MICHELLY NEZILDA CARDOSO DESAFIOS DA SOCIEDADE CIVIL … · e das relações entre Estado e...
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MICHELLY NEZILDA CARDOSO
DESAFIOS DA SOCIEDADE CIVIL PARA A CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS
PÚBLICOS EM FLORIANÓPOLIS:
CONFIGURAÇÃO, OBSTÁCULOS E PERSPECTIVAS DA EXPERIÊNCIA DO
FÓRUM DA CIDADE.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Centro Sócio-Econômico da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito para obtenção do título de Mestre em Serviço Social.
Orientador: Prof. Dr. Raúl Burgos
Florianópolis, SC, Março de 2006.
MICHELLY NEZILDA CARDOSO
DESAFIOS DA SOCIEDADE CIVIL PARA A CONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS
PÚBLICOS EM FLORIANÓPOLIS:
CONFIGURAÇÃO, OBSTÁCULOS E PERSPECTIVAS DA EXPERIÊNCIA DO
FÓRUM DA CIDADE.
Dissertação aprovada, como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social –
Mestrado, da Universidade Federal de Santa Catarina.
Florianópolis, 31 de março de 2006.
_______________________________________________ Profª. Dra. Catarina Maria Schmikler
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
Banca Examinadora:
_______________________________________________ Prof. Dr. Raúl Burgos
Departamento de Serviço Social UFSC Orientador
________________________________________________
Profª. Dra. Lígia Helena Hahn. Lüchmann Banca Examinadora
___________________________________________________ Profª. Dra. Edaléa Maria Ribeiro
Banca Examinadora
AGRADECIMENTOS
A Deus, por me mostrar o caminho nos momentos de dúvida;
Em especial, à minha mãe e ao meu esposo, pela compreensão e pelo amor;
Ao meu orientador, pela persistência e sabedoria.
RESUMO
Este estudo tem como objetivo destacar a configuração, os obstáculos e as perspectivas da experiência do Fórum da Cidade de Florianópolis, enquanto espaço público alternativo, criado no ano de 2001 pelo movimento comunitário da cidade e cujo processo ainda se encontra em andamento. A investigação desta experiência contribuiu para demonstrar a complexidade e a contraditoriedade do espaço público e das relações entre Estado e sociedade civil no Brasil. Com base nas entrevistas realizadas, tentou-se compreender a experiência do Fórum da Cidade a partir do histórico político-organizativo da cidade e salientar as dificuldades e possibilidades encontradas no processo, tanto no que diz respeito à sua dinâmica interna, quanto à relação com o poder público municipal. O estudo da experiência, apesar de ressaltar os conflitos e as contradições, buscou contribuir com a demonstração da capacidade organizativa da sociedade civil, bem como as possibilidades de intervenção e renovação dos espaços públicos. Palavras-chave: espaço público, participação, movimento comunitário, Fórum da Cidade de Florianópolis.
ABSTRACT
The purpose of this study was to identify the configuration of, obstacles to and perspectives on the experience of the Fórum da Cidade (City Forum) of Florianópolis. The Forum is an alternative public space that is still functioning. The investigation of this experience revealed the complexity and contradictory nature of public space and of the relationships between the State and civil society in Brazil. Based on the interviews conducted, I tried to understand the experience of the Fórum da Cidade, in terms of the historic, political-organization of the city. The study highlights the difficulties and possibilities found in the Forum’s activities, concerning its internal dynamic, as well as its relationship with the municipal government. The study of the experience, despite the fact that it emphasizes conflicts and contradictions, sought to demonstrate the organizational capacity of civil society and the possibilities for intervention in and renovation of public spaces. Key words: Public space, community movement, Fórum da Cidade of Florianópolis.
LISTA DE ABREVIATURAS
AIH - Áreas de Incentivo à Hotelaria
AMC-6 - Área Mista Comercial – 6
CAPROM – Centro de Apoio e Promoção ao Migrante
CASAN – Companhia de Águas e Saneamento
CEB – Comunidade Eclesial de Base
CECCA – Centro de Estudos Cultura e Cidadania
CEDEP – Centro de Educação e Evangelização Popular
CNPJ – Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica
CNUMAD – Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento
COMCAP – Companhia de Melhoramentos da Capital
CONDEMA – Conselho de Meio Ambiente
EPAGRI – Empresa de Pesquisa em Tecnologia e Extensão Rural
ESPLAN - Escritório Catarinense de Planejamento Integrado
FAMESC – Federação de Associações de Moradores do Estado de Santa Catarina
FEEC – Federação das Entidades Ecologistas Catarinenses
FLORAM – Fundação Municipal do Meio Ambiente
FNRU – Fórum Nacional da Reforma Urbana
FUCADESC – Fundação Catarinense de Desenvolvimento da Comunidade
IPUF – Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis
MEL – Movimento Ecológico Livre
MUCOF - Movimento União Comunitária de Florianópolis
NESSOP – Núcleo de Estudos em Serviço Social e Organização Popular
ONG – Organização Não-Governamental
PCdoB – Partido Comunista do Brasil
PDS – Partido Democrático Social
PFL – Partido da Frente Liberal
8
PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PMN – Partido da Mobilização Nacional
PND – Plano Nacional de Desenvolvimento
PP – Partido Progressista
PPS – Partido Popular Socialista
PSB – Partido Socialista Brasileiro
PSDB – Partido da Social-Democracia Brasileira
PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado
PT – Partido dos Trabalhadores
PTB - Partido Trabalhista Brasileiro
SAC – Supervisão de Ação Comunitária
SUSP – Secretaria de Urbanismo e Segurança Pública
UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina
UFECO – União Florianopolitana de Entidades Comunitárias
UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina
UNISUL – Universidade do Sul de Santa Catarina
UNIVALI – Universidade do Vale do Itajaí
LISTA DE QUADROS
Quadro 01 - Temáticas dos grupos de trabalho do I Fórum da Cidade.....................55
Quadro 02 - Seminários Regionais de mobilização para o II Fórum da Cidade........58
Quadro 03 - Resumo dos eventos do III Fórum da Cidade. ......................................62
Quadro 04 - Candidatos participantes do III Fórum da Cidade - Por partido político 63
Quadro 05 - Participação geral no III Fórum da Cidade – Por região........................64
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................13
2 SURGIMENTO E ORGANIZAÇÃO DO MOVIMENTO COMUNITÁRIO EM
FLORIANÓPOLIS.....................................................................................................18
2.1 FRAGMENTOS SOBRE A HISTÓRIA DE FLORIANÓPOLIS..........................18
2.2 O SURGIMENTO DOS CONSELHOS COMUNITÁRIOS EM FLORIANÓPOLIS
.........................................................................................................................24
2.3 A FORMAÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES DE MORADORES E A CRIAÇÃO DA
UNIÃO FLORIANOPOLITANA DE ENTIDADES COMUNITÁRIAS .........................25
2.4 ANOS 1990: EXPERIÊNCIAS DE PARTICIPAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES
COMUNITÁRIAS NA ESFERA POLÍTICA MUNICIPAL...........................................30
2.5 ARTICULAÇÕES EM TORNO DO PLANO DIRETOR DE FLORIANÓPOLIS.34
2.6 A INCORPORAÇÃO DA TEMÁTICA AMBIENTAL NO MOVIMENTO
COMUNITÁRIO........................................................................................................36
3 SOCIEDADE CIVIL E ESPAÇO PÚBLICO.........................................................39
3.1 SOCIEDADE CIVIL E ESPAÇO PÚBLICO: CONFIGURAÇÃO BRASILEIRA .39
3.2 SOCIEDADE CIVIL E ESPAÇO PÚBLICO: ELEMENTOS DA ABORDAGEM
TEÓRICO-DISCURSIVA..........................................................................................42
3.3 DINÂMICA DA ESFERA PÚBLICA BRASILEIRA: LIMITES TEÓRICO-
POLÍTICOS E COMPLEMENTAÇÕES AO PARADIGMA TEÓRICO-DISCURSIVO46
4 O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DO FÓRUM DA CIDADE DE
FLORIANÓPOLIS.....................................................................................................51
4.1 O ESPAÇO ARTICULADOR............................................................................51
4.2 A QUESTÃO URBANA E O ESTATUTO DA CIDADE: PARA SITUAR A
TEMÁTICA ...............................................................................................................53
4.3 O I FÓRUM DA CIDADE – UM OLHAR DO MOVIMENTO SÓCIO-
COMUNITÁRIO........................................................................................................54
11
4.4 O II FÓRUM DA CIDADE – CONSTRUINDO MOVIMENTOS VISANDO UMA
GESTÃO DEMOCRÁTICA E UM PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO E
SUSTENTÁVEL PARA A CIDADE...........................................................................58
4.5 O III FÓRUM DA CIDADE – PELO DIREITO À CIDADE QUE QUEREMOS ..61
4.6 ANO DE 2005: O ENCONTRO DE PLANEJAMENTO, OS NOVOS SUJEITOS
E A NOVA RELAÇÃO COM O PODER PÚBLICO MUNICIPAL. .............................65
5 FÓRUM DA CIDADE DE FLORIANÓPOLIS – ABORDANDO A
COMPLEXIDADE DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE UM ESPAÇO PÚBLICO
ALTERNATIVO.........................................................................................................68
5.1 O FÓRUM DA CIDADE NA TRAJETÓRIA DE ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DO
MOVIMENTO COMUNITÁRIO DE FLORIANÓPOLIS .............................................69
5.2 A DINÂMICA INTERNA....................................................................................71
5.3 AS RELAÇÕES COM OS GOVERNOS E OS PARTIDOS POLÍTICOS..........79
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................85
REFERÊNCIAS.........................................................................................................89
1 INTRODUÇÃO
Desde a década de 1970, no Brasil, emergem inúmeras organizações da
sociedade civil, fato que vem refletir, por um lado, um descontentamento e o
enfrentamento à política de fechamento do Estado, e, por outro lado, o
amadurecimento da população em termos de cultura política e cidadania. Lutando
pela conquista e manutenção de sua autonomia, estas organizações vêm contribuir
com a ampliação da esfera pública para além do espaço estatal.
Diante das diferenças sociais e da pluralidade dos sujeitos que compõem a
realidade social, as esferas públicas tradicionais não dão conta de abranger
tamanha diversidade de questões. Além disso, muitas vezes estes espaços são alvo
de manipulação, regidos por relações de subordinação e dominação.
A sociedade brasileira é rica em exemplos de espaços públicos que surgiram
da iniciativa da sociedade civil (os chamados espaços públicos alternativos), que
articulam grupos antes excluídos da esfera pública, conquistando legitimidade e
novos direitos. São exemplos disso, os Fóruns de Defesa da Criança e do
Adolescente, que contribuíram com a criação do Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA, e o Fórum Nacional da Reforma Urbana que assessorou a
elaboração do Estatuto da Cidade.
Estes Fóruns articulam movimentos sociais, ONG´s, entidades acadêmicas,
entre outros sujeitos, e caracterizam-se pela autonomia em relação ao Estado. É
justamente nestes espaços que se fortalecem os ideais democráticos, contribuindo
para a construção de uma cultura participativa no interior da sociedade civil.
Com a descentralização político-administrativa, a partir da Constituição de
1988, o plano municipal passou a ser terreno fértil para iniciativas democratizantes
no que diz respeito às relações entre Estado e sociedade civil. Para o seu estudo,
Costa (2002) distingue dois modelos teóricos de esferas públicas: o que a vê como
mercado e o que enfatiza seu mérito discursivo.
14
Enquanto mercado, a esfera pública caracteriza-se pela disputa de poder,
impedindo dessa forma, a incorporação de temas que possam ameaçar os poderes
estabelecidos. Baseando-se em Habermas, o segundo modelo teórico apontado por
Costa (2002) enfatiza o mérito discursivo da esfera pública. Nesta perspectiva, a
sociedade civil possui papel importante de publicização de questões.
Ainda de acordo com Costa (2002) para muitos cientistas sociais, no Brasil a
esfera pública constitui-se como mercado. Numa sociedade marcada por
desigualdades sociais, econômicas, culturais e políticas, a esfera pública apresenta-
se, portanto, atravessada por interesses particulares, disputas de poder, relações de
dominação, caracterizando-se como espaço de conflitos.
Considera-se o aspecto principal deste trabalho a análise do papel da
sociedade civil como problematizadora de questões, na busca de canalizá-las para a
esfera pública tradicional, e com o objetivo participar das decisões políticas.
A análise dos diferentes espaços públicos criados pela sociedade civil
evidencia a multiplicidade social e a capacidade organizativa de luta defensiva e
ofensiva contra práticas autoritárias, clientelistas e privatistas. No entanto, evidencia
também, as dificuldades do processo de construção democrática.
Compreendendo a importância destes espaços para o fortalecimento da
participação da sociedade civil nos espaços públicos mais amplos, tem-se o Fórum
da Cidade de Florianópolis como sujeito desta pesquisa. Criado no ano de 2001, a
organização é formada por lideranças e militantes de organizações sócio-
comunitárias e ambientais, alunos e professores da UFSC, entre outros sujeitos
interessados pela temática da gestão democrática da cidade.
Partindo dos pressupostos apresentados anteriormente, o presente trabalho
pretende responder: Como se configurou a experiência de articulação de
organizações sócio-comunitárias denominada Fórum da Cidade de Florianópolis?
Quais os obstáculos e perspectivas enfrentados, enquanto espaço público
alternativo? Quais são os conflitos que se apresentam neste processo participativo?
Quais as conquistas? Qual é o seu significado no processo histórico-político da
cidade?
Está pesquisa caracteriza-se como qualitativa, tratando-se de uma
abordagem descritiva da experiência de articulação do Fórum da Cidade de
Florianópolis.
15
Para Minayo (2000, p. 21):
A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa nas Ciências Sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificável, ou seja, ela trabalha com o universo dos significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos os quais não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.
A construção deste trabalho se dará através das pesquisas bibliográfica,
documental e empírica. A pesquisa bibliográfica buscou resgatar alguns estudos
sobre sociedade civil e esfera pública em artigos, livros e dissertações. A pesquisa
documental baseou-se nas atas de reuniões, relatórios de eventos, folders, jornais e
cartas redigidas pelos participantes do Fórum da Cidade. No que se refere à
pesquisa empírica, foram realizadas oito entrevistas semi-estruturadas, no período
de setembro de 2005 à março de 2006, com alguns dos participantes (05) e ex-
participantes (03) do Fórum da Cidade de Florianópolis.
Quanto aos critérios de seleção dos entrevistados, em primeiro lugar,
buscando captar as diferentes opiniões e experiências acerca da participação no
Fórum da Cidade, determinou-se a escolha a partir dos seguintes critérios: 1.
militantes afastados da organização; 2. militantes que participavam ativamente
durante o período de realização da pesquisa empírica. Neste segundo ponto ainda,
garantiu-se a presença na amostra de militantes que participaram durante toda a
trajetória do Fórum da Cidade, bem como àqueles que iniciaram uma participação
mais atuante nos últimos dois anos da organização. A partir desses critérios, a
escolha dos entrevistados foi de forma acidental: os primeiros a responder a nosso
pedido de entrevista.
A entrevista foi escolhida como instrumento de pesquisa devido à sua
capacidade de captar questões complexas de forma mais aprofundada.
(KERLINGER, 1980). Sua forma semi-estruturada foi escolhida por ser mais
adequada ao estudo da experiência específica do Fórum da Cidade, ou seja,
indicando uma direção de interesse da pesquisa, mas possibilitando a liberdade para
a exploração de outras questões que surgirem no decorrer do processo de
entrevista.
A análise das entrevistas foi realizada a partir de um conjunto de categorias
relevantes surgidas no processo e na fala dos entrevistados.
16
A investigação da experiência do Fórum da Cidade de Florianópolis objetiva
contribuir com o estudo das dificuldades e possibilidades encontradas pela
sociedade civil na tentativa de ampliação do espaço de discussão e participação nas
decisões políticas sobre a cidade.
O Fórum da Cidade caracteriza-se, segundo a própria definição, como um
espaço de resistência popular ao domínio de interesses privados na definição do
espaço público, surgido a partir da articulação entre lideranças das diversas
organizações (comunitárias, ambientalistas e organizações não-governamentais)
existentes na cidade. O Fórum da Cidade constitui-se como um espaço que tem
conseguido articular interesses diversos na tentativa de se construir um diálogo com
o poder público para a construção/escolha dos rumos a serem tomados pela cidade.
O objetivo da experiência é possibilitar o fortalecimento dos interesses populares na
construção da cidade, potencializando o surgimento de um movimento contra-
hegemônico que se imponha frente aos interesses econômicos e políticos
predatórios dominantes.
Diante disso, a análise de como se configura, quais os obstáculos e
perspectivas do Fórum da Cidade, enquanto espaço público alternativo, se coloca
como contribuição aos estudos sobre a constituição dos espaços públicos,
evidenciando a diversidade e a complexidade da sociedade civil.
Justifica-se sua relevância teórica e política, no sentido de destacar
experiências que visem a ampliação dos espaços públicos e que potencializem a
construção e o fortalecimento de uma cultura política que priorize o interesse público
construído de forma coletiva e participativa.
Para isso, o trabalho está organizado em quatro capítulos. O primeiro capítulo
faz um resgate do contexto histórico, desde o surgimento das associações de
moradores e conselhos comunitários, bem como das tentativas anteriores de criação
por parte da sociedade civil de um fórum de discussão dos problemas globais na
cidade de Florianópolis.
No segundo capítulo encontra-se o referencial teórico, focalizando a
discussão sobre sociedade civil e espaços públicos para compreensão da
experiência do Fórum da Cidade.
Cabe ressaltar, novamente aqui, as dificuldades encontradas no
confrontamento entre o referencial teórico e a realidade brasileira de extrema
17
desigualdade. A transposição de referenciais teóricos construídos em outros
contextos para os países latino-americanos é uma questão complexa e que deve ser
avaliada (COSTA, 2002). Como partir de relações de respeito e igualdade entre os
diferentes para analisar os espaços públicos existentes no Brasil? E, até mesmo:
Como pensar a democracia numa sociedade tão desigual? Como pensar a
participação efetiva dos segmentos excluídos? Coube destacar, então, os cuidados
que devem ser levados em conta para analisar a realidade brasileira, tendo como
base os referenciais teóricos existentes.
No terceiro capítulo apresenta-se em linhas gerais o histórico de surgimento
do Fórum da Cidade de Florianópolis, sujeitos envolvidos, principais eventos,
objetivos, conflitos, relação com o Poder Público Municipal, bem como a origem de
sua temática central de discussão e principal instrumento de luta: o Estatuto da
Cidade.
No quarto e último capítulo, realiza-se um diagnóstico inicial das principais
categorias apontadas nas entrevistas realizadas com os participantes e ex-
participantes do Fórum da Cidade, com o objetivo de evidenciar e discutir alguns dos
limites e possibilidades da experiência enquanto espaço público alternativo.
2 SURGIMENTO E ORGANIZAÇÃO DO MOVIMENTO COMUNITÁRIO EM
FLORIANÓPOLIS
O objetivo deste capítulo é descrever, brevemente, o histórico do movimento
comunitário de Florianópolis, destacando os aspectos diferenciais no que diz
respeito ao seu surgimento, e as tentativas de unificação das entidades numa
organização municipal. Para isso, considera-se movimento comunitário:
[...] o conjunto de organizações (Associações de Moradores, Conselhos Comunitários, etc...) que visam representar os interesses dos moradores de sua localidade, bairro ou região. Trata-se de um tipo de associativismo que apresenta uma especificidade, qual seja, a articulação e organização de moradores tendo em vista discutir e demandar melhorias urbanas. O elemento de identificação – e diferenciação frente a outros movimentos sociais – é, portanto, o compartilhamento do local de moradia (ser morador do bairro, da região, município) (LÜCHMANN, et al; in SHERER-WARREN; CHAVES, 2004, p. 58)
Para um melhor entendimento da dinâmica associativa da cidade, cabe
contextualizar alguns aspectos históricos sobre a formação e a evolução de
Florianópolis.
2.1 FRAGMENTOS SOBRE A HISTÓRIA DE FLORIANÓPOLIS
Considerar-se-á neste trabalho alguns fatos importantes na evolução de
Florianópolis, os quais determinaram seu tipo de desenvolvimento.
A ilha de Santa Catarina teve sua primeira tentativa significativa de
colonização no século XVII, por Francisco Dias Velho, que fundou o povoado de
Nossa Senhora do Desterro. Nos séculos XVII e XVIII, a localização estratégica fez
da Ilha um ponto de movimentação dos navios com destino ao Pacífico, tornando-se
alvo de disputa entre os interesses de Portugal e Espanha (FRANZONI, 1993).
19
A fim de consolidar seu domínio e colonizar a Ilha, a coroa portuguesa
determinou a vinda de famílias açorianas e madeirenses, cerca de 5.000 pessoas,
que fundaram as chamadas freguesias (pequenas povoações) (FRANZONI, 1993).
“Essa imigração açoriana deixou conseqüências culturais fortes, evidenciadas na
paisagem, na alimentação, nas edificações, nas atividades cotidianas, nos traços
físicos e no comportamento do povo ilhéu” (BIER, 2005, p. 80).
Num primeiro período, havia dois tipos básicos de economia local: o auto-
suficiente (doméstico/comunitário), “que abrangia a maior parte da população”, e o
monetário/urbano “(restrito aos poucos funcionários da Capitania, aos militares,
alguns comerciantes e artífices)” (CECCA, 1996, p. 198).
Com o passar do tempo, até meados do século XX, o circuito monetário
passou a predominar no centro urbano da capital, contrastando com o circuito não-
monetário, predominante nas freguesias do interior da ilha, onde residiam os
imigrantes açorianos.
No circuito monetário pode-se distinguir vários ciclos econômicos, os quais muitas vezes coexistiram (ou coexistem) temporalmente: o da baleia, o militar, o portuário, o administrativo, o comercial, o cafeeiro (e atualmente o turístico e da construção civil) (CECCA, 1996, p. 198).
Cada um dos ciclos do circuito monetário produz impactos na cultura dos
ilhéus, gerando uma marginalização do seu modo de vida. “Cada ciclo destes tem
um grande impacto no crescimento da cidade, propiciando um acúmulo gradual de
alterações” (CECCA, 1996, p. 198).
Traço predominante de Florianópolis nesta época era seu espírito
comunitário:
A produção material da vida do ilhéu se fazia, além do uso dos espaços comunais, através de relações de reciprocidade provenientes das atividades pesqueiras e da prática do mutirão característico do trabalho no engenho, bem como das ações de cooperação existentes para construir suas casas, igrejas e engenhos (CECCA, 1996, p. 202).
Em 1894, Desterro passou a chamar-se Florianópolis após a vitória dos
republicanos no episódio da Revolução Federalista. O movimento teve sua origem
no Rio Grande do Sul e estendeu-se para Santa Catarina, onde os revoltosos
“declararam Desterro capital do Estado separado da União enquanto o marechal
Floriano Peixoto se achasse no exercício da presidência da República” (CECCA,
20
1996, p. 101). Os revoltosos foram vencidos pelos republicanos e Desterro passou a
chamar-se Florianópolis, em homenagem a Floriano Peixoto.
Entre o final do século XIX e o início do século XX, observa-se a decadência
da economia ilhoa. “As razões seriam a baixa qualidade das terras, o confisco de
gêneros alimentícios para as fortificações militares, a obrigatoriedade do serviço
militar para os lavradores (sua dupla condição de soldado-colono) e a partilha de
lotes muito pequenos” (CECCA, 1996, p. 206).
O início do século XX já aponta os rumos que seriam tomados pela cidade. O
porto de Desterro já não era tão importante, pois devido ao crescimento do
comércio, as relações se davam através das rodovias, ligando a cidade ao interior
do estado, onde se concentravam os centros produtores. O crescimento do setor
público e os investimentos estaduais e federais determinaram as características da
cidade Nos primeiros vinte anos deste século, Florianópolis já apresentava em seu perímetro urbano as características das modernas cidades brasileiras. No entanto, a partir da década de 30, o município passa a sofrer influências de políticas estaduais e federais, cujos impactos provocaram alterações significativas na vida da população local, expandindo o desenho urbano (e seus problemas) e definindo um novo perfil populacional. A Revolução de 30, trouxe o fortalecimento do comércio (CECCA, 1996, p. 102).
De acordo com o CECCA (1996) é com a construção da Ponte Hercílio Luz
que se modifica profundamente a estrutura da cidade. “Este processo se acelera
com a implementação da UFSC no início dos anos 60, a eletrificação da zona rural
da Ilha a partir de 1964 e a pavimentação asfáltica da BR-101 (primeiro passo rumo
à internacionalização do espaço local)” (CECCA, 1996, p. 210).
O processo de desestruturação da economia local auto-suficiente expulsa os
pobres para regiões como os morros, o Continente e os municípios vizinhos. O
desenvolvimento da pesca industrial inviabilizou a pesca artesanal, em virtude da
escassez dos recursos marinhos resultante para esta última. Porém, mais
recentemente (a partir de 1960) que se acelera o desmonte do modo de vida ilhéu:
O ímpeto modernizante em Santa Catarina se acentua com os ventos desenvolvimentistas que sopraram vigorosamente no país no final dos anos 50. Esta preocupação sistemática com o progresso traduziu-se no Plano de Obras e Equipamentos (1956-1960), na realização do Seminário Sócio-Econômico, em 1959, e na implantação do Gabinete de Planejamento de Metas do Governo, em 1961. Inicia assim a política de desenvolvimento em Santa Catarina. Nesta perspectiva inserem-se os dois Planos Diretores de Florianópolis, aprovados em 1954 e 1976. (CECCA, 1996, p. 211).
21
A construção civil também se expande na década de 1970, trazendo a
verticalização à Ilha. A conurbação entre os municípios vizinhos estabelece a
seguinte divisão: São José – área industrial; Florianópolis – setor de serviços;
Biguaçu e Palhoça – atividades primárias. (CECCA, 1996). Florianópolis teve um crescimento vertiginoso nos últimos trinta anos, com sua população crescendo 161% entre 1960 e 1991 (passando de aprazíveis 97.800 habitantes para 254.941). Este fenômeno ocorre ainda mais intensamente em toda a área conurbada de Florianópolis, onde se registra no mesmo período um aumento populacional de 228% (de 151.000 para 497.000 habitantes). (CECCA, 1996, p. 212)
A condição de capital do Estado, a transferência de empresas estatais, como
a sede da Eletrosul, na década de 1970, a expansão da Universidade Federal de
Santa Catarina e a crescente concentração de servidores públicos em Florianópolis,
consolida sua condição econômica terciária. (CECCA, 1996).
O ingresso de Florianópolis para o mundo do turismo se dá na década de
1970.
O despertar para o turismo acontece no bojo do processo de “planejar o desenvolvimento” dos anos 70, quando os planos governamentais vislumbram a possibilidade de explorar o potencial turístico de Santa Catarina e, em particular, de Florianópolis. A partir de então gera-se uma política pública de desenvolvimento turístico, na qual o Estado passa a garantir a implantação da infra-estrutura local necessária para a expansão desta atividade. [...]. Nos anos 80 ocorre a consolidação do turismo – não apenas como um dos, mas como o fator realizador da aspiração ao desenvolvimento de Florianópolis. (CECCA, 1996, p. 213-214).
As campanhas publicitárias, nesta época, já divulgam Florianópolis como
“Capital Turística do MERCOSUL”. (CECCA, 1996, p. 213-214).
É na década de 1980, mais precisamente a partir de 1989 que intensificam-se
os esforços por parte da Prefeitura Municipal em transformar a cidade numa
“moderna capital turística internacional”.
Nesta concepção, o “progresso” vinha acompanhado da idéia de limpeza de tudo e de todos que pudessem significar sinais de “atraso”. Assim desencadeou-se, por parte da prefeitura, uma série de ações para “limpar” a capital. Foram promovidas, de uma só vez, inúmeras tentativas de despejos nas localidades de terras públicas ocupadas pelos migrantes pobres mais recentes. No início do segundo ano, a administração retirou o depósito de lixo municipal (aterro sanitário) da Ilha, transferindo-o para um município vizinho. Também com o objetivo de “varrer” o crime da capital, a prefeitura obteve ajuda do governo do Estado, que realizou vários investimentos na polícia militar local. Além disso, para “limpar” os sinais de atraso, desencadeou-se a perseguição policial contra a “farra do boi”, expressão cultural tradicional da região, que passou a ser tratada com mais veemência neste período, como uma “manifestação de barbárie”, virando
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posteriormente, também ela, objeto de consumo e espetáculo (o “mangueirão)” (CECCA, 1996, p. 183).
A predominância da exploração turística em detrimento de outras atividades
econômica acaba por fragilizar os períodos fora das temporadas. Além disso, a
intensificação deste processo gera choque cultural.
O turismo representa um “choque”, é algo que “sufoca”, que tira a “essência”,
a “privacidade”, constituindo-se num “elemento estranho” aos costumes dos
moradores da localidade, atuando como indutor-desagregador das atividades
tradicionais – os hábitos sociais se volatizam “junto com o desaparecimento das
condições materiais a que se associavam” (CECCA, 1996, p. 216).
Em algumas áreas como Jurerê Internacional, Costão do Santinho, entre
outros, o turismo visa atender a demanda apenas das classes média e alta,
caracterizando-se como predatório, colocando o interesse privado sobre o interesse
coletivo e a preservação da natureza da Ilha, o que fica claro em práticas como a
remoção de dunas, cortes em encostas de morros, etc. Áreas anteriormente
consideradas como turísticas, já foram descaracterizadas devido aos impactos
sócio-ambientais (como Cacupé, Santo Antônio e Sambaqui) (CECCA, 1996).
Além disso, as promessas de geração de emprego não atendem as
necessidades da população e a expectativa dos imigrantes
Observa-se uma polarização social no usufruto do turismo, pois os seus benefícios não atingem a todos da comunidade. Sem a alternativa de acesso à terra e vivendo numa situação de subemprego sazonal característica de monocultura, a população nativa vai inchando a periferia miserável da capital, somando-se ao fluxo migratório advindo de outras regiões (CECCA, 1996, p. 218).
Apesar de todos os indicativos de destruição da qualidade de vida e das
riquezas naturais da Ilha, acabando, portanto, com o seu próprio potencial turístico,
em prol do “implacável” interesse privado,
[...] a tendência que se impõe é a de manter a estratégia expansionista da capital (e de seu aglomerado urbano, hoje a região de maior urbanização de Santa Catarina) e tentar “pegar o trem da história”, apostando todas as fichas no turismo (tendo ainda um pólo de alta tecnologia como atividade complementar). Nesta perspectiva de crescimento sem limites, onde o desenvolvimento da cidade é entregue à “mão invisível” do mercado, insere-se a manutenção da Capital na Ilha de Santa Catarina (o que implica continuar privilegiando-a na aplicação dos recursos públicos estaduais e federais em detrimento do interior desassistido – como a construção da quarta ponte, etc.); a prioridade ao transporte individual, com a conseqüente duplicação das rodovias e continuidade-ampliação dos aterros, aeroporto,
23
etc.; e medidas para fortalecer e ampliar o setor turístico na Ilha. (CECCA, 1996, p. 224).
A identidade e o equilíbrio sócio-ambiental da Ilha ficaram submetidos aos
interesses do capital privado. A luta pela modificação desta realidade ultrapassa os
limites e as forças locais. No entanto,
Os mecanismos participativos no nível do poder local “estão transformando profundamente os próprios conceitos de cidadania e desenvolvimento”. A perspectiva do “poder local” (“capacidade de auto-transformação econômica e social”, segundo Dowbor) não é mais uma panacéia, mas deve atuar com outras transformações correlatas. Esta capacidade depende, fundamentalmente, da emergência de uma ação cidadã, como sugere Armando Lisboa; do surgimento de um espaço público comunitário regido não por uma compreensão de cidadania tutelada ou assistida, mas de cidadania emancipada, diz Pedro Demo; da reforma do “Estado burocrático, corporativo e monopolístico, em favor de um Estado permeado pelas iniciativas da sociedade civil”, completa Tarso Genro. (CECCA, 1996, p. 229).
Essa contextualização é importante para que se possa entender a dinâmica
associativa da cidade. No decorrer do tempo, surgia nos moradores (nativos e
imigrantes) a consciência da importância da participação da população na escolha
dos rumos a serem tomados pela cidade.
Conforme descrição a seguir percebe-se que inicialmente as comunidades se
organizam de forma individual, preocupando-se com questões sociais mais
imediatas e inerentes à sua realidade local. Com o passar dos anos e o desenrolar
do tipo de desenvolvimento adotado para Florianópolis, vai se percebendo a
necessidade de unificação para o fortalecimento do movimento em prol da luta pela
qualidade de vida e da preservação da ilha como um todo.
Apesar de algumas dessas experiências serem marcadas por processos
manipulatórios, o desenrolar dos fatos vai contribuindo para o amadurecimento
político-participativo dos diferentes atores e evidencia suas reais intenções. O
processo de construção da participação não é algo linear e necessita de revisão e
amadurecimento constante, principalmente com base nos fatos já ocorridos na
história. O conhecimento do histórico associativo da cidade representa grande
importância para a compreensão da formação de novas experiências participativas.
24
2.2 O SURGIMENTO DOS CONSELHOS COMUNITÁRIOS EM FLORIANÓPOLIS
As organizações de moradores de Florianópolis surgiram a partir do governo
federal de Ernesto Geisel, através do Programa Nacional de Centros Sociais
Urbanos (1975), que se inseria nas estratégias do II Plano Nacional de
Desenvolvimento. Entre os objetivos do II PND, estava a realização de políticas
redistributivas, as quais dariam legitimidade ao governo. Em Santa Catarina o
governador Antônio Carlos Konder Reis (1975-1978), assina um decreto, no ano de
1977, tratando “da criação e funcionamento dos conselhos comunitários no Estado
de Santa Catarina”. (MÜLLER, 1992, p. 28).
No mesmo ano, o governador cria a Supervisão de Ação Comunitária (SAC),
responsável pelo Programa Estadual de Estímulo e Apoio à Criação e
Funcionamento dos Conselhos Comunitários que passa, a partir de 1979 no governo
de Jorge Bornhausen (1979-1982), para a responsabilidade da Fundação
Catarinense de Desenvolvimento da Comunidade (FUCADESC). O Programa
permitia também o controle da organização da população.
O conselho comunitário era concebido como uma entidade de personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, cuja estrutura e funcionamento deveria se adequar a um estatuto-padrão. Em 1979, no entanto, outro decreto ampliou a participação no programa para outras formas de organização comunitária, permanecendo, porém, no processo de formalização dessas organizações, a homologação do estatuto e da diretoria pelo Governador do Estado. Somente em 1986, no final do governo de Esperidião Amim, foi reconhecido o direito de autonomia na definição da estrutura e funcionamento das entidades comunitárias. Tais mudanças decorreram das reações de moradores de algumas áreas contra algumas restrições estabelecidas, ao mesmo tempo em que se ampliava o número de associações que se formavam independentes da iniciativa do Estado. (MÜLLER, 1992, p. 29).
A Prefeitura, através de convênio com a FUCADESC, fornecia o trabalho de
técnicos da área social, que auxiliaram os primeiros trabalhos comunitários.
Com a Nova República o Programa Nacional de Centros Sociais Urbanos foi
extinto. Na esfera municipal, quando a Prefeitura foi assumida por Edson Andrino,
do PMDB, em 1986, o convênio com a FUCADESC foi rompido. E, em 1987, no
governo estadual de Pedro Ivo Campos (1986-1989) a entidade foi extinta. A
Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Comunitário incorporou parte da
estrutura da entidade (LÜCHMANN, 1991).
25
2.3 A FORMAÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES DE MORADORES E A CRIAÇÃO DA
UNIÃO FLORIANOPOLITANA DE ENTIDADES COMUNITÁRIAS
Se por um lado, os Conselhos Comunitários surgiram a partir da iniciativa
governamental, por outro lado, as Associações de Moradores partiram da
organização de entidades da sociedade civil.
Em meados dos anos 1970 a Igreja católica já desenvolvia trabalhos de
assistência social e disseminação da doutrina católica nas áreas mais carentes da
cidade. Cabe destacar, também nesta época, o trabalho das irmãs da Congregação
Fraternidade e Esperança, posteriormente fundadoras do Grupo Alfa Gente, as
quais “...passaram a residir em áreas da periferia do município, onde procuravam
mobilizar a população em trabalhos comunitários, principalmente na construção de
creches e postos de saúde” (MÜLLER, 1992, p. 31).
A atuação da Igreja Católica contribuiu significativamente para a organização
e mobilização inicial das comunidades carentes, também com a formação de grupos
de jovens nessas comunidades, fazendo com que se despertasse um espírito
coletivo de luta pelas necessidades básicas.
Já no final da década de 1970, estudantes universitários, através do Grupo
Alternativa Cristã, também passaram a atuar em comunidades da periferia com o
objetivo de contribuir com a transformação social, culminando na criação de uma
Comunidade Eclesial de Base (CEB). Com base no trabalho de Müller (1992, p. 32),
entende-se como CEBs, grupos de reflexão sobre os mais diferentes problemas da
comunidade que objetiva a busca de soluções, através da organização. “As CEBs
são grupos que se formam junto às paróquias, por iniciativa de religiosos ou leigos,
que motivados pela fé, assumem o compromisso com a transformação de sua
realidade.”
O trabalho da Igreja Católica, fundamentado nos princípios da Teologia da
Libertação, e de estudantes universitários em geral, serviu de base para uma
organização alternativa dos moradores, numa perspectiva de luta pela conquista de
direitos sociais, e foi um incentivo para a criação de diversas Associações de
Moradores.
26
Os encontros entre os grupos pastorais, organizados pela Coordenação das CEBs de Florianópolis e os encontros a nível estadual, principalmente em Joinville e Chapecó, onde o trabalho estava mais desenvolvido, possibilitava um intercâmbio entre as experiências e uma reflexão mais aprofundada da realidade social. (MÜLLER, 1992, p. 33).
A bandeira da luta pela terra foi tema central de diversas discussões, e contou
com o apoio da Comissão de Justiça e Paz e da Comissão do Solo Urbano, ligadas
à Igreja Católica (1984-1985).
No início da Nova República (1985) a nova configuração político-institucional
do país assumiu como compromissos “1. a remoção do entulho autoritário; 2. a
convocação de Assembléia Nacional Constituinte; 3. a proposta de pacto social”.
(MOISES, 1986 apud MÜLLER, 1992, p. 35).
Neste mesmo ano, de acordo com Lüchmann (1991, p. 12), o quadro das
organizações comunitárias da cidade:
[...] demonstra uma riqueza de tendências, podendo-se distinguir de forma bastante esquemática e considerando-se a grande mobilidade e diversidade entre elas, três linhas de atuação, quais sejam: os “Independentes”, ou as entidades de bairro que não apresentam vínculos com o governo do Estado e buscam uma vinculação pluralista com o sistema partidário; os setores da “Periferia” ou mais vinculados às CEBs e posteriormente a setores do PT; e os “Conservadores”, entidades dependentes do governo do Estado via Conselhos Comunitários relacionados preferencialmente com o PDS e o PFL.
O grupo dos “Independentes” desempenhou importante papel de oposição e
resistência à política controladora do governo com relação às organizações
comunitárias, lutando pela autonomia. (CANELLA, 1992).
Com as eleições diretas para prefeitos das capitais, o grupo da Periferia,
juntamente com outras organizações independentes (Lagoa, Agronômica,
Sambaqui, entre outras) elaboraram uma pauta de reivindicações para discussão
com os candidatos a prefeito. Com a eleição do PMDB (Prefeito Edson Andrino),
partido que apoiou o surgimento das associações de moradores em contraposição
aos conselhos comunitários atrelados ao governo (KRISCHKE, 2003) houve uma
mobilização dessas entidades com o objetivo de participar da gestão municipal.
(MÜLLER, 1992, p. 36).
Essa gestão municipal (1986-1988) teve entre outros indicativos:
a incorporação da ´participação popular´ no discurso da política da nova administração; o estabelecimento de reuniões periódicas entre o conjunto das organizações de moradores e o prefeito; a discussão do orçamento municipal com as associações (MÜLLER, 1992, p. 36).
27
A partir de 1985 há uma expansão das associações de moradores no
município, incentivada por diversos motivos: escassez de verbas federais para os
conselhos comunitários, desprestigiando-os diante das comunidades; abertura da
comunicação entre prefeito e entidades; crescente influência das CEBs; entre outros
(LÜCHMANN, 1991).
Entre os vários encontros realizados entre as organizações de moradores e a
prefeitura no ano de 1986 (CANELLA, 1992), formaram-se comissões para
discussão de dois assuntos importantes: a formação de uma união municipal e o
orçamento municipal.
No decorrer do processo de discussão do orçamento municipal, as organizações de moradores da periferia foram avaliando que a heterogeneidade na composição da comissão não permitia uma posição mais combativa das organizações, e tinham receio de cooptação e controle do PMDB na formação da União Municipal. Por outro lado, entendiam também que não havia discussões suficientes junto às bases para a formação da União (MÜLLER, 1992, p. 37).
O processo de constituição da união municipal foi atropelado por interesses
de setores conservadores do PMDB que criaram a Federação de Associações de
Moradores do Estado de Santa Catarina (FAMESC).
A UFECO foi criada mesmo sem uma discussão maior junto às organizações de moradores, tendo em vista a intenção de lideranças mais conservadoras, ligadas à recém criada FAMESC (Federação das Associações de Moradores do Estado de Santa Catarina), de fundar uma entidade a nível municipal. Para garantir uma orientação distinta da federação estadual e visando uma atuação mais autônoma em relação ao poder público, o processo de formação da entidade municipal foi acelerado. No entanto, com a saída das comunidades da periferia, as organizações mais independentes perderam a hegemonia, sendo que a diretoria eleita ficou com uma composição bastante heterogênea, com representantes ligados aos mais diversos setores e partidos. Ainda no primeiro ano da entidade, alguns membros ligados às associações mais independentes se desligaram da diretoria, conferindo um perfil mais conservador à União Municipal (MÜLLER, 1992, p. 38).
Conforme Muller (1992), o desenrolar dos fatos fez com que as organizações
da Periferia se afastassem do processo. Apesar disso, a União Florianopolitana de
Entidades Comunitária foi fundada em 1987, com a participação dos
“Independentes” e dos “Conservadores”, totalizando 33 entidades. Inicialmente, a
participação dos “Independentes” (que depois de um tempo também foram se
afastando) foi justificada “numa perspectiva de impedir a tomada da direção pelos
‘conservadores’, através da composição de uma chapa de consenso que reunisse as
28
duas grandes tendências” (LÜCHMANN, 1991, p. 17). O intuito era a criação de um
órgão democrático e representativo, supra-partidário, que unificasse os interesses
gerais das organizações comunitárias, mas que não ferisse sua liberdade e
autonomia.
Em 1987, também é criado o Centro de Apoio e Promoção ao Migrante
(CAPROM), o qual vem substituir a Comissão do Solo Urbano, desarticulada
anteriormente. Em virtude de divergências internas, o CAPROM assume uma
postura mais independente da Igreja Católica, em oposição aos setores mais
assistencialistas (MÜLLER, 1992).
No governo de Edson Andrino (1986-1988) o CAPROM instalou-se junto à
diretoria do Departamento de Saúde Pública.
O CAPROM tinha como objetivo acolher o migrante, que no início foi um serviço na linha assistencialista: dar roupa, banho e alimentação, até que voltasse para a sua terra. Em 1988, o CAPROM muda para outro enfoque, do assistencial passa a pensar politicamente a cidade. Nessa época, entrou o pessoal da arquitetura e se começa a planejar e discutir a questão. O CAPROM chegou a cadastrar 200 famílias, por mês, que chegavam à cidade. (Entrevista realizada com Vilson Groh – Scherer-Warren; Rossiaud, 1999, p. 104-105).
O CAPROM iniciou o processo de criação de uma consciência coletiva junto
aos grupos de sem-teto que atendia. Criou-se, então, uma consciência de
comunidade, instituindo-se práticas de mobilização e reivindicação de direitos junto
ao poder público.
A UFECO, gradualmente, aceita a posição de dependência do governo do
PMDB. (LÜCHMANN, 1991), e no mesmo ano de sua criação, sua sede passa a
localizar-se na antiga FUCADESC – Secretaria de Trabalho e Ação Comunitária. No
primeiro ano foi crescendo o peso dos conselhos comunitários na União,
aumentando consideravelmente o número de filiações das entidades tidas como
conservadoras (KRISCHKE, 2003).
Assim é que, durante o primeiro mandato, os “Independentes” vão se afastando da diretoria, alegando o desvirtuamento da UFECO e o “atrelamento” da entidade ao governo do Estado, e passam a articular a partir de 1988 uma chapa de oposição que sai vitoriosa nas eleições internas de 1989. Agora com Amin na Prefeitura, este grupo visa a reversão do quadro, com a retomada dos objetivos iniciais da UFECO, dando ênfase na sua autonomia face aos órgãos públicos e aos partidos políticos; a importância da representatividade junto às bases, buscando legitimar-se enquanto interlocutora da Prefeitura sobre as questões gerais do município. (LUCHMANN, 1991, p. 18).
29
O conjunto de lideranças que integravam o novo grupo dirigente da UFECO
era bastante heterogêneo, contudo conseguia manter uma coesão interna.
Compartilhavam objetivos de fortalecimento da autonomia da entidade, com relação
ao Estado e aos partidos políticos, e buscavam resgatar as relações com as bases,
o que possibilitaria a construção de uma verdadeira representatividade.
No entanto, a Periferia continuou afastada da UFECO, atuando massivamente
nas questões do solo urbano (KRISCHKE, 2003).
Mas, se com o governo de Edson Andrino havia uma abertura para o diálogo
com as organizações comunitárias - apesar de todos os questionamentos acerca da
questão do atrelamento político de algumas lideranças - com o governo de
Esperidião Amin (1989 – 1990) houve um fechamento dos espaços institucionais
para o movimento comunitário.
A partir de 1989, então, intensificam-se ainda mais as ações de despejo nas
comunidades. É nesse momento que surge a necessidade de fortalecimento
daqueles grupos de sem-teto, surgindo o Movimento dos Sem-Teto, o qual iria
unificar as lutas pontuais de cada comunidade que tentavam defender-se diante das
ofensivas do poder público, sempre com o apoio do CAPROM (CANELLA, 1992).
Com ideais complementares e passando a atuar de forma conjunta com o
CAPROM, no final de década de 1980, foi fundado o Centro de Educação e
Evangelização Popular (CEDEP), com o objetivo de prestar assessoria aos
movimentos populares, voltado principalmente para a formação política de
lideranças e assessoria às organizações comunitárias.
Neste cenário complexo e, ao mesmo tempo, rico e efervescente dos
movimentos comunitários diante da realidade social e ambiental da cidade, na
década de 1990, a UFECO não conseguiu resgatar e mobilizar as bases para a
construção de uma representatividade legítima. Utilizada, por algumas lideranças,
como palco para aquisição de visibilidade política, neste período, desvirtuaram-se os
objetivos da entidade: a unificação e o fortalecimento das lutas das entidades
comunitárias.
30
2.4 ANOS 1990: EXPERIÊNCIAS DE PARTICIPAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES
COMUNITÁRIAS NA ESFERA POLÍTICA MUNICIPAL
A passagem dos anos 1980 para os 1990 serviram como palco de articulação
de diversas pessoas/entidades em vários fóruns de discussão. Independentemente
da iniciativa, sem determinação de duração ou composição, estes fóruns foram
espaços de troca de informações e articulação.
Tanto eram formados por representantes de associações de moradores e instituições públicas (que assim se intitulavam), como deles participavam pessoas diretamente interessadas pelo tema, mesmo sem representar qualquer grupo ou instituição. Este era o caso dos técnicos da COMCAP, do IPUF e da SUSP, que participaram de várias reuniões em caráter clandestino, pois haviam sido expressamente proibidos por seus superiores de falar sobre seu trabalho ou sobre a administração naquele tipo de reunião. Estiveram presentes nos encontros professores e alunos das universidades locais, colocando à disposição seus conhecimentos e a infra-estrutura das instituições em que trabalhavam. Também tomaram parte outros moradores da cidade que, interessados e/ou vendo-se diretamente atingidos pelo tema em questão, vieram a se articular nestes grupos. (CECCA, 1996, p. 185).
Apontam-se, a seguir, algumas dessas iniciativas de realização de fóruns de
discussão na cidade.
Embora já se tentasse, conforme descrito anteriormente, articular as
organizações de moradores para a construção de um diálogo permanente com o
poder público, na década de 1990 a ampliação e maior divulgação dos instrumentos
de democracia fizeram com que se percebessem cada vez mais a necessidade de
união na luta cotidiana contra as reminiscências do Estado autoritário.
Nesses novos fóruns, começou-se a analisar a realidade municipal como um
todo e as relações de interdependência de todos os aspectos da vida social e
ambiental, os quais constituíam-se objetos de luta do movimento comunitário.
Em 1990, surge em Santa Catarina uma organização não-governamental
fundada em 1983 no Rio Grande do Sul e ligada à Igreja Católica:
Inicialmente desenvolvia trabalhos na área de comunicação, no entanto em 1987 almejando uma maior autonomia em relação à igreja católica, o CECA/RS passou a chamar-se Centro Ecumênico de Evangelização, Capacitação e Assessoria, e com isso iniciou a prestação de serviços de assessoria à movimentos populares sindicais e atividades pastorais da igreja cristã, sobre temas nas áreas de teologia-ecumênica, sócio-política e metodológica. (OLIVEIRA, 2003, p. 63).
31
Em seus dois primeiros anos de existência em Florianópolis, participa
ativamente de fóruns de debates promovidos por diversas iniciativas. A partir de seu
envolvimento com as questões mais diversas da cidade, debatidas nestes eventos,
traz à tona a primeira proposta de criação de um Fórum da Cidade de Florianópolis,
com o objetivo de fortalecer e articular a sociedade civil organizada. Contudo, a
proposta não chegou a se concretizar e a organização seguiu no trabalho de
assessoria às causas do movimento comunitário e atuando, também, com pesquisas
na área social.
Foi no governo de Sérgio Grando (1993 – 1996), eleito pela Frente Popular
em 1992, que retomou-se o processo de implantação do Orçamento Participativo,
abrindo a possibilidade de construção de novas relações com o poder municipal.
Nesse processo que tentou-se articular (agora pela segunda vez) o que se chamou
de “Fórum da Cidade” ou “ Fórum Democrático da Cidade” (VILSON GROH, IN:
SHERER-WARREN; ROSSIAUD, 1999, p. 110-112), deixando clara a ausência de
um espaço articulador municipal das lutas da sociedade civil e a percepção dos
atores da incapacidade da UFECO em cumprir este papel de envergadura política
mais abrangente. Contudo, a proposta esbarrou em obstáculos até agora, em certa
medida, desconhecidos para o movimento popular.
Quando os maiores cabeças dos movimentos vão ocupar as Secretarias [de governo], não conseguem mais perceber o seu papel. Estas lideranças ficam numa coisa híbrida, entre ser movimento ou governo. Esta experiência tivemos aqui em Florianópolis com a Frente Popular (1993 a 1996 o governo se Sérgio Grando). Ocorreram muitas brigas, porque o movimento ficou preso ao Executivo. Tivemos de pensar qual o papel de cada um. Houve uma dificuldade muito grande porque o movimento tem suas dificuldades e acreditou demais na Frente Popular, achando que iria resolver tudo, porque os mesmos atores que estavam no movimento, estavam agora no governo. Isso gerou uma expectativa que subjugou o movimento. Quando o movimento se deu conta que a Frente não era aquilo que pensava, começou a propor mudanças. (VILSON GROH apud SHERER-WARREN; ROSSIAUD, 1999, p. 110)
Apesar do compromisso formal do governo para um processo de democracia
participativa, colocando o movimento como sujeito do processo de construção da
cidade, surgiram dificuldades que impossibilitaram a efetivação de um processo
democrático de acordo com aquilo que era esperado pelo movimento. Houve,
contudo, uma “abertura” para o diálogo.
Com a mudança de governo – saída de Sérgio Grando e entrada de Ângela
Amim – essa configuração se modifica.
32
Tanto que na campanha eleitoral, embora afirmando que iria “aperfeiçoar o programa” [Orçamento Participativo], a prefeita sempre prometeu manter o programa, tendo até assinado um compromisso com as diversas entidades populares neste sentido. Porém no início de seu mandato, mesmo contra intensa mobilização das lideranças comunitárias pela manutenção do programa, a participação popular no orçamento foi extinta e a elaboração do orçamento municipal retrocedeu ao velho estilo (CECCA, 2001, p. 199).
É nessa época que se deflagra o processo de construção da Agenda 21. No
Brasil, foi elaborada em 1992, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento – CNUMAD, realizada no Rio de Janeiro. Pode ser
definida como
[...] um processo de formulação e implementação de políticas públicas por meio de uma metodologia participativa que produza um plano de ação para o alcance de um cenário de futuro desejável pela comunidade local e, que leve em consideração a análise das vulnerabilidades e potencialidades de sua base econômica, social, cultural e ambiental (BIER, 2005, p. 32-33).
Em Florianópolis, o processo iniciou-se em fevereiro de 1997 com a
promoção do “1º Seminário Estadual da Agenda 21 Catarinense, tendo como
objetivo disseminar informações sobre o processo de discussão e formulação da
Agenda 21 Local de Florianópolis”. (OLIVEIRA, 2003, p. 86). Para essa realização
contou-se com a parceria entre o CONDEMA – Conselho de Meio Ambiente, o
Núcleo de Pesquisa em Movimentos Sociais da Universidade Federal de Santa
Catarina, a EPAGRI – Empresa de Pesquisa em Tecnologia e Extensão Rural, o
Fórum Permanente HABITAT de Santa Catarina, o CECCA – Centro de Estudos
Cultura e Cidadania e a FLORAM – Fundação Municipal do Meio Ambiente.
Em junho do mesmo ano, ocorre o “1º Seminário da Agenda 21 Local da
Grande Florianópolis”,
[...] com o objetivo de difundir informações sobre o assunto e incentivar os municípios da região a elaborarem suas próprias Agendas 21 Locais, além da criação de uma comissão de organização para a implantação da Agenda 21 Local do município (BIER, 2005, p. 86).
O Decreto Municipal 246/97 estabelece o Fórum da Agenda 21 Local do
Município de Florianópolis. Esse Fórum tinha como objetivo “a indicação de políticas
e metodologias de sustentabilidade sócio-ambiental do Município de Florianópolis,
através de discussão promovida pelas entidades e segmentos sociais do Município”
(BURGOS, 2005, p. 12).
33
O município foi dividido em cinco regiões para a realização de seminários
preparatórios para o Fórum da Agenda 21 para divulgação e conscientização sobre
a importância do processo. Nestes encontros também foram escolhidos
representantes das comunidades para comporem o Fórum.
No decorrer do processo de organização do Fórum da Agenda 21 o quadro
inicial, de intensa participação da sociedade civil organizada (associações de
moradores, conselhos comunitários, escolas, organizações não-governamentais,
sindicatos, universidades, entre outras), foi se modificando. Muitas lideranças
comunitárias se afastaram do processo em virtude dos conflitos internos e da falta
de representatividade e visibilidade pública do Fórum da Agenda 21. (BIER, 2005).
A questão extrapolou os limites quando a prefeitura negou ao Fórum a
possibilidade de discussão do Plano Diretor da região do Campeche e do Plano
Diretor de Ingleses Sul e Santinho antes de serem enviados à Câmara. O Fórum da Agenda 21 de Florianópolis foi mais um dos espaços que só serviram para criar uma aparência de participação, mas sem conseqüências concretas na definição do futuro da cidade. [...] Os órgãos do governo municipal, através dos meios de comunicação, procuram nos incutir a idéia de que este documento “norteará o crescimento e o desenvolvimento de nossa cidade nos próximos 30 anos”. Mas tudo indica que a função maior deste documento está mais em servir como peça de marketing político e ecológico em eleições e negociações de financiamentos nacionais e internacionais, do que em impulsionar o desenvolvimento sustentável de Florianópolis. (CECCA, 2001, p. 202).
Apesar da realização dos seminários por região, da elaboração do diagnóstico
dos problemas sócio-ambientais das comunidades e o levantamento das ações para
a promoção de um desenvolvimento sustentável da cidade (BIER, 2005), o decorrer
dos fatos serviu para esclarecer os reais objetivos da Agenda 21 Local em
Florianópolis.
No final de 1999, o decreto 246/97 expirou e por iniciativa da prefeitura a
participação pública foi suspensa. Apesar dos apelos das associações tidas como
“rebeldes” no processo da Agenda 21 as quais decidiram em encontro realizado com
mais de 25 associações a formação de uma articulação chamada “Fórum
Popular/Comunitário da Cidade” com o objetivo de se contrapor ao processo de
manipulação da participação comunitária, não houve recuo da ação do poder público
municipal. O documento final da Agenda 21, cuja elaboração final não contou com a
34
ampla participação da sociedade civil, foi aprovado, mesmo com a baixa
participação das comunidades na plenária de aprovação. (BURGOS, 2005).
Diante dos fatos, as organizações participantes do Fórum
Popular/Comunitário da Cidade decidem se retirar do processo, redigindo “[...] carta
dirigida à coordenação da Agenda 21 Local, expondo os motivos de saída e
expressando o desacordo com o documento final preliminar, solicitando a retirada
das assinaturas das associações e representantes das mesmas”. (BURGOS, 2005,
p. 14).
Como tentativas que buscaram colaborar com o processo de articulação das
organizações da sociedade civil florianopolitana em meados da década de 1990,
cabe destacar aqui também, a iniciativa do MUCOF (Movimento União Comunitária
de Florianópolis), que organizou nessa época o “1º Encontro de Entidades
Comunitárias de Florianópolis”; e, novamente, o CECCA (agora chamado Centro de
Estudos Cultura e Cidadania) que organiza o seminário “Uma Cidade numa Ilha”, de
fundamental importância para a compreensão da problemática sócio-ambiental da
cidade. (CECCA, 1996).
2.5 ARTICULAÇÕES EM TORNO DO PLANO DIRETOR DE FLORIANÓPOLIS
O primeiro Plano Diretor da cidade foi criado em 1952, elaborado pela
Faculdade de Arquitetura do Porto Alegre. Aprovado em 1954 com vigência até
1976, “tinha por finalidade orientar e disciplinar a cidade e assim prepará-la para o
crescimento urbano, para superar o atraso crônico”:
O modelo desse plano prende-se ao urbanismo racionalista que tem como
ponto de partida “A Carta de Atenas”, onde a arquitetura preside os destinos da
cidade. Esse modelo comporta o discurso da modernidade, corresponde a ideologia
desenvolvimentista da época na América Latina. (OLIVEIRA, 2003, p. 37).
O segundo Plano Diretor de Florianópolis seria elaborado com base nos
Planos Nacionais de Desenvolvimento (I e II PND). “Em Santa Catarina o esforço
para transformar Florianópolis e os municípios vizinhos em uma Região
Metropolitana é objetivo do ´Plano Catarinense de Desenvolvimento´ em 1971 do
35
governo estadual para a criação do pólo urbano e irradiador de desenvolvimento de
Florianópolis” (OLIVEIRA, 2003, p. 39). Este Plano é elaborado pelo ESPLAN
(Escritório Catarinense de Planejamento Integrado) em 1971, sendo aprovado pela
Câmara Municipal em 1976 com vigência até 1996. Era preciso expandir a
urbanização para além da zona central.
Em 1977 é criado o IPUF (Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis).
Na época o ESPLAN elabora um diagnóstico das deficiências e potencialidades da
cidade:
Como deficiências urbanas foram destacadas: a) a expansão do crescimento urbano desordenado, à exemplo da favelização em direção às encostas. O mesmo na zona continental em conturbação co os municípios limítrofes: São José, Palhoça e Biguaçu; b) concentração de equipamentos na zona insular, gerando grande fluxo viário na tradicional ponte Hercílio Luz, com o perigo de desabamento; c) a impossibilidade de aumentar o tráfego na ponte e vias de acesso, a iminência de colapso do sistema viário; d) o isolamento da cidade com o resto do país tanto no setor de transporte como no de comunicação. A respeito das potencialidades a equipe planejadora apontava: a) o dinamismo da vida urbana da cidade conferida pelo próprio aumento da circulação de veículos a ponto de exigir uma nova ponte; b) a construção do centro metropolitano; c) a condição de pólo de integração da região meridional pelo entroncamento do sistema rodoviário federal (BR-282 e BR101). A possibilidade de um maior sistema de integração, reunindo meios terrestres (rodovias e ferrovias) e marítimos (por isso a necessidade sempre insistida do porto); d) a industrialização conseqüente do mercado consumidor (OLIVEIRA, 2003, p. 40-41).
O Plano Diretor da Trindade é aprovado em 1982 e o Plano Diretor dos
Balneários, em 1985.
Foi no contexto do governo de Sérgio Grando (1993 à 1996), da Frente
Popular, que houve o despertar para a mobilização da sociedade civil para as
discussões sobre a elaboração e a participação popular na elaboração do Plano
Diretor do Distrito Sede, que estava sendo elaborado pelo IPUF. Graças à
mobilização do movimento sócio-comunitário, o IPUF divulgou a proposta e abriu
espaço para debates e alterações. Foram apresentadas 159 propostas de alteração,
das quais 78 foram acatadas pelo órgão e inseridas no Projeto enviado à Câmara.
(OLIVEIRA, 2003). “Porém, foi com a tentativa de introduzir uma emenda que
permitia a liberação da construção de prédios até 18 andares para toda a cidade, no
Plano Diretor do Distrito Sede, em abril de 1996, que começou o momento crucial
deste movimento” (BURGOS, 2005, p. 11).
A partir daí, o Movimento pela Participação Pública no Plano Diretor inicia
uma luta incessante de conscientização e apelo ao apoio da população na luta
36
contra os 18 andares. Entidades como a CASAN, o Corpo de Bombeiros e o
Conselho Municipal do Meio Ambiente pronunciam-se contra o projeto. O IPUF
(Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis) continua a defesa dos 18
andares (OLIVEIRA, 2003).
Após muitas lutas, a emenda acaba por ser derrubada, ficando restrita à
AMC-6 (Área Mista Comercial – 6) na região do Estreito e às AIH (Áreas de Incentivo
à Hotelaria).
Em 1997, a prefeita Ângela Amim sancionou o terceiro Plano Diretor do
distrito sede.
Nestes anos de luta pela participação na elaboração do Plano Diretor da
cidade, as organizações comunitárias mobilizaram diversos debates. Destacam-se,
neste sentido, o Movimento Campeche Qualidade de Vida, os diversos movimentos
por um desenvolvimento sustentável na Lagoa da Conceição, o Movimento Ilhativa,
entre outros.
2.6 A INCORPORAÇÃO DA TEMÁTICA AMBIENTAL NO MOVIMENTO
COMUNITÁRIO
É interessante perceber que, entre os diversos aspectos que compõem as
discussões sobre os rumos do desenvolvimento turístico em Florianópolis, a
temática da preservação ambiental está sempre presente. No entanto, o discurso da
preservação não era bem aceito no movimento comunitário até meados da década
de 1980.
Os defensores deste discurso eram considerados estrangeiros, acontecendo por vezes conflitos entre estes e os moradores mais antigos. A construção da imagem de um preservacionismo estrangeiro, e negativo para o progresso e o desenvolvimento da cidade, posteriormente é assumida também pela mídia local, justamente no momento em que os valores da preservação ambiental passam a ser incorporados pelas organizações populares (CECCA, 1996, p. 180).
Em alguns momentos, o discurso ambiental foi apropriado indevidamente e
estrategicamente pelos interesses privados, os quais buscavam relacionar a
destruição ambiental produzida na ilha aos pobres e moradores antigos,
37
Os problemas ambientais, por sua vez, foram atribuídos aos pobres (dos morros, dos mangues, das construções irregulares das praias) e, algumas vezes, aos moradores antigos com suas brincadeiras consideradas sinônimo de atraso e barbárie (a exemplo da forte campanha publicitária negativa que sofreu a brincadeira do boi no campo – a farra do boi). Os discursos sobre a natureza eram basicamente de administradores, empresários e intelectuais vindos de outras cidades e que, via de regra, pretendiam preservar a natureza justamente dos pobres e dos moradores tradicionais (CECCA, 1996, p. 181).
A primeira organização ambientalista de Florianópolis, o MEL – Movimento
Ecológico Livre, formado por universitários, intelectuais e técnicos da administração
pública, teve importante papel e conseguiu, ao longo dos anos, incorporar
integrantes do movimento comunitário. “Os integrantes do MEL criaram muitas das
bases para chamar a atenção à problemática ecológica na Ilha. E efetivamente
desencadearam várias ações e grupos, que nos anos 90 garantiram a integração
dos valores ecológicos às lutas populares” (CECCA, 1996, p. 181).
De acordo com pesquisa realizada no ano de 2003, Soares mapeia 38 grupos
ambientalistas na cidade. As informações são escassas, inexistindo ainda uma rede
de atuação conjunta dessas organizações: “[...] a maioria atua localmente (bairro ou
ecossistema) em projetos de educação ambiental e em ações de pressão
institucional visando a sustentabilidade da ocupação humana [...]” (SOARES, 2003,
p. 97). O autor aponta a década de 1990 como período de surgimento de um grande
número dessas organizações atuando, em sua maioria, de forma voluntária.
O trabalho em rede não é uma característica das organizações ambientalistas
de Florianópolis. No âmbito extra-municipal, poucas organizações da cidade são
filiadas à FEEC – Federação das Entidades Ecologistas Catarinenses e à Rede das
ONG´s da Mata Atlântica. (SOARES, 2003).
Com base nesta breve contextualização que objetiva apontar algumas
questões históricas do desenvolvimento da cidade e das organizações comunitárias
que compõem este espaço, tem-se a certeza de que o maior desafio a ser
enfrentado na cidade é de origem política.
Quando os vereadores aprovam mudanças de zoneamento arbitrárias, quando os planejadores definem sistemas viários com características urbanas de megalópole, quando a Prefeitura não exerce o seu dever de fiscalização sobre construções irregulares, quando as empresas públicas de água e eletricidade ligam casas e loteamentos em áreas de preservação, estamos falando do irregular exercício administrativo de órgãos públicos que, pela ação e omissão, entram em concluiu com ações ilegais visando, em muitos casos, retirar vantagem do fato. [...] Esta forma de planejamento burocrático e auto-suficiente, ignora a realidade, os atores e os interesses
38
sociais contraditórios em jogo, condenando-se assim a produzir projetos e instrumentos jurídicos que se perdem na inutilidade das prateleiras do órgão planejador (CECCA, 1996, p. 188-189).
A necessidade da abertura do Estado para uma discussão com a sociedade
civil se coloca como elemento primordial para se repensar a cidade e os rumos que
estão sendo tomados para o seu desenvolvimento.
3 SOCIEDADE CIVIL E ESPAÇO PÚBLICO
3.1 SOCIEDADE CIVIL E ESPAÇO PÚBLICO: CONFIGURAÇÃO BRASILEIRA
O uso generalizado do termo sociedade civil inicia-se, no Brasil, na época da
ditadura militar, nos anos 1970, devido às suas modificações organizativas. Naquele
momento, a sociedade civil brasileira ressurgiu, tendo como eixo central de luta o
combate ao Estado autoritário. As novas organizações brotam de uma conjuntura de
repressão e fechamento do Estado, e se colocam numa posição de luta pela
conquista da participação e da autonomia.
Esse “autonomismo” – hoje criticado por seus traços idealistas, por uma certa sobrevalorização das virtudes “comunitaristas” – deu, às organizações populares e sindicais, o impulso necessário para que rompessem os vínculos privados entre atores sociais e o poder público, para constituírem-se como um “outro” ator, que interpela o Estado e com ele estabelece relações efetivamente públicas, não baseadas em favores, em concessões privadas ou corporativas, mas em direitos publicamente reconhecidos (GECD, 1999, p. 50).
A sociedade civil caracterizava-se como um “[...] vasto campo de atores que
se organizavam coletivamente, tornando públicas as suas carências, e reivindicando
mais liberdade e mais justiça social [...]”. Essas organizações, apesar da grande
diversidade entre si, estavam unidas na luta contra o regime autoritário e pela
democracia, conquistando, no decorrer dos anos, papel fundamental no processo de
transição democrática (GECD, 1999, p. 17).
Na medida que o retorno das instituições democráticas não trouxe resolução
aos problemas gerados pela desigualdade social, “aguçaram-se percepções que
enfatizam não só a ampliação e radicalização da própria noção de democracia mas
também a necessidade de aprofundar o controle do Estado por parte da sociedade”
(DAGNINO, 2002, p. 10).
No decorrer das décadas de 1980 e 1990 há uma “lenta e gradual” abertura
democrática do Estado para a participação política da sociedade civil. A Constituição
40
de 1988 foi impregnada por lutas significativas nos campos social e de gestão
participativa descentralizada das políticas públicas.
Essa modificação na configuração democrática do país, também gerou
mudanças na sociedade civil. Ocorreu, então, uma redefinição desta, passando a
atuar em negociação com o Estado, muitas vezes como parceira no
desenvolvimento de programas e projetos sociais, gerando relações complexas e
conflituosas. Há, também, uma diversificação de projetos no interior da sociedade
civil, os grupos já não se unificam num objetivo único. (GECD, 1999). Por outro lado,
abre-se a possibilidade propositiva junto ao Estado.
As novas práticas políticas inauguradas pelos movimentos sociais e as questões que eles apresentavam para a sociedade como um todo redefiniram o espaço da política. Fazer política não era mais uma atividade apenas do Estado ou dos partidos, mas de toda a sociedade (GEDC, 1999, p. 20).
A diversificação da sociedade civil, amplifica e complexifica seu quadro,
[...] composto por um leque multifacetário de organizações que atuam desde a filantropia até a crítica radical ao sistema, e desde as práticas políticas e culturais mais tradicionais e autoritárias até as que lutam para a construção de uma sociedade efetivamente democrática. (GECD, 1999, p. 32).
Telles (1998, p.93) enfatiza essa questão quando coloca que a sociedade civil
não é “pólo da virtude política”, mas sim “extremamente complexa, contraditória e
atravessada por ambivalências de todos os tipos”, o que se reflete nos conflitos
entre diferentes concepções e projetos políticos.
A autora destaca as modificações constantes da sociedade, complexificando
e tornando as relações ainda mais heterogêneas, modificando identidades e
pluralizando interesses e demandas.
Nesse sentido, o processo de construção democrática não é linear, mas sim
fragmentado, perpassado pela conflitualidade e contraditoriedade das relações entre
sociedade civil e Estado.
A distinção entre as esferas pública e privada tem sido um grande problema
na história do Brasil. O público tem sido constantemente apropriado pelos interesses
privados, especialmente no contexto da esfera política do país.
A esfera pública reduziu-se, assim, ao espaço ocupado pelo Estado.
Constata-se, com isso, que a “[...] ausência de uma esfera propriamente pública, a
centralização, a falta de transparência e a impermeabilidade da esfera estatal na sua
41
relação com a sociedade, constituem o terreno mais fértil para o acesso privilegiado
e a privatização dos recursos do Estado”. (GECD, 1999, p. 49).
Aproveitando-se da crise do Estado assistencial e da necessidade de abertura
para a participação da sociedade civil por parte do Estado, o ideário neoliberal prega
a destruição das instituições e serviços públicos, a privatização e a
desresponsabilização do Estado perante os direitos sociais, passando esta tarefa
para a “sociedade civil”, de fato para o mercado.
Diante de um contexto complexo onde o Estado ainda é dominado por
relações clientelistas, autoritárias e apropriadas pelos interesses privados - um
Estado ainda resistente aos apelos participativos da sociedade civil - entende-se
que a ampliação e publicização dos espaços públicos de negociação e deliberação é
condição fundamental para a construção de uma democracia efetiva.
Percebe-se, com isso, a tendência de busca de construção de autonomia e de
relações horizontais em todos os aspectos. E é essa tendência que irá prevalecer na
idéia de esfera pública “[...] que toma como ponto de partida a pressuposição de
uma certa paridade entre os debatedores, permitindo que, a despeito de suas
diferenças reais, eles possam deliberar ‘como se fossem iguais” (GECD, 1999, p.
54).
E de fato são muitas as experiências que mostram a formação de uma
sociedade civil ativa, que cria espaços para a legitimação dos seus conflitos nas
lutas sindicais, populares e urbanas:
[...] na reinvenção e usos das “leis da cidade”, em que movimentos organizados e entidades civis ou simplesmente cidadãos mobilizados parecem realizar isso que Habermas chama de soberania popular descentralizada e pluralizada, em espaços públicos múltiplos e diferenciados nos quais direitos e aspirações coletivas são afirmados como critérios de julgamento e legitimidade de atos públicos que afetam a vida de todos [...] (TELLES, 1998, p. 100).
Essa nova conjuntura social aponta a necessidade de redefinição das
relações entre Estado, sociedade civil e economia e “[...] o que parece estar em jogo
é a possibilidade de uma nova contratualidade que construa uma medida de
eqüidade e as regras de civilidade nas relações sociais” (TELLES, 1998, p. 98).
Esta breve descrição requer a adoção de um paradigma teórico que, embora
com algumas limitações, contribui com a compreensão do processo de configuração
da sociedade civil e dos espaços públicos do Brasil. O modelo teórico habermasiano
42
fornece elementos para uma compreensão adequada da dinâmica de constituição
dos diferentes tipos de espaços públicos existentes na atualidade nos mais
diferentes contextos.
3.2 SOCIEDADE CIVIL E ESPAÇO PÚBLICO: ELEMENTOS DA ABORDAGEM
TEÓRICO-DISCURSIVA
O debate sobre espaços públicos, tanto no Brasil quanto no mundo, nos
remete, entre outros autores, a conceder um lugar destacado às reflexões de Jürgen
Habermas. O autor constrói sua concepção de democracia deliberativa como
alternativa ao modelo de democracia participativa, no qual o processo de tomada de
decisões não se apresenta como questão central da discussão, levando à
questionamentos quanto à sua efetividade política.
A partir de uma concepção dual de sociedade, Habermas estabelece seus
conceitos sobre sociedade civil e esfera pública.
De acordo com Avritzer (1999, p. 180),
Habermas reavalia a tradição frankfurtiana ao mostrar que a modernidade não é marcada somente pela emergência de subsistemas e formas de ação regidas por fins, mas também por um processo de racionalização ligado à possibilidade da comunicação por meio da linguagem.
Na teoria da ação comunicativa, Habermas (1987) apresenta uma
diferenciação entre sistema e mundo da vida como diagnóstico dos problemas
contemporâneos.
O sistema é composto por dois subsistemas: o Estado e o mercado. Os mecanismos de coordenação da ação nestes subsistemas são respectivamente o poder e o dinheiro, caracterizando, portanto, uma ação baseada na racionalidade estratégica e/ou instrumental. Já o mundo da vida caracteriza-se pela ação comunicativa. Trata-se da esfera das tradições, da cultura compartilhada, da solidariedade e cooperação. (LUCHMANN, 2002, p. 7).
A sociedade civil, ancorada no mundo da vida, corresponde às instituições
responsáveis pela transmissão da cultura, da integração social e da socialização
(COHEN; ARATO, 1994).
43
Habermas entende a interação comunicativa, a solidariedade e a autonomia
como aspectos primordiais da sociedade civil, em oposição ao dinheiro e ao poder,
característicos da esfera da economia e do Estado, respectivamente.
A modernização causou um desequilíbrio entre as esferas do sistema e do
mundo da vida, provocando a “colonização do mundo da vida”, com o predomínio da
racionalidade instrumental. Há, então, “o predomínio e expansão das relações de
poder e da lógica do mercado sobre as relações sociais” (LÜCHMANN, 2002, p. 7).
Luchmann (2002) destaca alguns aspectos fundamentais analisados por
Habermas em sua “Teoria da Ação Comunicativa”. Partindo da diferenciação entre
sistemas e mundo da vida, analisa algumas dificuldades colocadas à ampliação da
racionalidade comunicativa: a transformação do cidadão em consumidor e em
cliente (monetarização e burocratização), a partir de uma “racionalidade pautada nos
interesses individualistas, suprimindo os espaços de autonomia, diluindo
solidariedades e limitando a participação coletiva” (LÜCHMANN, 2002, p. 8-9).
Diante disso, assimilando correções propostas por Cohen e Arato, em
trabalho realizado no ano 1992, Habermas confere à sociedade civil um caráter
ofensivo e defensivo (COSTA, 1997). Ou seja, além de preservar o mundo da vida
contra a colonização do sistema, cabe à sociedade civil, também, agir
ofensivamente para reverter a colonização. Os movimentos sociais são portanto os sujeitos ativos e públicos de uma sociedade civil modernizada. Demandatários de um duplo processo de democratização: na esfera dos valores e práticas sociais; e na esfera dos subsistemas e práticas institucionais (LÜCHMANN, 2002, p. 10).
No entanto, as instituições da sociedade civil só cumprem seu papel se
existirem garantias para os direitos de reprodução cultural, integração social, e
socialização, os quais devem ser vistos como princípios organizativos da sociedade
civil (COHEN; ARATO, 1994).
De acordo com Arato e Cohen (1994, p. 155) “Os direitos surgem enquanto
reivindicações de grupos ou indivíduos nos espaços públicos de uma sociedade civil
emergente”.
Assim, para estes autores, na teoria habermasiana:
Um mundo da vida modernizado submete o núcleo das tradições, normas e autoridades religiosas a processos comunicativos de questionamento e julgamento discursivo, levando à substituição do consenso normativo baseado na convenção por um consenso reflexivo e pós-convencional,
44
ancorado em processo abertos de comunicação (ARATO; COHEN, 1994, p. 156).
Cohen (2003) também destaca a concepção de Habermas e evidencia o
papel de mediação entre o particular e o geral, exercido pela sociedade civil. Para a
autora a função da sociedade civil não é a de se colocar no lugar da sociedade
política “faltante”, mas sim de construir uma interlocução com a sociedade política a
fim de exercer influência sobre suas decisões.
Neste sentido, assinala Habermas (1997, p. 92) sobre o conceito de esfera
pública:
A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. [...] A esfera pública constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem com os conteúdos da comunicação cotidiana.
Habermas (1997) distingue dois modelos diferenciados de esfera pública no
que se refere ao poder de discussão, organização e decisão: primeiro as esferas
públicas procedimentalmente reguladas, como por exemplo as entidades
parlamentares e, segundo a esfera pública geral, a qual consiste “numa rede de
caráter aberto e inclusivo de esferas públicas subculturais, que se sobrepõem
mutuamente, com limites voláteis no que diz respeito ao tempo, ao mundo social e
aos objetos” (HABERMAS, 1997, p. 32). Para o autor, é de fundamental importância
a interação entre estes dois tipos de esferas públicas.
Avritzer (1999) afirma que “Habermas irá identificar o surgimento da era
moderna com a vigência de um espaço livre para o exercício da crítica e da
discussão”. Surge uma esfera entre a sociedade civil e o Estado, a esfera pública.
Para Habermas a legitimidade política só é alcançada através da interação
comunicativa dos cidadãos orientada para a formação de uma opinião coletiva. E é
justamente nesse processo que a esfera pública mostra sua importância no papel de
mediadora entre o mundo da vida e o sistema. Enquanto esfera mediadora, a esfera
pública se apresenta como campo de confronto de diferentes concepções e
interesses provindos tanto do mundo da vida como dos sistemas.
Segue-se a percepção de uma ambivalência constitutiva da esfera pública: nela desembocam tanto os fluxos comunicativos originados no mundo da
45
vida – portanto gestados em relações voltadas para o entendimento – quanto os esforços de utilização dos meios de comunicação para a produção de lealdade política e para influenciar as preferências de consumo. A canalização dos fluxos comunicativos provindos do mundo da vida para a esfera pública cabe fundamentalmente ao conjunto de associações voluntárias desvinculadas do mercado e do Estado a que se denomina de sociedade civil. As chances de tais associações de, se contrapondo aos atores sistêmicos, influenciar efetivamente a esfera pública, marcando-a com seus temas, permanece grandeza a ser, em cada caso, avaliadas empiricamente (AVRITZER; COSTA, 2004, p. 5).
Em trabalhos posteriores Habermas irá desenvolver a maneira como a
institucionalização de procedimentos legais e políticos nas democracias irá permitir a
influência e a inserção das vontades coletivas nos processos decisórios.
(AVRITZER; COSTA, 2004).
Habermas (apud AVRITZER, 1999) coloca as três características principais
da esfera pública:
− É distinta do Estado, pois não é movida pela busca de concentração de
poder, e da esfera privada, pois não é movida por interesses econômicos.
“[...] consiste na idéia do uso público da razão estabelecendo um princípio
de igualdade entre os indivíduos”;
− Consiste na ampliação do domínio público, ou seja, traz à tona a
discussão de questões que anteriormente não eram discutidas
publicamente;
− Tem como princípio a inclusão tanto de pessoas/atores, como de
questões. O debate está sempre passível de ampliação.
De acordo com Habermas (1997) os problemas tematizados na esfera pública
surgem da pressão gerada pelas dificuldades originadas nas experiências pessoais
cotidianas e vão se expressando nos diferentes campos (religião, arte, esfera
pública), e, a partir daí, entrando no campo da política.
Habermas (apud AVRITZER; COSTA, 2004, p. 6), estabelece alguns limites à
influência dos sujeitos da sociedade civil na esfera pública para que ela não perca
suas características centrais: o primeiro seria a complexidade
[...] para que possam funcionar como catalisadoras dos processos espontâneos de formação de opinião, as organizações da sociedade civil não podem se transformar em estruturas formalizadas, dominadas pelos rituais burocráticos. De outra forma, o ganho de complexidade poderia significar a rendição aos imperativos organizacionais e o conseqüente distanciamento da base.
46
O segundo se refere à questão do poder. Para o autor, a sociedade civil não
pode assumir funções do Estado.
O potencial emancipatório da esfera pública está na possibilidade de todos os
participantes terem condições iguais de expressarem suas opiniões, sem nenhum
tipo de constrangimento.
Para Costa (2002, p. 27)
É na esfera pública que os diferentes grupos constitutivos de uma sociedade múltipla e diversa partilham argumentos, formulam consensos e constroem problemas e soluções comuns. A esfera pública conforma, portanto, o contexto público comunicativo, no qual os membros de uma comunidade política plural constituem as condições de possibilidade da convivência e da tolerância mútua, além dos acordos em torno das regras que devem reger a vida comum.
O potencial de construção de opiniões coletivas da esfera pública irá
depender da participação ativa da sociedade civil nos processos decisórios.
Dependerá, também, da disposição e do comprometimento do Estado em se manter
aberto e sensível aos reclames sociais, possibilitando a participação efetiva destes
segmentos.
3.3 DINÂMICA DA ESFERA PÚBLICA BRASILEIRA: LIMITES TEÓRICO-
POLÍTICOS E COMPLEMENTAÇÕES AO PARADIGMA TEÓRICO-DISCURSIVO
Diante desses conceitos e questões centrais destacados pelos autores
estudados, é necessário que se aponte, também, alguns fatores que complementam
e problematizam o processo dinâmico de construção/desconstrução da esfera
pública na sociedade brasileira.
Duas questões críticas centrais poderiam ser apontadas, segundo a
perspectiva seguida neste trabalho, como limites teórico-políticos: por um lado, o
insuficiente tratamento da questão da conflitualidade intrínseca do social, na medida
em que a sociedade civil constitui-se como uma pluralidade de interesses e cujas
relações são perpassadas pela questão do poder, refletindo sua complexidade nos
espaços públicos; por outro lado, a rígida separação “sistêmica” entre sociedade civil
47
e Estado, na medida que não prevê a participação da sociedade civil nas esferas do
poder, mantendo o Estado como sujeito central do processo decisório.
No Brasil, o conceito de espaço público tende a ser complexificado:
perpassado por desigualdades (sociais, econômicas, políticas e culturais), relações
de dominação e interesses particulares, estes espaços são marcados pela
fragmentação e pelo conflito. Neste sentido, Dagnino (2002) ao analisar a sociedade
civil e os espaços públicos existentes na sociedade brasileira reconhece o conflito
como componente estrutural do processo democrático e como elemento essencial
de um espaço público legítimo, na medida que comprova a confrontação dos mais
diversos sujeitos, concepções e interesses.
Fraser (apud GECD, 1999) problematiza e complementa o paradigma teórico-
discursivo, analisando as dificuldades encontradas nos espaços públicos para a
construção de uma comunicação entre iguais. A autora destaca os processos de
exclusão de alguns setores sociais e afirma a interferência das relações de
dominação e subordinação nestes espaços. Com base nisso apresenta a noção de
“contrapúblicos” ou espaços públicos alternativos, onde os sujeitos são mais
homogêneos:
Esses seriam os espaços nos quais os grupos sociais marginalizados e excluídos da participação na vida pública, poderiam afirmar sua identidade, formulando e discutindo acerca de seus interesses, longe da supervisão dos grupos dominantes. Seriam, assim, espaços profundamente relevantes, na medida em que neles novos sujeitos políticos poderiam constituir suas identidades e projetos (GECD, 1999, p. 59).
O sentido em que o conceito de “espaços públicos alternativos” é utilizado
neste trabalho é, contudo, um pouco menos específico. Designamos com esse
conceito os espaços criados fora da esfera pública institucional, espaços criados
como alternativa dos grupos excluídos para a expressão e o fortalecimento de suas
demandas, mas que não necessariamente pretendem ser excludentes de nenhum
ator, embora na prática isto possa acontecer. O adjetivo “alternativo” na referida
expressão indica, portanto, o fato desses espaços públicos estarem ampliando as
possibilidades participativas que à sociedade civil é negada na esfera pública,
permitindo a inclusão dos mais diversos grupos sociais, contribuindo com a
problematização de novas questões, renovando os espaços e debates existentes na
esfera institucional e complementando a esfera pública.
48
Para a autora, a complexidade social já não pode ser resumida numa esfera
pública única, pois dentro desses espaços também existem relações de poder que
excluem minorias. “Ou seja, em sua própria formação, a esfera pública apresenta
mecanismos de seleção que implicam a definição prévia de quem serão os atores
que efetivamente terão voz pública e quais serão os temas que efetivamente serão
tratados como públicos” (AVRITZER; COSTA, 2004, p. 7).
Nestes espaços tradicionais de deliberação política existem muitas diferenças
de saber e de poder, exigência de qualificação técnica e política e o risco da perda
gradual da relação com a base, gerando a falta de representatividade (GECD,
1999). Apesar disto, para que os espaços públicos alternativos conquistem novos
direitos e efetivem suas reivindicações, devem buscar inserção na esfera pública
mais ampla, na esfera institucional, àquela com maior grau de heterogeneidade e
maior dificuldade de uma participação igualitária.
A ampliação e a diversificação dos espaços públicos através das articulações
da sociedade civil possibilitam uma ampliação da própria democracia, na medida
que influenciam e interagem com a esfera deliberativa. A democracia deliberativa
habermasiana pressupõe uma interação diferenciada entre sociedade civil e Estado.
No entanto, a sociedade civil adquire caráter apenas “problematizador e
tensionador” sobre as esferas político-deliberativas (LÜCHMANN, 2002). Neste
sentido, Avritzer e Costa (2004) acrescentam uma crítica ao modelo discursivo
habermasiano no que se refere aos públicos deliberativos.
De fato, a preocupação de Habermas com a defesa do caráter institucional/constitucional do Estado de Direito e a herança da teoria parsoniana que enfatiza a distinção e necessidade de preservação de códigos de coordenação específicos nos diferentes sistemas (sociedade civil produz influência política, mas não decide nem implementa políticas) leva o autor a subestimar completamente as estruturas de participação pública. Dessa maneira, em toda sua discussão sobre espaço público falta qualquer referência à necessidade de horizontalizar os processos decisórios ou à necessidade de promover processos de “alfabetização política”, que permitem, no nível local, a vivência da noção de poder (AVRITZER; COSTA, 2004, p. 8).
Esta concepção de democracia que encontra limite nas esferas institucionais
deliberativas é criticada por alguns autores, os quais defendem um
[...] processo de institucionalização de espaços e mecanismos de discussão coletiva e pública tendo em vista decidir o interesse da coletividade, cabendo aos cidadãos reunidos em espaços públicos, a legitimidade para decidir, a partir de um processo cooperativo e dialógico, as prioridades e as resoluções levadas a cabo pelas arenas institucionais do sistema estatal.
49
Para além, portanto, da influência ou de uma orientação informal, compete aos cidadãos a definição e/ou co-gestão das políticas públicas (LUCHMANN, 2002, p. 14).
O processo de institucionalização de novos espaços e procedimentos de
democracia deliberativa seria permeado por conflitos e pela complexidade social, por
isso, passível de influências que objetivem o bem comum, como também de
influências que visem interesses particulares. No entanto, configuraria o processo
democrático legítimo, possibilitando o exercício da deliberação às diferentes
organizações da sociedade civil.
As experiências de espaços alternativos evidenciam a ampliação e a
democratização da esfera pública nacional, trazendo à tona questões antes não
visualizadas pela opinião pública e podem legitimar-se e serem reconhecidos pela
sociedade. São exemplos disso os Fóruns de Defesa da Criança e do Adolescente,
o Fórum Nacional da Reforma Urbana, o Orçamento Participativo, o Movimento
Sanitarista, entre outros. Esses espaços evidenciam que nem tudo o que é público é
estatal e vice-versa, fato este que coloca novas possibilidades de organização e luta
para a sociedade civil pelo predomínio do interesse público. (GECD, 1999).
Vendo no espaço público a interface entre Estado e sociedade, os atores sociais democráticos, com sua demanda de ampliação dos espaços de co-gestão, vêm impondo ao Estado uma nova racionalidade, que tem como parâmetro seu controle progressivo a partir da sociedade. As novas experiências de constituição do espaço público têm colocado como princípios para o funcionamento do Estado temas como transparência, visibilidade e controle social (GECD, 1999, p. 73).
Esses espaços levam para dentro do Estado a racionalidade comunicativa,
influenciando os processos deliberativos com essa lógica.
Em um contexto permeado por todos os tipos de desigualdade (culturais,
econômicas, sociais e políticas), o novo desafio que se apresenta à dinâmica da
democracia deliberativa, tendo como pressuposto a abertura dos canais
institucionais para as deliberações dos espaços públicos alternativos, é a construção
da participação efetiva dos sujeitos coletivos e a promoção de um diálogo de
igualdade entre os diferentes sujeitos.
A democracia deliberativa constitui-se, portanto, como um processo de institucionalização de um conjunto de práticas e regras (formais e informais) que, pautadas no pluralismo, na igualdade política e na deliberação coletiva, sejam capazes de eliminar ou reduzir os obstáculos para a cooperação e o diálogo livre e igual, interferindo positivamente nas condições subjacentes de desigualdades sociais. É neste sentido que o princípio do pluralismo, em
50
um modelo democrático-deliberativo, vai além do respeito à diversidade e ao conflito, na medida em que se assenta em um conjunto de regras inclusivas dos setores historicamente excluídos dos procedimentos deliberativos. Uma institucionalidade de gestão participativa de caráter democrático seria então, aquela que não apenas oferece a oportunidade de participação a diferentes atores sociais, como também, e fundamentalmente, potencializa a participação através de um conjunto de mecanismos – princípios e regras – institucionais. (LUCHMANN, 2002, p. 20).
O desafio que se apresenta às instituições que compõem a sociedade civil
não é pequeno. Além das dificuldades organizativas e da resistência do Estado às
investidas contra a desburocratização e pela abertura para a participação da
sociedade civil, passando por processos participativos manipulatórios que não
passam de “espetáculos” de participação, ainda existem as dificuldades inerentes
aos processos participativos internos à esfera pública. Na luta pela inserção de suas
vontades coletivas nos processos institucionais decisórios ou nas esferas públicas
institucionais, ainda é preciso construir e encontrar equilíbrio para que se garanta a
efetivação dos princípios democráticos no interior destes espaços.
Com base nisso, a cada nova experiência colocada no debate acerca dos
obstáculos e perspectivas da esfera pública, abrem-se novos desafios e
possibilidades que podem contribuir com o rompimento de práticas autoritárias,
clientelistas e manipulatórias e, também, com a análise do amadurecimento político-
democrático (embora não linear) da sociedade.
O modelo teórico-discursivo, com as limitações e complementações
apontadas, fornece elementos fundamentais para a compreensão da dinâmica da
esfera pública em sociedade extremamente desiguais, como o Brasil. Neste sentido,
torna-se a base das discussões que procuram desvendar novas possibilidades
democráticas surgidas da pluralidade do social.
4 O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DO FÓRUM DA CIDADE DE
FLORIANÓPOLIS
4.1 O ESPAÇO ARTICULADOR
Com base no histórico apresentado no capítulo 1 deste trabalho compreende-
se que diversas foram as tentativas de articulação do movimento comunitário para
que se mantivesse uma discussão coletiva sobre a cidade como um todo.
No ano de 2001, depois do fracasso do processo participativo para
elaboração da Agenda 21 de Florianópolis, as organizações encontravam-se
novamente desarticuladas, embora seus anseios e revoltas continuassem presentes,
não havia naquele momento, uma organização que articulasse efetivamente as
entidades para a discussão sobre a cidade.
Os primeiros passos para a articulação do que se denominou posteriormente
Fórum da Cidade de Florianópolis foram dados a partir do Projeto Experiências em
Cena, uma iniciativa do Núcleo de Estudos em Serviço Social e Organização
Popular (NESSOP), do Departamento de Serviço Social, da Universidade Federal de
Santa Catarina. O projeto desenvolvia-se através da realização de eventos
divulgados amplamente junto às organizações comunitárias da cidade, cujo objetivo
era propiciar um espaço onde os protagonistas fossem os sujeitos do movimento
sócio-comunitário da cidade de Florianópolis, proporcionado um espaço de troca de
experiências.
O evento Experiências em Cena, em sua 3a edição, em junho de 2001, teve
como temática “A cidade que queremos: um olhar dos sujeitos das organizações
sócio-comunitárias e populares de Florianópolis” e se propunha os seguintes
objetivos:
- Propiciar o conhecimento e o debate público das experiências de gestão sócio-comunitária;
52
- Socializar projetos sócio-comunitários de ocupação do solo urbano, voltados para a construção de um modelo de desenvolvimento local com qualidade de vida;
- Criar espaços na universidade pública para que os sujeitos das organizações sócio-comunitárias e populares contribuam para a compreensão da realidade local e global;
- Construir subjetividades identificadas com o conhecimento social e a sustentação dos vínculos amorosos e solidários;
- Viabilizar a participação da universidade em projetos que contemplem as demandas do movimento sócio-comunitário. (EHLERS, 2002, p. 46).
O Experiências em Cena III contou com a participação de 215 pessoas, sendo
79 lideranças comunitárias. Neste evento, o debate girou em torno das críticas
contra a exclusão da participação popular no processo de planejamento urbano.
Criticou-se, ainda, a falta de articulação com as bases por parte da União
Florianopolitana de Entidades Comunitárias (UFECO). 1
Diante das críticas e aspirações das entidades, foi proposta a criação de um
fórum permanente e independente do Estado, para articular a discussão sobre a
cidade. O evento encerrou-se com diversas proposições, entre elas as seguintes
relativas ao tema que ocupa-se este trabalho:
- Realização de seminários regionais no município de Florianópolis, metodologicamente assessorados pela UFSC, para construir um movimento sócio-comunitário propositivo, articulado e com autonomia; - Realização através de mediação da UFSC/NESSOP, de um fórum ou congresso de abrangência municipal, para discutir a sustentabilidade social, econômica e ambiental (ecológica) da cidade que queremos, com destaque para a compreensão e formulação de uma política urbana e metropolitana, com participação popular e gestão descentralizada e democrática (EHLERS, 2002, p. 64).
Para o cumprimento destes objetivos criou-se a Comissão Organizadora do “I
Fórum da Cidade: um olhar do movimento sócio-comunitário”. Essa Comissão
contou com o apoio e assessoria de alguns Departamentos da Universidade Federal
de Santa Catarina. O evento aconteceu nos dias 5 e 6 de outubro de 2001, tendo
como eixo central de discussão o Decreto Lei 10.257, de julho de 2001, que institui o
Estatuto da Cidade.
1 Mais detalhes sobre o evento podem ser encontrados em EHLERS, 2002.
53
4.2 A QUESTÃO URBANA E O ESTATUTO DA CIDADE: PARA SITUAR A
TEMÁTICA
Tendo como temática central do primeiro evento do Fórum da Cidade, o
Estatuto da Cidade, cabe situar brevemente este instrumento cuja principal
contribuição é a questão da gestão democrática da cidade.
Podemos encontrar as origens daquilo que posteriormente seria estabelecido
em forma de lei no Estatuto da Cidade, no Movimento Nacional da Reforma Urbana
na Constituinte de 1987/88. Esse movimento exercia pressão no sentido de incluir o
direito à cidade e a função social da propriedade na Constituição. Os artigos 182 e
183 da Constituição Federal são resultado dessa luta.
De acordo com Silva (2002), o Movimento Nacional pela Reforma Urbana
articulou diversos sujeitos. Interagindo num mesmo campo de interlocução,
[...] estes sujeitos diferenciados tinham em comum o objetivo de construir uma proposta de lei a ser incorporada na Constituição, tornando-se parâmetro para a intervenção do poder público no espaço urbano na direção de alterar o perfil das cidades brasileiras, marcado por desigualdades sociais de várias ordens (SILVA, 2002, p. 145).
O Movimento foi responsável pela apresentação da chamada Emenda
Popular de Reforma Urbana à Constituição e, depois de uma intensa batalha política
entre os interesses conservadores, - principalmente dos empresários do setor
imobiliário, - e os interesses do movimento, centrado no que passou a ser
reconhecido como “direito à cidade”, a questão urbana é contemplada em dois
artigos da Constituição.
Apesar de não abranger todo o conteúdo da proposta de emenda,
A incorporação de um capítulo de Política Urbana na Constituição, mesmo ficando longe do conteúdo geral proposto pela Emenda Popular, representou a abertura de um campo importante para a luta política a favor do direito à cidade, tema central na plataforma da reforma urbana. Essa foi a avaliação dos atores que formularam a Emenda Popular. A partir desse momento, forma-se o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU). De imediato, tinha como tarefa pressionar o Congresso Nacional para viabilizar a regulamentação do capítulo de Política Urbana contido na Constituição (SILVA, 2002, p. 147).
Diferentes movimentos discutiram e disseminaram durante mais de uma
década idéias de enfrentamento à exclusão social nas cidades e por um novo
54
tratamento do planejamento e gerenciamento do espaço urbano. Fruto dessas lutas
foi a aprovação do Projeto de Lei nº 5788/90, que regulamenta os artigos 182 e 183
da Constituição brasileira.
O Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, foi o eixo de
discussão do I Fórum da Cidade de Florianópolis.
4.3 O I FÓRUM DA CIDADE – UM OLHAR DO MOVIMENTO SÓCIO-
COMUNITÁRIO
O I Fórum da Cidade foi organizado pela Comissão formada para tal fim como
resultado do evento Experiências em Cena III, composta pelas seguintes
organizações: Associação Comunitária do Loteamento João Gonzaga da Costa,
Associação de Moradores do Campeche, Associação de Moradores e Amigos do
Itacorubi, Associação de Moradores do Morro da Penitenciária, Associação de
Moradores do Pântano do Sul, Conselho Comunitário da Barra do Sambaqui,
Conselho Comunitário da Tapera, Conselho Comunitário das Comunidades do
Balneário de Ingleses, Federação das Associações de Moradores do Estado de
Santa Catarina – FAMESC, Fórum do Maciço Central do Morro da Cruz, Fundação
Lagoa, Movimento Ilhativa, Rede Sol, Movimento Campeche Qualidade de Vida e
Instituto Ambiente Sul. (FÓRUM DA CIDADE, 2001).
O I Fórum contou com a participação de 220 pessoas, sendo 81 entidades
representadas, das quais a maioria era composta por conselhos comunitários,
associações de moradores ou outros movimentos ligados às temáticas urbanas,
além de representantes da Câmara de Vereadores, alunos e professores de
universidades locais, entre outros. (FÓRUM DA CIDADE, 2001).
A metodologia do encontro contou com palestras, debates e trabalhos em
grupos por temáticas e teve como objetivo diagnosticar as questões problemáticas
das comunidades, promover uma discussão para esclarecimento sobre o Estatuto
da Cidade, - prioritariamente sobre a participação popular nas decisões sobre a
cidade, - e propor encaminhamentos para as ações do Fórum da Cidade. Os grupos
de trabalho tiveram temáticas específicas conforme a seguir:
55
GRUPO TEMÁTICA
GRUPO 1 Como fortalecer o movimento sócio-comunitário
da Grande Florianópolis
GRUPO 2 Comissão de garantia e regulamentação
do Estatuto da Cidade
GRUPO 3 Direito de participação: os instrumentos do Estatuto /
audiências públicas, estudos de impacto ambiental,
estudos de impacto de vizinhança
GRUPO 4 Projetos e planos urbanos
GRUPO 5 Moradia, regularização e urbanização
GRUPO 6 Ocupação das encostas
GRUPO 7 Cultura e lazer: espaços e equipamentos públicos
GRUPO 8 Transportes
GRUPO 9 Saneamento básico e recursos hídricos
Quadro 01 - Temáticas dos grupos de trabalho do I Fórum da Cidade. Fonte: Relatório Final do I Fórum da Cidade.
As conclusões dos grupos de trabalho deram origem a um documento final
aprovado em Plenária no dia 27 de outubro de 2001. O documento final resgata,
dentre as diversas proposições e objetivos pensados para o evento,
[...] realizar um encontro de abrangência municipal, para discutir a sustentabilidade social, econômica e ambiental (ecológica) da cidade, com destaque para a compreensão e formulação de uma política urbana metropolitana, com participação e gestão descentralizada e democrática; e ainda, conhecer o Estatuto da Cidade, discutindo seu mérito enquanto instrumento do movimento social popular comunitário; potencializar a participação popular nos municípios da Grande Florianópolis à luz do Estatuto da Cidade; fortalecer o direito de participação popular de forma decisiva, no planejamento da cidade que queremos; construir, discutir e aprovar uma agenda de lutas, de modo a unificar os movimentos da Grande Florianópolis; construir uma rede organizacional e metropolitana dos movimentos sociais e comunitários.
No mesmo documento são estabelecidos de forma clara e objetiva os
princípios da participação na organização. Nos itens seguintes evidencia-se sua
ligação preponderante com o movimento sócio-comunitário, bem como seu caráter
educativo, de estrutura organizativa dinâmica e autônoma:
56
- O Fórum da Cidade deve articular e mobilizar os movimentos sócio-comunitários na direção de sua proposta – a cidade que queremos;
- Não deve perder de vista sua natureza ética – os seus vínculos com os movimentos sócio-popular comunitários;
- A participação dos sujeitos coletivos deste movimento é que dará qualificação ao Fórum da Cidade;
- Pedagogicamente é imperativo criar e realimentar vínculos aproximativos entre estes sujeitos coletivos, enquanto protagonistas do Fórum da Cidade, e destes com os movimentos sócio-popular comunitários;
- A construção do Fórum da Cidade deve se fazer na direção de um procedimento, também, pedagógico e participativo; sua estrutura não deve ser rígida, formal, ainda que deliberativa; mais importante é tecer um processo participativo, um movimento que irá desenhando sua organização e suas ações;
- A estrutura do Fórum da Cidade deverá ser orgânica, constituindo-se em um espaço de participação e procedimentos democráticos; sua composição deverá ser dinâmica, sem os vícios de uma representatividade estabelecida;
- O Fórum da Cidade deve resguardar sua independência nas ações e autonomia política em relação ao Estado e partidos políticos.
Da mesma forma, são apontados os seus objetivos - O Fórum pretende alimentar e manter um debate permanente sobre a
cidade que queremos; - Assegurar o direito de participação popular nas decisões da cidade,
com a consolidação da cidadania e o aperfeiçoamento sócio-político desta instância de participação;
- Instrumentalizar jurídica e pedagogicamente o direito de participação popular, nas decisões da cidade e a democratização do processo legislativo da cidade;
- Articular e dar encaminhamentos às agendas de lutas (na relação com a cidade que queremos) aos órgãos públicos, legislativo, executivo e judiciário;
- As agendas de lutas devem ter suas raízes nas comunidades, sustentadas por seus diagnósticos (perfil sócio-econômico e pelos dispositivos legais do Estatuto da Cidade e outros). Poderão ser debatidas em Plenárias Comunitárias sobre temáticas específicas (Ex. questão fundiária) e encaminhamentos, sistematizadas com definição de prioridades em Plenárias do Fórum da Cidade e encaminhadas aos órgãos públicos, executivo, legislativo e judiciário.
A estrutura proposta para o funcionamento regular do Fórum seria composta
pela plenária das entidades comunitárias e por um núcleo executivo, o qual deveria
articular um conjunto de grupos de trabalho sobre temas específicos. Sua estrutura
organizativa seria, no futuro, fonte de conflitos e divergências internas, conforme
será analisado no Capítulo 4.
Com o objetivo de promover uma maior possibilidade de interação e
comunicação entre as entidades comunitárias do município de Florianópolis, bem
57
como dos municípios vizinhos, integrando também outras universidades no trabalho
de assessoria aos Fóruns, a organização deveria
[...] apoiar a criação de Fóruns Municipais, na região Metropolitana da Grande Florianópolis – São José, Biguaçu e Palhoça e do Fórum Metropolitano para assuntos comuns dos Fóruns Municipais; e a criação do fórum Universidade e Comunidade, através da criação da rede das universidades da grande Florianópolis – UFSC, UDESC, UNISUL, UNIVALI e outras, com objetivos de criar assessorias aos Fóruns Municipais e Metropolitano (FÓRUM DA CIDADE, 2001).
As proposições finais do evento abrangeram diversas questões específicas de
cada temática colocada em discussão. As questões seguintes revelam os objetivos
de fortalecimento político-participativo das entidades comunitárias:
- Criar ou aprimorar a rede de associações de moradores, oferecendo a todas as comunidades os elementos técnicos necessários para os estudos e conseqüentes propostas urbanísticas de cada região da cidade;
- Fortalecer as comunidades para que sejam protagonistas; - Realizar fóruns regionais nos bairros para diagnosticar e formular
soluções e agendas de lutas; - Discutir e mudar a União Florianopolitana de Entidades Comunitárias –
UFECO e fortalecer a Vice Regional da Federação de Associações de Moradores de Santa Catarina – FAMESC, como coletivo e organização do movimento comunitário da região;
- Realizar um fórum – universidade e comunidade e dar continuidade às ações do I Fórum da Cidade.
A nova diretoria da UFECO uniu forças com o Fórum da Cidade com o
objetivo de transformar a entidade numa representação mais legítima e ligada às
bases do movimento sócio-comunitário da cidade. Fundada no ano de 1987, a
entidade enfrentou dificuldades para efetivar uma luta autônoma pelos interesses
das organizações comunitárias a quem deveria representar. Atrelada ao poder
público municipal (UFECO, 2001) e com a interferência de interesses particulares de
algumas lideranças, como a utilização da entidade para obtenção de visibilidades
política (ENTREVISTADO 8), impediram a efetivação de seus reais objetivos.
Em parceria com a nova diretoria da UFECO e contando com a assessoria do
NESSOP, dentre outros Núcleos de Estudos, professores e alunos da Universidade
Federal de Santa Catarina, cabendo destacar a participação dos Departamentos de
Arquitetura e Urbanismo, Ciências Sociais e Ciências Biológicas, o Fórum da Cidade
organiza, no ano de 2002, uma série de seminários regionais com o objetivo de
mobilizar as comunidades, levantar prioridades regionais e fomentar as discussões
para o II Fórum da Cidade. Na tabela abaixo, os seminários realizados:
58
REGIÃO Nº PARTICIPANTES DATA REALIZAÇÃO
Lagoa da Conceição 350 20 de agosto
Continente 48 21 de agosto
Norte 76 23 de agosto
Sul 107 24 de agosto
Centro/Itacorubi 93 31 de agosto
Quadro 02 - Seminários Regionais de mobilização para o II Fórum da Cidade Fonte: Oliveira, 2003.
Os seminários levantaram as questões prioritárias de cada região para que
fossem levadas para discussão e ação no coletivo maior do Fórum da Cidade. Com
base nisso, pode-se destacar uma característica do Fórum da Cidade enquanto
espaço público, publicizando questões problemáticas do cotidiano das comunidades
e levantando proposições a serem apresentadas nas esferas públicas tradicionais.
O Fórum da Cidade caracteriza-se como um espaço público criado pelas
organizações comunitárias, um segmento da sociedade civil florianopolitana, e
enquanto tal, marcado pela complexidade, pela contradição e pelo conflito. E é
justamente essa pluralidade e complexidade social que já não conseguem se conter
apenas nas estruturas representativas institucionais do Estado, dando origem a
espaços públicos fora da esfera estatal.
4.4 O II FÓRUM DA CIDADE – CONSTRUINDO MOVIMENTOS VISANDO UMA
GESTÃO DEMOCRÁTICA E UM PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO E
SUSTENTÁVEL PARA A CIDADE
O II Fórum da Cidade realizou-se nos dia 4 e 5 de julho de 2003 e contou com
a participação de 608 pessoas, sendo 100 organizações representadas.
A metodologia utilizada foi a promoção de palestras e debates sobre o
Estatuto da Cidade e seus instrumentos, com o objetivo de fortalecer a participação
popular na gestão da cidade, e a formação de grupos de trabalho para a discussão
das seguintes temáticas: cultura e lazer, transporte público, gestão democrática da
59
cidade, moradia e regularização fundiária, saneamento e meio ambiente e
segurança pública.
Dentre os diversos encaminhamentos e propostas tiradas dos grupos de
trabalho, destaca-se - Em relação à organização do movimento e as ações em direção a participação na Conferência das Cidades, realizar um movimento que contribua para a construção de uma metodologia de planejamento participativo do PD (Plano Diretor), envolvendo as experiências de planejamento comunitário já existente, como é o caso do Campeche, Santinho, São José, Cacupé, entre outras; - Garantir a representação do Fórum da Cidade na comissão organizadora da Conferência Municipal das Cidades, intervir para garantir um regimento interno democrático da Conferência Municipal da Cidade. (FÓRUM DA CIDADE, 2003).
Um dos principais objetivos deste evento foi a preparação para a participação
na I Conferência Municipal de Florianópolis, convocada pela Prefeitura Municipal
para o dia 15 de agosto do mesmo ano.
No decorrer do processo de organização da I Conferência da Cidade, a
UFECO e o Fórum da Cidade, representando as entidades organizadas da
sociedade civil florianopolitana, procuram interferir no processo buscando assegurar
a representação dos diversos segmentos na Comissão Preparatória, ampliar a
divulgação e estender o evento de um para três dias (15, 16 e 17 de agosto de
2005) de modo a propiciar a participação e o aprofundamento dos debates sobre os
temas propostos. Para isso, cartas e recursos são encaminhados às Comissões
Municipal e Estadual antes da realização da I Conferência.
Ignorando completamente os apelos das organizações, o evento foi realizado
nos moldes estabelecidos pela Prefeitura Municipal. Diante disso, a UFECO e o
Fórum da Cidade, encaminham à Comissão Preparatória Estadual processo para a
impugnação da I Conferência Municipal da Cidade de Florianópolis, criticando a
participação seletiva de setores atrelados ao governo, a ausência de uma divulgação
ampla e antecipada, a duração do evento e a sua realização numa sexta-feira (dia
útil, o que dificulta a participação das pessoas) e a não elaboração de um texto base
para estudo prévio dos participantes. Em carta encaminhada à Comissão Estadual
(Carta Aditiva ao Processo de Impugnação da 1a. Conferência Municipal da Cidade
de Florianópolis), o Fórum da Cidade esclarece
[...] acreditamos que, se existe um setor que não pode ser acusado de não querer contribuir com o processo unitário, e que de forma alguma
60
pode ser excluído do mesmo, como ocorreu em Florianópolis, somos nós. Mais do que gestores diretos desse momento histórico, fomos os primeiros do município a dar visibilidade e publicidade à Conferência Nacional, onde, num primeiro momento, diante da falta de iniciativa do Executivo Municipal, articulamos conversações com a Câmara de Vereadores para que esta pudesse sensibilizar o Executivo através de sua bancada para que convocasse a Conferência. (FÓRUM DA CIDADE, 2003 - Grifo do autor).
Neste documento, o Fórum da Cidade alega que para a composição da
Comissão Municipal e organização do evento foram convidadas apenas entidades
politicamente atreladas à gestão municipal, fazendo com que o movimento
comunitário engajado nas lutas municipais ficasse de fora do processo. A crítica
também teve como alvo a metodologia do evento, questionando sua qualidade
democrática. Diante dos fatos, Em 18 de agosto, um grupo de pessoas físicas e entidades da sociedade civil florianopolitana denominado Fórum de Entidades Sindicais, Populares e ONGs pela Impugnação da Conferência Municipal de Florianópolis, apresentou o pedido de impugnação à Comissão Preparatória Estadual (BURGOS, 2005, p. 22).
Em 27 de agosto, o pedido de impugnação foi aceito, o que gerou a anulação
da Conferência. Depois disso, o Fórum da Cidade responsabilizou-se pela
convocação do que denominou “1a Conferência Democrática da Cidade de
Florianópolis”, realizada nos dias 12 e 13 de setembro de 2003.
Após recorrer à justiça, a Prefeitura Municipal conseguiu reconhecer a
conferência oficial. Com isso, Florianópolis foi a única cidade no país a realizar duas
Conferências Municipais, ambas com direito de participação dos seus delegados
eleitos na Conferência Estadual. (BURGOS, 2005)
Demonstrando a resistência deste segmento frente ao autoritarismo do
governo municipal, a conquista da Conferência Municipal representou, em certa
medida (mais elementos serão levantados para análise no capítulo 4 deste trabalho),
seu fortalecimento, qualificação técnica e política. A interação comunicativa dos
diferentes sujeitos coletivos caminhou para o enfrentamento da lógica instrumental
do Estado, conseguindo influenciar a esfera pública tradicional.
61
4.5 O III FÓRUM DA CIDADE – PELO DIREITO À CIDADE QUE QUEREMOS
No decorrer desses anos de existência do Fórum da Cidade, a cada reunião e
evento realizado, a organização aumentou sua visibilidade e credibilidade junto às
organizações sócio-comunitárias da cidade. Embora a participação oscile,
principalmente nas reuniões quinzenais, o Fórum da Cidade foi se afirmando
enquanto espaço público.
Até o III evento a participação predominante era das entidades comunitárias,
as quais foram protagonistas das realizações da organização. A partir do ano de
2004 há uma modificação substancial, com a inclusão de novos sujeitos na gestão
do Fórum da Cidade: organizações ambientais e ONG´s de assessoria. Essa
modificação estrutural somada à forma como foi sendo organizada sua dinâmica
interna foi a fonte de conflitos intensos, especialmente no ano de 2005, o que será
visto posteriormente.
O III Fórum da Cidade teve seu lançamento dia 19/08/2004 na Câmara
Municipal de Florianópolis (Relatório Final – III Fórum da Cidade). Com o objetivo de
articular a sociedade civil organizada e apresentar suas propostas para a gestão da
cidade, propostas estas debatidas e amadurecidas no decorrer dos encontros
realizados nos quatro anos de existência do Fórum da Cidade, a programação do III
Fórum contava com a realização de debates com os candidatos a vereador2 e
2 As regiões foram divididas conforme a seguir: Norte: Ratones, Daniela, Praia do Forte, Jurerê Internacional, Jurerê, Canasvieiras, Cachoeira do Bom Jesus, Ponta das Canas, Lagoinha, Praia Brava, Ingleses, Vila, Santinho, Sítio do Capivari, Vila União, Vargem do Bom Jesus, Vargem Grande, Vargem Pequena e proximidades; Bacia da Lagoa: Muquém, Rio Vermelho, Jardim Moçambique, Barra da Lagoa, Fortaleza da Barra, Praia Mole, Retiro da Lagoa, Joaquina, Costa da Lagoa, Canto dos Araçás, Ponta das Almas, Lagoa da Conceição, Canto da Lagoa, Porto da Lagoa e proximidades; Sul: Trevo da Seta em direção ao sul, Carianos, Tapera, Pedregal, Alto Ribeirão da Ilha, Ribeirão da Ilha, Loteamento Bandeirante, Caiacangaçu, Caeira da Barra do Sul, Naufragados, Praia da Solidão, Costa de Dentro, Costa de Cima, Açores, Pântano do Sul, Praia do Matadeiro, Armação, Lagoa do Peri, Morro das Pedras, Areias do Campeche, Jardim das Castanheiras, Campeche, Loteamento Novo Campeche, Loteamento Costa Leste, Rio Tavares, Fazenda do Rio Tavares, Cachoeira da Fazenda do Rio Tavares e proximidades; Bacia do Itacorubi até Sambaqui: Pantanal, Carvoeira, Cidade Universitária, Trindade, Jardim Anchieta, Córrego Grande, São Jorge, Santa Mônica, Itacorubi, Vila Ivan Mattos, João Paulo, Caminho da Cruz, Monte Verde, Vila Cachoeira, Parque da Figueira, Saco Grande II, Sol Nascente, Cidade das Abelhas, Cacupé, Santo Antônio de Lisboa, Sambaqui e Barra do Sambaqui; Centro e Maciço do Morro da Cruz: Centro, Morro da Penitenciária, Vila Santa Rosa, Morro do Horácio, Santa Vitória, Agronômica, Morro do Céu, Ângelo La Porta, Monsenhor Topp, Major Costa, Mont Serrat, Nova Descoberta, Morro do Tico-Tico, Morro da Mariquinha, Morro do Mocotó, Prainha, José Mendes Morro da Queimada, Alto da Caeira, Caeira, Saco dos Limões, Serrinha, Morro do Limoeiro, Costeira e proximidades; Continente: Balneário,
62
prefeito da cidade, com o objetivo de abrir um espaço de diálogo entre a população
e o poder público municipal.
EVENTO REGIÃO DATA REALIZAÇÃO
Norte 01/09
Centro e Maciço do
Morro da Cruz
02/09
Bacia da Lagoa 04/09
Sul 06/09
Continente 08/09
Debates com as
candidaturas a vereador
Bacia do Itacorubi até
Sambaqui
09/09
Debate com as
candidaturas a prefeito
(1º turno)
- 25/10
Debate com as
candidaturas a prefeito
(2º turno)
- 27/10
Quadro 03 - Resumo dos eventos do III Fórum da Cidade. Fonte: Relatório Final do III Fórum da Cidade.
A divulgação dos debates foi realizada através de cartazes distribuídos por
toda a cidade, jornais, rádios, também através de convites enviados às organizações
comunitárias, ONG´s e outras. Todos os candidatos, tanto para o cargo de vereador
como para o cargo de prefeito, foram convidados ao debate.
A metodologia dos debates foi composta por: abertura, apresentação pessoal
dos candidatos, leitura das propostas populares para o planejamento e gestão da
cidade, comentários dos candidatos, abertura para perguntas da platéia e as
respostas dos candidatos.
Jardim Atlântico, Coloninha, Canto, Esteito, Capoeiras, Morro do Geraldo, Bairro de Fátima, Jardim Ilha Continente, Morro da Caixa, Monte Cristo, Nova Esperança, Novo Horizonte, Santa Terezinha, Chico Mendes, Nossa Senhora da Glória, Cond. Panorama, Sapé, Coqueiros, Condomínio Argus, Praia do Meio, Itaguaçu, Bom Abrigo, Abraão e Vila Aparecida.
63
Considerando os diferentes partidos políticos dos vereadores, compareceram
aos debates.
PARTIDO Nº CANDIDATOS
PSTU 03
PP 03
PcdoB 01
PPS 01
PMDB 03
PSDB 03
PT 12
PSB 03
PTB 01
PFL 01
TOTAL 31
Quadro 04 - Candidatos participantes do III Fórum da Cidade - Por partido político Fonte: Relatório Final do III Fórum da Cidade.
Considerando as diferenças regionais e as dificuldades colocadas à
participação popular, e considerando que o Fórum da Cidade contou apenas com o
trabalho voluntário de seus participantes para a mobilização e organização dos
eventos, os debates realizados configuraram-se espaços ricos em qualidade política,
contando com a presença das diversas tendências político partidárias e colocando
em debate a participação da população na gestão da cidade. Apesar da ausência de
grande parte dos candidatos a vereador e de um dos candidatos a prefeito, não
houve desqualificação dos debates, que contaram com grande interesse da
população, o que ficou claro nas questões elaboradas e nos documentos
encaminhados aos candidatos. Ao todo, os participantes dos debates regionais
elaboraram 94 perguntas aos candidatos e houve a entrega de quatro documentos
elaborados coletivamente pelas organizações da sociedade civil. No que se refere
ao aspecto quantitativo, a participação ficou conforme a seguir:
64
REGIÃO Nº CANDIDATOS DEMAIS PARTICIPANTES
NORTE 09 100
BACIA DA LAGOA 12 78
SUL 12 87
BACIA DO ITACORUBI
ATÉ SAMBAQUI
05 51
CENTRO E MACIÇO DO
MORRO DA CRUZ
08 45
CONTINENTE 07 82
Quadro 05 - Participação geral no III Fórum da Cidade – Por região. Fonte: Relatório Final do III Fórum da Cidade.
Pode-se dizer que o Fórum da Cidade procurou ampliar e diversificar os
espaços públicos existentes com o objetivo de influenciar a esfera deliberativa
tradicional.
Um momento particularmente importante e que evidenciou a qualidade
política desta série de eventos denominada III Fórum da Cidade foi o debate com os
candidatos a prefeito para o 1º turno. Dos 09 candidatos, 08 compareceram, com
exceção do candidato Dário Berger. Ao todo, somaram-se 700 participantes,
responsáveis pela elaboração de 99 perguntas aos candidatos.
Já no debate com os candidatos a prefeito para o 2º turno, compareceu o
candidato Francisco de Assis. O candidato Dário Berger novamente não
compareceu ao debate. O número de participantes ficou em 65, responsáveis pela
elaboração de 28 perguntas.
Conforme relatório do evento, o balanço quantitativo da participação em todos
os debates totaliza-se em 1261 participantes.
65
4.6 ANO DE 2005: O ENCONTRO DE PLANEJAMENTO, OS NOVOS SUJEITOS
E A NOVA RELAÇÃO COM O PODER PÚBLICO MUNICIPAL.
A partir do ano de 2004, conforme apontado anteriormente, houve a inclusão
de novos sujeitos como participantes na gestão do Fórum da Cidade, trazendo uma
configuração diferenciada, mais abrangente e complexificada à organização, que
passa a integrar, além das entidades comunitárias, ONG´s ambientalistas e de
assessoria popular. A inclusão destes sujeitos trouxe a tona novos elementos
surgidos a partir da sua integração participativa no Fórum da Cidade. Cabe ressaltar
que a inclusão do segmento ambiental foi de fundamental importância nas
discussões sobre os rumos que estão sendo tomados no processo de crescimento
urbano. Por sua vez, as ONG´s de assessoria, enriqueceram a rede de relações de
solidariedade e contribuíram com a qualificação técnica da organização.
No entanto, devido às modificações na dinâmica organizativa, surgem
elementos de conflito. Com base nestes elementos geradores de divergências
internas, inicia-se, no final do ano de 2004, uma ação de planejamento para o ano
de 2005. Os pontos de conflito eram: critérios de participação e votação nas
reuniões plenárias; composição e atribuições da comissão executiva.
Formou-se em 15 de dezembro do ano de 2004 uma Comissão Organizadora
para o encontro de planejamento para o ano de 2005. A Comissão realizou sete
reuniões para organização, divulgação e elaboração de propostas para o evento.
O Encontro realizou-se nos dias 18 e 19 de março de 2005, contando com a
participação de 46 pessoas, cujos objetivos eram: definir o planejamento para o ano
de 2005, definir a estrutura organizacional e política interna do Fórum da Cidade e
seus próximos dirigentes.
O debate central girou em torno dos elementos geradores de conflitos
internos. A comissão organizadora apresentou proposta de descentralização da
comissão executiva, com a formação de grupos de trabalho por temáticas. Cada
grupo de trabalho teria um articulador com mandato de 6 meses. Conforme proposta
da comissão organizadora, o conjunto dos articuladores dos grupos de trabalho
formaria o Conselho Articulador, o qual deveria submeter todas as suas decisões à
plenária, em suas reuniões quinzenais. O Conselho Articulador substituiria a função
66
do Secretário Executivo, sendo formado por 5 membros, sem nenhum tipo de
hierarquia interna, tendo como critério de composição procurar abranger a
diversidade dos movimentos e de posições políticas. As reuniões da comissão
seriam abertas à participação de todos os interessados.
Sobre a questão do direito a voto nas plenárias, de acordo com o histórico da
organização, todos os participantes presentes podiam votar. No entanto, diante da
possibilidade de manipulação das votações, foram apresentadas duas propostas de
critérios para que ela pudesse ocorrer. A comissão organizadora apresentou como
proposta, o critério de participação nos grupos de trabalho. Neste caso, só teriam
direito a voto os participantes desses grupos.
A segunda proposta de organização das votações previa que as reuniões
seriam abertas, mas somente teriam direito a voto os representantes indicados pelas
entidades com participação assídua nas reuniões.
Os impasses quanto ao direito a voto, de acordo com a fala dos entrevistados,
foram levantados a partir da preocupação em prevenir a ação de grupos que
possivelmente tivessem interesse numa determinada questão e, para garantir a
decisão a seu favor, pudessem inchar a plenária e determinar a votação, por isso, a
adoção de critérios de participação nas votações. O critério de participação por
entidade visou garantir o vínculo estreito com a base comunitária.
Após as apresentações e os trabalhos em pequenos grupos, definiu-se a
estrutura organizacional e política do Fórum da Cidade com a aprovação da
proposta da comissão organizadora, com 22 votos contra 02, encaminhando-se a
formação dos grupos de trabalho, cada um com uma temática específica:
Observatório da Cidade; Plano Diretor; Grandes Empreendimentos e Intervenções
Emergenciais; Comunicação, Formação e Mobilização; Administrativo, Jurídico e
Financeiro. Cada grupo de trabalho deveria ser formado por, no mínimo, quatro
integrantes, e as reuniões se dariam quinzenalmente, intercalando plenárias e
reuniões dos grupos de trabalho.
É interessante observar que as resoluções deste encontro modificam a
estrutura organizativa estabelecida no I Fórum da Cidade. Apesar deste 1º evento já
ter previsto a descentralização em grupos de trabalho, a adoção de critérios de
participação e votação se, por um lado, visam inibir processos manipulatórios que
67
pudessem influenciar as decisões coletivas, por outro, caminham numa direção mais
rígida e formal, podendo dificultar a participação de alguns segmentos.
Por fim, o encontro resultou na elaboração de documento com as seguintes
prioridades de ação para 2005: [...] participar da elaboração do Plano Diretor da cidade de Florianópolis e defender que o mesmo seja realizado de forma integrada e participativa; criar o Observatório da Cidade, para acompanhar as ações do poder público; elaborar estratégias para o fortalecimento do Fórum da Cidade; intervir em questões emergenciais e de grandes empreendimentos. (ATA DO ENCONTRO DE PLANEJAMENTO 2005 - FÓRUM DA CIDADE).
5 FÓRUM DA CIDADE DE FLORIANÓPOLIS – ABORDANDO A
COMPLEXIDADE DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE UM ESPAÇO
PÚBLICO ALTERNATIVO
Antes de adentrar nos objetivos deste capítulo, ou seja, a análise
propriamente dita da organização Fórum da Cidade de Florianópolis é importante
lembrar de alguns aspectos anteriores do histórico político-organizativo das
organizações comunitárias da cidade. Pode-se perceber com base no histórico
descrito no Capítulo 1, a trajetória de luta pela autonomia iniciada por algumas
organizações de bairro. Essas lutas deram início a um processo de conquista de
autonomia por parte dessas organizações, em oposição aos Conselhos
Comunitários fundados de forma atrelada e controlada pelo Estado.
A democratização da cultura e a politização dos diferentes espaços da vida
social (econômico, cultural, ambiental) pelos movimentos sociais, são aspectos
determinantes para o despertar das práticas participativas. Observando as práticas
político-organizativas no contexto de Florianópolis, vemos que inicia-se na década
de 1970, um movimento de resistência ao controle do Estado sobre a sociedade
civil, neste caso referindo-se ao movimento comunitário, que consagrou-se vitoriosa
com a conquista da autonomia dos Conselhos e Associações de Moradores.
As lutas por autonomia e pela promoção de um debate coletivo entre as
organizações sinalizam o efervescer de uma sociedade civil (ou pelo menos um
segmento pertencente à ela) que desperta para a importância da participação nas
decisões políticas frente às questões urbanas surgidas com o crescimento acelerado
da cidade, e a partir daí, busca se fortalecer numa rede de relações para a
construção de espaços públicos de discussão das questões da cidade fora da esfera
estatal, paralelos à esfera pública tradicional.
É certo que as práticas clientelistas, autoritárias e atreladas aos diferentes
partidos políticos persistem até os dias atuais em algumas entidades e espaços
comuns, como traços ainda profundos de uma cultura política arraigada no contexto
69
nacional. No entanto, a cada episódio no decorrer da história de construção dos
espaços públicos alternativos da cidade, percebe-se elementos que podem
proporcionar um aprendizado político para uma cultura democrática que esteja
amadurecida e fortalecida para interagir com a esfera institucional.
Como espaços democráticos que aglutinam a diversidade do social não estão
isentos dos conflitos, das dificuldades inerentes aos processos participativos, tão
pouco estão de práticas clientelistas e autoritárias que ainda persistem. No entanto,
estes espaços construídos de forma coletiva e independente do Estado, aglutinam
diferentes grupos sociais e servem como espaços pedagógico-participativos e
também interventivos para a construção de discussões e decisões coletivas, como
espaços de desenvolvimento de uma participação democrática e deliberativa.
A construção do espaço do Fórum da Cidade e a sua permanência no
decorrer dos anos vêm representar a possibilidade de uma interação comunicativa
entre os diferentes sujeitos integrantes do movimento comunitário da cidade, os
quais possuem em comum, em sua maioria, uma concepção de cidade e de
qualidade de vida divergente daquilo que é pensado pelos seus governantes.
Este capítulo pretende levantar questões sobre o Fórum da Cidade de
Florianópolis com o objetivo de analisar sua trajetória organizativa, objetivos,
dinâmica interna e relação com o Poder Público municipal da cidade de
Florianópolis, entre outros aspectos, tendo como base entrevistas realizadas com
oito integrantes da organização. As entrevistas foram realizadas entre setembro de
2005 e março de 2006.
5.1 O FÓRUM DA CIDADE NA TRAJETÓRIA DE ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DO
MOVIMENTO COMUNITÁRIO DE FLORIANÓPOLIS
No momento em que surgiu a proposta de criação do Fórum da Cidade
muitas pessoas encontravam-se frustradas com iniciativas de espaços públicos
originados no Estado (como foi o caso do Orçamento Participativo e da Agenda 21),
as quais ou ficaram no meio do caminho ou não promoveram uma participação
70
democrática, que privilegiasse a construção coletiva. Iniciativas anteriores eram
marcadas por processos manipulatórios, conforme relata o entrevistado:
Olhando um pouco a história mais recente, dos últimos 20 anos digamos, o referencial é a ECO 92, dado que, pela primeira vez na mídia nacional, ouviu-se falar numa discussão conjunta de várias etnias, povos e culturas no mesmo espaço. Ali nasce a Agenda 21, mas sempre como uma promoção institucional do Estado. Mas esta discussão conjunta existia formalmente, mas as propostas já estavam prontas antes. E o exemplo da Agenda 21 de Florianópolis que se reuniu, discutiu, mas na hora de apresentar o documento, este já estava pronto havia muito tempo e por uma pessoa ou duas. Isso frustrou a comunidade, e o Fórum surgiu logo em seguida, fugiu do institucional e como era uma iniciativa de pessoas que tinham se frustrado adquiriu outra dimensão (ENTREVISTADO 02).
Inicialmente, a Universidade, através do projeto Experiências em Cena,
oportunizou espaço para que o movimento comunitário pudesse se manifestar e se
articular. Conforme descrito no capítulo 3, no terceiro evento, o movimento
comunitário inicia uma mobilização para a criação do Fórum da Cidade.
Analisando o Fórum da Cidade com relação ao histórico de organização
política da sociedade civil de Florianópolis, das tentativas anteriores de formação de
um Fórum de discussão, foram apontados pelos entrevistados vários aspectos
diferenciais desta organização. O primeiro deles é o viés comunitário. O objetivo
inicial, reconhecido por todos os entrevistados, foi a criação de um espaço para o
protagonismo do movimento comunitário, para o fortalecimento e a troca de
experiências deste segmento do movimento popular e de suas demandas.
Um outro diferencial apontado nas entrevistas foi a autonomia diante do
governo municipal, enquanto espaço criado fora da esfera estatal, por iniciativa de
organização da sociedade civil. O movimento comunitário encontrava-se sem uma
organização que unificasse e mobilizasse as lutas coletivas, face ao distanciamento
da UFECO das suas bases e de seus objetivos iniciais, conforme descrito
anteriormente, passando a atuar na década de 1990 a partir de interesses político-
partidários. Neste sentido, o Fórum da Cidade é caracterizado como [...] um espaço construído pelos próprios agentes dos movimentos sociais, um espaço aberto; poderíamos dizer que ele é uma alternativa a ficar militando de uma forma fragmentada e localizadamente, ele é uma alternativa à política de Estado, dos partidos, dos gabinetes parlamentares, etc. (ENTREVISTADO 05).
No entanto, apesar de apresentar características diferenciadas frente às
organizações anteriores existentes na cidade, o Fórum da Cidade serve como
71
espaço de continuidade das suas lutas, trazendo de volta à cena sujeitos
participantes da Agenda 21 do município, por exemplo.
Apresenta-se como experiência única e diferenciada na cidade, no sentido de
que reúne sujeitos militantes dos movimentos comunitários e ambientais, com o
objetivo de integrar e fortalecer as lutas particulares das diferentes comunidades.
Neste sentido, o espaço tem servido, também, para dar visibilidade às organizações
locais.
Seguindo o histórico de lutas das organizações comunitárias, o Fórum da
Cidade vem representar na trajetória político-organizativa da cidade uma reação de
enfrentamento à política institucional do Estado, dado seu fechamento à participação
da população nas decisões da cidade, buscando ampliar a esfera pública para além
da esfera institucional.
5.2 A DINÂMICA INTERNA
Objetivos e princípios foram estabelecidos na criação do Fórum da Cidade,
cujos relatos estão no capítulo anterior, e, com base nisso, buscou-se verificar na
opinião dos entrevistados sua aplicação na dinâmica da organização.
Como já fora dito anteriormente, o Fórum da Cidade nasceu como um
instrumento de mobilização do movimento comunitário diante da realidade de
deterioração da qualidade de vida da cidade.
Criado no ano de 2001, o Fórum da Cidade era composto por representantes
de Conselhos Comunitários, Associações de Moradores e outros diversos tipos de
movimentos comunitários (Movimento Ilhativa, Movimento Campeche Qualidade de
Vida, Fundação Lagoa, entre outros) da cidade, com o objetivo de aprimorar e
fortalecer a discussão sobre a política urbana, e manteve esse perfil até o ano de
2003. No decorrer deste ano e em 2004, percebe-se uma modificação no perfil das
organizações que o compõem, com a inserção de novas ONG´s de cunho
ambientalista e de assessoria aos movimentos populares, fazendo com que a
organização se tornasse mais complexa.
72
Destacando essa diversidade, os entrevistados apresentam o Fórum da
Cidade como um espaço aberto, democrático, que tem como objetivos a discussão
sobre a cidade
Seus objetivos são de discutir, refletir, propor ações e executar atividades para a transformação social na cidade, tendo em vista a superação de conflitos sociais e conflitos ambientais; então, seria mais ou menos no sentido de fazer a defesa do meio ambiente e a defesa da justiça social; eu acho que é isso que tem sido o Fórum, é isso que eu defendo que seja o Fórum (ENTREVISTADO 05).
Os objetivos iniciais do Fórum da Cidade apontam para a ação pedagógico-
participativa, mas também, ficam claras as pretensões de intervenção deliberativa
junto ao Estado nas decisões concernentes às políticas urbanas. Diante disso, a
partir de 2004, com a inserção de militantes especializados na organização e tendo
que enfrentar novos níveis de complexidade no processo de interação com a esfera
estatal, estes objetivos entram em conflito entre si: como avançar na luta pela
participação nos processos deliberativos da cidade e manter o caráter pedagógico-
participativo do Fórum da Cidade harmonizando o ritmo (referindo-se o termo às
condições político-participativas – pessoais, profissionais, financeiras e culturais) dos
diferentes participantes? Ou, posto de outra forma: O Fórum da Cidade deve
participar nos novos níveis de complexidade, sendo que o custo pode ser a
especialização de uma elite dirigente independente das bases sociais que lhe deram
origem, mas que já não podem acompanhar a elite dirigente nas novas esferas
decisivas?
A partir de 2004, portanto, pode-se perceber em parte uma certa
descaracterização ou modificação da proposta inicial que privilegiava seu caráter
pedagógico-participativo, ou seja, de produzir um espaço que possibilitasse e
incentivasse uma interação reflexiva, onde o exercício de procedimentos
democráticos procurasse contribuir com o fortalecimento do protagonismo dos
sujeitos das organizações comunitárias. Percebe-se, em especial nas reuniões
quinzenais, uma oscilação do número de participantes, especialmente por parte das
lideranças e militantes de entidades comunitárias, debilitado, no exercício da gestão
do Fórum da Cidade, o processo pedagógico-participativo e os vínculos com este
segmento.
A distância no que diz respeito às possibilidades de intervenção entre o
militante comum (representante de organizações comunitárias) e o militante
73
profissional foi chave de conflitos e gerou esvaziamento da participação dos
primeiros no Fórum da Cidade. O “ritmo” do militante profissional atropelou o
processo participativo-pedagógico do militante comum,
[...] existem muitas ocasiões que o militante mais antigo, com mais experiência, às vezes com mais vícios políticos – tanto da política de Estado quanto da política da sociedade civil –, tocam as coisas com uma dinâmica mais acelerada do que outros podem acompanhar (ENTREVISTADO 05).
A participação de militantes profissionais especializados na questão ambiental
e urbana, por um lado, possibilitou a inserção do Fórum da Cidade em espaços
deliberativos da esfera pública estatal, fazendo com que houvesse uma ampliação e
um fortalecimento da discussão sobre as questões da cidade, agregando
conhecimento e força ao movimento. No entanto, por outro lado, a complexificação
do nível das lutas do movimento e as exigências de qualificação técnica acabaram
gerando a formação de um grupo dirigente, especializado. Somado à isso, a baixa
na participação por parte da maioria das organizações comunitárias e ambientais,
acabou por produzir um gradual distanciamento nas relações com as bases do
movimento e com os princípios iniciais do Fórum da Cidade, configurando-se a
possibilidade de tornar-se independente de sua base comunitária.
Por um lado, ganhou espaço quem detinha o poder do discurso competente,
e, por outro lado, levou a um afastamento de alguns sujeitos que acabaram
perdendo espaço, em virtude de não deterem este mesmo poder.
Nota-se fortemente, através dos depoimentos de alguns dos entrevistados, a
percepção desta influência de relações de “poder” (militante comum x militante
profissional) dentro do espaço do Fórum da Cidade, prejudicando, dessa forma, o
desenrolar dos processos comunicativos.
A tendência num movimento comunitário que se destaca é o surgimento de novos associados e nem todos são partidários do interesse coletivo, alguns querem mais visibilidade. É difícil saber quem é quem neste processo de oportunidades, conhecimento e crescimento. Em reunião recente do Fórum, tive dificuldades de me exprimir e manifestar opiniões, as discussões eram dominadas pelos “entendidos”. O assunto é complicado, e creio foi a chave do problema no Fórum da Cidade. (ENTREVISTADO 07). Então essas pessoas que estão entrando na política mais recentemente – uns são mais tímidos, uns são mais inexperientes, falam menos, propõem menos – às vezes não se adaptam; entretanto, muitas dessas pessoas que falam menos nas reuniões, fazem muitas atividades. Isso lembra que há de se analisar duas formas de participação na vida política: a da oratória e a da prática [...] (ENTREVISTADO 05).
74
Parte dos entrevistados criticou severamente o que chamaram de
“apropriação do espaço coletivo por parte de grupos específicos”. Além disso,
criticaram a forma de gestão e a metodologia das plenárias, alegando haver
manipulação das discussões e decisões por parte de alguns grupos.
Dagnino também observa essa questão em sua pesquisa sobre os espaços
públicos no Brasil, e analisa que
Essa necessidade de uma qualificação técnica específica tem se revelado um desafio importante para a sociedade civil não só porque ela é condição necessária para uma participação efetiva mas também pelas implicações que ela tem assumido na prática. Em primeiro lugar, a aquisição dessa competência técnica por parte das lideranças dos setores subalternos tem exigido um considerável investimento de tempo e energia que muitas vezes, num quadro de disponibilidade limitada, acaba sendo roubado do tempo dedicado à manutenção dos vínculos com as bases representadas. Esse dilema é central no debate atual no interior da sociedade civil que discute a opção entre luta institucional versus mobilização social [...] (DAGNINO, 2002, p. 284).
Este parece ser um problema central na gestão do Fórum da Cidade e da
UFECO, entidade representativa das organizações comunitárias integrante do
Fórum da Cidade. Ambas se encontraram com este dilema e, em princípio, parecem
tê-lo resolvido privilegiando a luta institucional em detrimento da mobilização social.
Outra questão que modificou os rumos e princípios iniciais da organização foi
a decisão do Fórum da Cidade de limitar a participação na rede virtual de discussão,
e até mesmo, chegou a “desligar” alguns integrantes da rede, fato que foi visto como
ferindo os princípios de caráter “público e democrático” da organização: Atualmente o Fórum trouxe restrições quanto aos sujeitos participantes de sua rede eletrônica, aliás, um ato que gerou discordâncias entre os participantes do Fórum, apesar de ser uma deliberação que passou por votação em reunião do mesmo (ENTREVISTADO 01).
A limitação é justificada em ata de reunião devido à “preocupação quanto à
necessidade de algum grau de controle e conhecimento dos assinantes, haja vista o
provável interesse de certos setores da sociedade em conhecer o teor dos debates,
deliberações e ações do Fórum da Cidade” (FÓRUM DA CIDADE, 2005).
Conforme disserta Dagnino (2002, p. 282) “as continuidades autoritárias e
conservadoras que reproduzem a exclusão na sociedade brasileira estão longe de
estarem confinadas no aparato do Estado e certamente respondem a interesses
enraizados e entrincheirados na sociedade civil”.
75
A função fundamental de um espaço público é trazer as questões
problematizadas pelos movimentos para uma discussão aberta. È justamente aí que
se encontra a riqueza política destes espaços e é por essa via que se produz a
legitimidade do poder da sociedade civil. Restringir o acesso às informações e ao
debate na rede virtual do Fórum da Cidade impede a ampliação e a publicização das
questões a serem problematizadas no coletivo, reproduzindo a lógica excludente,
centralizadora e impermeável dos espaços institucionais do Estado.
Enquanto espaço público, o Fórum da Cidade também é permeado por
conflito de diferentes concepções, enfrentando permanentemente o desafio de
formar uma opinião coletiva. No entanto, é justamente nessa dinâmica que encontra-
se a riqueza do processo democrático, enquanto espaço de amadurecimento de
opiniões, de transformação de opiniões, ou seja, de crescimento político que se dá
na relação com o outro. Restringir a participação àqueles que pensam de forma
semelhante, e evitar o conflito autoritariamente, afastando àqueles que pensam
diferente, que são “incômodos”, minimiza o potencial conflitivo e, ao mesmo tempo,
emancipatório do espaço democrático.
Eu entendo que se optamos pelo Fórum como um espaço aberto, participativo e democrático, deveríamos dar continuidade, na sua dinâmica interna, a estes debates nada lineares. O procedimento coletivo com base em relações democráticas, cria possibilidades para superação de posições antagônicas, mesmo que participações às vezes autoritárias, dificultem o processo de deliberação (ENTREVISTADO 01).
Um exemplo concreto da complexidade das questões que devem ser
resolvidas e dos diferentes posicionamentos, que aparecem, à vista dos
propositores, como “a verdade”, temos nas discussões sobre o processo decisório
dentro do Fórum da Cidade.
No encontro de planejamento para o ano de 2005 houve um impasse entre os
seus integrantes: todos defendiam o direito de participação, o “direito à voz”, para
todos os interessados nos debates; no entanto, quando houvesse a necessidade de
se levar alguma questão para votação, parte defendia que só teriam “direito a voto”
os sujeitos que estivessem representando alguma entidade; outra parte defendia o
direito a voto para todos os participantes presentes. Venceu a segunda proposta,
mas com nova condição. O desfecho e sua justificativa são colocados pelo
entrevistado a seguir:
76
Um passo diferente que foi dado nesse planejamento é que, em havendo a necessidade de voto, pra não correr risco de pessoas que caem de pára-quedas – e pessoas que às vezes possam trazer para alguma questão específica do seu interesse e de repente encham a sala de conhecidos ou parentes (embora nunca tenha chegado a esse extremo) – só votem as pessoas que estejam atuando dentro de algum Grupo de Trabalho (ENTREVISTADO 05).
Parte dos entrevistados critica severamente a decisão do coletivo, alegando
que essa forma de votação privilegia a participação dos militantes profissionais, que
possuem melhores condições (de tempo, financeiras e, principalmente, profissionais)
de estarem freqüentando regularmente as reuniões e compromissos exigidos pelo
coletivo. Neste sentido, o voto para quem trabalha nos grupos de trabalho (referindo-
se a proposta vencedora), não fez mais que reforçar a lógica de constituição de um
grupo de militantes ativos, autoreferenciados, que poderá levar ao isolamento do
grupo dirigente. A proposta derrotada, de voto por entidade representada, visava,
segundo seus propositores, evitar os problemas do voto indiscriminado,
conservando o vínculo com as entidades e as propostas e decisões provindas
destas, evitando assim também o fechamento no “grupo dos que mais trabalha”.
Retornando aos princípios que deram origem à organização do Fórum da
Cidade, afirmam que:
- Não deve perder de vista sua natureza ética – os seus vínculos com os movimentos sócio-popular comunitários;
- A participação dos sujeitos coletivos deste movimento é que dará qualificação ao Fórum da Cidade (FÓRUM DA CIDADE, 2001).
A decisão do “direito a voto“ para quem trabalha nos grupos de trabalho,
privilegia a participação individual em detrimento da participação dos sujeitos
coletivos e, além disso, contribui para o enfraquecimento dos vínculos com o
movimento comunitário, visto que desvincula a participação e o voto do sujeito da
sua relação de representante de entidade.
A complexificação, a formalização e a burocratização dos espaços públicos,
de acordo com o que alertou Habermas, pode significar “a rendição aos imperativos
organizacionais e o conseqüente distanciamento da base”, conforme tendência que
vem sendo percebida na dinâmica do Fórum da Cidade.
No entanto, visto que os objetivos da organização não são apenas de discutir
questões, mas também de buscar a ação efetiva, há a necessidade de se
estabelecerem regras para o próprio processo deliberativo. A questão que se coloca
77
então é a seguinte: Que regras o fazem mais democrático, sem perder efetividade
na ação política, quando a participação é composta por diferentes sujeitos coletivos?
Certamente no paradigma teórico que estamos utilizando, o processo de
participação em um espaço coletivo supõe a disposição para o encontro com o
diferente, a legitimidade do conflito, o desafio de superar opiniões e a construção em
conjunto. É um processo de aprendizado democrático dinâmico, com avanços e
retrocessos. Concordando com a afirmativa de Costa (2002, p. 27) na análise deste
ponto, é na interação comunicativa de uma comunidade política que há a criação e
institucionalização de procedimentos democráticos, onde os sujeitos “constituem as
condições de possibilidade da convivência e da tolerância mútua, além dos acordos
em torno das regras que devem reger a vida comum”.
A baixa participação dos militantes do movimento comunitário no Fórum da
Cidade (Associações de Moradores, Conselhos Comunitários e movimentos de
diversos tipos) foi levantada em todas as entrevistas como uma deficiência da
organização e foi apontada a necessidade de resgatar as relações com a base.
Além dos conflitos internos que geraram gradual afastamento de militantes dos
movimentos comunitários, somam-se a isto as dificuldades de participação oriundas
das rotinas pessoal e profissional encontradas pela maioria das lideranças
comunitárias para manter uma participação voluntária assídua no movimento
popular do seu bairro e no coletivo maior. A participação exigida a partir da militância
na comunidade e no Fórum da Cidade acaba por sobrecarregar as lideranças,
fazendo com que elas priorizem a participação nas discussões e eventos de maior
relevância para as organizações e comunidades nas quais militam. Além disso, foi
apontada a falta de recursos humanos e financeiros para mobilização.
Uma das soluções apontadas foi o fortalecimento da participação da UFECO
e das organizações comunitárias na gestão do Fórum da Cidade. A participação de
um representante da UFECO nas reuniões não mostrou-se suficiente na opinião dos
entrevistados, para que o espaço se torne realmente representativo destas
entidades e atue como espaço de fortalecimento deste segmento do movimento na
discussão sobre política urbana, como fora pensado em seus objetivos iniciais. Parte
dos entrevistados indicou a UFECO como entidade responsável pela mobilização à
participação do movimento comunitário, tendo como justificativa o momento atual de
grande complexidade de questões que estão em pauta no Fórum da Cidade.
78
Referindo-se ainda a questão da mobilização à participação das entidades
comunitárias, a maior parte dos entrevistados destacou como fundamental o papel
da assessoria prestada pelos Departamentos da Universidade Federal de Santa
Catarina, em especial os Departamentos de Serviço Social, Ciências Sociais,
Arquitetura e Urbanismo, Ciências Biológicas, entre outros. O trabalho intenso de
divulgação e mobilização, contatando e visitando as organizações comunitárias para
os eventos, realizado pelo Núcleo de Estudos em Serviço Social e Organização
Popular – NESSOP – durante os primeiros anos de existência do Fórum da Cidade,
mostrou-se efetivo para a promoção de uma maior participação destas
organizações, contribuindo com a ampliação da visibilidade do Fórum da Cidade.
Apesar das oscilações da participação nas reuniões periódicas em
determinados períodos de sua existência, o Fórum da Cidade apresenta-se como
uma expressão legítima dos movimentos organizados da cidade que procuram agir
coletivamente, na medida que tem conseguido basear suas agendas de lutas nas
prioridades estabelecidas pelas comunidades através de diagnósticos regionais
construídos nas discussões ao longo dos cinco anos de sua existência,
principalmente nos grandes eventos, instrumentalizando e procurando assegurar o
direito de participação popular na gestão da cidade, conforme prevêem seus
objetivos iniciais.
No entanto, de acordo com a fala da maioria dos entrevistados, pode-se
perceber um “deslocamento no entendimento da representatividade”, conforme
também destaca Dagnino (2002, p. 291) em sua análise sobre as ONG´s:
Considerando ainda que sua representatividade vem do fato de que expressam interesses difusos na sociedade, aos quais “dariam voz”. Essa representatividade adviria então muito mais de uma coincidência entre esses interesses e os defendidos pelas ONG´s do que de uma articulação explícita, ou relação orgânica, entre estas e os portadores destes interesses.
Fica evidente a modificação do perfil dos participantes e da organização como
um todo. Por um lado, houve uma ampliação do espaço público do Fórum da Cidade
com a inclusão de novos sujeitos, questões de luta e inserção na esfera institucional.
No entanto, por outro lado, perdeu parte da relação com o segmento que era ligado
na sua origem. Frente aos riscos da perda gradual das relações com a base
comunitária do Fórum da Cidade, cabem os seguintes questionamentos: Se lhe falta
representatividade junto ao movimento comunitário, a quem representa? Formou-se
79
um grupo dirigente especializado e autônomo, que trabalha na luta pela participação
nas decisões da política urbana da cidade, para quem? Essa seria a prática
deliberativo-participativa pensada como ideal? O coletivo do Fórum da Cidade não
estaria, dessa forma, caindo nas armadilhas da atual democracia representativa,
condenada pelo próprio movimento? Como manter os vínculos com a base e
avançar no processo deliberativo? Como avançar sem atropelar/romper o processo
político-pedagógico permanente de ampliação e formação de novos contingentes do
movimento popular?
5.3 AS RELAÇÕES COM OS GOVERNOS E OS PARTIDOS POLÍTICOS
O Fórum da Cidade, criado no ano de 2001, já passou por duas gestões da
Prefeitura de Florianópolis: 2001-2004 com a prefeita Ângela Amim e 2005-2006
com o prefeito Dário Berger. Nestes anos de existência, de acordo com a opinião da
maioria dos entrevistados, a organização vem conquistando reconhecimento, tanto
por organizações da sociedade civil quanto pelo Poder Público municipal
O Fórum da Cidade realizou, com a participação da população, diagnósticos e proposições municipais e regionais sobre suas questões urbanas, além de promover espaços públicos de debates e plenárias propositivas e deliberativas sobre a “Cidade que Queremos”. Além disso, contribui para a participação popular nas audiências públicas. (ENTREVISTADO 01). Então, o Fórum da Cidade hoje é uma representação importante, necessária, fundamental, uma referência. O Fórum é convocado para as audiências públicas importantes. Não é entidade legalmente constituída, não possui CNPJ, mas ele tem reconhecimento político. Exemplo disso é sua participação na Tribuna Livre da Câmara de Vereadores, onde, regimentalmente, as entidades para participarem têm que ser juridicamente formalizadas, mas para o Fórum eles passam por cima desta legalidade imperante (ENTREVISTADO 04).
Alguns entrevistados apontaram a necessidade de ampliação da participação
no Fórum da Cidade, para que este se torne realmente representativo da sociedade
civil como um todo, e não somente do movimento comunitário, incluindo também
outros segmentos. A inserção do movimento ambientalista e de ONG´s foi um passo
nesta direção.
Apesar das limitações, percebe-se que o Fórum da Cidade, além de
conseguir estabelecer influência sobre os espaços públicos institucionais, ainda
80
conquistou certo espaço na esfera deliberativa oficial. A articulação entre o
movimento comunitário – com as suas necessidades e lutas, a Universidade e as
ONG´s – contribuindo com assessoria técnica e enriquecendo a rede de relações de
solidariedade, inclusive com órgãos do poder público, contribuíram com a
capacitação técnica e política do Fórum da Cidade. Diante disso, apesar das
dificuldades internas, os entrevistados deixam claras as evidências de relevância
política do Fórum da Cidade, destacando sua competência e capacidade de se
contrapor diante do poder público municipal: “[...] a influência que o Fórum teve na
anulação da primeira conferência da cidade, que aconteceu de maneira autoritária
por parte do governo municipal é um exemplo disso”. (ENTREVISTADO 03).
Sobre as relações com o poder público municipal na gestão Ângela Amim, os
entrevistados têm opiniões coincidentes em torno do fechamento político por parte
do governo municipal para a participação da sociedade civil nas decisões sobre a
cidade.
Com o governo da prefeita Ângela Amim, que foi o período que eu participei no Fórum da Cidade, era uma relação difícil, trancada, o Fórum não era reconhecido pelo poder público (ENTREVISTADO 03). Houve insistência da parte do Fórum da Cidade, intervindo, propondo, entrando na justiça, requisitando diversas questões e a prefeitura sempre fechando as portas, sempre negando diálogo, sempre barrando não só o Fórum como os movimentos sociais em geral (ENTREVISTADO 05).
As atitudes de recusa e de fechamento para o diálogo da prefeitura diante dos
movimentos organizados da cidade, aumentaram a revolta destes sujeitos, servindo
como mais um fator de mobilização coletiva em prol de suas lutas.
A capacidade de se contrapor ao modelo de desenvolvimento adotado pelo
governo municipal, apontando novas possibilidades e propostas, evidenciou-se
também nos debates com os candidatos a vereadores e prefeito, promovidos para
as eleições de 2004. Neste momento, foram amplamente divulgadas e mencionadas
pelos próprios candidatos as propostas populares para o planejamento e gestão da
cidade apresentadas pelo Fórum da Cidade, fruto do trabalho de três anos de
construção de um programa de reivindicações e uma agenda de ações nas bases
comunitárias.
Após as eleições de 2004, a situação modificou-se. As opiniões evidenciam
que o Fórum da Cidade conquistou uma certa “legitimidade”, diante do poder público
municipal, sendo convidado à participar da organização da Conferência da Cidade e
81
da discussão do Plano Diretor. No entanto, evidencia-se a conflitualidade de projetos
políticos entre a gestão municipal e o movimento comunitário e ambiental de
Florianópolis.
Apesar da nova prefeitura permitir uma certa abertura para o diálogo, o que
configurou fato de grande relevância para a organização, seu projeto político
evidencia-se na forma de gestão, na condução das políticas públicas e dos grandes
empreedimentos em construção na cidade, os quais continuam sendo foco de
monitoramento e de luta do Fórum da Cidade pela preservação e melhoria da
qualidade de vida, agora representado na Comissão para formação do Conselho da
Cidade e do Plano Diretor.
Daí o Dário foi eleito e vimos que havia uma abertura. Talvez para nos conhecer ou tentar cooptar. Sinalizou que iria realizar a II Conferência da Cidade, até que houve uma manifestação oficial por parte da arquiteta Silvia Lenzi do IPUF em uma reunião da Comissão Preparatória da Conferência Estadual que disse: “Nós vamos formar uma comissão, vamos chamar todo mundo”. Daí nos chamou realmente para compor a comissão da II Conferência da Cidade. A II Conferência teve uma participação razoável, até porque teve uma divulgação muito fraca e o prefeito não jogou o peso político que ele poderia jogar, mas fez, não podemos dizer que não fez. (ENTREVISTADO 04). Já havia uma abertura da cidade para os interesses dos especuladores e isso continua, pelas propostas de gestão e pelas propostas de políticas públicas que ele tem executado, o que dá a entender que ele sabe muito bem o que está fazendo, que está bem articulado e que é uma forma de aprofundamento da exploração capitalista sobre a cidade. (ENTREVISTADO 05).
Cabe ressaltar que, no Brasil, a participação popular foi muitas vezes inserida
nos programas de governo que não possuem como projeto político o
desenvolvimento de processos democrático-participativos, sendo utilizada também
para obtenção de visibilidade política e legitimidade da gestão.
Formas de gestão como esta conspiram contra uma proposta de participação
deliberativa que prevê comprometimento por parte dos governos em promover uma
participação qualificada, a fim de que não se reproduzam experiências de
participação manipulada na cidade.
Uma cultura política autoritária e centralizadora, como tradição do Brasil,
apresenta grandes dificuldades no que diz respeito a partilha do poder,
configurando-se um dos grandes desafios para a sociedade civil. Além de influenciar
e se inserir na esfera pública deliberativa, ainda precisa buscar construir uma
82
participação que partilhe efetivamente o poder de decisão entre sociedade civil e
Estado.
Dagnino (2002, p. 279), quando analisa os espaços públicos do Brasil,
destaca a fragmentação e a contraditoriedade como características do processo de
construção democrática, marcado, por exemplo, na sociedade civil, pela pluralidade
de interesses e falta de uma cultura política democrática, e, na relação desta com o
Estado, “cujo desenho autoritário permanece largamente intocado e resistente aos
impulsos participativos”.
A autora analisa as dificuldades de partilha de poder por parte do poder
público no Brasil, e afirma ainda “... mesmo quando existe, tem um caráter limitado e
restrito, sem ampliar-se para decisões sobre políticas públicas mais amplas, que
pudessem ter um impacto significativo para a sociedade como um todo”. (DAGNINO,
2002, p. 283).
No caso de Florianópolis, evidenciam-se os limites da participação da
sociedade civil face aos impedimentos gerados pelo fato do poder de decisão estar
centrado no Estado, o que é colocado com precisão por um dos entrevistados:
Os vereadores sabem que numa concepção democrática de partilha do poder posta pelo Estatuto da Cidade, com formação do Conselho da Cidade, do Orçamento Participativo e do Planejamento Participativo eles perdem a força, mas paradoxalmente, em última análise, quem aprova o Plano Diretor Participativo, que é uma lei, é a Câmara de Vereadores. Então, eles têm, lá no final, a possibilidade de mexer em tudo. Por isso, acho que eles jogam um pouco: “Vamos fazer esse processo e no final cai aqui na Câmara para votação, quem manda no final somos nós”. Afinal, eles não querem, de fato, dividir o poder, porque uma dinâmica de Plano Diretor, de Conselho da Cidade, de Orçamento Participativo valoriza e exige a participação mais efetiva da sociedade e enfraquece o político tradicional que monta a sua estratégia política de eleição e reeleição em cima do clientelismo, do favor, do poder pessoal (ENTREVISTADO 04).
A partilha efetiva do poder, de acordo com Dagnino (2002, p. 282) é foco dos
conflitos entre Estado e sociedade civil no Brasil, embasando-se nas diferentes
concepções sobre “participação da sociedade civil” para ambos. “Essas diferentes
concepções se manifestam, paradigmaticamente, de um lado, na resistência dos
Executivos em compartilhar o seu poder exclusivo sobre decisões referentes às
políticas públicas. De outro, na insistência daqueles setores da sociedade civil em
participar efetivamente dessas decisões e concretizar o controle social sobre elas”.
Quanto ao relacionamento com partidos políticos, o Fórum da Cidade,
enquanto um espaço público alternativo, apresentou uma fragilidade na sua relação
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com o Partido dos Trabalhadores. Segundo evidencia esta pesquisa, no decorrer do
processo eleitoral no ano de 2004, mostrou estar sendo influenciado por tendências
partidárias. O caso mais polêmico parece ter sido um evento intitulado “Cidade em
Debate”, evento este auspiciado por uma das tendências do PT e que foi visto por
parte dos militantes do Fórum da Cidade como imposto “por fora”:
Num belo dia, nós nos surpreendemos com um cartaz que começou a ser divulgado e pendurado dentro das salas de aula e nos corredores, onde estava o selo do Fórum da Cidade promovendo os debates. Eu, que na época era um dos participantes mais assíduos do Fórum da Cidade, fiquei estarrecido com esta história (ENTREVISTADO 06).
Naquele momento particular, as relações entre os participantes do Fórum da
Cidade pareceram se verticalizar, a partir de uma certa centralização das decisões
num grupo dirigente.
O ponto central que chama a atenção nestes acontecimentos é a questão da
autonomia do movimento. Não parece ter sido problemático na história do
movimento o estabelecimento de relações autônomas com os partidos políticos,
posicionando-se frente aos diferentes projetos políticos. O que deflagrou conflito foi
o fato de se perceber que o movimento se subordina a um determinado partido
político, como parece ter sido o caso da participação do Fórum da Cidade no
referido evento.
Esse tipo de atitude é percebida como contrária aos objetivos e princípios de
um espaço público democrático que tenha como objetivo a formação de uma opinião
coletiva legítima. A autonomia foi luta constante no histórico de luta da sociedade
civil brasileira e florianopolitana e constitui-se como fundamento para a ampliação
dos espaços públicos e para a construção da democracia deliberativa.
Pode-se concluir que o Fórum da Cidade surgiu como um novo tipo de
associativismo na cidade de Florianópolis, na direção proposta por Lüchmann
(2002), ou seja, de construção de um novo formato institucional democrático,
reconfigurando os mecanismos tradicionais de participação e decisão política.
Contudo, as novas configurações internas, as novas esferas de atuação e a
complexidade das novas tarefas políticas se colocaram como enormes desafios para
o desenvolvimento como espaço público alternativo do movimento social de
Florianópolis.
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Nestes termos, a abertura e o comprometimento do Estado é de fundamental
importância para que possa haver além da ampliação da participação da sociedade
civil nas decisões políticas, também a qualificação desta participação, estabelecendo
procedimentos que potencializem o conflito legítimo, inerente ao processo
democrático, para a promoção do bem comum.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tratando-se da sociedade brasileira com suas características sócio-
econômicas e culturais, são muitas as dificuldades encontradas para a construção
de uma participação democrático-deliberativa. As diferenças econômicas e culturais
gritantes e a ausência de uma cultura participativa são exemplos disso. Soma-se a
isto, a resistência do Estado para com as tentativas de participação da sociedade
civil, evidenciando um histórico de autoritarismo e centralização, resistente à partilha
de poder.
No entanto, partindo da diversidade e da pluralidade da sociedade brasileira,
surgem experiências participativas que contribuem com a construção da
democracia, publicizando novas questões e buscando ampliar os espaços públicos
institucionais. Neste sentido, vão se tecendo novas relações entre Estado e
sociedade civil.
Um exemplo destas novas experiências encontra-se no sujeito desta
pesquisa, o Fórum da Cidade de Florianópolis. Considerando o histórico político-
organizativo da cidade de Florianópolis, marcado pela tradição patrimonialista e
clientelista, este espaço adquire relevância na medida que tenta colocar o
movimento social como sujeito do processo. Sua posição de autonomia em relação
ao Estado representa, por um lado, a decepção com processos anteriores marcados
pela manipulação da participação popular, e, por outro lado, o amadurecimento
político de um segmento da sociedade civil numa tentativa de unificar e fortalecer
suas lutas individuais. Neste sentido, evidencia-se a importância do conhecimento
da trama associativa existente na cidade, descrita rapidamente no capítulo 1, para
uma melhor compreensão dos processos atuais.
A realidade de deteriorização da qualidade de vida na cidade impulsionou
este segmento para a luta pela participação nas decisões quanto aos rumos a serem
tomados para o seu desenvolvimento.
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Diante disso, este estudo buscou descrever e iniciar uma análise sobre os
obstáculos e perspectivas encontrados pelo movimento para a construção do
espaço público alternativo denominado Fórum da Cidade de Florianópolis, partindo
da sua comparação com as experiências participativas anteriores no contexto da
cidade, da sua dinâmica interna e da sua relação com o Estado. Evidenciou-se no
estudo a complexidade, a conflitualidade e a dinâmica de avanços e retrocessos
característicos do processo de construção democrática, gerados pela pluralidade de
indivíduos e interesses existentes nestes espaços.
O conflito, fator inerente aos espaços públicos plurais, pressupõe o
reconhecimento e o respeito às diferentes concepções. Portanto, deve ser tratado
legitimamente, possibilitando iguais condições de participação à todos os
interessados, para que não se torne fator limitante do processo democrático, como
nos indica Dagnino (2002, p. 285), salientando as dificuldades do aprendizado da
convivência entre os diferentes na análise das experiências de espaços públicos
brasileiros:
O reconhecimento da pluralidade e da legitimidade dos interlocutores é requisito não apenas da convivência democrática, em geral, mas especialmente dos espaços públicos, enquanto espaços de conflito que têm a argumentação, a negociação, as alianças e a produção de consensos possíveis como seus procedimentos fundamentais.
As dificuldades encontradas em conciliar os objetivos político-pedagógicos, de
ampliação da participação cidadã a partir das bases sociais, e de inserção
institucional aparentam ser a maior fragilidade do movimento, o qual acaba tendo
que escolher entre manter uma mobilização constante da base, conferindo maior
legitimidade às suas ações e lutas, e a luta institucional, a qual exige capacitação
técnica para que seja efetiva. No entanto, a priorização da luta institucional mostra a
tendência à formação de um pequeno grupo dirigente, especializado e, de certa
forma, independente da base.
O fechamento do governo municipal para com as tentativas participativas do
movimento comunitário também se apresentou como limite às ações do Fórum da
Cidade. Evidencia-se, portanto, a importância de se construírem projetos políticos
compartilhados entre sociedade civil e Estado para a efetivação de processos
participativo-deliberativos. Apesar disso, o Fórum da Cidade demonstrou capacidade
técnica e política no episódio de enfrentamento à I Conferência da Cidade
87
promovida de forma manipulada pela Prefeitura Municipal e conquistou, agora na
gestão de Dário Berger, inserção em espaços institucionais, evidenciando sua
importância no cenário político da cidade e as possibilidades de ampliação dos
canais entre Estado e sociedade civil.
Contribui, dessa forma, para a descentralização das decisões, para uma
maior transparência das ações do Estado e para a construção de uma concepção de
política mais abrangente (DAGNINO, 2002).
O espaço público do Fórum da Cidade apresenta-se, inicialmente, como
espaço unificador e fortalecedor do movimento comunitário, incluindo,
posteriormente, organizações ambientalistas e ONG´s, que agregaram força e
capacidade técnica e política ao movimento. No entanto, devido à falta de
mobilização de base, à grande rotatividade e oscilação da participação e às opções
políticas e organizativas não foi capaz de ampliar sua representatividade, na medida
que agrega um número pequeno de organizações frente ao universo existente na
cidade de Florianópolis.
Diante dos elementos colocados para a análise do Fórum da Cidade, o
grande desafio que se coloca para os movimentos sociais de Florianópolis é a
construção de um espaço mais amplo e legítimo em termos participativos, capaz de
levar adiante um processo democrático-participativo expansivo. Coloca-se o desafio,
também, às organizações representativas do movimento comunitário, como é o caso
da UFECO, na medida que deve atuar na potencialização da participação dos seus
representados, investindo mais ações no processo de mobilização social. O
comprometimento governamental com propostas como essa, sendo receptivo às
iniciativas participativas da sociedade civil, também se coloca como elemento
fundamental para que se construam espaços plurais para a explicitação e
equacionamento dos conflitos.
Apesar dos limites apontados, o Fórum da Cidade tem atuado de forma a
fortalecer as lutas das comunidades individuas, além de contribuir com o
fortalecimento da UFECO também nas suas lutas, na medida que soma forças e
possibilita uma visão mais abrangente, colocando-as como lutas pela qualidade de
vida e pela participação nas decisões sobre a cidade.
Finalmente, esta investigação evidencia o Fórum da Cidade como um sujeito
coletivo ainda em processo de constituição como movimento da sociedade civil
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florianopolitana, e, enquanto tal, atravessado por contradições e conflitos que o
colocam permanentemente em questão. Se, como espaço construído pela ação
autônoma da sociedade civil, saberá utilizar estes conflitos e contradições como
potencializadores de seu amadurecimento político é ainda uma página por escrever.
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