Micropolítica do Fracasso Escolar - uma tentativa de aliança com o invisível [ Sonia Pinto de...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO CENTRO PEDAGGICO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

SONIA PINTO DE OLIVEIRA

MICROPOLTICA DO FRACASSO ESCOLAR: UMATENTATIVA DE ALIANA COM O INVISVEL

VITRIA 2001

SONIA PINTO DE OLIVEIRA

MICROPOLTICA DO FRACASSO ESCOLAR: UMATENTATIVA DE ALIANA COM O INVISVELDissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Educao do Centro Pedaggico da Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial para a obteno do Grau de Mestre em Educao. Orientadora: Prof. Dr. Maria Elizabeth Barros de Barros

VITRIA 2001

SONIA PINTO DE OLIVEIRA

MICROPOLTICA DO FRACASSO ESCOLAR: UMATENTATIVA DE ALIANA COM O INVISVEL

COMISSO EXAMINADORA

___________________________________________________ PROF. DR. MARIA ELIZABETH BARROS DE BARROS ORIENTADORA

___________________________________________________ PROF. DR. DENISE MEYRELLES DE JESUS

___________________________________________________ PROF. DR. REGINA DUARTE BENEVIDES DE BARROS

___________________________________________________ PROF. DR. NELSON ANTNIO ALVES LUCERO

VITRIA, ______ DE ____________________ DE 2001.

Dedico... Escola Pblica.

AGRADECIMENTOSA todos aqueles que, intercessores, possibilitaram a realizao deste trabalho, dando expresso e forma s inquietaes. Especialmente:

ao espao pblico de educao pela oportunidade que me deu de gerir este trabalho;

Maria Elizabeth Barros, amiga muito querida, que, com sua fora gigante, sempre me ensina a apostar nas utopias;

a Robinson Lima, meu companheiro de tantos anos na construo de caminhos sempre possveis;

Lierte Gurtler que, com sua amizade, ajudou a construir literalmente cada palavra deste trabalho;

Alina Bonella que cuidou do texto com extrema dedicao e suavidade; Denise Meyrelles que sempre me trazia contribuies inestimveis em cada encontro nosso;

a Nelson Lucero que, em nossas alianas, foi fundamental; Regina Benevides, cmplice-intercessora em um percurso de muitos anos; a todos os integrantes da escola, companheiros de viagem na inveno da educao escolar;

aos alunos do Curso de Psicologia da UFES, meus grandes e queridos intercessores;

aos meus filhos, Pedro, Bruno e Rafael, pelo cotidiano carinho solidrio; ao meu doce e amigo peloto de fuzilamento que provocou o pontap inicial: Beth Arago, Beth Barros e Ana Lcia Heckert.

...buscando lanar luz sobre o que deve ser entendido por inveno, retomo a etimologia da palavra latina invenire, que significa encontrar relquias ou restos arqueolgicos (Stengers, 1983). Tal etimologia indica o caminho a ser seguido: a inveno no opera sob o signo da iluminao sbita, da instantaneidade. Esta somente sua fenomenologia, a forma como ela se d visibilidade. A inveno implica uma durao, um trabalho com restos, uma preparao que ocorre no avesso do plano das formas visveis. Ela uma prtica de tateio, de experimentao, e nessa experimentao que se d o choque, mais ou menos inesperado, com a matria (Kastrup, 1997, p. 210-211).

O fracasso e o sucesso so dois impostores (Jorge Luiz Borges, informao oral).

Uma prtica poltica que persiga a subverso das subjetividades de modo a permitir um agenciamento de singularidades desejantes, deve investir o prprio corao da subjetividade dominante, produzindo um jogo que a revela, ao invs de denunci-la. Isto quer dizer que ao invs de pretendermos a liberdade (noo indissoluvelmente ligada conscincia), temos que retomar o espao da farsa, produzindo, inventando subjetividades delirantes que, num embate com a subjetividade capitalistica, a faam desmoronar (Guattari, 1986, p. 30).

A partir do momento em que h uma relao de poder, h uma possibilidade de resistncia. Jamais somos aprisionados pelo poder, poderemos sempre modificar sua dominao em condies determinadas e segundo uma estratgia precisa (Foucault, 1979, p. 241).

SUMRIO RESUMO .........................................................................................................9

ABSTRACT ...................................................................................................... 10 INTRODUO ................................................................................................. 11 1 CONSTRUINDOFERRAMENTAS AO AFIAR O TRABALHO: A DIMENSO

MICROPOLTICA ........................................................................................

22 23 38 56 61 74 88 89

1.1 ARQUEOLOGIA OU ESSA CORTINA DE ENUNCIADOS ............................................. 1.2 GENEALOGIA E O MENINO-DA-SINETA ........................................................ 1.3 CONTROLE E VELOCIDADE: PEDAOS DO CONTEMPORNEO .............................. 1.4 SUBJETIVIDADES EM USINAGEM ................................................................. 1.5 TUDO POLTICO, AO MESMO TEMPO MACRO E MICROPOLTICO ......................

2 A POSITIVIDADE DO FRACASSO ESCOLAR .................................................2.1 ALGUMAS PAISAGENS DAS APRENDIZAGENS ................................................

2.2 FRACASSO ESCOLAR: CUTUCANDO AS EXPLICAES ................................. 101

3 ESCOLA DE MASSA E FRACASSO ESCOLAR ................................................ 1123.1 ESCOLA E LIBERALISMO E EU COM ISSO? ................................................. 114

3.2 ESCOLA/CAPITALISMO E NEOLIBERALISMO: ECONOMIAS .............................. 120 3.3 ESCOLA-FAMLIA-MEDICINA HIGIENISTA INFNCIA, OU O QUARTETO EM SI.... 3.4 ESCOLA E PRTICAS PSI, OU A MENOR DISTNCIA POSSVEL ENTRE O OLHO E OUMBIGO ...................................................................................................

131

145 160

3.5 ESCOLA

E

PRTICAS PEDAGGICAS, OU COM A PALAVRA O PROJETO DE

REALIZAO HUMANA .............................................................................

4 CORTES E COSTURAS ................................................................................4.1 PESCANDO A REDE: FRACASSO ESCOLAR EM UMA VISADA MICROPOLTICA ....... 4.2 MEU MUNDO CAIU! IGUAL QUELA MSICA ............................................. 4.3 FRACASSOS E SUCESSOS OU SUCESSOS E FRACASSOS ..................................... 4.4 A VIDA PULSA NA ESCOLA .........................................................................

177 178 187 190 205

5

AFIRMANDO TRS HISTRIAS-PROPOSIES NA ALIANA COM O INVISVEL ................................................................................................. 2155.1 O MISTRIO DO COELHO PENSANTE ........................................................... 215

5.2 TIRAR PARTIDO... OUSAR E ABUSAR OU O QUE DAR CERTO? NO PARAR DE CUTUCAR ........................................................................................ 219 5.3 PLANTANDO RIZOMA NAS RVORES ........................................................... 233

6 CONCLUSO ............................................................................................... 238 7 REFERNCIAS ............................................................................................ 246

RESUMOFracasso escolar a denominao que tem sido utilizada para fazer referncia ao insucesso escolar do aluno, o que, na maioria das vezes, culmina com reprovao/evaso escolar. Este trabalho procura trazer o fracasso escolar em uma dimenso micropoltica de anlise. Essa dimenso diz respeito ao plano mesmo da constituio de sujeitos/objetos o objeto fracasso escolar, sujeito do fracasso. Fazer uma anlise micropoltica em face ao objetivo proposto adentrar no campos das prticas que, como tais, constroem e descontroem sujeitos/objetos; no sendo estes, portanto, por ns concebidos como naturais, com existncia a priori. Por meio da micropoltica, interrogamos os regimes de verdade constitudos. Apontamos alguns acontecimentos que, ao emergirem em uma intrincada rede, do visibilidade e dizibilidade repetncia/evaso escolar. Ao trazermos o discurso liberal, os arranjos capitalsticos em suas economias, a estreita relao famlia nuclear higienizada, infncia particularizada e tudo isso em uma genealogia da escola de massas, dizemos desses acontecimentos na emergncia do fracasso escolar, e da Pedagogia que se coloca em ntima relao com a Psicologia. Percorremos tambm algumas paisagens da aprendizagem em suas abordagens e explicaes que tm sido construdas em relao ao fracasso escolar. Nesse cenrio, desenhamos dois rostos do fracasso escolar: um liberal, outro neoliberal. O primeiro vinculado sociedade disciplinar, o segundo sociedade de controle. Todos esses acontecimentos supem lutas permanentes que desmancham seus contornos dando passagem a movimentos de resistncia, a singularizaes, aos movimentos do desejo revolucionrio sempre poltico. Contemplando o espao da diferena pura, engendram experimentaes diversificadas, outras produes de sujeito/objeto no reportadas a modelos (que por muitas vezes aprisionam a expanso de mundos). A partir dessa tica/tica de anlise, afirmamos que o fracasso escolar pode estar cutucando uma experimentao para alm do fracasso/sucesso e dizemos que esse um funcionamento que convida construo de outras prticas. Ao desestabilizar frmas delineadas no vis da subjetivao/objetivao capitalstica, ou seja, ao inquietar uma certa aprendizagem, um certo aprendiz, a educao escolar, uma inteligncia, um professor, uma infncia, uma escola... pode estar sinalizando um devir que pede outros encontros. Se o fracasso escolar uma produo inscrita em uma possibilidade de vida, para desmanch-lo, outra possibilidade de vida ter que ser inventada. Construir sadas inventar novas entradas, novos questionamentos e experincias, o que j nos espreita em sua realidade concreta, real, mesmo que invisvel. Se quisermos outras experincias educativas so outras prticas que devem ser fabricadas na aliana com esses blocos de invisveis que pedem passagem, expresso e forma j que vazam, escapam, fogem s modelizaes. preciso inaugurar outra tica na construo da vida que como tal abertura diferena.

ABSTRACT

Scholar failure is the name that has been used to make reference to the unsuccessful student, what most of the times ends with disapproval and escape from school. These work tries to analyze the scholar failure in a micropolitic dimension. This dimension concerns about the institution of subjects/objects the scholar failure object, failure subject. To make a micropolitic analysis facing the described goal is to describe practices that construct and deconstruct subjects/objects; not conceived here as natural things, with an existence a priori. Through the micropolitic we question the crystallized truth rules. We will point out some events that, when emerging in an intricated web, will give visibility and make us able to talk about disapproval/escape school. When we bring the liberal speech, the capitalistic arrangements in their economics, the close relationship nuclear higienizated family, particularizated childhood and all these things in a mass school genealogy, our goal is to link these events to the emerge of the scholar failure and the pedagogy that is in a close relation with the psychology. We will run also, some scenery of the learning in their approaches and explanations that have been constructed about the scholar failure. In this scene we draw two faces: one liberal, one neo-liberal. The first, linked to disciplinary society, the second linked to the control society. All these events suppose permanent fights that break their shapes, what gives passage to resistence movements, from the singularization to the always politic revolutionary wish. Watching the environment of pure difference come out many experimentations, different types of subject/object, not linked to models (that many times tie the expansion of worlds). From these analysis we can say that the scholar failure can be prodding an experimentation to beyond of failure/success and we say that this is a kind of movement that invite to a construction of different practices. To upset drawn shapes in the capitalistic way of subjetivation/objetivation to disturb some kind of learning, some kinds of student, education, and intelligence, a teacher, a childhood, a school ... can be pointing some movements that asks for other encounters, which concept the failure like a way of potency, not impotency. If scholar failure is a production linked to a way of life, to erase it, another way of life should be created. To build ways out is to construct new ways, new questions and experiences, thing that are around us, in a real and concrete existence, invisible, however. If we want another kind of educational experience, we must shape these new practices with this invisible elements that ask for passage, expression and form that already escaped, run from patterns. To inaugurated other ethic in the construction of life is na opening to the difference.

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INTRODUOO trabalho de pesquisa que passamos a relatar foi realizado em uma escola da rede pblica municipal de ensino de Vitria/ES, no turno vespertino, que atende da pr 8 srie. Durante aproximadamente seis meses, estivemos mergulhada no cotidiano escolar junto aos alunos, professores, pedagogos, serventes, porteiros, bibliotecria, secretrias, diretora, coordenadora... Realizamos entrevistas e observaes com os integrantes da escola, isoladas ou conjuntamente, nos diferentes espaos da escola: salas de aula, sala de professores, porto, secretaria, biblioteca, corredores, refeitrio e tambm durante o recreio, eventos culturais e comemorativos, horrio de planejamento, dentre outros. Tivemos alguns encontros grupais com alunos, professores, pedagogos, separados ou simultaneamente, nos quais nos debruvamos sobre o dia-a-dia marcado por tantos e to ricos movimentos. O presente trabalho traz algumas anlises do que foi por ns vivido em diferentes modulaes de intensidades durante esse percurso. Nosso propsito no foi, pela pesquisa, traar um perfil dessa escola, particularizando-a; nem tampouco fazer qualquer juzo de valor. Nosso objetivo foi investigar alguns movimentos que vo construindo o dia-a-dia escolar seus objetos, sujeitos, relaes, seus funcionamentos.1 Estivemos atenta especialmente ao denominado fracasso escolar, no que se encontra naturalizado2 e tambm desmanchado em seus contornos. O leitor, com certeza, ir identificar e/ou desconhecer muito do que aqui ser apresentado, porm nosso intuito, se fosse possvel orientar a leitura, perguntar: o que o1

Deleuze e Guattari no se referem a um funcionalismo apoiado na harmonia das partes que se integram homogeneamente. A noo diz respeito ao de uma mquina em seu carter produtor, diz do prprio processo de produo.2

Referente natureza; produzido pela natureza, espontneo; em que no h trabalho do homem; que segue a ordem regular das coisas (Bueno, 1981, p. 765).

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presente trabalho pe para funcionar? O que produz? Que inquietaes dispara? Quais seus efeitos? Objetivamos produzir inquietaes a partir desses dos procedimentos ou formas pelas quais nossas histrias tornam-se verdadeiras. Almejamos exercer a liberdade, que no vis de Foucault, o movimento de questionamento das prticas por meio das quais somos constitudos. Por prtica, entende-se (com Foucault) um corpo de discurso e procedimentos que constri sujeitos e objetos fazendo vigorar verdades. Tm (as prticas) carter heterogneo e circunstancial, ou seja, encontram-se prticas diferenciadas, permanentemente em luta, que so engendradas a partir de condies scio-histrico-polticas pontuais (imanentes, contigentes). Sendo construdas e datadas, fazem aparecer objetos e sujeitos singulares (por muitas vezes tomamo-los como definitivos, essenciais, naturais). Esse carter material das prticas nos convida a adentrar nesse campo do que assim dito, o que assim feito (dizer fazer) para a encontrarmos as naturalizaes objetivas/subjetivas. Almejamos, portanto, trazer, investigando o que as pessoas fazem, as verdades construdas, seus efeitos nas lutas que encerram. As prticas so tambm annimas e relativamente autnomas, quer dizer, no so planejadas ou dirigidas, entretanto pode-se relutar em assenti-las. a que se situa o exerccio de liberdade; uma liberdade que poltica, pois faz a anlise crtica das subjetivaes/objetivaes em suas verdades tcitas, possibilitando novas prticas que expandam mundos.3 Rompendo com uma tradio filosfica que pensa o sujeito como natureza humana uma natureza concebida como real ou que deva ser realizada e o objeto como um j-dado a ser descoberto pelo sujeito que tambm poderia desvelar a verdade contida em si, explicitamos que sujeito e objeto so construdos ao mesmo tempo pelo o que o fazer em relao a eles: pelas prticas. Foucault (1974, p. 6) enseja ...mostrar como as prticas sociais podem chegar a engendrar domnios de saber que no somente fazem aparecer novos objetos, novos3

Expandir mundos significa expandir os limites da vida modelizada.

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conceitos, novas tcnicas, mas tambm fazem nascer formas totalmente novas de sujeito e de sujeitos de conhecimento.... Nosso trabalho, ao invs de procurar verdades intrnsecas ao objeto fracasso escolar, foi um exerccio de ir estendendo na superfcie as prticas que o reificam, assim como aquelas outras que rompem seus contornos. Foi um ir conectando-se com a disperso de acontecimentos4 em suas mltiplas direes. Mergulhamos, ento, nos interstcios da escola de corpo inteiro, no s de cabea. Estvamos ali para o que desse e viesse. Para tal, todos os dias, levvamos caderno e uma caneta para as anotaes. Em um breve espao de tempo o caderno j provocava...5 Falta muito para acabar sua lio? Voc j escreveu tudo isso? Que letra bonita! pra completar o caderno? Um dia vou escrever tanto assim e to rpido como voc! Um determinado contorno de escola se fazia nesse momento: o aprendizado da escrita, o cumprimento da lio, a letra bonita, a boa performance, o futuro. Todos os dias uns ou outros se preocupavam com nosso dever assim chamavam e interessavam-se pelo andamento dos trabalhos. A gente sabe que difcil fazer um trabalho grande assim! E depois, a gente vai entrar de frias, e se voc tiver alguma dvida? Talvez no percebamos bem o quanto a aprendizagem se efetiva em uma luta sem fim na qual esto em jogo construes e desconstrues.

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Deleuze e Guattari dizem que a matria das coisas constituda de foras; o modo como essas foras fazem composies, decompem-se e criam novos arranjos que os autores denominam acontecimento.5

A frases que se seguem como as que sero trazidas no decorrer do trabalho, entre aspas e em itlico, so falas dos diferentes integrantes da escola.

14 Tornamo-nos muito cmplice6 em torno do desafio que era para eles comear a escrever e para ns... comear a escrever tambm. Outros7 se continham em fazer comentrios, embora, volta e meia, olhares compridos se lanassem em direo s folhas de papel. O que estaria escrito? Para qu? No s o caderno, mas tambm as falas e outras atitudes de todos estariam em nossas mos? Que saber seria esse que passaramos a deter e eles no? O que faramos com tudo isso? Atualizava-se8 a uma relao meio incmoda de nossa parte que os sorrisos no conseguiam esconder. Um incmodo que vamos com bons olhos, pois, nesse movimento, resistamos captura pelos especialismos.9 Deteramos um saber e o sonegaramos a eles? Um saber que s ns teramos? Ainda mais um saber que tratava do que eles confessavam? Saber/no saber, exame, registro, confisso: outro contorno de escola delineava-se. O caderno circulava pelos interessados em l-lo; isso ora era engraado para muitos, como se fosse descabido, j que ocupavam outro lugar diferente do nosso, ora essa era uma prova de que no teramos nada a esconder. No precisaria haver segredo. Ou era uma estratgia que utilizvamos para seduzi-los, aplacando as desconfianas, e assim colaborariam, desnudando sem preconceitos suas histrias? Esfera pblica, esfera privada: outro esboo que aparecia cotidianamente.

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No caso, referimo-nos a cumplicidade entre ns e os alunos das sries iniciais. Durante o percurso do trabalho, porm, cumplicidades estabeleceram-se menos entre pessoas quaisquer e mais entre movimentos que apostavam na expanso de mundos.7 8 9

Esses outros se referem aos diferentes integrantes da escola, no s aos alunos. Pr em ato.

Aqui no nos referimos aos especialistas (de formao), mas a um especialismo em ns que nos autoriza a saber o que melhor para o outro, qual sua verdade, invalidando o saber-fazer desse outro.

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Reiteradas vezes explicamos o teor e o objetivo da pesquisa. Mas, no era questo de explicar mais, no havia qualquer obscurecimento de sua materialidade; o caderno com o qual transitava por todos os espaos da escola j produzia. Algumas produes ganhavam clara expresso e forma. Como pauta de reivindicao: Escreve a, tia, precisa de mais divertimento na escola! J ps aquela frase que eu disse que tinha que diminuir o tempo de aulas? Como lugar de construo de conhecimento: To legal falar dessas coisas, pensar nelas, estava enferrujada! Agora falando, pensando me toco de umas coisas interessantes. Gostei muito de ser entrevistada, gostei do papo, a gente aprende muito no que vai falar, explicar para o outro, d uns insights! A alegria de conversar, trocar idias e nisso construir outras era constante. Alis, muitas vezes em que isso acontecia na escola as pessoas ficavam bastante contentes. Como lugar de reconhecimento de verdades: O menino assim, sem limites, porque a famlia no d base. Pode ver que no final da pesquisa vai sair isso a. No tem outra! Por que voc quer pesquisar sobre fracasso escolar? J se sabe o que causa esse problema! Isso a evidente, s no enxerga quem no quer! Como lugar de exerccio da censura: No pe isso, no! Agora pra de escrever. No escreve isso, pelo amor de Deus!

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A censura mais produz do que impede. Como lugar de desmanchamento de crenas: Voc sabe a pgina que escreveu o que eu disse? Volta l e risca, tem outras coisas que me toquei outro dia! T certo que todo mundo fala essas coisas, mas eu no acho nada disso, alis no acho nada! Perguntar pode ter esse carter de desmanchar evidncias. Como lugar de ameaa: Voc est vendo muita coisa de mim? Ai, meu Deus! O que voc vai dizer da gente?! Como voc vai saber quem disse o qu, se voc no anota quem foi? A essa questo respondamos que no nos interessava quem disse, mas o que est sendo dito e como ao que a pessoa retrucou: Que bom! Se eu disser bobagem ningum vai saber que fui eu! O lugar do especialismo era bastante intensificado, preocupaes a esse respeito foram constantes: Falei certo? Era isso que era para falar? Fui bem? Fala a verdade! No entrevista ele, no, porque ele e burro! Entrevista aquele ali, ele o melhor aluno da sala. Soube responder direitinho? Eu no entendo disso, no [sobre fracasso escolar], quem sabe te responder a supervisora ou a orientadora. Vai l naquela sala e pergunta pra elas. Produo de corpos competentes para falarem da competncia/incompetncia, ento tambm produo de corpos incompetentes para construrem saber acerca de ambas

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e que assim se produzem como ambas, isto , dois. Prosseguimos, desse modo, classificados, agrupados, produzidos como capazes/incapazes. Como lugar de reconhecimento profissional: Nossa! At me animei. Ser professora ainda uma coisa muito legal, insubstituvel. Apesar de tudo, nosso trabalho muito importante. No era sem encantamento que discorriam em detalhes sobre seus fazeres, orgulhosos apesar das dificuldades (sic). medida que falavam, seu trabalho parecia fazer sentido e eles revigoravam-se. Como lugar de esperana: Legal, uma pesquisa, pode vir a ajudar a gente. Algum de fora v melhor algumas coisas e pode dar uns toques. Outros lugares no menos intensivos o caderno disparava: de conversar para curtir um outro tempo e no passar o tempo; de falar das coisas da vida, das relaes com filhos, namorados, pais, maridos, das brigas com os amigos, das notcias da TV, da precarizao do trabalho, das dificuldades financeiras, das tarefas domsticas, das alegrias e decepes, dos planos para o futuro ou da falta de ambos; de se queixar dos tempos neoliberais, da qualidade total com a intensificao mxima do ritmo de trabalho. Lugar tambm de fazer cera, resistindo ao esquadrinhamento espao-temporal to presente no contorno escolar. Outros delineamentos se traam, agora dizem do tempo e do espao que construmos, alis, para as entrevistas, diziam ser o tempo escasso, mas inventvamos pedaos de tempo, aqui, acol com uma certa alegria moleca, sem dvida, como o fazem potente e cotidianamente. As observaes tambm causavam inquietaes nas mesmas direes das entrevistas:

18 Nossa, hoje sou eu a ser observada! Coitada de mim! Pode observar vontade, j vi que voc uma pessoa amiga. Voc depois me fala, t! Voc veio observar a professora, ou a gente? O trabalho foi se fazendo nas intersees, entre10 ns, constituindo-nos, atravessado pela persistncia e pela fora do movimento menino-do-porta-lpis-azul.

***Todos os dias ao chegar sala de aula, sentava-se na ltima carteira da fileira central tendo o cuidado de distanci-la uns setenta centmetros a mais da carteira da frente. Durante um longo e zeloso tempo, arrumava com especial capricho todos os seus lpis de cor, canetinhas, borrachas, lpis preto, apontador, rgua, corretivo e outros instrumentos de trabalho em seu vistoso porta-lpis azul de trs compartimentos verticais. Fazia isso at que os dispusesse de forma a agradar-lhe completamente. Seus olhos brilhavam, seu corpo suando expectativa preparava-se para agir j agia era pura intensidade. Todos os dias o menino repetia a operao com o mesmo esmero do dia anterior. Ser hoje? O que ser? E l amos ns com o nosso caderno (j no mais necessrio o artifcio). Ser hoje? O que ser? A questo do fracasso escolar h muito vem ocupando os debates no campo da educao, em particular da educao pblica formal. Fracasso escolar a denominao que tem sido utilizada para fazer referncia ao insucesso escolar do aluno. Dificuldades na aprendizagem formal, desinteresse no processo de escolarizao, indisciplina, dificuldade em responder adequadamente s10

Deleuze e Guattari afirmam que o entre no algo localizvel no espao, um movimento transversal que corta esse espao de cabo a rabo. Ao estudarmos Rizoma, sua definio aparecer mais precisa.

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exigncias escolares, baixas notas, conceitos deficientes que culminam muitas vezes com a reprovao e ou evaso, so caractersticas que traduzem o fracasso escolar que tm sido mais apontadas pelos profissionais da escola e demais especialistas que trabalham o assunto e por que no dizer tambm por familiares e outros segmentos da comunidade? Nesse panorama, alguns elementos tm sido responsabilizados: a criana e sua personalidade e/ou seu organismo, a estrutura familiar, a organizao escolar, a competncia do professor, a poltica educacional, a cultura e ou a classe social s quais o aluno pertence, as metodologias de ensino, o contedo da aprendizagem, os textos escolares, as medidas tcnico-administrativas, dentre outros. Explicaes de natureza econmica, social, mdica, psicolgica, poltica, cultural e propriamente pedaggica tm sido convocadas para trazer luz aos estudos sobre o tema. Tem-se apelado tanto para fatores intra como extra-escolares na tentativa de serem encontradas respostas para o alarmante quadro de fracasso na educao pblica formal. O trabalho ora apresentado tambm parte da preocupao com o fracasso escolar, mas visa a tomar outra direo de investigao e anlise, enveredando por outros caminhos menos percorridos, formulando outras questes, portanto, outras possveis produes/efeitos para os inmeros acontecimentos/impasses que habitam a escola. Primeiramente, importante esclarecer que no desqualificamos quaisquer dos procedimentos mencionados acima. Nossa inteno (dentre outras), ao tomarmos outra direo, retornarmos a eles sem de fato termos sado e debruarmo-nos sobre as prticas que como tais tm forjado contornos bem definidos ao assim tornado objeto de fracasso escolar. Esse , acima de tudo, uma prtica. Perguntas e outros procedimentos que objetivam definir o fracasso escolar, sua(s) causa(s) e os possveis responsveis pelo quadro acabam por produzi-lo efetivamente, naturalizando-o como um objeto preciso portador de uma verdade intrnseca. Tambm constroem o aluno fracassado e o bem-sucedido, o reprovado e o aprovado (assim como o professor, o pedagogo, a servente, a escola), situando e fixando cada qual em um lugar traando um certo destino que se quer inexorvel para cada um.

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Ao buscarem incansavelmente pelas causas, pelos porqus do fracasso, no discutem a prpria produo do objeto e como isso ocorre no nosso cotidiano mais simplrio. Ao apelarem ao responsvel, como efeito, ora nos isentam de qualquer relao com a questo, ora nos incrementam impotncia ou culpa. De um jeito ou de outro, continuamos a produo do fracasso/sucesso, seu (re)conhecimento, sua (re)confirmao por meio de perguntas desveladoras e respostas explicativas. Esse modo de existncia tem marcado nossa experimentao de ns mesmos, de nossas relaes com os outros, com a vida. Classifica-nos, hierarquiza-nos, individualiza-nos, portanto, e, sendo assim, convida-nos a voltarmos ao nosso interior (e ao dos objetos), ao reduto de nossa mais pura verdade intimizada. Egocentrados nos esquecemos de nos surpreender com essa engenhosa maquinaria de produo de estilos de vida e de ousar desconhec-la. O fracasso escolar no foi por ns concebido como um objeto natural com existncia a priori. No procuramos, por meio da pesquisa, buscar respostas explicativas que nos trouxessem a verdade nele contida. Ressaltamos tambm que no visamos a analisar, pelas interpretaes, os sujeitos que falavam, nem saber quem falava, tampouco, como j dissemos, individualizar a escola ou qualquer dos seus segmentos ou integrantes, responsabilizando-os e ou culpabilizando-os pelo fracasso escolar. Ainda importante esclarecer que a questo do fracasso escolar, a nosso ver, no se resume ao campo educacional formal ou no, legislao educacional, pedagogia, instituio escolar, ao fazer dos professores... No um objeto de propriedade desses, mas consideramos que cartografar11 prticas relacionadas com ele em uma unidade escolar poderia nos dar algumas armas para nossa revolta no prprio seio das prticas. Nosso trabalho, ento, caminhou na direo de cartografar o que se pe em funcionamento no fazer escolar: o que produzido? Que efeitos? Que sujeitos e objetos11

Cartografia a inteligibilidade da paisagem em seus acidentes e mutaes. Ela acompanha os movimentos invisveis e imprevisveis que vo transformando a paisagem vigente. Ser cartgrafo significa acompanhar os meandros de tais processos e valorizar as mutaes.

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so construdos? Que prticas objetivam o fracasso escolar? Como? Com que contornos? E as possibilidades de novas prticas j existentes nesse entorno? Enfim, como o fracasso escolar engendrado? Em relao a essa ltima indagao, prosseguimos: que outras prticas ensejamos incrementar que rompam com o estilo de vida intimizado, classificatrio, hierarquizado que concebe e divide a vida num caso de fracasso ou de sucesso, que fragiliza nossa potncia de expanso de mundos, de criao de territrios existenciais, 12 j que os concebe como naturais, essenciais, definitivos, desejveis e no como contingentes, circunstanciais, portanto, provisrios? Enveredamos pelo cotidiano escolar nos deixando afetar13 na utopia14 de construirmos experimentaes que no aprisionem a riqueza dos movimentos que emergem no cotidiano escolar em lugares dicotmicos de fracasso ou de sucesso. Se quisermos outras experincias educativas, e isso tem-se mostrado bastante consensual, so outras prticas que devem ser produzidas inaugurando uma outra tica. Isso no s possvel como j nos espreita em sua realidade invisvel, mas concreta e real.

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Territrios existenciais so entendidos como um conjunto de crenas, valores, relaes sociais, falas, comportamentos que Deleuze e Guattari chamam de matrias existenciais. Desterritorializao o movimento de desmanchamento de territrios formados; nova territorializao a produo de outros territrios e reterritorializaes a sobrecodificao daquele territrio constitudo e abalado pela desterritorializao.13

Afeto utilizado por Deleuze para denominar um estado de corpo em que a potncia de agir favorecida ou bloqueada, diminuda ou aumentada. A afeco um estado do corpo, a potncia que tem um corpo vivo de se agenciar, se ligar, se compor com algo que vem de fora (Benevides de Barros, 1994, p. 253).14

(U)topos: fora de lugar.

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CONSTRUINDO

FERRAMENTAS AO AFIAR O TRABALHO: A DIMENSO MICROPOLTICA

Neste segmento, traremos algumas ferramentas que utilizamos no trabalho. Lanamos mo ora de uma, ora de outra, em nosso prprio roubo.15 Alguns nomes sero especialmente citados: Michel Foucault, Gilles Deleuze,16 Flix Guattari. Gostaramos, entretanto, que fossem localizados menos por uma suposta identidade dos autores e das obras e mais pelo que puseram a funcionar. Pensando de outro modo, inquietam com a agudeza, fora e radicalidade de suas afirmaes, dando-nos uma dimenso poltica no dissociada de uma tica de respeito pela vida. Transitando por diferentes campos do saber, foram o pensamento em sua capacidade de disrupo, colocando-se a servio da vida em sua potncia criadora e isso a partir do mal-estar que no cotidiano por vezes nos espreita. O maio de 68 francs tem seus nomes como representantes do esprito da poca. Esse perodo condensou fluxos sociais que traziam a necessidade de repensar a relao entre poltica e subjetividade; um desejo de politizao do cotidiano, de trazer os movimentos de esquerda para reflexo, de novos enfrentamentos no s de classe, mas raciais, sexuais, de geraes, enfim, de possibilidades de produes especialmente fora da lgica capitalista. Participando ativamente de inmeros movimentos sociais, acreditava que os intelectuais no poderiam e no deveriam falar em nome dos outros, mas aliarem-se para as lutas junto a estes no embate dos problemas concretos.15

Roubo: ...roubar o contrrio de plagiar, de copiar, de imitar ou de fazer como (Deleuze & Parnet, 1977, p. 13), fazer uma colagem dadasta produzir um duplo que, segundo Machado (1990, p. 16) ...significa desembaraar, desemaranhar os conceitos de seus sistemas de origem para criar um novo sistema.16

Deleuze & Guattari (1977, p. 24), ao se referirem sua parceria com Guattari disseram: ...ns ramos seno dois, mas o que contava para ns era menos trabalhar juntos que o fato estranho de trabalhar entre dois. Deixamos de ser autor. E este entre-os-dois remetia a outras pessoas diferentes de um lado e do outro. O deserto crescia mas se populando cada vez mais.

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Sintonizados com a turbulncia do tempo em que viviam puderam fazer srias crticas aos modos de vida modelizados, dando expresso e forma ao que se anunciava. No desejavam seguidores, ao contrrio, apostavam na criao exercida a partir da diferena, no subordinando esta identidade, representao; uma diferena que nos arranca de ns mesmos e nos faz outros. Apostavam nos roubos. Trazem reflexes que so colocadas a servio de quem delas se apropriaram, no para imit-los e sim para produzir outras criaes, combinando foras de formas diversas. Seus escritos no tm qualquer exigncia ou compromisso de uma identidade lgica a ser reconhecida. Mudam de plano, ou melhor, funcionam por planos, por espaos de incmodos e para a produo de conhecimento exercem seus prprios roubos. Roubaram de Bergson, Spinoza, Nietzsche, Canguilhem, Kant, Proust, Plato, Kafka, Marx, Descartes... e se roubaram entre si. No so tambm unssonos, algumas diferenas podem ser constatadas, mas delas no nos ocupamos. O que nos interessa, nos trs, em nosso prprio roubo, a cumplicidade entre ns em produzir outras possibilidades de vida. O que nos afeta, aumentando nossa potncia, esse movimento que se aliana17 com o invisvel.

1.1 ARQUEOLOGIA OU ESSA CORTINA DE ENUNCIADOS Vamos ...ver um pouco para que serve essa anlise que, por uma deciso muito solene, batizei Arqueologia (Foucault, 1972, p. 167). A Arqueologia analisa as coisas ditas precisamente porque foram ditas. Procura apreender cada momento do discurso em sua emergncia como acontecimento e, ainda, pergunta-se sobre os efeitos de verdade que so produzidos no discurso. Interessa-

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Aliana no sentido de pacto, o que nos faz roubar em Deleuze & e Guattari (1997 , p. 28): O feiticeiro est numa relao de aliana com o demnio como potncia do anmalo. Anmalo como a ponta da desterritorializao.

24 se, ento, pela emergncia18 das prticas produzidas em um determinado estado de foras em luta. A pesquisa da origem visaria a ...tirar todas as mscaras para desvelar uma identidade primeira (Foucault, 1979, p. 17). Para a Arqueologia, s h mscaras; nenhum rosto a ser revelado. A Arqueologia faz a histria dos saberes sendo a cincia uma das formas que tem sido privilegiada como o modo de construo do conhecimento. Deleuze, ao comentar Foucault, fala-nos do saber com preciso e simplicidade. O saber seria a produo de uma forma de ver e dizer o mundo, a combinao dos dizveis e visveis de uma formao histrica,19 assim requer uma anlise de superfcie aqui entendida como vasta dimenso e no de pouca profundidade. O objeto de estudo na Arqueologia o campo de saber. A escola, como um meio institucional, traduz-se em uma forma forma escola em relao a outras formas (priso, hospital, asilo, quartel...) assim uma maneira de ver e fazer ver os alunos, professores, funcionrios... delimitando um campo de visibilidade. O discurso pedaggico (no s ele), por sua vez, uma maneira de falar e fazer falar a educao campo de dizibilidade. A visibilidade, para Foucault, qualquer forma de sensibilidade, qualquer dispositivo20 de percepo (o exame na Pedagogia, por exemplo). A Arqueologia, ento, faz um arquivo audiovisual desse falar e ver que constitui o saber. Para haver saber, necessria a existncia da uma formao discursiva21 O que vem a ser discurso?

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Assim destri toda a idia de fundamento. A histria vista como uma populao de acontecimentos dispersos, como multiplicidades de prticas e no como sucesso linear ou rompimentos em profundidade. Escusa as noes de influncia, desenvolvimento e evoluo histrica.19

A formao histrica ou estrato histrico ou simplesmente estrato so feitos de coisas e palavras, de ver e falar, de visvel e dizvel em um espao e momento singular.20

Dispositivo uma rede que se estabelece entre elementos de um conjunto heterogneo constitudo de discursos, instituies, leis, regulamentos... Entre esses elementos, discursivos ou no, h um tipo de jogo, com mudanas de posio e modificao de funes. Esta rede, que poderamos chamar rede do poder, deve ser analisada como algo que circula, que funciona em cadeia. Nunca est localizada aqui ou ali, nunca est nas mos de alguns, nunca apropriada como uma riqueza ou um saber. Ento, a que atende um dispositivo? A uma funo estratgia (dominante) principalmente a responder a uma urgncia (Lucero & Barros, 2000a, p. 29).21

Nem todo discurso, ou prtica discursiva, configura um saber; s as formaes discursivas o fazem.

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Discurso no performance verbal, no tratado como um conjunto de signos, de elementos significantes que, como tais, atrelam-se a contedos ou a representaes. Discursos no so, ento, signos de outra coisa a ser interpretada, na busca de uma significao original, melhor, oculta. Tambm no se situam entre, mediando a realidade e a lngua. Uma anlise de discursos, embora estes se utilizem de signos, no se situa no campo da anlise lingstica (semitica), nem psicolgica, e sim como uma anlise histrico-poltica, no cabendo a a procura da veracidade ou da falsidade de um discurso, mas o que ele produz como prtica que : prtica histrico-poltica. Os discursos configuram-se num conjunto polmico de jogos estratgicos. So acontecimentos dispersos, mltiplos, localizados, descontnuos, annimos, relativamente autnomos produtores de sujeitos/objetos uma prtica. Os discursos mdico, higienista, pedaggico, liberal, psicolgico, psiquitrico, etc., por exemplo, sobre o fracasso escolar, que criam o fracasso escolar ao dele falarem, do modo como falam e com o que falam. O carter de acontecimento do discurso por meio de alguns procedimentos presentes em toda sociedade ser conjurado em funo dessa ...espcie de temor surdo desses acontecimentos, dessa massa de coisas ditas, do surgir de todos esses enunciados, tudo o que possa haver a de violento, de descontnuo, de combativo, de desordem, tambm, e de perigoso, desse grande zumbido incessante e desordenado (Foucault, 1996, p. 50). Os procedimentos de excluso22 que tm sido adotados nesse movimento de esquiva so: a interdio, a separao e a vontade de verdade. Foucault (1996) designa-os como procedimentos23 internos de controle ao prprio discurso. A interdio estabelece que no qualquer um que pode falar de qualquer coisa, que no se tem o direito de dizer tudo, nem de faz-lo em qualquer circunstncia. A22 23

Excluso aqui tem um sentido de incluso no lugar forjado do no verdadeiro.

Alm desses procedimentos internos ao discurso, Foucault descreve tambm os procedimentos de controle externo: o comentrio, o autor e as disciplinas. Cada disciplina Pedagogia, Psicologia, por exemplo estabelece-se como unidade. Mesmo que revejam conceitos, mtodos... no resvalam em seu foco objetal, instrumental e tcnico. Isso estar no verdadeiro, inscrito em uma teoria. O acaso a desinvestido.

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separao alude rejeio; discursos so desconsiderados, no ouvidos como palavras verdadeiras (discursos da criana, do louco...). A vontade de verdade separa o discurso verdadeiro do falso; os dois mecanismos descritos so atravessados pela vontade de verdade, procedimento privilegiado da excluso. Um terceiro grupo de procedimentos se refere seleo dos sujeitos que falam, sua rarefao que se traduz em: nem todos podem ter acesso ao discurso, s o tero se forem considerados qualificados. O procedimento ritual ...define gestos, os comportamentos, as circunstncias, e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficcia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, o limite de seu valor de coero (Foucault, 1996, p. 39). O sistema de ensino uma ritualizao da palavra ...que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papis preestabelecidos (Foucault, 1996, p. 39). O procedimento sociedades de discurso alude que um discurso produzido, veiculado, conservado, apenas por um determinado grupo de pessoas e em espao fechado. O segredo que se possui qualifica sujeitos, dando-lhes s a eles acesso ao discurso. O sistema de ensino uma qualificao e uma fixao dos papis para os sujeitos que falam. O procedimento doutrina liga os indivduos a um certo tipo de discurso e lhes probe todos os outros e liga tambm os indivduos entre si, fazendo com que se reconheam nela como iguais. O sistema de ensino a constituio de um grupo doutrinrio difuso. Por fim, o procedimento apropriao social dos discursos definido por Foucault (1996, p. 43-44) tomando a questo da educao. Sabe-se que a educao, embora seja, de direito, o instrumento graas ao qual todo indivduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, segue, em sua distribuio, no que

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permite e no que impede, as linhas que esto marcadas pela distncia, pelas oposies e lutas sociais. Todo sistema de educao uma maneira poltica de manter ou de modificar a apropriao dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo. O sistema de ensino uma distribuio e uma apropriao do discurso com seus poderes e seus saberes. Ensaiando uma definio de discurso, temos: ... um conjunto de regras annimas, histricas, sempre determinadas no tempo de no espao, que definiram, em uma poca dada, e para uma determinada rea social, econmica, geogrfica, ou lingstica, as condies de exerccio da funo enunciativa (Foucault, 1972, p. 142). A unidade de um discurso no seria estabelecida nem por seu objeto de investigao, nem pela coerncia e ou permanncia do campo conceitual utilizado, nem pelo tema abordado, nem tampouco pelo tipo ou estilo de enunciado que encerra. Por exemplo, o objeto educao escolar, no sendo considerado aqui como possuidor de uma verdade intrnseca, como portador de uma existncia a priori, leva-nos a formular que no podemos reconhec-lo como uma unidade com identidade atemporal. Articulam-se sim, em seu nome, discursos que devem se passar por seus. Por sua vez, em relao coerncia e ou permanncia do campo conceitual como sendo o que possibilitaria o estabelecimento da unidade de um discurso, parece-nos que essa condio falsa, j que o campo conceitual se modifica substancialmente: ora conceitos so descartados, ora criam-se novos, ora transformam-se para outras produes. Com vistas temtica, poderamos trazer, guisa de esclarecimento, o tema qualidade na educao. Imediatamente, abre-se diante de ns um leque de conceitos, estratgias, objetos, princpios to diversos que seria impossvel qualquer unidade. Quanto ao tipo ou estilo de enunciado, existem modalidades muito diversas e mveis em cada discurso, o que tambm nos impossibilitaria encontrar a qualquer princpio de unidade. Os discursos atualizados no espao escolar, por exemplo, utilizam metforas, descries, regulamentos institucionais, estatsticas, exame e registro...

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O que faria, ento, a unidade de um discurso? Segundo Foucault (1972, p. 5152), so determinados jogos de regras ou regras de formao ou ainda regularidades em um sistema de disperso enunciativa No caso em que se pudesse descrever, entre um certo nmero de enunciados, semelhante sistema de disperso, no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciao, os conceitos, as escolhas temticas, se poderia definir uma regularidade (uma ordem, correlaes, posies e funcionamentos, transformaes), dir-se-, por conveno, que se trata de uma formao discursiva [...]. Chamar-se- regras de formao s condies a que esto submetidos os elementos dessa repartio (objetos, modalidade de enunciao, conceitos, escolhas temticas). As regras de formao so condies de existncia (mas tambm de coexistncia, de manuteno, de modificao e de desaparecimento) em uma repartio discursiva dada. Quando a Arqueologia descreve uma formao discursiva determinada em seus quatro nveis (objeto, conceito, enunciado, tema), suas regras de formao, aquilo que est sendo definido um saber. Ainda Foucault (1972, p. 220) assevera: A este conjunto de elementos formados de maneira regular por uma prtica discursiva e que so indispensveis constituio de uma cincia, apesar de no se destinarem necessariamente a lhe dar lugar, pode-se chamar de SABER. Foucault (1972) define os discursos no seu jogo de regras singular e raro, condio de sua emergncia; busca os prprios discursos como prticas que obedecem a regras. Pergunta-se: como apareceu um determinado discurso e no outro em seu lugar? Qual essa singular existncia que vem tona no que se diz e em nenhuma outra parte? As formaes discursivas se referem ao enuncivel; mas Foucault (1972) assinala tambm domnios no discursivos, a saber: instituies, acontecimentos polticos, prticas e processos econmicos. Arqueologia interessa fazer aparecer as relaes entre domnios discursivos e prticas no discursivas. As prticas discursivas e no discursivas esto relacionadas por pressuposio recproca e assim no param de entrar em contato, so heterognas, mas no param de referirem-se. Mas o que o enunciado?

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O discurso engloba um conjunto de enunciados mltiplos, dispersos, descontnuos, localizados... Mas no engloba enunciados quaisquer e sim aqueles que provm da formao discursiva considerada. O discurso pedaggico, por exemplo, tem um grupo de enunciados regulares que o constitui e no outros embora no s a Pedagogia tenha alguns desses enunciados, outras prticas discursivas tambm os possuem. Regulamentos disciplinares so enunciados do discurso pedaggico, jurdico, mdico... Uma sineta no um enunciado, mas o , se tocada em intervalos regulares de tempo na escola. As explicaes dadas ao fracasso escolar, o porto fechado da escola cotidianamente, a diviso arquitetural em compartimentos destinados a diferentes funes hierrquicas da escola, as diferentes salas de aula com o nmero da srie estampado nas portas, os mtodos de avaliao, os regulamentos disciplinares, a rotina de compartimentao do tempo, das matrias, das tarefas, a ordenao das falas no conselho de classe e o que cabe a cada um dizer, a explicao que a professora d me do aluno sobre a indolncia deste, um quadro em forma de grfico apontando o rendimento de determinada turma afixado no mural, os porrolhos24 lanados no teto do banheiro... so enunciados. A frase proferida pela professora Joo incompetente evidencia um enunciado que deve ser descrito em sua singular existncia, no jogo de sua instncia, ou seja, tem lugar e data. A mesma frase escrita em uma obra literria de meio sculo atrs configuraria um enunciado distinto a ser descrito em outra paisagem discursiva configurada. A anlise da funo enunciativa no pode ser considerada uma anlise das proposies (lgica), nem das frases (gramtica). Duas proposies podem ser consideradas iguais dentro da lgica mas configurarem enunciados distintos exatamente pelo carter singular dos ltimos em contraposio anlise geral estrutural que a lgica persegue.24

Porrolhos: massa feita de papel higinico e gua.

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A relao entre o enunciado e o que enunciado de ordem diversa da relao entre uma proposio e seu referente; o princpio da verificabilidade no se aplica ao enunciado. Em relao frase, podemos afirmar que no h tambm equivalncia. Sempre que uma frase formalizada, enunciados a se presentificam, mas h enunciados que no se apresentam de forma frsica e que no dependem dos elementos lingsticos constituintes da frase. Os enunciados no se definem pelos caracteres gramaticais da frase. Por meio das frases, do que falado e escrito, podemos extrair os enunciados desde que no nos detenhamos em seus elementos constituintes. Na leitura de Deleuze sobre Foucault, seria necessrio rachar as frases, as proposies, as palavras para delas extrair os enunciados. Estes no se esgotam na lngua ou no sentido. Ainda Foucault (1972) procura fazer a distino entre o enunciado e o ato ilocutrio (ou ato ilocucionrio) de que falam os filsofos da Escola de Oxford filosofia analtica inglesa. Eles afirmam que dizer algo fazer algo. No caso dos atos ilocucionrios, agimos ao informar, ordenar, prevenir, avisar, que se constituem em proferimentos carregados de fora convencional. No h dvida de que o ato ilocutrio enuncia, mas Foucault (1972, p. 105) adverte que no eqivale a ele, j que preciso mais de um enunciado para efetu-lo Como se o enunciado fosse mais frgil, menos carregado de determinaes, menos fortemente estruturado, mais onipotente que todas essas figuras [proposio, frase, ato ilocutrio] [...] [o enunciado] nunca passa de suporte ou substncia acidental: na anlise lgica, o que resta quando se extraiu e definiu a estrutura de proposio; para anlise gramatical, a srie de elementos lingsticos na qual pode-se reconhecer ou no a forma de uma frase; para a anlise dos atos de linguagem, aparece como o corpo visvel no qual se manifestam. Seria mais conveniente falar em funo enunciativa, caracterizando-a como uma funo de existncia. Funo porque faz aparecer, faz existir com contedos concretos no espao e no tempo e de modo singular, tais ou quais conjuntos de signos. Funo porque relaciona os signos aos efeitos objetivantes e no os signos s coisas mesmas.

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Um enunciado no existe isoladamente, independentemente; situa-se em um campo interligado a outros enunciados, est aberto repetio, transformao, reativao. Na esteira dessa viso, o prprio sujeito que diz j condio do exerccio da funo enunciativa. No o sujeito que enuncia, trata-se na Arqueologia de um diz-se. Outro aspecto que merece considerao e que j citamos de passagem a lei de raridade enunciativa ou a lei de sua pobreza. Os enunciados so raros, sempre apresentam uma emisso de singularidades, o que os coloca tambm em oposio s frases, pois estas podemos conceber quantas quisermos. O carter de raridade traduz-se pelas indagaes: como aparecer um determinado enunciado e no outros em seu lugar? Por que to pouco pode ser dito em relao aos possveis? Por que to pouco pode ser dito em relao ao fracasso escolar? Que outros possveis? A funo enunciativa exclui outras formas de enunciao, no no sentido de represso, de recalque, de verdade escondida a ser revelada. Essa excluso remete ao que esta fora, para alm de determinada formao discursiva. O domnio enunciativo do discurso est inteiro em sua prpria superfcie, ...tudo real no enunciado e nele toda a realidade se manifesta (Deleuze, 1988, p. 29). Nada considerado oculto nesse domnio, entretanto necessrio uma certa converso de olhar e das atitudes para poder reconhec-lo e consider-lo nele prprio (Foucault, 1972, p. 204). Que tudo seja sempre dito, em cada poca, talvez seja esse o maior princpio histrico de Foucault: atrs da cortina nada h para se ver, mais seria ainda mais importante, a cada vez, descrever a cortina ou pedestal, pois nada h atrs ou embaixo (Deleuze, 1988, p. 63). Acreditamos que podemos, agora, sem maiores problemas, dizer que o objeto fracasso escolar no preexiste a si mesmo. Ele existe sob condies positivas da funo enunciativa. A partir do cotidiano escolar e de posse da estratgia metodolgica sinalizada pela Arqueologia com as categorias de saber, discurso, enunciado, convertemos o olhar para as prticas discursivas e no discursivas que constroem o fracasso escolar. Cartografaremos esse diz-se e esse v-se em relao ao fracasso escolar, seus modos de funcionamento efeitos que provocam. Investigaremos os microssaberes que regulam as prticas escolares produzindo sujeito/objeto.

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Enunciados, pesados em sua materialidade invisvel num imenso espao de disperso, davam o tom da respirao nos interstcios dos encontros que nos constituam. As entrevistas, os momentos grupais, as observaes todos de carter no estruturado abarcaram questes sobre os modos de experimentao da realidade escolar cotidiana em toda a sua complexidade. Por experimentao, afastando-nos da viso fenomenolgica e antropolgica, entendemos a correlao entre campos de saber (formao dos saberes especialmente em relao ao fracasso escolar), tipos de normatividade (referindo-se aos sistemas de poder que regulam as prticas escolares ligadas ao fracasso escolar) e formas de subjetividade (formas pelas quais os indivduos se reconhecem como sujeitos do fracasso escolar). Perseguindo, ento, o campo enunciativo, interessou-nos indagar se j tinham ouvido falar, lido, pensado, conversado... sobre fracasso escolar. O qu? De que forma? Interessava tambm investigar o que tinham a dizer, o que achavam relevante ou no dizer, como diziam, a que verdades se referiam, se havia desconfiana ou descrdito no que vinham dizendo sobre essas verdades. O que faziam a respeito? Que efeitos? O que mais, ou de diferente fazer? Para qu? Que aes no autorizadas podiam apontar? Como se materializavam seus efeitos? Que formas de reconhecimento do fracasso/sucesso escolar acionavam? Como? Interessava-nos tambm cartografar as visibilidades no sentido que Deleuze d a Foucault, ou seja, o que essa forma escola dava a ver e a ser vista. Dois processos (visibilidade e dizibilidade) extremamente intricados, a passar um pelo outro. Procuramos situar o fracasso escolar num espao discursivo mais geral. A Pedagogia est nesse espao, assim como tambm discursos mdicos, jurdicos, morais, econmicos, psicolgicos... lembrando que a Arqueologia privilegia inter-relaes discursivas. Segundo Benevides de Barros (1994, p. 294), domnios vo se formando sobre o territrio-escola ...o professor instaura o domnio de um corpo pedagogizado; o mdico, o domnio de um corpo medicalizado; em continuidade, o psiclogo

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instaura o domnio de um corpo a ser classificado, diagnosticado; o assistente social, um corpo-famlia a ser controlado, orientado; o fonoaudilogo, um corpo a ser corretamente comunicado, etc. Essas demandas, segundo ainda Benevides de Barros (1994, p. 294), no so necessidades que determinam aes; so, antes, produzidas historicamente como domnios de saber-poder. Ao se institurem como necessidades obscurecem pontos de emergncia, criando a idia de que sempre estiveram l. no domnio do poder que agora vamos adentrar ainda com Foucault (apud Deleuze, 1988, p. 89):...se procuramos determinar um corpus de frases e de textos para deles extrair enunciados, s podemos faz-lo designando os focos de poder (e de resistncia) dos quais esses corpus dependem. Vejamos algumas produes da funo enunciativa: Em todo lugar tem gente competente e incompetente, no adianta. A pessoa que tem que querer mudar, est nas mos do aluno, uma coisa individual. No aprende porque a auto-estima est baixa, precisa se autovalorizar. Os meninos tem que refletir, falar deles e ns orientamos para eles se autoavaliarem. da natureza da criana, de cada um. Esses meninos no querem nada, so muito preguiosos, no raciocinam de preguia. Depois vo se queixar no futuro e perceber que a escola tudo na vida da gente, sem escola no vai ser algum na vida. problema de inteligncia fraca. So problemas do social. Eu sou inteligente, sabe por que? Porque j nasci pensando! Eu tambm.

34 Se tem uma na sala que fica de preguia, o resto fica tambm. muito legal ver a criana progredir nas sries. A aprovao automtica no legal. Como ele vai passar para a 5 srie, por exemplo, se ele no aprendeu o contedo da 4? Criana pequena j burra, se passar de ano sem saber, fica mais burra ainda. Estudar serve para saber contar dinheiro e o moo da padaria no enganar. No que esse menino tenha problema de inteligncia, ele s mais lento. Estudar bom para a memria. O professor quando fraco no consegue nada com o aluno. Estudar bom para aprender um monte de coisas para quando perguntarem pra gente, a gente saber responder; como no show do milho. Escola no s para passar contedo de quadro-negro e giz; para construir cidadania, a conscincia crtica. Essas crianas no tm condio de refletir sobre a realidade; ns que temos que passar isso para elas. Sabe como aborrescente, so instveis e inconseqentes. Coordenador bom porque vigia, separa as brigas pra gente aprender a ser uma pessoa de verdade. A gente podia conversar sobre os assuntos da vida, essa coisa chata de cidadania, de crtica, que temos que ficar srio criticando tudo, nem podemos nos divertir. Tinha que mandar nossos pais olharem nossos cadernos, brigarem com a gente quando a gente no faz o dever.

35 A famlia responsvel por isso, se ela bem estruturada a criana aprende e se comporta bem. Dever ruim quando a gente no sabe. Prova bom quando a gente acerta tudo; a gente quando erra fica humilhado. A gente nasce s sem saber, nem burro nem inteligente, na escola que a gente vai ficar ou burro ou inteligente. No adianta dizer que a escola serve pra gente aprender. Eu no quero ir para a escola, porque eu no sei. Assim vo se produzindo rostos de criana, aluno, aprendiz, professor, escola, famlia, aprendizagem, ensino... delimitados num campo enunciativo que afirma interrelaes discursivas entre Pedagogia, Psicologia, Medicina, Psiquiatria, Biologia, Jurisprudncia. Discursos sobre a criana constituem infncias-no-conscientizadas-emdesenvolvimento. Afirmam que devem ser acompanhadas, vigiadas durante todo o tempo e em qualquer pedao de espao. Vigiadas e regadas j que sementes. Produz-se a tambm a diviso identitria e hierarquizada entre criana e adulto, professor e aluno e, a partir disso, quem est autorizado a falar sobre o qu, com quem onde e de que modo. Divises que se quer conservar na ento forjada identidade pessoal ou funcional, evitando, afastando para longe o que possa escapar ou perturbar. Produo antes de tudo do individual, melhor dizendo, das individualizaes, um modo de existncia que classifica, hierarquiza, dicotomiza, fixa, por isso individualiza indivduos, grupos, instituies, funes, etc. Aciona-se tambm a razo como a nica via legtima na aquisio do conhecimento e que d a este o estatuto de via de desvelamento das verdades da vida. A inteligncia privilegiada vem rapidamente fazer contornos de uma aprendizagem que a se configura.

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Assim, a razo se coloca como veculo mediador entre o sujeito e o mundo dos objetos, ambos considerados com existncia a priori privilegiando ainda a ao do primeiro sobre o segundo. Sujeito egocentrado, auto-referido, a ser auto-refletido, autoinvestigado, auto-investido, auto-regulado. O apelo ao auto recheia os espaos escolares. Sujeito intimizado pela funo psicolgico-pedaggica. A preguia, a indolncia vem delimitar o campo enunciativo como aquilo que, porque irracional, impede o bom desenvolvimento bom aqui se referindo norma.25 Explicao h muito bem-aceita em discursos poltico-econmicos como no carcerrio que trazem inclusive a idia do contgio (discurso mdico-higienista). Em relao aprendizagem, os enunciados pedaggicos produzem que s se aprende as coisas em nveis sucessivos, portanto criam a necessidade dos estgios, conformados em nveis e idade. Por sua vez, o tempo considerado uma coleo de perodos sucessivos nos quais se define uma normalidade aquisitiva. Esclarecendo, a norma um conceito descritivo apoiado na racionalidade. As reflexes, pea importante no discurso pedaggico (e no s dele), colocam a tarefa de julgar pela norma. Julgar positivo ou negativamente em funo do critrio de normalidade. A conscincia reflexiva se efetiva sob princpios de evoluo e totalizaes. Assim, situa-se o aluno (e o professor, e o pedagogo, e a servente) j que a tarefa situar, ora no atraso, ora no avano e medidas de acelerao so institudas. A aprendizagem produzida como acumulaes de contedos especficos estabelecidos e os problemas de aprendizagem se referem dobradinha

tempo/acumulao. Tempo de trabalho ou de preguia, maior ou menor armazenamento de contedos. s vezes a aprendizagem associada prontido para resolver problemas (de soluo j prevista).

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um mecanismo regulador que compara, diferencia, hierarquiza. Produz comportamentos e sentimentos, instituindo verdades. Tem seu fundamento histrico-poltico nos Estados modernos dos sculos XVIII e XIX. Podemos dizer que uma sociedade normalizadora o efeito histrico de uma tecnologia de poder centrada na vida.

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Outras vezes a aprendizagem vem vinculada conscientizao da realidade social por parte do aluno e sua aquisio de cidadania, produzindo a outra dicotomia: esclarecidos e alienados. O saber vai tambm sendo engendrado como uma mercadoria que se possui ou no com efeitos imediatos de produo e fixao no lugar do fracasso ou do sucesso. Produz-se a escola como esse lugar de formar cidado, garantir futuro, construir algum. Materializa-se, ento, o ningum e o algum, os com futuro e os sem futuro. Outro campo enunciativo apontado nos remete ao acoplamento famlia-escola. A famlia como lugar de origem dos problemas de comportamento/aprendizagem, caracterizando um discurso psiquitrico-pedaggico-higienista. Enfim, pretendemos aqui trazer o que significa rachar palavras e frases para delas extrair os enunciados. No desejamos situar as formaes discursivas em sua especificidade. Ensejamos apenas traar um panorama de rede onde seus fios foram sendo puxados at para evidenciar esse conjunto disperso que caracteriza a prpria rede. Gostaramos de salientar, no momento, que as afirmativas feitas pelos integrantes da escola no mostravam significativas hesitaes ou dvidas; quase sempre eram de carter explicativo (acerca do fracasso escolar) apoiadas em relaes de causaefeito apontando responsveis. Como se, ao afirmarem, dessem conta da realidade do fracasso em sua face oculta... colocando-se assim no lugar do sucesso. Alguns buscavam em ns o reconhecimento desse lugar de saber que ocupavam: o de trazerem verdades em nome da pesquisa (embora no fosse isso o solicitado)... efeitos do modo de existncia que tem marcado nossa experimentao da vida, desse ns mesmos. Por enquanto, reiteramos, mas ...se procurarmos determinar um corpus de frases e de textos para deles extrair enunciados, s podemos faz-lo designando os focos de poder (e de resistncia) dos quais esses corpus depende (Deleuze, 1988, p. 89).

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1.2 GENEALOGIA E O MENINO-DA-SINETA A investigao genealgica aponta uma questo importante para a prpria Arqueologia: a de explicar como apareceu um determinado saber por meio de condies imanentes a ele. O saber no resultado ou efeito do poder, ele prprio uma pea da relao de poder. Indaga-se na Genealogia sobre o porqu de um saber. No h relao de poder sem a constituio, correlata de um campo de saber, nem saber que no suponha e no constitua ao mesmo tempo, relao de poder (Foucault, 1977a, p. 30). A cortina de enunciados a qual nos referimos, so jogos estratgicos, so exerccios permanentes de relao poder/saber. As formaes discursivas so articulaes poder/saber. A Genealogia termo nietzschiano uma anlise histrica das condies polticas de possibilidades dos discursos em seus efeitos de verdade. Investiga a emergncia, o ponto de surgimento no cenrio de foras em luta. Ningum responsvel por uma emergncia, ela sempre se produz no interstcio. O que se encontra no comeo das coisas no a identidade ainda preservada da origem a discrdia entre as coisas, o disparate (Foucault, 1979, p. 18). A microfsica do poder (ou focos moleculares de poder) contrape-se s anlises tanto da cincia como da Filosofia poltica que, ao trabalharem o poder, o fazem deslizar ao Estado. J a Genealogia volta sua ateno para esses pontos difusos, dispersos, mveis, singulares por onde passa o poder. O poder, antes de tudo, no propriedade de quem quer que seja, no algo que se possua ou no, mais ou menos, no h um lugar privado, fonte do poder, ele exerce-se, funciona incitando, suscitando, produzindo. O mapa de relaes de foras de cada formao histrica pode ser denominado de diagrama; noo bastante utilizada por Deleuze ao referir-se s relaes de poder em Foucault. O diagrama ou formao diagramtica um distribuio de singularidades, no sendo, portanto, estvel. Se o poder fora, informe, diferente do saber, que assume formas bem circunscritas, o que, alis, o caracteriza como saber.

39 Poder estratgia e seus efeitos so atribudos ...a disposio, a manobras, a tticas, a tcnicas, a funcionamentos (Foucault, 1977a, p. 29). Como prtica produz realidade e verdade. Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, com a multiplicidade de correlaes de fora imanentes ao domnio onde se exercem e constitutivas de sua organizao; o jogo que, atravs de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, refora, inverte... (Foucault, 1977b, p. 88). Ainda, se relao de fora, luta permanente, j que uma fora se caracteriza por estar sempre em relao a outras foras. Supe permanentemente resistncia, aqui concebida no como uma fora externa que se coloca contra o poder, ela ao na prpria relao de poder. Assim, as prticas de dominao nunca esto descoladas das prticas de revolta. Do mesmo modo que no se considera o lugar do poder, tambm em relao resistncia, diz-se de pontos mveis, difusos, transitrios que se distribuem por todo campo social. Deleuze (1988, p. 96) explicita: ...com efeito um diagrama de foras apresenta ao lado das (ou antes face s) singularidades de poder que correspondem s suas relaes. Singularidades de resistncia, os pontos, ns, focos que se efetuam por sua vez sobre os extratos, mas de maneira a tornar possvel a mudana. Essa concepo de poder tem algumas implicaes imediatas, por exemplo, em relao diviso sociopoltica em duas classes sociais no tocante deteno do poder. O autor no nega a existncia das classes e de suas lutas, mas as insere em um panorama microfsico de poder, no qual compartilham uma determinada funo diagramtica. Diluem-se, assim, suas rgidas fronteiras em relao aos modos de existncia incitados. A tecnologia do poder passa por todos, atravs de todos, entre todos. A Genealogia ...uma forma de histria que d conta da constituio dos saberes, dos discursos, dos domnios de objeto, etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja ele transcendente com relao ao campo de acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da histria (Foucault, 1979, p. 7).

40 Segundo Foucault (1977b, p. 90), As relaes de poder no se encontram em posio de exterioridade com respeito a outros tipos de relao, a posio delas no a de superestrutura, elas possuem onde agem um papel diretamente produtor. Em relao ao poder do Estado, Deleuze (1988, p. 35), comentando Foucault, explicita: Foucault mostra, ao contrrio, que o prprio Estado aparece como efeito de conjunto ou resultante de uma multiplicidade de engrenagens e de focos que se situam num nvel bem diferente e que constituem por sua conta uma microfsica do poder [...] [engrenagens e focos] que o Estado aprova, controla, ou se limita a preservar em vez de instituir. Foucault nos chama a ateno para um tipo de poder que se expressa nos sculos XVIII, XIX, XX: o poder disciplinar ou disciplina. As sociedades modernas podem ser definidas, segundo o autor, como sociedades disciplinares, a partir de um novo diagrama o diagrama disciplinar. No que processos disciplinares no fossem encontrados anteriormente, mas, como frmulas gerais de dominao, a partir desse perodo que engendrado, no momento em que nasce uma arte do corpo humano, um certo modo de investimento poltico e detalhado do corpo. Sua emergncia ocorre a partir de alguns procedimentos (polticos, econmicos, sociais...) instalados em espaos distintos, alguns se remodelando, outros se imitando, outros se criando e, na convergncia dessa multiplicidade, alimenta-se o motor de seu funcionamento. Tambm no aconteceu uniformemente, sendo os colgios e a escola primria os lugares primeiros de seu macio investimento. Esses mtodos que permitem o controle minucioso das operaes do corpo, que realizam a sujeio constante de suas foras e lhes impem uma relao de docilidadeutilidade, so o que podemos chamar as disciplinas (Foucault, 1977a, p. 126). Os mtodos a que se refere so: o trabalho detalhado do corpo o privilgio do detalhe, das mincias, passa a ser o maior investimento poltico do corpo; a coero ininterrupta sobre ele; ateno economia, eficcia dos movimentos, sua organizao interna; esquadrinhamento do tempo, do espao, dos movimentos. Tudo isso aumentando

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o domnio de cada um sobre o seu prprio corpo e sobre o corpo do outro de forma eficaz e rpida. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dceis. A disciplina aumenta as foras do corpo (em termos econmicos de utilidade) e diminui essas mesmas foras (em termos polticos de obedincia). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma aptido, uma capacidade que ela procura aumentar; e investe por outro lado a energia, a potncia que poderia resultar disso, e faz dela uma relao de sujeio estrita (Foucault, 1977a, p. 127). O diagrama da soberania caracteriza-se por acionar mecanismos repressivos, por ser violento, interditor. A disciplina vinculada, dentre outros fatores: ao crescimento demogrfico; ao incremento de uma produo que objetiva aumentar lucros subtraindo dos corpos toda a fora til; s doenas epidmicas e, conforme Foucault, inveno do fuzil caracteriza-se por constituir tcnicas de gesto dos homens, no pela represso ou pela interdio, mas pelo que produz, no espao mesmo de seu exerccio. Vigilncia hierrquica, sano normalizadora e o exame que combina as duas anteriores so seus instrumentos privilegiados. A disciplina localiza, examina, distribui, reparte, coloca em srie, compe, normaliza, registra, compara, avalia, classifica, hierarquiza... enfim, individualiza. O poder disciplinar produz o indivduo, o individual, colocando um em cada lugar e em cada lugar um, naturalizando esse procedimento por meio de formaes discursivas e no-discursivas que passam a descrever, classificar, investigar o individual situando os homens em uma curva de normalidade. Individualiza-se e fixa-se o sujeito: o apto/o no apto, o fracassado/o bemsucedido, o aprovado/o reprovado, o competente/o incompetente. Tambm individualiza o espao social: o trabalho, a famlia, o lazer, a escola. Vejamos mais de perto. Segundo Foucault, a disciplina em primeiro lugar precede distribuio dos indivduos no espao exigindo a cerca, a saber, a especificao de um local diferente dos outros e fechado em si mesmo:

42 Escola no famlia, nem posto mdico, temos que ensinar e s. Tia, tinha que a diretora proibir as crianas grandes de dar beijo na boca. Escola um lugar de respeito. A escola prepara para a vida e para o trabalho no futuro na sociedade. aqui que se faz a educao de verdade, no em outro lugar. Escola no para brincar, pra estudar. Quando forem trabalhar, vo ver que a escola importante. Temos que deixar do lado de fora nossa vida pessoal, quando cruzamos o porto da escola. medida que convivamos no cotidiano escolar, percebamos, no embate das foras, a circulao por entre seus integrantes de um esforo em definir o que escola em detrimento de outros espaos de vida, melhor dizendo, de espaos que se configuram outros pela CERCA. O que cabe ali dentro? O que no cabe e no poder caber sob a ameaa de fragilizar suas fronteiras embaralhando a cabea? Fazia-se urgente, apesar de todas as dificuldades, j que o prprio movimento das foras instvel e informe, delimitar o campo escolar. Esse movimento insistia... mas tambm era tudo muito misturado mesmo! Professor legal quando brinca, conversa da vida. Escola bom porque a gente tem amigos, vive tudo junto. Os professores tratam a gente como se fosse filhos dele. Que saco! Isso aqui igualzinho a uma priso! A gente ri muito, fala de mil lances.

43 O professor no deve se deter s no contedo. A vida que est aqui dentro est l fora e dela que devemos nos ocupar. s vezes a gente est desacoroado da vida, e vir pr aqui anima, distrai. Minha famlia so todos aqui. Hoje trabalhei demais, tia. Queria chegar em casa e tomar um whisky igual meu pai toma quando chega do trabalho. Educao no privilgio da escola, est em todo lugar. Gente, j no sei mais o que da escola, da famlia, do sistema; j estou embaralhando a cabea. Isso sem falar que os beijos na boca aconteciam nos lugares mais reservados (ou no) e apontavam a cumplicidade de todos... uma certa vista grossa e um certo ouvido de mercador (como diziam) circulavam. As resistncias aconteciam, pula-se a cerca; os espaos delimitados do trabalho, do lazer, do estudo, da afetividade no se submetiam compartimentao. No era sem brilho nos olhos que subiam a rampa. O que ser? Ser hoje? Ilhas de alegres piqueniques aconteciam na hora do lanche e fora dele que era sempre esperado com indagaes. Ali conviviam, misturavam-se, entristeciam, confortavam-se. Cumplicidades mais ou menos explcitas se faziam em nome da vida. Perguntavam uns pelos outros, preocupavam-se com o dia, brigavam, davam conselhos, adoeciam, contagiavam-se. A hora do cafezinho comemoravam os encontros. Nela exibiam suas ferramentas de trabalho. Cuidava-se. Alguns choravam prximo s frias, outras vezes se entusiasmavam com os feriados. Hora de descansar. Limpava-se, arrumava-se a escola. Os casos amorosos brotavam dos cantinhos da escola e os arranjos sempre bastante singulares dos uniformes que a desapareciam faziam os corpos pavonearem. Muita cor, muitas imagens no procuravam lugar, antes, faziam composies e se conheciam e se desconheciam numa luta permanente. Aqui propomos uma questo: no poderamos nos perguntar que tipo de poder em seus mecanismos e efeitos est em jogo? Um poder que est em toda parte, que

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provm de todos os lugares e que lamina da mesma forma a escola, a famlia, o trabalho, a vida pblica e a vida privada e que, ao mesmo tempo, faz dessas instituies identidades a se relacionarem exclusivamente? No poderamos tambm trazer a pblico as resistncias no que anunciam nossa possibilidade de criar modos de vida? Aliarmo-nos a ela no que encerram de potncia? Cartografar a tecnologia do poder disciplinar poderia nos dar instrumentos de mudanas efetivas e nos fazer descolar dessa busca de reconhecimento dos espaos sociais remetendo sua interioridade identitria, individualizada e individualizante. O porto da escola controlado pelo vigia muitas vezes era vivido como um porto seguro dando a impresso de que, de fato, ali era um lugar fechado, mas, vazado, misturava... e, ainda, os meninos pulavam o porto, chegavam atrasados, saiam antes ou depois da hora, assim como os demais integrantes da escola (que no pulavam literalmente o porto). Mil imprevistos faziam, enfim, como que o porto resistisse celularizao da escola e num movimento de abano desmanchava limites. O porto muitas vezes era banalizado e dizia-se normal de escola os alunos quererem sair pulando o porto. Outras vezes era danificado, ao que se respondia com aumento da cerca e... da resistncia. Ainda outras vezes machucava e podia ser analisado. pura desobedincia, por isso ela se machucou! No, tia, ela pulou o porto porque ele estava fechado! Em cada espao cercado cada indivduo ter seu lugar, o quadriculamento. O espao das disciplinas sempre celular. Um em cada lugar, em cada lugar um. Tomem seus lugares. Posso sentar ali? No, hoje no, depois eu vejo.

45 fcil ver de cara quem faltou, pelas cadeiras vazias. O que voc est fazendo aqui? Sua sala outra. Tia, ele est invadindo nossa sala. No ptio s as turmas que esto no recreio. Vai um de cada vez ao banheiro, vamos fazer a lista, s pode ir depois que o outro voltar. uma escola enorme, um labirinto bastante compartimentado, com grandes espaos de circulao; para deslocar-se de um ponto ao outro se faz necessrio algum tempo e fatalmente alguns encontros fugidios fora de lugar se faziam aproveitando portas direita, esquerda, frente, atrs. Onde est Fulano? Cad Ciclano?, Voc viu Fulano de tal?, Passou aqui ainda agora, no sei pra onde foi. Ao mesmo tempo em que, como um grande espao com variadas opes de percurso, permite um certo anonimato, a surpresa em encontrar as autoridades e serem pegas em sua desero espreitava em cada esquina; ao que, freqentemente, respondia-se: S vou pegar um livro ali, um instantinho s, Fui falar com meu irmo, Preciso tirar xerox, Fui tomar gua, est calor. Um movimento de resistncia que, como tal, insistia em sair do lugar; ao que, por sua vez, respondia-se: ou com a constatao da malandragem e a realocao de todos e de tudo nos devidos lugares (embora os lugares tornassem a se embaralhar sem maiores constrangimentos), ou quando a resistncia era acolhida como uma oportunidade para criarem-se outras relaes que escapassem aos modelos. O ptio era alegremente ocupado aproveitava-se para trabalhar tambm. O banheiro era o lugar privado mais pblico que podamos constatar. Trocar confidncias, fazer planos, descansar um pouquinho, ficar arrumando as intensidades, refazer-se do esforo, preparar-se. Quem disse que os lugares das salas eram exatamente fixos? As carteiras e cadeiras, assim como os alunos, danavam ao doce sabor dos instantes. No era tambm raro encontrarmos alunos desalocados. Havia sempre um que, em determinado dia, ia aula da professora do ano passado, isso no para reviv-lo mas para engatar o presente.

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A disciplina tambm procede por localizaes funcionais, distribudas no espao de forma a aumentar a docilidade e a utilidade dos corpos. De acordo com sua funo, cada cela ocupar um lugar estratgico. Salas de aula, uma para cada srie em nveis de idade e aproveitamento escolar. Todas dispostas de forma a concentrar os pequenos mais barulhentos onde o som no se propagasse com tanta intensidade. As sries mais adiantadas localizavam-se mais prximas ao acesso de subida/descida. A sala da coordenao no alto e com maior alcance visual (prxima s sries finais). A dos professores embaixo, num espao mais protegido ao final do corredor. A da secretaria, da direo, do apoio pedaggico prximas uma da outra para facilitar o trmite das providncias a serem tomadas tambm distantes das salas de aula. Postos de trabalho, dispostos de maneira econmico-racional, aumentando a eficcia de cada funo. Mas quem disse que cada um tomava sua funo e sua cela de uma vez por todas? As tecnologias do poder disciplinar tambm fazem o controle de cada um pelo trabalho sistemtico de todos; vigilncia individual e geral. Os postos no s se definem pelo territrio que ocupam, mas tambm estabelecendo entre si uma classificao e uma hierarquizao. Caracterizando-se pela relao entre seus ocupantes, a disciplina a arte de dispor em fila. Em relao fila propriamente dita, vivia-se nesse espao escolar um impasse: onde alocar cada fila que corresponde a cada srie para organizar a entrada dos alunos? Seria mais conveniente que as filas das sries iniciais ficassem mais prximas ao acesso de subida para as salas de aulas e, por conseguinte, seriam convocadas primeiro para subirem retardando a entrada das sries finais que, por sua vez, como conseqncia, veriam diminudo seu tempo de aula? Ou, ao contrrio, chamar-se-ia primeiro as sries finais utilizando mais o tempo dos maiores, mas expondo os menores a uma espera que os impacientaria de imediato? A primeira opo ainda contava com um adendo: os menores so mais lentos e fatalmente se chocariam com os mais velhos causando confuso e perigo na subida.

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A ordenao do espao, do tempo, dos corpos se fazia imperativa. Sua funcionalidade era minuciosamente calculada em acordo com os mecanismos disciplinares, como se alguma medida pudesse evitar os processos de resistncia. Lembramos que as prticas de dominao nunca esto separadas das prticas de revolta. A fila, no obstante, mostra-se ao questionamento. Incomodava. Ensaiavam-se arranjos a partir desse mal estar; experimentava-se. Um movimento de desconforto, de incerteza, insistia. Por que no localiz-lo como um ndice de expanso de mundo? Poderamos trazer essa questo entre todos. Fazer fila bom para no misturar! Se misturar? Pisam no nosso p! , mas na fila tambm fica tudo junto e pisam no p... deve ser porque assim! Os mais bagunceiros ficam atrs, sozinhos, grudados na parede, porque na frente arranja perturbao. Na frente ficam os mais espertos. Os inteligentes na esquerda perto da janela, os mais ou menos no meio, os burros perto da porta. Tem sala que no tem isso porque so todos burros e bagunceiros. Eu sou da 6 forte. Os meninos ficam perto da janela, as meninas mais pra c, porque melhor assim. s vezes a tia troca pra ver se eles consertam. A poltica do lugar produz tambm o lugar do aluno, do professor, do aluno fracassado e do bem-sucedido, do professor compromissado e do descompromissado, da servente, do pedagogo, do adiantado e do atrasado, do relaxado e do caprichoso, do meigo e do agressivo.

48 Era dia das bruxas... um menino considerado problemtico na escola, ao ver outros se preparando, fantasiando-se para a festa, exclama: Sacanagem, tomaram meu lugar! Os mecanismos disciplinares so dispositivos ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierrquicos. A orientadora a que conversa. A coordenadora separa briga, faz fila, manda subir e descer, ajuda a organizar tudo. A diretora manda comprar lanche e fica pedindo pra prefeitura pr cobertura na quadra. A supervisora s vezes conversa, mais com os maiores, mas fica mesmo escrevendo. Os mecanismos disciplinares constroem quadros vivos. Foucault (1977a, p. 135) afirma que ...a constituio de quadros foi um dos grandes problemas da tecnologia cientfica, poltica, econmica do sculo XVIII [...] o quadro no sculo XVIII ao mesmo tempo uma tcnica de poder e um processo de saber. Classificar seres vivos; separar alunos por srie e nesta localiz-los normativamente em relao ao comportamento e aprendizagem; observar, regularizar a circulao de mercadorias; inspecionar os homens; fazer um registro geral dos soldados; isolar doentes e classific-los tornando a dividi-los traduzem tcnicas de dominao legitimadas, autorizadas, pelos diversos corpos de saber, por exemplo, o saber cientfico por excelncia. Os mecanismos de poder tornam possveis certas espcies de discurso, estes, por sua vez, servem de suporte ao exerccio do poder. Traar regularidades nas multiplicidades, organizar a massa dispersa a tarefa do poder disciplinar. No s em relao aos espaos agem os mecanismos disciplinares, o controle da atividade tambm seu foco de investimento.

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A relao tempo/atividade minuciosamente detalhada estabelecendo um controle ininterrupto que visa a anular a cera, a preguia, a distrao, transformando cada minuto em tempo de trabalho. A falta de tempo constitua-se, na escola, como um dos principais lamentos por parte de muitos. Horrios cronometrados que no deixam respirar (sic), muitas atividades a serem desenvolvidas que no cabem dentro do tempo estipulado (sic). Corpos suados corriam para l e para c. Corriam, no corriam, parecia que corriam, ao toque insistente das sinetas. A sineta da escola tocava em intervalos regulares. Para os mais-avisados tudo estava dito: que espcies de deslocamentos de espao fsico e ou de tarefa seriam efetivados e as maneiras de abord-los. Um dos mais recm-chegados escola atendia prontamente ao comando do sinal, mas passou a evidenciar, surpreso, que muitas pessoas no o atendiam adequadamente. O menos-avisado dirigia-se, ento, ao ptio e sala de professores, convocando o pessoal aos seus lugares. Acreditava, de certo, que as pessoas distradas no ouviam o toque do sinal. Auxiliava-as, assim, com seu jeito solidrio por vezes percebamos um certa falta de convico quanto distrao das pessoas por parte do menino-da-sineta. Mas do que se tratava? Respondia-se ao ato com muitas risadas, s vezes desconsiderando o prudente aviso, outras respondendo ao apelo. De toda forma, era tido como muito engraado aquele pequeno ou grande gesto. O menino a mostrava-se indignado com a reao dos demais, ainda mais quando riam e chamavam-no de fiscal da SEME.26 Na medida em que as tcnicas de dominao do poder disciplinar se fazem sobre o tempo, ou melhor, constituem o tempo como tempo til de trabalho, a resistncia investe na dilatao, na desacelerao, ou seja, num outro ritmo, numa outra relao tempo/atividade.26

SEME Secretaria Municipal de Educao de Vitria ES.

50 Mas no dizemos que isso enrolar por preguia, descaso ou descompromisso? O que seria engraado? Seria porque vinha de uma criana que, assim, no estaria autorizada a cobrar dos outros? Seria porque tambm como criana inocente no tem papas na lngua e trazia a pblico algo que todos sabem, todos fazem, mas no devem confessar? Preferimos afirmar que seu gesto constitua-se como um analisador27 da maquinaria do poder disciplinar produzindo um esquadrinhamento de tempo-espaoatividade-hierarquias nos sujeitando, ou seja, tornando-nos sujeitos desse diagrama disciplinar, mas tambm fazendo produzir resistncias. O menino-da-sineta leu, apenas, os avisos em seus enunciados. Na relao tempo-espao-atividade, a fiscalizao foi analisada e com ela o poder disciplinar. O gesto, considerado gesto til, decomposto em suas nuanas de movimentos, estabelecendo-se a um ritmo coletivo ao qual cada aluno ser referenciado. Impe-se tambm uma relao entre cada gesto e a atitude global do corpo, para sua realizao mais eficaz. Cada tarefa exige uma certa disposio geral do corpo. Tem um bichinho cutucando a nossa bunda, por isso a gente no pra quieto pra estudar. O tempo disciplinar impe-se pouco a pouco prtica pedaggica. Decompese o tempo em seqncias lineares, evolutivas, separadas em sries mltiplas e progressivas consideradas como estgios. As seqncias vo se ajustando umas s outras pelo grau de complexidade crescente. Uma srie de procedimentos utilizada para indicar se o nvel de cada um foi atingido e como isso se coloca em relao aos demais, definindo a capacidade de cada um a partir de um programa. Isso, por sua vez, permite um controle detalhado e uma interveno pontual de correo. Esses mecanismos vo constituindo o indivduo, o individual que, a partir de sua gnese, progride, se desenvolve em estgios que se complexificam.

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Analisador: conceito-chave da Anlise Institucional. O analisador um revelador, um catalisador do sentido. Afirmam que o analisador que realiza a anlise e no os analistas; as situaes falam por si analiticamente. So falas, situaes, acontecimentos que analisam as produes em jogo.

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Os programas aos quais nos referimos aparecem inicialmente nas instituies religiosas como uma tcnica espiritual e pouco a pouco enveredam pela escola cabendo ao professor a tarefa de conduzir o aluno perfeio por meio do exerccio cada vez mais exigente de uma vida asctica; vo marcando a aquisio da aprendizagem e o comportamento exemplar. Anteriormente ao sculos XVII, XVIII, segundo Foucault (12 Conferncias, s. d., p. 18), os estudantes formavam grupos de ambulao. A partir desse perodo, ...a colonizao da juventude fez-se a partir do modelo dos Irmos da vida comum... [grupos comunitrios regidos pela disciplina que vo contra o poder soberano] [...]: exerccio do indivduo, ascetismo coletivo, busca de melhora para a sua salvao. A Pedagogia desenhada pelo ascetismo. Sua idia de que s se aprende as coisas em nveis sucessivos. A aprendizagem deve realizar-se em espaos fechados e orientada por um guia (o professor da classe). O exerccio dos elementos fundamentais da tecnologia poltica do corpo que vai passo a passo produzindo um assujeitam