Miguel Gustavo Lopes Kfouri - Ser e Poder

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Ser e Poder - Parte I (Introdução) Por Miguel Gustavo Lopes Kfouri "A seguir, será o fim, quando Ele entregar a realeza a Deus-Pai, depois de destruir todo principado, todo poder e força. Pois é preciso que Ele reine até que todos os seus inimigos estejam debaixo dos seus pés. O último inimigo a ser destruído é a morte. Com efeito, Deus pôs tudo debaixo dos seus pés". (1Cor, 15,20-27a) O que é poder? Qual sua natureza, seus limites? E a relação do homem com o poder? É uma relação possível? Quais as conseqüências dessa relação no plano social? Não seria exagero dizer que o homem que não encontrou as respostas a essas e outras perguntas relacionadas com o poder, jamais foi ou será capaz de compreender, verdadeiramente, a realidade em que vive. Porque só a partir do momento que ele encontra essas respostas é que ele estará apto a perceber aquelas "circunstâncias" - das quais falava Ortega y Gasset - que cercam a sua vida e, assim, esforçar-se por compreendê-las, a fim de poder agir e situar-se da forma que lhe parecer mais coerente possível no mundo em que vive. Por óbvio, uma resposta adequada a essas perguntas constituiria, ou pelos menos deveria constituir, todo um sistema de filosofia política. Uma empreitada intelectual dessa envergadura é obra para um filósofo, espécie rara e em extinção em nossos dias, sobretudo por estas plagas. Mas, se ser filósofo não é para qualquer um, a aptidão para ver e buscar a verdade é uma habilidade intelectual que está ao alcance de todos os que têm a humildade, a força de vontade e a persistência necessária para adquiri-la. Como esse é um dos objetivos centrais de minha vida, qual não é minha alegria quando noto que Deus, em sua infinita generosidade - e certamente vendo minha retidão de intenção, meus esforços e também minhas limitações -, às vezes me poupa

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Ser e Poder - Parte I (Introdução)

Por Miguel Gustavo Lopes Kfouri

"A seguir, será o fim, quando Ele entregar a realeza a Deus-Pai, depois de destruir todo principado, todo poder e força. Pois é preciso que Ele reine até que todos os seus inimigos estejam debaixo dos seus pés. O último inimigo a ser destruído é a morte. Com efeito, Deus pôs tudo debaixo dos seus pés". (1Cor, 15,20-27a)

O que é poder? Qual sua natureza, seus limites? E a relação do homem com o poder? É uma relação possível? Quais as conseqüências dessa relação no plano social?

Não seria exagero dizer que o homem que não encontrou as respostas a essas e outras perguntas relacionadas com o poder, jamais foi ou será capaz de compreender, verdadeiramente, a realidade em que vive. Porque só a partir do momento que ele encontra essas respostas é que ele estará apto a perceber aquelas "circunstâncias" - das quais falava Ortega y Gasset - que cercam a sua vida e, assim, esforçar-se por compreendê-las, a fim de poder agir e situar-se da forma que lhe parecer mais coerente possível no mundo em que vive.

Por óbvio, uma resposta adequada a essas perguntas constituiria, ou pelos menos deveria constituir, todo um sistema de filosofia política. Uma empreitada intelectual dessa envergadura é obra para um filósofo, espécie rara e em extinção em nossos dias, sobretudo por estas plagas. Mas, se ser filósofo não é para qualquer um, a aptidão para ver e buscar a verdade é uma habilidade intelectual que está ao alcance de todos os que têm a humildade, a força de vontade e a persistência necessária para adquiri-la.

Como esse é um dos objetivos centrais de minha vida, qual não é minha alegria quando noto que Deus, em sua infinita generosidade - e certamente vendo minha retidão de intenção, meus esforços e também minhas limitações -, às vezes me poupa um pouco o sacrifício e envia, para me ajudar, uma daquelas faíscas divinas que chamamos vulgarmente pelo nome de sorte.

Pois foi assim, por pura sorte, que acabei me deparando com todo um sistema de filosofia política que, além de responder em profundidade a todas aquelas perguntas, foi escrito em língua portuguesa e é criação de um filósofo brasileiro.

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Os mais experientes e estudiosos que me corrijam se eu estiver errado, mas, que eu saiba, jamais algo similar, ou até próximo, desse sistema foi escrito na filosofia política ocidental. Refiro-me a um texto intitulado "Ser e Poder", cujo subtítulo é "Questões Fundamentais de Filosofia Política", do professor de filosofia Olavo de Carvalho.

Apesar de ser um filósofo profícuo, o sistema filosófico do professor Olavo ainda está em construção, e seus Seminários de Filosofia são acompanhados por um número relativamente pequeno de pessoas. Além disso, sendo ele um filósofo por assim dizer à moda antiga, isto é, da mesma estirpe que um Sócrates, Platão ou Aristóteles, seus ensinamentos se submetem ao que se poderia chamar de "lei da oralidade". Ou seja, devido à profunda unidade de seu amplo sistema filosófico e ao vigor produtivo com que ele o desenvolve, só os alunos que têm a sorte de acompanhar seu ensinamento oral é que acabam tendo o privilégio de conhecer e assimilar em toda a sua grandeza as preciosas lições desse notável filósofo. Com efeito, mesmo que após essas conferências do Seminário de Filosofia circulem apostilas com o resumo do que ele neles ensinou, a distância entre o ensinamento oral e o escrito é insuperável.

Porém, há algum tempo, como eu disse acima, tive a sorte de ter acesso a alguns desses textos que o professor Olavo elaborou em algumas ocasiões para os seus alunos. Esses textos, posteriormente, foram compilados num texto maior intitulado Ser e Poder que, segundo me informaram, talvez seja publicado no futuro como livro.

Aqui gostaria de acrescentar uma nota pessoal. Jamais fui aluno do professor Olavo. Sou apenas um admirador da Filosofia, cujos contatos mais próximos com ele se limitaram a ter visto duas palestras que ele deu em Curitiba no ano retrasado, a ter, como companheira de estudos, uma amiga que é ex-aluna dele e a acessar os textos que ele disponibiliza na internet no site olavodecarvalho.org.

Assim, não posso dizer que sou um connaisseur de sua obra filosófica, contudo, acredito que essa "distância intelectual" acabou por me ajudar a perceber, em sua real magnitude, a genialidade do pensamento filosófico dele.

Por isso, ao me deparar com essa "apostila" - que considero um verdadeiro tesouro, pois constitui uma chave indispensável para compreendermos a questão do Poder, questão essencial em filosófica política -, desejei imediatamente compartilhá-la com todos os que se interessam por compreender esse assunto de fundamental importância, sobretudo no tumultuado momento político em que vivemos. Demais, noto que a maior parte das pessoas que se dizem interessadas ou até

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conhecedoras da obra do professor Olavo só comentam ou lêem de modo mais sistemático o que ele escreve em sua atividade como jornalista.

No entanto, acredito que também é de capital importância - diria até que, em determinados momentos, é mais importante - procurar ouvir o que diz o filósofo de escol e conferencista.

Assim, meu intuito, aqui, é oferecer aos leitores de O Indivíduo uma breve resenha desse texto que, tenho certeza, além de responder às perguntas levantadas no início, dar-lhes-á uma idéia mais apurada da originalidade genial do pensamento filosófico do professor Olavo de Carvalho.

Ser e Poder – Parte II

(Conceito Provisório de Filosofia Política)

Por Miguel Gustavo Lopes Kfouri

Como eu mencionei ao início da parte I desse texto, a resposta às questões que levantei, se fossem dadas com o devido rigor de raciocínio, constituiriam um sistema de filosofia política. Mas essa afirmação nos leva naturalmente a outras indagações, que devem ser respondidas previamente se queremos encontrar as respostas àquelas perguntas sobre o Poder que fiz ao início da parte I. Essas questões são: o que é um sistema de filosofia? Quais são os atributos que um raciocínio deve ter para que possamos qualificá-lo de “sistema de filosofia política”?

Antes de responder essas questões eu também devo solucionar um outro problema que acabei por criar na parte I de modo involuntário. Em algumas partes eu falo do “professor Olavo”; em outras do “filósofo Olavo de Carvalho”. Mas os historiadores da filosofia nos ensinam que existe uma distância quase abissal entre um filósofo e um professor de filosofia. Mais ainda: ensinam que a reunião do filósofo com o professor de filosofia reconhecidamente didático é fato raríssimo ao longo da História da Filosofia. Contudo, para felicidade de todos nós, leigos que querem entender ao menos um pouco de Filosofia, esse encontro do filósofo com o professor de filosofia ocorre no espírito de Olavo de Carvalho.

Como se verá a seguir, nele, a genialidade do filósofo também se reflete com nitidez no professor de Filosofia. Os hermetismos da linguagem

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técnica, contidos em termos compreendidos apenas pelos iniciados ou estudiosos, e que requerem interpretações que só os especialistas podem dar estão muito distantes da linguagem filosófica de Olavo de Carvalho. Nessa, o que encontramos é a mesma clareza e simplicidade com que Sócrates dialogava com seus discípulos: tom coloquial e linguagem, por assim dizer, cotidiana e sem rebuscamentos.

A epígrafe desse texto – Conceito Provisório de Filosofia Política – é o subtítulo da introdução geral do texto “Ser e Poder”, e pode ser tida como exemplo emblemático da capacidade didática e de síntese do professor Olavo. Nela, como se diz, o filósofo vai direto ao ponto, e é a partir dela que ele começa a analisar os diversos problemas que a construção de um sistema de Filosofia Política apresenta.

A leitura dessa epígrafe também nos traz ao espírito uma questão: o que é conceito?

Responder essa pergunta é uma conditio sine qua non para que o filósofo possa, em seguida responder àquelas duas indagações iniciais. Demais, encontrar essas respostas constituem um passo fundamental para que ele também posa desenvolver seu sistema de Filosofia Política, pois da resposta a essas questões dependem a solução de problemas lógicos e metodológicos que devem ser previamente examinados a fim de que seja possível construir um sistema de Filosofia Política coerente, adequado e com fundamento na verdade dos fatos.

No intuito de responder à pergunta “o que é conceito?”, o professor Olavo analisa o que chama de “três estratos do conceito”. Para tanto, ele nos explica o conceito de conceito. Para chegar ao conceito, a pergunta filosófica fundamental é “Que é” (Quid est?), pois qualquer resposta a essa pergunta terá de tomar necessariamente a forma de um conceito. A palavra “conceito” vem da raiz latina con-cepio, formada pelo prefixo con, que significa junto, com o verbo cepio, cepire, que significa “agarrar”, “pegar”, de onde derivam palavras como catar e captar.

Portanto, o significado subentendido na palavra conceito significa agarrar alguma coisa junto com outra ou outras, o de pegar duas três ou várias coisas ao mesmo tempo e de juntá-las numa mesma mão. Diz-nos o filósofo: “O conceito é precisamente o instrumento mental que deve permitir captar, ao mesmo tempo, uma palavra ou termo, a idéia ou intenção subentendida e a coisa real que lhes corresponde”. Daí os três estratos (ou camadas) do conceito: lingüístico, lógico e ontológico.

O professor nos explica que “o estrato lingüístico corresponde à definição de uma palavra tal como se pode encontrar, por exemplo, num

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dicionário. Mas, como o sabe quem quer que tenha jamais consultado um dicionário, aos termos ali definidos correspondem vários significados possíveis, como por exemplo a palavra “casa” pode significar a construção onde você mora, a abertura por onde se prende um botão ou uma das doze regiões em que os astrólogos dividem o céu para o cálculo dos horóscopos natais”.

Mas, continua o filósofo, “para captar essas diferentes nuances, é preciso ter em conta a situação e as intenções do sujeito falante. Aqui o termo não corresponde mais simplesmente a algum significado padronizado, mas a um ato real de pensamento que pode se aproximar ou se distanciar muito do significado padronizado”. Portanto, “esse sentido específico [grifo meu] que dentre a multidão de sentidos de um termo, é pensado e transmitido por um indivíduo concreto numa situação real denomina-se o conteúdo formal [ou lógico] do termo ou do conceito correspondente”. Nesse sentido, é possível distinguir-se esse conteúdo formal em expresso (ou explícito) e subentendido (ou implícito).

O professor Olavo explica que “uma vez esclarecido qual o sentido em que se usa um determinado termo, é aí que pode começar a discussão sobre o seguinte ponto: o termo assim definido aplica-se realmente, adequadamente, sensatamente à coisa que se tem ou não?”. Essa é uma indagação crucial para se descobrir o significado de estrato ontológico do conceito.

O exemplo que o professor nos dá para solucionar a questão é extremamente esclarecedor e didático: “Um sujeito pode, por exemplo, no curso de uma discussão acalorada, chamar de “fascista” o regime militar que governou o Brasil de 1964 a 1984. O conteúdo formal aí subentendido é o de um regime de direita, autoritário e anticomunista. Mas, se entendemos que o termo “fascista” designa, em História, um fanatismo nacionalista escorado numa apologia do Estado e numa organização paramilitar de massas de militantes, então é claro que esse regime não foi fascista de maneira alguma, pois defendia a iniciativa privada contra o monopólio estatal, não era nacionalista e sim internacionalista e, por fim, não organizou militância alguma e, bem ao contrário, dissolveu as organizações de massa paramilitares que existiam no Brasil antes de 1964, que um autêntico fascismo teria, em seu lugar, fomentado. Aí entendemos que o nosso amigo quis apenas associar ao regime autoritário de 1964 a atmosfera de horrores que nos vem à mente junto com a palavra “fascismo’, e que portanto, seja por ignorância, seja por má-fé, usou esse termo num sentido impreciso, como mera figura de linguagem,ou, mais exatamente, como insulto”.

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Com esse exemplo, o professor evidencia a todos nós a sutileza em que reside “a diferença entre a mera definição do sentido expresso de um termo e o conceito, no sentido filosófico da palavra conceito. A definição não precisa senão declarar, de maneira suficientemente nítida, o que um sujeito teve em mente ao usar determinado termo, o que ele efetivamente pensou e quis dizer. Se o que ele pensou e quis dizer é uma verdade profunda ou uma asneira fundamental, isso pouco importa: a definição será a mesma em ambos os casos. A definição do sentido expresso visa apenas a tornar explícito o conteúdo de um determinado pensamento, independentemente de julgar se ele se aplica ou não se aplica a determinado objeto, se ele é adequado ou inadequado, se ele é verdadeiro ou falso do ponto de vista objetivo [grifo meu]. A definição apenas expressa uma intenção pensada, e tem de ser adequada somente a ela, não necessariamente ao objeto real dessa intenção [grifo meu]. Já o conceito é algo que tem, essencialmente, a propriedade de ser verdadeiro ou falso [grifo meu]. Vê-se, pois, que o estrato ontológico nos dá o que o objeto real verdadeiramente é segundo suas propriedades essenciais.

É importante esclarecer, diante disso, que, “logicamente falando, um conceito corresponde à definição de uma idéia pensada, que enquanto tal pode ser perfeitamente irreal. Ontologicamente, o conceito é um juízo definitório que exprime o que um objeto verdadeiramente é. Não há, nesse sentido, diferença entre o conceito e a definição, se por esta entendemos algo que vai além da simples definição de um termo e da expressão formal de uma idéia pensada”.

Logo, aos três estratos do conceito correspondem três tipos de juízos definitórios: 1) definição de termo ou definição nominal; 2) definição estritamente de uma intenção formal expressa, ou definição de uma idéia pensada enquanto mero objeto de pensamento; 3) definição efetiva ou definição do objeto real.

Há, pois, níveis de veracidade diversos. Se a pergunta sobre a existência do objeto é indiferente do ponto de vista lógico, é essencial do ponto de vista ontológico. Como diz o professor Olavo, “Um conceito ontológico deve portanto dizer não apenas o que é o objeto, mas delimitar sua esfera e modo de existência etc.”

Depois dessas explicações introdutórias, o professor nos ensina que “um sistema de filosofia é apenas um sistema de conceitos hierarquizados, seguidos de determinadas conclusões concernentes: 1º) às propriedades dos objetos assim definidos e 2º) a conseqüências de ordem metodológica úteis para o estudo científico do mesmo objeto”. [Grifo meu] Nesse sentido ele esclarece ainda que “toda filosofia é sistemática ou sistêmica, mesmo quando não pretenda sê-lo expressamente; a

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razão disto está na natureza mesma dos conceitos que, independentemente de nossa vontade, estão sempre vinculados por nexos hierárquicos e lógicos inescapáveis cujo conjunto forma mesmo espontaneamente um sistema”.[Grifo meu]

Assim, continua o filósofo, “quando falamos de “filosofia política’, portanto, não estamos falando de uma “ parte” da filosofia ou de uma divisão da filosofia, mas sim da filosofia enquanto tal, que toma apenas como seu objeto de investigação ou como seu ponto de partida determinadas questões de um domínio em particular, prestes a reconduzi-las à unidade do sistema”.

Após isso, ele nos oferece uma definição provisória de filosofia política: “(...) sistema de conceitos que, dando conta das realidades oferecidas à experiência humana num domínio amplo designado geralmente como “política”, os articule segundo seus nexos de dependência e implicação recíproca, etc., formando portanto o quadro lógico adequado de toda metodologia que pretenda estudar cientificamente este domínio”.

Essa definição provisória, como sublinha o professor Olavo, coloca de início duas exigências a todos os que queiram investigar o campo da filosofia política. Primeira: a filosofia política deve lidar com realidades e conceituá-las de tal modo que o conceito expresse não apenas o que são, mas o seu modo e grau de existência. Segunda: essa filosofia deverá ser constituída de juízos definitórios de realidade (daí a razão de os tópicos de seu sistema terem títulos como “O que é poder?”, “Que é dinheiro?” etc.) e, secundariamente, de juízos concernentes às propriedades que decorram dos conceitos assim definidos.

O método usado pelo filósofo para encontrar os conceitos fundamentais é o dialético no sentido aristotélico do termo, ou seja, “a triagem e comparação crítica das crenças geralmente admitidas entre os estudiosos a respeito de seus objetos, de tal modo que dessa comparação resultem certas exigências logicamente incontornáveis quanto à natureza e às propriedades desses objetos”.

Já aplicando seu método, toma por base o dado consensual de que a Política pertence ao domínio da ação, e não ao da contemplação, e passa à investigação inicial da “Filosofia Política”, tratando em seguida da Teoria da Ação, que subdivide-se em ação em geral e ação política em particular, e que analisaremos no próxima parte desse texto.

Ser e Poder – Parte III

(Teoria da Ação Histórica : Conceitos Fudamentais)

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Por Miguel Gustavo Lopes Kfouri

No parte II observamos que o filósofo Olavo de Carvalho, no texto introdutório de seu sistema de filosofia política, define o que ele denominou de “conceito provisório de filosofia política”: “(...) sistema de conceitos que, dando conta das realidades oferecidas à experiência humana num domínio amplo designado geralmente como “política”, os articule segundo seus nexos de dependência e implicação recíproca, etc., formando portanto o quadro lógico adequado de toda metodologia que pretenda estudar cientificamente esse domínio”. O adjetivo “provisório” está aí a identificar o projeto filosófico que ele pretende realizar nessa investigação: estabelecido o conceito de sistema de filosofia e de filosofia política, partir, com base nesses conceitos, para a construção teórica de seu sistema de filosofia política.

Nesse sentido, o filósofo faz uma observação importante: “não é necessário encontrar preliminarmente um conceito do domínio todo, um conceito de “política”, mas pode-se partir de uma representação meramente empírica do todo e, sondando as partes até encontrar seus conceitos ontológicos apropriados, retornar à definição do todo no fim”.

Assim, fundando-se no método da dialética aristotélica, isto é, na “triagem e comparação crítica das crenças geralmente admitidas entre os estudiosos a respeito de seus objetos, de tal modo que dessa comparação resultem certas exigências logicamente incontornáveis quanto à natureza e às propriedades desses objetos”, o filósofo não hesita em tomar, como ponto de partida para sua investigação, crenças consensuais evidentes.

No tocante ao objeto em estudo, essa crença nos informa que a política pertence mais propriamente ao domínio da ação que ao da contemplação ou vida teorética, como já observado na parte anterior. Daí o filósofo observar que “(...) a teorização, na medida em que é política e não apenas ciência política ou filosofia política, deve nela ser encarada como atividade preparatória a ação ou mesmo como parte integrante dela”.

A investigação da Filosofia Política deve tratar, portanto, da ação, que se subdivide em ação em geral e ação política em particular.

Mas o que é ação? Explica o filosofo que, “No sentido humano do termo, dizemos que houve ação somente quando, por trás dela, supomos um autor, um “quem” ao qual se possa atribuir sua origem. Mesmo que o

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sujeito tenha sido por sua vez objeto de uma ação alheia que de algum modo determinasse a sua, e mesmo que dessa causa se pudesse remontar a uma fileira indefinida de causas das causas, não dizemos que houve ação exceto quando admitimos que o sujeito constituiu, nessa seqüência, um elo decisivo, que nela a corrente poderia ser de algum modo rompida e que, por algum motivo cuja explicação reside no sujeito e só nele, não o foi”.

Daí a conclusão: “A ação, pois, só se atribui a um sujeito na medida em que este sujeito tenha alguma diferenciação individual que lhe permita ser a causa, ser produtor de modificações na cadeia de causas que atual sobre ele”. Contudo, existe uma outra condição para que ação possa ser uma ação individual propriamente dita: “O sujeito tem de ser uno, tem de possuir a unidade substancial necessária para que sua ação não se reduza a um somatório de ações diversas produzidas por sujeitos distintos e reunidas seja pelo efeito aparente da convergência estatística, seja pela tendência projetivamente unificante, gestáltica, da própria percepção humana.”

Neste passo, o filósofo faz uma observação extremamente importante, que explica a inutilidade de tantos livros e teses que hoje se publicam, bem como a falsificação de muitas idéias e visões de mundo: “A confusão entre unidade substancial e unidade projetiva é, hoje me dia, regra geral nas ciências humanas, que com a maior desenvoltura atribuem ações e intenções a meros conjuntos matemáticos ou a conceitos de espécies, sem perceber que fazem com isso apenas metáforas literárias de gosto duvidoso. A estrutura das línguas permite de fato formar frases onde um aglomerado estatístico ou um universal abstrato constem como sujeitos de uma ação concreta, como por exemplo “A burguesia enforcou Luís XVI”, mas é evidente que se trata de uma figura de linguagem cujo sentido lógico subentende muitas transposições abstrativas e que não pode, por isto, pretender ser literalmente verdadeira ou falsa: uma frase como essa pode ter cinco ou seis sentidos diferentes, sendo falso em alguns e verdadeiro em outros.”

O filósofo sublinha o fato de que Aristóteles distinguia identidade numérica (ou substancial), identidade de espécie e identidade de gênero. A primeira expressa a identidade de um ser consigo mesmo: este gato é este gato e apenas este. A segunda, a identidade entre vários membros da mesma espécie: este gato é, enquanto membro da espécie gato, idêntico aos demais membros da mesma espécie. A terceira, a identidade das espécies no gênero que as abarca: este gato é, enquanto animal, idêntico a todos os animais. É evidente que só no primeiro caso se pode falar de identidade no sentido estrito. Esta distinção é geralmente esquecida nos livros de ciências humanas, que por isso transformam seus conceitos genéricos em verdadeiras

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hipóstases, atribuindo pensamentos, sentimentos e ações humanas a universais abstratos.

Após analisar a ação individual, o filósofo passa a investigar a ação social, valendo-se, para tanto, do conceito weberiano de ação social. Diz-nos o filósofo: “O estudo da ação social, que segundo Weber é o objeto central da Sociologia, divide-se em dois aspectos: 1.º, os fins e valores que a determinam; 2.º, os meios de execução que a tornam possível ou que, faltantes, a impossibilitam. É manifesto que: 1.º os fins e valores mesmos podem ser estudados também como meios, na medida em que constituem fator de motivação (no autor ou no destinatário da ação), bem como na medida em que é na concepção dos fins e valores que tem seu núcleo a concepção que o autor tem da situação. 2.º a Sociologia interessa-se sobretudo pelos meios, incluindo os fins na medida em que possam ser considerados como meios, e não pelos fins em si mesmos, que como tais só podem ser objeto de uma Metafísica da História, disciplina respeitabilíssima e interessantíssima porém alheia a esse estudo. A Sociologia interessa-se pelos meios porque é a possibilidade de obter os meios que determina as possibilidades de ação, e o conjunto sistêmico das possibilidades de ação numa dada sociedade é precisamente o que se denomina estrutura social. O exercício constante e regular da ação segundo o corpo de possibilidades estabelecido por esse conjunto sistêmico denomina-se operação social. As mudanças desse conjunto representa a mutação social. Uma sociedade muda, portanto, não quando coisas novas acontecem, mas quando as coisas novas que acontecem determinam o aparecimento ou desaparecimento de meios de ação, seja em sentido absoluto, seja no que se refere a determinados grupos, castas, ou classes em especial. Aparecimento ou desaparecimento, não simples aumento ou diminuição. O enriquecimento de um grupo, com o concomitante acesso a meios de ação preexistentes, não representa, por si, mutação social, mas se este grupo, ao ascender economicamente, adquire novos meios de ação, diferentes daqueles que estavam à disposição dos grupos a cujo nível ascendeu, então realmente se trata de uma mutação social.” (Negritei)

Após estabelecer seu conceito de ação social, Olavo de Carvalho tem, a meu ver, um dos seus “insights” mais penetrantes ao destacar que, no contexto da ação social, o conceito de impossibilidade é tão importante, ou mais, quanto o de possibilidade. Pois, nota o filósofo, “em cada etapa da vida social há um conjunto determinado de possibilidades de ação estruturadas, ao qual corresponde um sistema de impossibilidades.”

Graças à originalidade dessa percepção, qual seja, a da necessidade desse por assim dizer “equilíbrio conceitual” que o filósofo nota ser

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importante, obtemos uma clave de orientação que será decisiva para a análise da ação social em toda sua complexidade, pois que ela nos permite observar com o filósofo o fato de que “um conjunto de impossibilidades criado pela ação social é nitidamente uma causa da ação social. É uma causa em sentido histórico, quando considerada na sucessão empírica da suas formações, e também em sentido sociológico, quando considerada do ponto de vista sistêmico.” (Negritei)

De posse desse “arsenal conceitual”, o filósofo passa à investigação da realidade humana e social, a fim de desvendar os horizontes da ação individual e histórica. Por meio de uma profunda análise do homem e da realidade social, ele nos descortina todo um universo cuja contemplação nos causa espécie.

Em relação ao homem e suas diferenças entre si, o filósofo nota que ele é, entre as espécies animais, a mais diferenciada. “Não apenas a espécie humana está mais distante de seus parentes mais próximos (antropóides) do que estas estão entre si, mas, na escala individual, há entre os homens mais diferenças, sobretudo funcionais, do que os membros de qualquer outra espécie. (...) Diferenças análogas, descritíveis se não mensuráveis, separam os homens no que diz respeito ao poder, raio de ação ou “espaço vital” – no sentido de Kurt Levin (Cf. Princípios de Psicologia Antropológica): enquanto a ação de alguns homens se propaga sobre continentes inteiros, nações inteiras, a espécie humana inteira, outros, por fraqueza, indigência, inépcia ou desamparo, não podem agir senão no círculo imediato ao alcance de seus corpos.”

Essas diferenças supõem, por sua vez, diferenças entre o que ele denomina “horizontes de consciência”, que não precisam coincidir positivamente com os raios de ação efetivos, mas coincidem com os limites dos raios de ação potenciais, num sentido negativo: tudo o que está para além do horizonte de consciência é terreno onde o homem não pode, no momento dado, estender seu raio de ação.

Olavo de Carvalho também oferece uma definição de horizonte de consciência: “Horizonte de consciência é o total das informações disponíveis multiplicado pelo número de operações intelectuais possíveis. É medida quantitativa”. Em seguida, define os tipos de horizonte de consciência. “São dois: horizontes de consciência contemplativa e horizontes de consciência decisória. O primeiro refere-se ao número de operações classificatórias, interpretativas e explicativas que um indivíduo pode fazer sem que delas resultem possibilidades de ação conscientes. O segundo refere-se às operações que abram possibilidades de ação conscientes.”

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Vê-se que há uma diferença entre horizonte de consciência decisória e raio de ação. “Quando um homem está dentro do horizonte de consciência decisória de outro homem, está também dentro de seu raio de ação, e vice-versa. Se sou capaz de tomar decisões que sei que vão afetar um determinado homem, ele está dentro de meu raio de ação. Mas não tem de ser um homem determinado; pode ser indeterminado e geral: não preciso ter dele conhecimento individualizado. Ele pode ser para mim um tipo, um número, uma estatística.”

E o homem que está fora do meu horizonte de consciência decisória? Explica-nos o filósofo que este homem estará, então, fora de meu raio de ação. Porém, diz, se ele estiver também fora de meu horizonte de consciência contemplativa, isto é, se nada sei dele que me possa ajudar a prever suas ações nem mesmo para simplesmente conhecê-las sem nada poder fazer a seu favor ou contra elas, então sou, para esse homem, objeto inerme.

Assim, “O homem que tem outro dentro de seu raio de ação decisória é produtor consciente de atos dos quais o outro pode ser objeto reagente (caso haja interseção entre seus respectivos raios de ação e, a fortiori, entre seus horizontes de consciência decisória) ou objeto inerme, caso o raio de ação deste esteja contido no daquele. Homens cujos raios de ação e horizontes de consciência não se tocam por interseção nem por pertinência são mutuamente inalcançáveis.”

O filósofo observa que “Para o objeto inerme, as ações do produtor consciente aparecem sem sujeito. Desencadeiam-se sobre ele como proveniente do desconhecido. Para poder raciocinar sobre elas, ele tem de determiná-las mentalmente. Essa determinação é feita, num primeiro momento, pela fantasia ou imaginação, que, partindo dos dados intuídos, ergue o perfil nebuloso de um agente indefinido e impessoal, mas qualificado, isto é, dotado dos atributos que a mente supõe necessários ao cumprimento da ação considerada (bom, poderoso, mau, estranho, rico, etc). O conjunto desses traços compõem o sujeito fantástico da ação, desde o ponto de vista do objeto inerme. Quando esses traços agrupados são por sua vez comparados com outros grupos similares, isto é, com os de outros sujeitos de ações direta ou indiretamente análogas, e quando as diferenças e semelhanças são por sua vez expressas numa definição racional, seu conjunto forma, para a mente do objeto inerme, o sujeito conceptual da ação, o qual doravante, nos seus raciocínios, tomará o lugar do produtor consciente. O objeto inerme pode construir mitologias completas ou teorias inteiras para se explicar por forças impessoais as ações de um produtor consciente desconhecido.”

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Neste passo ele destaca o que denomina “estado de coisas”. “Como nenhuma ação começa do zero, mas parte sempre de um estado de coisas, o produtor consciente deve sempre absorver o estado de coisas, de maneira mais ou menos completa, no seu horizonte de consciência decisória. Quanto mais amplo e integrado o estado de coisas que ele consiga absorver, maior a possibilidade de que haja, dentro de seu raio de ação, um número maior de objetos inermes.”

Importa recordar aqui que “Ação é transformação deliberada de um estado de coisas. “Transformação” não significa necessariamente mudança do “velho” para o “novo”: ação destinada a conservar um estado de coisas contra a influência de elementos – humanos ou naturais – é, evidentemente, ação também. “Deliberado” não quer dizer que os resultados da ação devam coincidir plenamente com os efeitos desejados; isto só acontece na ação perfeitamente realizada, mas a ação imperfeita – do tipo que cobre praticamente todo o território da ação histórica – é também certamente ação.”

Mas o que é ação histórica? Que condições requer a ação humana para adquirir o caráter, o estatuo e o prestígio de ação histórica?

Para responder à essas questões, o filósofo enuncia uma condição: “para que uma ação seja histórica, é preciso que suas conseqüências se estendam para além da duração da física do agente individual. Tudo o que morre com o homem é esquecido para sempre e está fora do âmbito histórico”. Mas, observa, se a ação histórica deve prolongar-se para além da vida do agente individual, então não é exato dizer que este seja, enquanto tal, o sujeito da história, de vez que nenhum homem pode agir no sentido estrito, depois de morto”. Logo, a história deve ter um sujeito durável o bastante para poder agir ao longo de muitas gerações.

Nesse sentido, ele nota que, “(...) Tendo percebido isso, se bem que de maneira mais ou menos nebulosa, os historiadores e filósofos logo procuraram determinar, para além do agente individual, qual seria o verdadeiro sujeito da História e, tateando a esmo, acreditaram encontra-lo ora nas nações, ora nas raças, ora nas classes sociais, ora nas culturas, ora nas civilizações (em sentido spengleriano ou toynbeeano), enfim, em algum sujeito coletivo que, por ser coletivo, fosse o oposto do agente individual. Mas que a um determinado sujeito não sirva um determinado predicado não quer dizer que este deva caber ao seu oposto, muito menos a um oposto que só se lhe opõe sob certo e parcial aspecto, como é o caso do sujeito coletivo que só é oposto ao individual desde o estrito ponto de vista da quantidade.”

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Mas qual os “requisitos para que um sujeito possa ser qualificado de “histórico”? “Em primeiro lugar, o sujeito histórico não tem de ser somente “maior” que o agente individual, nem apenas mais durável. Tem que possuir também aquela unidade, sem a qual as ações não tem verdadeiramente um sujeito por trás e não são sequer propriamente ações, mas apenas efeitos convergentes das ações desencontradas de sujeitos múltiplos e mesmo inconexos. A atribuição de “ações” a esses sujeitos coletivos não passa, no mais das vezes, de pura metáfora, que de tanto repetida acaba produzindo a ilusão hipnótica de unidade substancial, necessária a sustentar a ilusão maior ainda de uma intencionalidade “burguesa” ou “inglesa” ou “judaica” por trás das ações de burgueses, ingleses ou judeus individuais. Ora, a unidade substancial, física, é privilégio do agente individual e co-extensiva com unidade do seu corpo no espaço e no tempo. Dela não podem ser dotadas nem a sociedade, nem a raça, nem a classe, nem o estado.” (Grifo meu)

Portanto, para se saber em que medida, de que modo e dentro de quais limites cada uma das entidades apontadas pode ser realmente sujeito de ação histórica, é necessário investigar qual o tipo de unidade que a constitui e a conserva ao longo do tempo. O filósofo ressalta que, “Em todos os sujeitos históricos até hoje apontados, o padrão de unidade não é suficiente para atender às condições de uma ação intencional continuada como as ações do sujeito individual no curso de sua vida.’

As características da unidade individual que determinam a condição de possibilidade “continuada e sensata” apontadas são as seguintes:

1. A unidade corporal no tempo e espaço – unidade dada e totalmente independente da decisão do sujeito;2. A unidade autoral e a conseqüente responsabilidade que, mesmo rejeitada pelo sujeito, lhe é forçosamente imputada pelo meio;3. A unidade subjetiva, cujas condições são a memória independente de registro externo, a capacidade reflexiva e as duas condições anteriores.

O filósofo destaca que nenhuma dessas condições e observa na raça, na classe, na nação, no Estado, na cultura ou na civilização. Portanto, ele diz que “Só podem ser sujeitos históricos as entidades cujos mecanismos de auto-reprodução transcenda a possibilidade de modificações por iniciativa de indivíduos, de grupos ou de fatores externos, ao longo de toda a existência deles. Só atendem esse requisito de modo eminente:

1) As tradições (no sentido de René Guénon);2) As organizações esotéricas e sociedades secretas;3) As dinastias reais e nobiliárquicas (as castas não são sujeitos, mas

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modos da ação histórica. Sua estabilidade ao longo do tempo não é do tipo substancial, mas categorial);4) As individualidade estendida (no sentido de Michel Veber).

Isto posto, estamos preparados para investigar, na próxima parte, a questão do Poder.

Ser e Poder – Parte IV

(O Poder: observações gerais, teses fundamentais e definição)

Por Miguel Gustavo Lopes Kfouri

O filósofo Olavo de Carvalho, nesta parte de seu sistema de filosofia política, analisa a questão do Poder. Tendo em vista a concisão com que ele faz as observações gerais sobre esse tema e expõe as teses fundamentais que irão nortear sua investigação teórica, peço licença aos leitores para reproduzi-las aqui ipsis litteris, de acordo com o texto que tenho em mão.

“1. Observações gerais:

Só há três poderes nesse mundo: produzir, destruir, conduzir. O primeiro é o poder econômico, o segundo o poder militar, o terceiro o poder espiritual. Roma consagrou-os, respectivamente, a Quirinus, Marte e Júpiter. Os três deuses defendem o homem contra as três ameaças fundamentais: a fome, a violência, o erro. O bem da sociedade depende inteiramente de que haja equilíbrio no culto que se consagra a essas divindades. O triângulo do poder tem de ser eqüilátero.

Cada um desses poderes tem um objeto sobre o qual se exerce e um sujeito que o exerce.

O objeto do poder econômico são os bens de natureza material. O do poder militar, o corpo humano e suas ações. O do poder espiritual, as idéias, crenças e sentimentos.

Seus sujeitos são respectivamente: a dieta ou assembléia dos produtores; o império, ou assembléia dos fortes; a igreja, ou assembléia dos sábios.

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Como todo poder se afirma ora pelo que faz, ora pelo que deixa de fazer, cada um deles comporta uma modalidade ativa e uma modalidade passiva, ou vertical e horizontal, com seus respectivos representantes.

A dieta compõe-se de capitalistas e trabalhadores. Os primeiros são o lado ativo e vertical, porque têm por objetivo permanente o acréscimo e a concentração do poder econômico, que os segundos buscam dividir e distribuir.

O império compõe-se de milícia e justiça, ou nobreza da espada e nobreza de toga. A primeira é ativa e vertical, pois busca aumentar e concentrar o poder de destruição, que a segunda procura moderar e distribuir.

A igreja compõe-se de cultura e tradição. A primeira é ativa e vertical, porque busca criar novas crenças e submeter toda a sociedade às opiniões dos indivíduos criadores. A tradição é passiva e horizontal, porque busca estabilizar as crenças num sistema fixo nivelado pelos valores consagrados.

Essa divisão é natural e espontaneamente continua a vigorar por baixo de todas as concepções formalísticas e puramente inventadas do Estado Moderno. Ela é um fato e não uma doutrina. [Grifo meu]

A divisão tripartite do Estado não corresponde a uma diferenciação real de poderes. O legislativo é um amálgama de representantes de vários poderes: não tem nenhum poder próprio e torna-se objeto de disputa entre os outros. Estes, por sua vez, rebaixam-se ao estatuo de partidos: há um partido dos trabalhadores, outro dos capitalistas, outro dos militares, outro dos intelectuais – nivelados como se fossem espécies do mesmo gênero.”

“2. Teses dobre o poder:

1. Poder, no sentido mais universal, é possibilidade de ação.2. No sentido estrito que tem em política, é possibilidade de determinar as ações alheias.3. No sentido universal, o homem só tem três poderes: gerar, destruir, escolher. O primeiro é poder da riqueza, o segundo o poder da violência, o terceiro o poder do espírito.4. O poder da riqueza tem como objeto os bens materiais, usando os corpos humanos e o espírito como meios e amoldando-se a eles como condições.5. O poder da violência tem como objeto o corpo humano, usando a matéria e o espírito como meios e amoldando-se a eles como condições.

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6. O poder do espírito exerce-se sobre o próprio espírito, usando os bens materiais e o corpo humano como meios e amoldando-se a eles como condições.7. Cada poder exerce-se numa dupla direção: ativa e passiva. A direção ativa tende à unidade, à concentração, à velocidade crescente. A direção passiva tende à multiplicidade, à dispersão, à velocidade decrescente.8. O poder ativo da riqueza reside nos donos do capital. Tende a concentrar a riqeuza nas mãos de poucos, ao monopolismo, a buscar meios de cresce cada vez mais rapidamente.9. O poder passivo da riqueza reside nos trabalhadores. Tende a dividir a riqueza, ao socialismo, ao crescimento zero.10. O poder ativo da violência reside na milícia. Tende a concentrar-se, à hierarquia vertical, a disciplina rígida, a instaurar a obediência automática que produz a máxima eficiência e rapidez.11. A milícia é o fundamento do poder estatal, que se reduz, em última instância, à legitimidade do uso da violência.12. O poder passivo da violência reside na justiça. Tende a dispersar-se, a nivelar o poder, a tudo resolver por livre acordo, a desacelerar a ação.13. O poder ativo das idéias reside nos criadores dos bens culturais. Tende a concentrar o poder, a submeter as ações de muitos às idéias de uns poucos, a acelerar a mudança, a romper os hábitos estabelecidos.14. O poder passivo das idéias reside nos homens de religião. Tende a dispersar o poder, a nivelar o comportamento humano pela média dos valores tradicionais, a anular as diferenças entre homens notáveis e homens comuns, a estabilizar a ação social na rotina sacralizada.15. Essa divisão compreende todas as castas: a casta sacerdotal divide-se em intelectualidade e clero; a casta nobre divide-se em nobreza de espada e nobreza de toga; a casta dos produtores divide-se em proprietários e trabalhadores.16. As castas são funcionais e não têm necessariamente ocupantes fixos: os componentes da nobreza, destronados, podem compor uma casta capitalista ou uma intelectualidade. O trabalhador, em ascensão, pode ingressar na intelectualidade ou na nobreza. Massas inteiras podem ser deslocadas de uma função a outra. As funções permanecem fixas, os ocupantes ou permanecem ou mudam.17. A chamada classe política não existe como unidade independente: é somente uma interface entre nobreza da espada e nobreza de toga. É aristocracia [mas não no sentido original do termo – governo dos melhores –, pois numa democracia de massas, essa aristocracia corresponde ao governo dos piores]. Donde se conclui que a divisão dos três poderes, na teoria de Locke e Montesquieu é puramente normativa e não está fundada na natureza das coisas. O poder executivo, em toda a crueza do seu poder absoluto, é a voz do Imperador, do chefe dos exércitos. Em todos os casos e circunstâncias, permanece distinto do judiciário, cuja existência é co-extensiva com a de partes em litígio e

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que não pode ser absorvido na unidade simples da voz de comando. Isto é verdade mesmo quando as funções de chefe e juiz se unem numa só pessoa, pois permanecem distintas como o comando emitido de motu próprio permanece distinto da arbitragem entre partes. Não é concebível que o Executivo, como tal, absorva em si o Judiciário, de vez que toda a iniciativa do primeiro provém dele mesmo, e a iniciativa de julgar só pode ter início após as demandas das partes. A absorção do Legislativo no Executivo, ao contrário, não só é possível como é fato, nos regimes totalitários, bem como é possível e fato, nos regimes parlamentaristas, a redução do Executivo a um braço do Legislativo, que neste caso é apenas um Executivo coletivo. Tudo isso mostra que o poder militar e o poder judiciário são essencialmente distintos, enquanto a distinção de Executivo e Legislativo é apenas um acidente determinado pela invenção humana.18. As ideologias são expressões dos desejos das várias castas.19. A estrutura de poder numa dada sociedade consiste na distribuição da hegemonia entre os três poderes, que é complicada pela disputa de poder não só entre os três poderes, mas também no interior de cada uma das três castas.20. Na revolução russa de 1917, a intelectualidade, apoiada nos trabalhadores e na milícia, toma o poder, assumindo instantaneamente as funções de nobreza e de clero. A nova nobreza, uma vez constituída, absorve as funções da casta capitalista, o que pôde fazer com facilidade porque já estavam parcialmente absorvidas pela nobreza do antigo regime, num capitalismo de Estado. O marxismo surge como obra de cultura, mas, quando a intelectualidade que o criou sobe ao poder e se transforma em clero, ele adquire a forma de religião.21. Nos Estados Unidos uma poderosa casta capitalista governa com o apoio do clero protestante, subjuga a nobreza, os trabalhadores e a intelectualidade. A intelectualidade e os trabalhadores, com o auxílio da nobreza de toga, contestam o poder. A intelectualidade, porém, conquista gradativamente o poder graças à inventividade técnica e ao domínio das informações, à medida que o capitalismo industrial cede lugar a um capitalismo de bens e serviços. Com a engenharia social, o poder centraliza-se, a eficiência do comando é aumentada, o estado tende na direção social-democrática. Os capitalistas, sentido-se alijados do poder, aliam-se aos trabalhadores e à milícia numa reação conservadora, dividindo a nobreza de toga.”

Após enumerar suas teses, o filósofo esclarece que “(...) que todo esforço de investigação científica se dirige pela meta de enunciar proposições gerais válidas – isto é, quaisquer que sejam suas perspectivas reais de sucesso ou fracasso, o cientista deve proceder como se tais proposições fossem possíveis no seu campo determinado de estudos.”

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Mas como podemos chegar às “proposições gerais”? Segundo o filósofo, devemos usar um instrumento chamado conceito nuclear, que é criação de Bertrand Russell.

Diz-se que um conceito é nuclear quando está “no centro de todas as proposições gerais explicativas – aquelas proposições que, quando chegam a ser verdadeiramente gerais e verdadeiramente explicativas, tomam o nome de leis científicas”. “A razão disto [isto é, da utilidade do conceito nuclear numa investigação científica], ressalta o filósofo, é que proposições gerais válidas só são possíveis quando a ciência consegue articular num sistema coerente vários grupos de proposições particulares referentes a fatos ou grupos de fatos observados – e a maneira de fazer isto é o velho procedimento de classificar por gênero e espécie os conceitos a que se referem estas proposições particulares, e construir, ao lado da pirâmide de conceitos obtidos, uma correspondente pirâmide de proposições, em cujo topo uma só proposição, ou um grupo reduzido de proposições possa enunciar de maneira compacta o conjunto inteiro. Das proposições gerais obtidas podem-se obter novas proposições particulares que, se confirmadas depois pela experiência, assinalarão o sucesso da operação (com a condição, é claro, de que se exclua a possibilidade de que outras operações similares, feitas a partir de proposições particulares diferentes, não obtenham sucesso igual na explicação do mesmo grupo de fatos).”

Diante disso, vê-se que um conceito nuclear deve atender a três requisitos: 1) deve ser geral o bastante para que todas as proposições particulares do campo considerado possam ser reduzidas a proposições gerais que têm esse conceito como sujeito; 2) deve ser determinado o bastante para que tudo o que fique fora dele esteja também fora do campo considerado; 3) deve ser adequado o bastante para que, entre o que está fora e o que está dentro do campo, não haja uma zona de indeterminação, constituída de fatos que nem podem ser explicados por esses conceitos nem sem ele.

Aplicando esses critérios ao conceito de poder, o filósofo enuncia as exigências que deles decorrem: 1) todas as proposições referentes à ação social (no sentido weberiano do termo) devem poder reduzir-se a proposições acerca do poder; 2) nenhuma proposição que se refira a coisas outras que não a ação social deve ter necessidade de recorrer ao conceito de poder; 3) não deve haver entre o campo das ciências sociais e o das outras ciências uma terra-de-ninguém onde ocorram fatos que, sem poder ser explicados com base no conceito de poder, também não possam ser explicados sem ele.

Nota o filósofo que esta última exigência refere-se de modo particular ao campo da teologia, onde o termo “poder” se aplica a Deus num sentido

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diverso do que tem nas ciências sociais, mas cuja analogia com ele pode gerar confusões. Nesse sentido, ele sublinha que “O conceito de poder, no sentido sociológico, aplica-se exclusivamente a seres humanos e implica alteridade numérica com identidade de gênero, que não se verifica entre o homem e Deus.”

Feitas essas considerações, ele apresenta sua definição de poder: “Poder, no sentido mais geral, é possibilidade concreta de ação (transformação deliberada do estado de coisas). No sentido estrito de ação política, é a possibilidade de determinar os atos e ações de outrem; é a possibilidade de produzir obediência. Ter poder é ser, por vontade própria, causa das ações alheias.”

Dada a definição do que é poder, resta-nos investigar os tipos, modos e divisões do poder, o que faremos na próxima parte.

Ser e Poder – Parte V

(Tipos, Modos e Divisões do Poder)

Por Miguel Gustavo Lopes Kfouri

Segundo o filósofo Olavo de Carvalho existem três tipos de poder, que decorrem basicamente de três motivos objetivos que determinam a obediência, a saber: 1.º a força física, ou poder fundado na natureza; 2.º o dinheiro, ou poder fundado na ordem social preexistente; 3.º o carisma, ou poder fundado na imaginação. Para o filósofo, “é bastante evidente que cada um desses fatores é suficiente para produzir obediência sem o concurso dos outros. Tais são, por isto, os únicos tipos de poder que a mente humana pode conceber.”

Os “modos de poder” ou “tipos de obediência” correspondem aos fatores subjetivos que determinam a obediência. Existem duas as classes de motivos subjetivos:

1.ª Obediência racional: 1. Por interesse.2. Por concordância.

2.ª Obediência irracional: 2. Por temor. 3. Por prazer.

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Olavo de Carvalho sublinha que os motivos subjetivos e objetivos podem somar-se: obediência por interesse e por temor, poder carismático e dinheiro. Podem também converter-se uns nos outros: a força física torna-se um carisma, o dinheiro compra armas; o temor converte-se em prazer ou concordância.

Há dois fatores, afirma o filósofo, que determinam essas conversões: Primeiro, a quantidade. Por exemplo, a força, ultrapassado certo limite, já é um carisma; segundo, o hábito. O temor habitual deixa de ser temor, transforma-se em previsão racional e em controle das conseqüências. Mas o hábito não é, por si, causa de obediência, mas apenas a consolidação de uma causa prévia. O hábito deprime os motivos irracionais e em seguida os sustenta, como sucedâneo de um motivo racional.

Segundo o filósofo, “O concurso de vários motivos objetivos e subjetivos deve ser criteriosamente descrito em cada caso, formando um setor especial de estudo que denominarei combinatória do poder. As divisões do poder dependem estreitamente desta combinatória, que é, portanto, um elemento importante na descrição da estrutura social.”

A força física é a forma elementar e básica do poder. É o poder que um corpo tem de dominar outros corpos, de mover sem ser por eles movidos. É de cinco espécies: 1ª Gerativa, ou poder de gerar filhos; 2ª Operativa, ou força de trabalho; 3ª Curativa, ou o poder de carregar um homem doente, o dom da cura; 4ª Destrutiva, ou força de agressão, das armas; 5ª Coadjuvante, ou força de gerar efeitos físicos que atuam sobre a imaginação. “A força física é pessoal ou delegada. A força física delegada é força alheia posta a serviço pelo dinheiro ou pelo carisma. Mas há muitas modalidades de força física, que não deve ser confundida grosseiramente com a força muscular. A emissão de feromônios, por exemplo, é uma força física.”

O dinheiro é sempre uma força delegada. “Ele é o poder que determinado indivíduo tem de forçar o outro a lhe entregar determinados bens em troca de um signo (papel, moeda, números numa contabilidade eletrônica), que transferirá por sua vez a este outro um poder similar. Esse poder é determinado e garantido por uma ordem social prévia.”

Já o poder carismático não reside nos dons pessoais de um homem, mas no que os outros homens imaginam a respeito dele. Por isso, o talento não reconhecido é um dom real, mas não um poder carismático. Observa o filósofo que “Para o exercício do poder carismático, pouco importa que os supostos dons daquele que exerce o poder sejam reais ou fictícios: se o povo imagina que o homem fala com Deus, vai segui-lo

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como a um profeta. Se um profeta fala com Deus, mas o povo não acredita nisto, ele não tem seguidores. O poder de fazer-se acreditar (retórica) é no entanto um poder carismático autêntico – concomitante ou não com outros poderes carismáticos. César tinha o dom da estratégia e o dom da retórica concomitantemente. Cícero, só o da retórica.”

O filósofo destaca que somente a forma elementar e básica de poder – a força física – está e reside no indivíduo como tal. As outras residem na motivação de obediência, que está em outrem. “(...) dos três poderes, o carismático é aquele que menos reside no indivíduo poderoso e mais naqueles que obedecem. O dinheiro está numa situação intermediária: o dinheiro não dá poder a quem o possua efetivamente (em qualquer de suas formas), mas ao mesmo tempo não é a posse do dinheiro que por si traz poder, e sim a anuência de fazer algo por dinheiro. (...) Assim, o poder é tanto mais eficiente quanto menos reside no indivíduo como tal. Logo, o poder não é algo que propriamente um homem possua, mas uma posição que ocupa em relação aos outros. Não é uma propriedade, mas um acidente.”

As castas e a divisão de poder – introdução e teses

Tendo em vista que o pensamento moderno é dominado pela idéia de classes, esse tópico do sistema de filosofia política de Olavo de Carvalho ganha especial relevância. Com efeito, o filósofo, ao criticar o sistema de divisão de poder baseado na divisão de classes econômicas distintas, desmistifica completamente essa idéia que tem servido de baliza conceitual de todo pensamento do mundo moderno, sobretudo nas ciências humanas.

Neste passo, já logo ao início de sua exposição o filósofo observa que

“O pensamento político moderno funda-se na premissa de que a evolução histórica ocidental vai no sentido da democratização crescente das instituições, da distribuição mais equânime do poder, da atenuação e da eliminação das diferenças entre os homens. O intuito desse capítulo é demonstrar que essa premissa é falsa e que:

1.º Em toda sociedade existem quatro castas, das quais a primeira se incumbe do guiamento espiritual, moral e intelectual, a segunda do poder político e militar, a terceira da organização da atividade econômica, a quarta dos trabalhos auxiliares e braçais.

2.º As castas nem sempre são conjuntos fixos compostos de elementos vitalícios, mas postos funcionais, cujos ocupantes podem ser trocados e de fato o são nas épocas de mudança social acelerada.

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3.º A gigantesca mutação social que no Ocidente conhecemos pelo nome de “modernidade” não se caracteriza pela extinção das castas, nem pelo nivelamento de poder mas pela acelerada transfusão de membros de uma casta a outra, pela renovação dos meios de exercício das respectivas funções e pela fragmentação de cada casta em blocos diversos e não raro hostis, sendo que a confusão daí resultante encobre, sem eliminá-la, a estrutura hierárquica das sociedades modernas.

4.º A evolução social do mundo moderno tende a aumentar a distância entre as castas, mediante o fortalecimento sem precedentes do poder das duas castas superiores.”

E, após apontar seus objetivos principais, o filósofo em seguida enumera as teses que nortearão sua exposição:

“1. Estabelecer o conceito de casta e distingui-lo do de classe social. “Classe”, no sentido marxista cujo uso se universalizou nas ciências humanas, é uma abstração no sentido mais estrito da palavra: é um conjunto de seres unidos tão somente pela comunidade de condições econômicas – e eventualmente pelas condições daí derivadas, como a ideologia –, sem levar em conta no mais mínimo que seja todos os demais traços, por exemplo tipológicos, raciais, psicológicos, que perfazem o homem concreto e que não são determinados pela sua condição econômica. (...) A casta, ao contrário, é um conceito abrangente, que classifica os seres não segundo um diferença determinada, separada de todas as outras, mas segundo uma unidade complexa de vários traços diferenciais simultaneamente presentes e atuantes no homem e em sua conduta. A casta não é um conceito econômico, nem sociológico, nem antropológico, nem psicofisiológico, nem moral, porque é todas essas coisas ao mesmo tempo, organizadas segundo os nexos que as unificam na produção da conduta dos indivíduos, das classes, das facções, dos grupos e das famílias.

2. Demonstrar que as castas se fundam no fato de que existem quatro e não mais de quatro esferas da ação humana: a esfera da inteligência, ou dos símbolos, idéias e crenças; a esfera da vontade, ou do mando e da obediência; a esfera do desejo e da necessidade, ou da organização econômica; a esfera do hábito, ou da ação sobre a matéria.

3. Demonstrar que, assim concebidas, as diferenças de castas existem mesmo dentro de uma mesma classe social, bem como dentro de uma mesma raça, religião, partido político ou qualquer agrupamento humano.

4. Demonstrar que a hierarquia de poder se funda antes nas distinções de casta que nas de classe, raça, facção política, etc.

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5. Demonstrar, portanto, que independentemente da organização econômica da sociedade o poder é sempre exercido por uma casta sacerdotal, ou intelectualidade, em aliança com uma casta governante.

6. Demonstrar que as castas colhem seus membros indiferentemente nas várias classes, raças e demais grupos, formando entre eles nexos de lealdade que se sobrepõem aos laços de origem.

7. Em decorrência, demonstrarei que o conceito de “tomada de poder por uma classe”, conceito de origem marxista, mas universalizado no uso das ciências humanas e no folclore ideológico de nosso tempo, é intrinsecamente absurdo e não corresponde a nenhuma realidade jamais observada no seio deste mundo. Em todo processo revolucionário ou evolucionário de mudança do eixo do poder político, o que há é sempre e uniformemente uma seqüência em que, primeiro, observa-se a formação de uma nova casta sacerdotal, ou intelectualidade; segundo, a sagração, pela casta sacerdotal, de uma nova casta governante; terceiro, a tomada do poder pela nova casta governante. Em princípios, qualquer classe social pode fornecer membros seja à nova intelectualidade, seja à nova casta governante.”

Introduzido, assim, o tema da divisão do poder, podemos passar a análise das questões referentes às diferenças entres casta e classe, a composição das castas e a abrangência do conceito de casta, o que faremos na próxima parte.

Ser e Poder – Parte VI

(Casta e classe)

Por Miguel Gustavo Lopes Kfouri

Na parte anterior de nossa exposição do sistema de filosofia política de Olavo de Carvalho, examinamos os tipos e modos de poder, e introduzimos o tema e as teses relativas às divisões do poder. Nesta parte, ao aprofundar os conceitos de casta e classe e analisar a composição das castas, continuamos a tratar da divisão do poder. Em conclusão, explicitaremos a abrangência que do conceito de castas como instrumento de análise da sociedade, da política e até da história.

Casta e Classe

Já foi exposto na parte V desse texto que a classe é definida pelo papel do indivíduo na produção de riquezas. Olavo de Carvalho adverte que

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“Fazer da classe o conceito central da sociologia é decretar, arbitrariamente, que a produção é o eixo em torno do qual gira a sociedade; no quadro assim descrito, não há lugar nem para o clero, nem para os militares, cujos papéis não são definidos pela função econômica; assim, as duas castas que têm sido ao longo do tempo as principais agentes do acontecer histórico desaparecem como que por encanto, ou então têm de ser artificialmente reduzidas a meras representantes de uma classe proprietária, seja feudal, seja capitalista, o que obriga por sua vez a aceitar o pressuposto, perfeitamente irracional, de que o poder intelectual e militar se assenta na propriedade, um pressuposto que, entre outras conseqüências mágicas, resultaria em abolir, no ato, a possibilidade das revoluções.”

Ora, como bem observa o filósofo, “O conceito de classe não pode ser a chave explicativa da vida social pela simples razão de que toda mudança social é uma ação, toda ação deriva de um poder, e a produção é, entre os poderes agentes na sociedade um dos mais fracos; um dos mais fracos por sua natureza mesma de atividade coletivamente organizada, que tende antes à estabilização em normas e rotinas que restringem os movimentos bruscos e necessários a toda e qualquer ação social.” Eis porque a produção é sempre um agente estabilizador e conservador.

A classe de um indivíduo se define pela fonte de riquezas de seus pais, de seu meio de origem, mas é importante ressaltar que essa origem pouco ou nada tem a ver com o poder de que o indivíduo disporá na vida adulta. Nesse sentido o filósofo citou, então, um curioso exemplo: “É só por um formalismo polido que o deputado Luiz Inácio Lula da Silva continua a ser considerado um proletário, embora possua meios de ação infinitamente superiores aos de um proletário. O que ele é efetivamente é um membro da classe política, com meios proporcionais aos de um político e não de um proletário.”

O conceito de casta, segundo o filósofo, não se define pelos meios de subsistência de que dispunha a família de origem de um indivíduo, mas pelos meios de ação de que ele dispõe no período de sua atuação social mais significativa, na vida adulta portanto. Esses meios de ação, por sua vez, incluem desde os talentos pessoais, hereditários ou adquiridos, até os poderes nominais e reais, formais e informais, que a sociedade atribui ao indivíduo. Assim, como nota o filósofo, “(...) É próprio do clérigo, por exemplo, que lhe atribuam uma certa aura carismática, não em virtude de um poder exercido delegadamente (como no caso de um mandatário civil, por exemplo, ou de um potentado das finanças), mas em virtude de alguma qualidade que se crê existir intrinsecamente em sua pessoa; o clérigo é, na sociedade, o único tipo de indivíduo cujas vivências pessoais e subjetivas têm para a sociedade uma importância direta, e

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por isso o único que pode falar em nome próprio e ser ouvido por todos, ao passo que todos os demais só podem falar em nome dos poderes impessoais. O indivíduo, portanto, que venha a dispor desse tipo de prestígio, que conquiste um auditório para a suas vivências ou opiniões pessoais já exerce no ato um poder e um papel de clérigo, qualquer que seja sua origem ou classe.”

Composição das castas

I. O Clero abrange:

1. Os profetas e fundadores de religiões.

2. Os místicos, mestres espirituais, taumaturgos, magos autênticos ou falsos, pregadores, sacerdotes nominais dos vários cultos, etc.

3. Os filósofos e ideólogos; a partir da modernidade, os intelectuais no sentido que o termo possui em Paul Johnson.

4. Os escritores e artistas em geral.

5. Os formadores de opinião, jornalistas publicitários, professores, oradores populares etc.

6. O pessoal do show business em geral.

7. A classe ociosa que, sem compromissos com a organização da produção, vive de exibir-se, e que, portanto, embora desfrute dos meios de subsistência próprios à classe produtora (ou burguesia, se quiserem), não age socialmente pelos meios próprios desta, e sim pela criação dos modelos de conduta (a etiqueta, os estereótipos da conduta social atraente, etc).

Reúne, enfim, todas as pessoas que dispõem concretamente dos meios para moldar ou influenciar, por sua atuação pessoal, as idéias, crenças e sentimentos da coletividade.

II. A casta governante abrange:

1. Todos os detentores do poder armado, “legítimo” ou “ilegítimo”, o que inclui, portanto, desde os comandantes militares do Estado até os chefes de polícia e os grandes líderes do banditismo organizado.

2. Os detentores do poder burocrático e judicial.

A classe governante define-se pelos seguintes traços:

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1.º Capacidade de destruir.

2.º Capacidade de impedir.

Sua função é, portanto, estatuir limites às demais castas.

III. A casta produtora abrange todos os organizadores diretos da atividade econômica que não disponham de outros meios senão a propriedade e o talento. O capitalista que, por meio do lobby, influencie diretamente a burocracia, o legislativo ou o judiciário, torna-se automaticamente um membro da casta governante.

IV. A casta dos braçais abrange todos os que não tem nenhum meio de ação que ultrapasse o necessário à sua subsistência pessoal e familiar. Estes, portanto, não agem socialmente. Mas sublinha o filósofo que um membro desta casta que ascender, por exemplo, à condição de líder sindical conquista um meio de ação próprio do clero e abandona automaticamente a condição de braçal.

Conclusão: abrangência do conceito de castas

Olavo de Carvalho, ao encerrar este tópico de sua filosofia política, lembra que o conceito de castas funda-se no de ação social, e especifica-se mediante o de meios de ação (cf. Weber, Economia e Sociedade) ou poder (cf. Russel, Power: A New Social Analysis), e por meio dele pode-se obter:

1.º Um mapeamento global da sociedade e das diversas correntes de ação em cada momento.

2.º Uma descrição apropriada dos focos de mudança e de estabilização a cada momento, segundo a mudança ou a estabilidade da composição das castas. A mudança social é aqui explicada pela transfusão de membros de uma casta à outra, e a transfusão explica-se pela entropia, pela impossibilidade manifesta de uma determinada raça, grupo ou clã poder continuar desempenhando indefinidamente o papel da casta em que se colocou num momento da História. A completa hereditariedade das castas resultaria na completa imobilidade social, mas a única condição que a tornaria possível seria a completa homogeneidade racial, que é contrária à linha central da História, que caminha manifestamente no sentido da integração e planetarização. O conceitos de castas inclui, portanto, ao menos em germe um princípio de explicação da dinâmica social.

Page 28: Miguel Gustavo Lopes Kfouri - Ser e Poder

Encerrada a exposição desta parte sobre o poder, resta-nos examinar as partes finais do sistema de filosofia política de Olavo de Carvalho, que tratam do direito e da organização econômica.