do

gigantesco aquário a que chamavam ZRJ. Talvez tivessem morrido. Talvez não. O certo é que tinham desaparecido.

Diana abriu a porta com um pontapé. Equilibrava nas mãos um tabu-leiro com uma garrafa de água e uma lata de grão da marca Goya.

– Estás apresentável? – perguntou a rapariga.Caine não respondeu. Não percebeu a pergunta.– Estás tapado? – insistiu ela, a deixar transparecer na voz a irritação. Pousou o tabuleiro na mesa -de -cabeceira.

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Caine não se deu ao trabalho de responder. Ergueu -se na cama, massentiu a cabeça às voltas. Estendeu a mão para a garrafa da água.

– Por que está o telhado neste estado? E se chover?Surpreendeu -se com o som da própria voz. Rouca. Sem nada da habi-

tual suavidade persuasiva.– Agora para além de doido também és estúpido? – respondeu Diana,

sem contemplações.Pela cabeça de Caine perpassou uma vaga recordação que o deixou

embaraçado.– O que fi z de mal?– Foste tu que levantaste o telhado.Virou as mãos, para observar as palmas.– Fui eu?– Mais um pesadelo – disse Diana.Caine abriu a garrafa e bebeu.– Já me lembro. Tive a sensação de que me ia esmagar. Que uma coisa

ia esmagar a casa, comigo cá dentro. Por isso empurrei -o.– Está bem. Agora vê se comes algum grão.– Não gosto de grão.– Ninguém gosta. Mas isto aqui não é o restaurante lá do bairro. E eu

não sou tua criada. Só temos grão. Por isso é melhor que comas algum.Precisas de te alimentar.

Caine franziu a testa.– Há quanto tempo estou assim?– Assim como? – troçou Diana. – Como um doido, que não sabe se

vive em realidade ou em sonhos?Caine assentiu. O cheiro do grão dava -lhe voltas ao estômago. Mas de

repente sentiu fome. E lembrou -se: havia pouca comida. A memória estavaa voltar. A loucura enganadora desvanecia -se. Não estava propriamentenormal, mas conseguia aperceber -se da realidade.

– Três meses, mais semana, menos semana – disse Diana. – Tivemosaquela grande batalha em Perdido Beach. Fugiste pelo deserto com oChefe da Alcateia e estiveste desaparecido durante três dias. Quando vol-taste estavas pálido, desidratado e… bem, assim como estás.

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– O Chefe da Alcateia.As palavras e a criatura que representavam fi zeram Caine pestanejar.

O Chefe da Alcateia era o coiote dominante, que de certo modo conseguia falar. O Chefe da Alcateia, o fi el servidor de… daquilo. Da coisa que vivia nas galerias da mina.

A Sombra, como lhe chamavam.Caine cambaleou, mas antes que caísse da cama Diana agarrou -o pelos

ombros. De súbito viu -lhe a expressão no olhar e com uma praga deitou a mão à lata do lixo e colocou -lha à frente da boca, para ele vomitar.

Não vomitou muito, só uma aguadilha amarelada.– Que maravilha – disse ela, a franzir os beiços. – Se calhar é melhor

não comeres o grão. Não me apetece vê -lo regressar.Caine enxaguou a boca com um pouco de água.– Por que estamos aqui? Isto é a cabana do Mose.– Porque és demasiado perigoso. Ninguém te quer em Coates enquanto

não souberes o que fazes.Caine pestanejou, assaltado por mais uma recordação.– Magoei alguém.– Pensaste que o Cabeças era um monstro. Gritavas uma palavra. Gaió-

fago1. Depois atiraste -o de encontro a uma parede.– Ele está bem?– Caine. Nos fi lmes um tipo pode ser projectado através de uma parede

sem se magoar muito. Mas aquilo não foi um fi lme. E a parede era de tijolo. Cabeças fi cou como um guaxinim atropelado mais de vinte vezes por um camião.

A dureza das suas palavras acabou por impressionar a própria Diana. Cerrou os dentes e disse:

– Desculpa, não fi cou bonito. Nunca gostei do Cabeças, mas é umacoisa que nunca hei -de esquecer, está bem?

– Devo ter perdido a cabeça – justifi cou -se Caine.Irritada, Diana limpou uma lágrima.– Sabes o que é um eufemismo?

1 Palavra imaginária, formada a partir dos vocábulos de origem grega «gaia» (terra) e «fago» (que come). O signifi cado pretendido é «Aquele que come a terra».

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– Creio que já estou melhor. Não completamente bem. Mas já estoumelhor.

– Pois então é um dia feliz – replicou Diana.Pela primeira vez em várias semanas Caine olhou -a atentamente. Diana

Ladris era linda, com uns olhos escuros enormes, longos cabelos castanhose uma boca provocadora.

– Podias ter tido a mesma sorte do Cabeças – observou Caine. – Masmesmo assim fi caste a tomar conta de mim.

– A vida está difícil. Só tinha duas opções: fi car contigo ou arriscar -mecom Drake.

– Drake.O nome trazia -lhe à memória imagens dolorosas. Seria sonho ou rea-

lidade?– O que anda o Drake a fazer?– A brincar ao Caine número dois. Alegadamente em tua representa-

ção. Mas se queres a minha opinião, na secreta esperança de que morras.Há dias assaltou o supermercado e roubou comida. A partir daí quase setornou uma fi gura popular. Quando estão cheios de fome os miúdos nãoperdem tempo em análises profundas.

– E o meu irmão?– Sam?– Não tenho por aí mais nenhum irmão, pois não?– O Besouro foi várias vezes à cidade ver o que se passava. Diz que por

lá ainda há alguma comida, mas que começam a fi car preocupados. Espe-cialmente depois do assalto de Drake. Mas Sam tem tudo sob controlo.

– Passa -me as calças.Diana fez o que o rapaz lhe pedia e virou ostensivamente as costas

enquanto ele se vestia.– Que género de defesas montaram? – perguntou Caine.– Têm sempre alguém a vigiar o supermercado. Quatro tipos armados

sentados no telhado. É tudo.Caine assentiu com um movimento da cabeça. Mordeu o polegar, um

hábito antigo que não tinha perdido.– E os anormais?

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– Têm Dekka, Brianna e Taylor. E também Jack. Pode ser que tenham outros que possam usar, mas o Besouro não tem a certeza. Têm Lana, paracurar os feridos. E o Besouro pensa que também têm um miúdo capaz de disparar uma onda de calor.

– Como o Sam?– Não. Sam projecta chamas como um maçarico. Este miúdo é uma

espécie de microondas. Não se vêem chamas, nada disso. Só que de repente tens a cabeça a arder como se a tivesses numa frigideira.

– Quer dizer que as pessoas continuam a desenvolver poderes – obser-vou Caine. – E aqui?

Diana encolheu os ombros.– Quem sabe? Quem é sufi cientemente doido para ir contar ao Drake?

Lá em baixo, na cidade, um novo mutante é objecto de respeito e admira-ção. E cá em cima? Pode ser que lhe dêem cabo do canastro.

– Pois é – concordou Caine. – Foi um erro. Reprimir os anormais foi um erro. Precisamos deles.

– E para além dos novos possíveis moofs, os tipos do Sam ainda têm asmetralhadoras. E Sam. Talvez fosse bom não voltarmos a fazer nada estú-pido como atacá -los outra vez.

– Moofs?– É uma abreviatura para mutantes. Monstros mutantes – esclareceu

Diana, a encolher os ombros. – Moofs, muties, monstros. Não temos nada para comer, mas alcunhas não nos faltam.

A camisa de Caine estava nas costas de uma cadeira. Caine estendeu o braço para a agarrar, cambaleou e perdeu o equilíbrio. Diana agarrou -o. Caine olhou para a mão dela no seu braço e disse:

– Consigo andar.Levantou os olhos e viu a sua imagem refl ectida no espelho pendurado

por cima do aparador. Quase irreconhecível. Diana tinha razão. Estava pálido e tinha as maçãs do rosto mirradas. Os olhos pareciam demasiado grandes na cara esquelética e macilenta.

– Parece que já estás melhor. Voltaste a ser um idiota melindroso.– Manda cá o Besouro. O Besouro e o Drake. Quero falar com os dois.Diana não se mexeu.

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– Não me vais contar o que se passou enquanto estiveste no desertocom o Chefe da Alcateia?

– É melhor que não saibas.– Mas quero saber – insistiu Diana.– O que interessa é que estou recuperado – replicou Caine, com toda

a arrogância de que foi capaz.Diana assentiu. O gesto fez que o cabelo lhe caísse para a frente, numa

carícia ao rosto perfeito. Os seus olhos humedeceram-se. Mas os lábioscontinuaram contorcidos, numa manifestação de desagrado.

– Foi mau, Caine? O que signifi ca gaiófago?Caine encolheu os ombros.– Não faço ideia. Nunca ouvi essa palavra.Por que motivo lhe estava a mentir? Por que razão achava tão perigoso

que ela conhecesse a palavra?– Vai lá chamá -los – repetiu Caine, a despedi -la com um gesto da mão.

– Manda cá o Drake e o Besouro.– Por que não tens calma? Primeiro certifi ca -te de que estás real-

mente… ia a dizer «lúcido», mas talvez seja um exagero.– Sinto -me bem – reiterou Caine. – E tenho um plano.Sempre céptica, Diana olhou para ele, com a cabeça ligeiramente incli-

nada para um lado.– Um plano.– Há coisas que tenho de fazer – disse Caine que, sem saber porquê,

baixou os olhos, incapaz de afrontar o olhar da rapariga.– Caine, não faças isso – protestou ela. – O Sam deixou que viesses

embora sem te matar. Não o fará uma segunda vez.– Queres que entre num acordo com ele, é? Que entre em negocia-

ções?– Sim.– Pois é isso mesmo que tenciono fazer, Diana. Vou negociar. Mas pri-

meiro preciso de ter qualquer coisa para negociar. E sei exactamente o quehá -de ser.

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Astrid Ellison estava com Pete, o Pequenino no quintal das traseiras, onde as ervas cresciam livremente, quando Sam chegou com as notícias e com a lagarta. Peter estava a baloiçar -se. Mais propriamente, estava sentado no baloiço, e Astrid empurrava -o. O garoto parecia gostar.

Empurrar o baloiço praticamente sem ouvir uma palavra ou uma manifestação de alegria por parte do irmão era um trabalho monótono e enfadonho. Peter acabava de fazer cinco anos e era um autista profundo. Conseguia falar, mas em geral não o fazia. Se isso era possível, depois do advento da ZRJ ainda se tinha tornado mais introvertido. Talvez a culpa fosse dela, pois não estava a seguir a terapia dos exercícios inúteis e rotinei-ros que supostamente ajudavam os autistas a encarar a realidade.

É claro que Pete, o Pequenino tinha a sua própria realidade. E já tinhainfl uenciado a realidade dos outros nalguns aspectos importantes.

Aquele quintal não era de Astrid, tal como a casa não era a dela. Drake Merwin tinha -lhe pegado fogo. Mas se alguma coisa que não faltava em Perdido Beach eram casas. A maioria estava vazia. E embora muitas crianças continuassem a viver nas suas casas, para alguns a cama e o quarto estavam demasiado impregnados de recordações da família. Astrid já perdera a conta às vezes em que vira alguns miúdos que se dei-xavam abater e rompiam em soluços ao falarem na mãe a cozinhar, no pai a cortar a relva ou num irmão ou irmã mais velhos a tirarem -lhes o comando da televisão.

As crianças sentiam -se muito sós. A solidão, o medo e a tristeza eram presenças constantes na ZRJ. Por isso muitas delas viviam juntas, em comunidades de rapazes ou de raparigas.

Astrid partilhava a casa com Mary Terrafi no e o seu irmão mais novo, John; Sam era cada vez mais uma presença habitual. Ofi cialmente, Sam vivia num gabinete abandonado no edifício da Câmara Municipal, onde dormia num sofá, cozinhava num microondas e utilizava o que tinha sido uma antiga casa de banho pública. Mas era um espaço desolado e por mais de uma vez Astrid lhe tinha pedido que considerasse aquela casa como sua. Afi nal de contas, formavam uma espécie de família. E, pelo menos simbolicamente, eram a família mais importante da ZRJ, um pai e uma mãe substitutos para as crianças que não tinham quem as protegesse.

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Astrid ouviu Sam antes de este chegar. Perdido Beach sempre forauma pequena cidade amodorrada, mas agora era tão silenciosa como umaigreja. Sam atravessou a casa a chamar pelo nome dela de sala em sala.

– Sam – gritou ela em resposta, mas ele só ouviu quando abriu a portadas traseiras e pisou o alpendre.

Bastou -lhe um olhar para perceber que alguma coisa terrível tinhaacontecido. Sam não era bom a disfarçar os seus sentimentos, pelo menosem relação a ela.

– O que foi? – perguntou Astrid.Sam não respondeu, limitou -se a atravessar o espaço repleto de ervas

altas e a enlaçá -la. Astrid correspondeu e não insistiu, certa de que ele fala-ria assim que pudesse.

O rapaz escondeu a cara entre os cabelos dela. Astrid sentia -lhe a res-piração no pescoço e na orelha. Gostava que ele sentisse necessidade de aabraçar. Mas naquele enlace nada havia de romântico.

Por fi m, Sam libertou -a. Começou a empurrar o baloiço de Peter, comose precisasse de manter alguma actividade física.

– O E. Z. morreu – disse ele, sem qualquer preâmbulo. – Estava a dara volta aos campos, com o Edilio e o Albert. O E. Z. foi só para se distrairum bocado. Estás a ver, não havia qualquer razão para ele ir, mas pediu -mee eu disse que sim porque passo a vida a dizer às pessoas que não, e agoraestá morto.

Sam empurrava o baloiço com mais força do que Astrid. Peter quasecaiu de costas.

– Meu Deus! Como foi que isso aconteceu?– Vermes – respondeu Sam em tom soturno. – Uma espécie de vermes.

Ou cobras. Não sei. Trouxe um morto, que deixei em cima do balcão dacozinha. Pensei que pudesses… Nem sei bem o quê, mas tu és a especia-lista em mutações. Não é verdade?

Quando disse especialista esboçou um sorriso. Astrid não era espe-cialista em coisa alguma. Era apenas a única pessoa que se interessavaem analisar sistematicamente os acontecimentos que se desenrolavamna ZRJ.

– Continua a empurrá -lo, que ele gosta – disse ela, a referir -se ao irmão.

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Encontrou a criatura em cima do balcão da cozinha, metida num saco de plástico. Parecia mais uma cobra do que uma lagarta, mas de qualquer maneira não era uma cobra normal.

Apertou com cuidado o saco, para se certifi car de que estava morta. Abriu uma folha de papel encerado sobre o balcão de granito e despejou a lagarta. Tirou uma fi ta métrica da gaveta e fez os possíveis por acompanhar os contornos da criatura.

– Vinte e oito centímetros.Foi buscar a máquina fotográfi ca e tirou uma dúzia de fotografi as em

diversos ângulos. Depois pegou no pequeno monstro com um garfo e vol-tou a metê -lo no saco de plástico.

Descarregou as fotografi as para o computador e arrastou -as para uma pasta intitulada «Mutações -Fotografi as», onde já havia várias dezenas. Pássaros com garras e bicos estranhos. Cobras com asas curtas. Fotos pos-teriores evidenciavam outras cobras com asas maiores. Numa delas, obtida à distância, via -se uma cascavel do tamanho de um pitão pequeno, com asas grossas tão grandes como as de uma águia-careca.

Havia também uma fotografi a desfocada de um coiote com o dobro do tamanho de um animal normal. E um close -up da boca de um coiotemorto com uma língua estranhamente curta e arrepiante no seu aspecto humano. Para além de uma série de imagens grotescas de um gato fundido num livro.

Outras fotos mostravam crianças aparentemente normais, embora o rapaz a que chamavam Orc tivesse o aspecto de um monstro. Tinha uma imagem de Sam, a irradiar das mãos uma luz esverdeada. Astrid detestava a fotografi a por causa da expressão do rosto dele, muito triste ao posar para aquela demonstração.

Astrid abriu as fotos da lagarta e aumentou a imagem para ver melhor.Nesse momento entrou Pete, o Pequenino seguido por Sam.– Olha para aquela boca – disse Astrid, aterrada.A boca da lagarta parecia a de um tubarão. Era impossível contar o

número de dentes minúsculos. Mesmo morto, o verme parecia sorrir.– As lagartas não têm dentes – disse Astrid.– Não tinham dentes. Agora têm – corrigiu Sam.

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– Vês estas coisas salientes por todo o corpo? – perguntou Astrid, asemicerrar os olhos e a aumentar a imagem para ver melhor. – Parecem unsremos minúsculos. Como se fossem pernas, milhares delas.

– Entraram no corpo do E. Z., creio eu que pelas mãos. E furaram -lheos sapatos. Entraram -lhe pelo corpo.

Astrid estremeceu.– Aqueles dentes devem ser capazes de furar seja o que for. E as pernas

empurram -nas quando já se encontram dentro da vítima.– Há milhares delas naquele terreno. Quando o E. Z. entrou, elas

atacaram -no. Eu, o Edilio e o Albert não entrámos e elas não vieram atrásde nós.

– Uma questão de territorialidade? – perguntou Astrid, a franzir atesta. – Muito invulgar num animal primitivo. Em geral, a territorialidadeestá associada a formas de vida superiores. Os cães e os gatos têm um ter-ritório. As lagartas, não.

– Estás a encarar o assunto com muita calma – observou Sam num tomque roçava a acusação.

Astrid olhou para ele, pôs -lhe a mão no rosto e virou -o suavementepara si, para longe da horrorosa imagem.

– Não vieste cá para me ver aos gritos e a fugir e poderes confortar -mecom a tua coragem, pois não?

– Não – admitiu ele. – Desculpa, tens razão. Não vim falar com Astrid,a minha namorada. Vim falar com Astrid, o Génio.

Astrid não gostava da alcunha, mas tinha de aceitá -la. Conferia -lheum lugar especial na comunidade aterrorizada da ZRJ. Não tinha grandespoderes como Brianna, Dekka ou Sam. Tudo o que tinha era um cérebrodisciplinado e capaz de pensar.

– Vou dissecá -la para ver se fi co a saber mais qualquer coisa. Sentes -tebem?

– Claro. Por que não havia de estar? Agora sou só responsável por tre-zentos e trinta e um. E uma parte de mim até agradece, sempre é menosuma boca para alimentar.

Astrid aproximou -se e deu -lhe um beijo fugaz na boca.– Não queria estar no teu lugar. Mas és o único que temos.

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A piada valeu -lhe um sorriso amarelo de Sam.– De maneira que o melhor é fi car calado e enfrentar o problema, não é?– Não, não fi ques calado. Conta -me tudo. Tudo.Sam desviou o olhar, para evitar o dela.– Tudo? Então lá vai: queimei o corpo do E. Z. Queimei aquela porca-

ria que os bichos deixaram.– Estava morto, Sam. Que mais podias fazer? Deixar os restos para as

aves e para os coiotes?– É isso, eu sei – assentiu ele. – Mas o problema não é esse. O problema

é que quando ardeu cheirava a carne a assar e eu…Calou -se, incapaz de prosseguir. Astrid esperou que ele se refi zesse.– Estava ali a arder um miúdo morto, do sexto ano, e eu a sentir água

na boca.Astrid não teve difi culdade em imaginar a situação. Só de pensar em

carne fazia -a salivar.– É uma reacção física normal, Sam. Uma parte do cérebro que reage

automaticamente.– Pois é – replicou ele, não convencido.– Não podes andar por aí abatido só porque aconteceu uma coisa triste.

Se perdes o ânimo vais contagiar toda a gente.– Os miúdos não precisam da minha ajuda para se sentirem desesperados.– E vais deixar que te corte o cabelo – prosseguiu Astrid, a empurrá -lo

e a meter -lhe os dedos no cabelo.A intenção dela era desviar -lhe o pensamento dos acontecimentos trá-

gicos da manhã.– O quê?! – perguntou Sam, surpreendido pela súbita mudança de

assunto.– Pareces um fugitivo de uma banda dos anos 70. Para além disso, o

Edilio deixou -me cortar -lhe o cabelo.Sam deu -se ao luxo de um sorriso.– Pronto. Já percebi. Deve ser por isso que de vez em quando lhe chamo

Bart Simpson.– Estás a ver, os cabelos espetados? – prosseguiu, em resposta a um

olhar dela.

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Tentou beijá -la, mas ela esquivou -se.– És tão espertinho, não és? E se eu te rapasse a cabeça? Ou se a

depilasse com cera? Se continuas a insultar -me as pessoas vão chamar -teHomer Simpson e não Bart. E depois veríamos se a Taylor continuava afazer -te olhinhos.

– Ela não me faz olhinhos.– Pois é. Não faz.E empurrou -o, com um gesto brincalhão.– Seja como for, pode ser que fi que bem só com dois cabelos. Olhou para a sua imagem refl ectida no painel frontal do microondas.– A palavra «narcisista» diz -te alguma coisa?Sam riu. Fez um movimento para a agarrar, mas notou que Peter,

o Pequenino não tirava os olhos dele.– Então como vai Peter, o Pequenino?Astrid olhou para o irmão, encavalitado num banco alto da cozinha e a

observar os movimentos de Sam. Pelo menos olhava nessa direcção, nuncase tinha a certeza daquilo que estava a ver.

Gostaria de ter falado a Sam no que estava a acontecer a Peter, no queele começara a fazer. Mas Sam já tinha bastante com que se inquietar.E por um instante – um raro instante – não parecia preocupado com o quequer que fosse.

Mais tarde teria tempo de lhe contar que a pessoa mais poderosa daZRJ parecia que… qual seria a palavra adequada para descrever o que sepassava com Peter?

Estava a perder a razão? Não, não era bem isso.Não havia uma expressão adequada para o que estava a acontecer a

Peter. De qualquer maneira, o momento não era oportuno.– Está bom – mentiu Astrid. – Sabes como é o Petey.